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Área - Linguagens e Códigos

Disciplina - Literatura
Professor: Luvanor

A SEGUNDA GERAÇÃO MODERNISTA


O ROMANCE DE 30

O “Romance de 30” reúne diversas obras de caráter social da segunda fase do modernismo no Brasil
(1930-1945). Influenciados pelo movimento Neorrealista, esses romances são chamados de romances
neorrealistas ou romances regionalistas. Isso porque abordam aspectos de algumas regiões do país, como a seca
do Nordeste.
O romance de 30 teve como marco inicial a publicação do romance “A Bagaceira” (1928) do escritor José
Américo de Almeida.Os escritores dessa geração estavam preocupados em denunciar as desigualdades e
injustiças sociais no país, sobretudo na região do Nordeste. Assim, eles criaram uma literatura ficcional
crítica e revolucionária, cujo tema era a vida rural, agrária.

Contexto histórico: resumo

No Brasil, o momento era de crise econômica, política e social, reflexo da crise de


1929.
O desemprego, a miséria e a manipulação política, que acontecia pela república do
café com leite, deixava a população cada vez mais descontente.
Sob o governo do presidente Washington Luís despontava a Revolução de 1930.
Ela culminaria no golpe de Estado de 1930, na deposição do Presidente da República e a
chegada de Getúlio Vargas ao poder.
Diante de tal panorama, os literatos brasileiros do momento apresentam uma nova
estética, pautada nos temas humanos, psicológicos e sociais do país.

Vale lembrar que a linguagem do romance de 30 envolve a linguagem coloquial,


popular e regionalista.

Principais características do romance de 30

Regionalismo romântico
Romance social
Diversidade cultural brasileira
Retomada do romantismo e do realismo
Perspectiva determinista
Narrativa linear

Autores e obras do romance de 30

Os autores que fizeram parte da segunda fase modernista exploraram temas como a miséria, desigualdade
social e econômica, dores e sofrimentos humanos. Confira abaixo os grandes destaques desse período:
1. José Américo de Almeida (1887-1980)
Escritor, professor, político e sociólogo paraibano, José Américo de
Almeida foi quem introduziu o romance regionalista no Brasil, com a
publicação de “A Bagaceira” (1928).Nesse romance, ele aborda o tema da seca
de 1898 e da fuga dos retirantes nordestinos.

Obras:

● Ocasos de sangue, 1954 ● Quarto minguante, 1975


● Reflexões de uma cabra, 1922
● Discursos de seu tempo, 1964 ● Antes que me esqueça, 1976
● A Paraíba e seus problemas, 1923
● A palavra e o tempo, 1965 ● Sem me rir, sem chorar, 198
● A bagaceira, 1928
● O ano do nego, 1968
● O boqueirão, 1935
● Eu e eles, 1970
● Coiteiros, 1935

Resumo: A Bagaceira.
O romance se passa entre 1898 e 1915, os dois períodos de seca. Tangidos pelo sol implacável, Valentim
Pereira, sua filha Soledade e o a filha do Pirunga abandonam a fazenda do Bondó, na zona do sertão.
Encaminham-se para as regiões dos engenhos, no rejo, onde encontram acolhida no engenho Marzagão, de
propriedade de Dagoberto Marçau, cuja mulher falecera por ocasião do nascimento do único filho, Lúcio.
Passando as férias no engenho, Lúcio conhece Soledade, e por ela se apaixona. O estudante retorna à
academia e quando de novo volta, em férias, à companhia do pai, toma conhecimento de que Valentim Pereira
se encontra preso por ter assassinado o feitor Manuel Broca, suposto sedutor e amante de Soledade. Lúcio, já
advogado, resolve defender Valentim e informa o pai do seu propósito : casar-se com Soledade. Dagoberto não
aceita a decisão do filho. Tudo é esclarecido : Soledade é prima de Lúcio, e Dagoberto foi quem realmente a
seduziu. Pirunga, tomando conhecimento dos fatos, comunica ao padrinho (Valentim) e este lhe pede, sob
juramento, velar pelo senhor do engenho (Dagoberto), até que ele possa executar o seu "dever": matar o
verdadeiro sedutor de sua filha. Em seguida, Soledade e Dagoberto, acompanhados por Pirunga, deixam o
engenho e se dirigem para a fazenda do Bondó. Cavalgando pelos tabuleiros da fazenda, Pirunga provoca a
morte do senhor do engenho Marzagão, herdado por Lúcio, com a morte do pai.
Em 1915, por outro período de seca, Soledade, já com a beleza destruída pelo tempo, vai ao encontro de
Lúcio, para lhe entregar o filho, fruto do seu amor com Dagoberto.

trecho de “A Bagaceira”:
OS SALVADOS

Findo o almoço — podiam ser 9 horas — Dagoberto Marçau correu à janela, que é uma forma de fugir de
casa, sem sair fora de portas, como se o movesse uma grande curiosidade. Mas,
debruçado, apoiou o queixo na mão soerguida e entre fechou os olhos, num
alheamento de enfado ou displicência.
Vivia ele, desse jeito, entre trabalheiras e ócios, como o homem máquina
destas terras que ou se agita resistentemente ou, quando para, pára mesmo , como
um motor parado.
Como que cobrara medo ao vazio interior. Não há deserto maior que uma
casa deserta.
Entrava afobado, comia, ou, antes, engolia, de cabeça descaída, o repasto
invariável e ou saía de golpe ou ficava a espiar para fora.
A presença do filho recém-chegado, em férias, não lhe modificava essa
impressão. Em vez de confortar-lhe o abandono, agravava-o, mais e mais, como
uma sombra intrusa.
Lúcio voltou da cachoeira com a toalha enrolada na cabeça, como um
turbante .
Levantou o braço num gesto de quem mais parecia dar do que pedir a bênção. E foi, por sua vez ,
sentar-se à mesa,
Não se defrontavam, sequer, nesse ponto de comunhão familiar, onde as almas se misturam numa
intimidade aperitiva. Forravam-se , assim, ao constrangimento dos encontros calados ou das conversas
contrafeitas e escassas.
A casa-grande, situada numa colina, sobranceava o caminho apertado, no trecho fronteiro, entre o cercado
e o açude .
Num repentino desenfado, Dagoberto estirou o olhar, por cima das mangueiras meãs enfileiradas ladeira
abaixo, para a estrada revolta.
Parecia a poeira levantada, a sujeira do chão num pé-de-vento.
Era o êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos — esqueletos redivivos, com o
aspecto terroso e o fedor das covas podres.
Os fantasmas estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos e trêmulos, num passo arrastado de
quem leva as pernas, em vez de ser levado por elas.
Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham pressa em chegar, porque não
sabiam aonde iam. Expulsos do seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão
dos maus fados.
Fugiam do sol e o sol guiava-os nesse forçado nomadismo.
Adelgaçados na magreira cômica, cresciam, como se o vento os levantasse. E os braços afinados
desciam-lhes aos joelhos, de mãos abanando.
Vinham escoteiros. Menos os hidrópicos — doentes da alimentação tóxica — com os fardos das barrigas
alarmantes.
Não tinham sexo, nem idade, nem condição nenhuma . Eram os retirantes. Nada mais.
Meninotas, com as pregas da súbita velhice, careteavam, torcendo as carinhas decrépitas de ex-voto. Os
vaqueiros másculos, como titãs alquebrados, em petição de miséria. Pequenos fazendeiros, no arremesso
igualitário, baralhavam-se nesse anônimo aniquilamento.
Mais mortos do que vivos. Vivos, vivíssimos só no olhar. Pupilas do sol da seca. Uns olhos espasmódicos
de pânico, assombrados de si próprios. Agônica concentração de vitalidade faiscante.
Fariscavam o cheiro enjoativo do melado que lhes exacerbava os estômagos jejunos. E, em vez de
comerem, eram comidos pela própria fome numa autofagia erosiva.
Lúcio almoçava com o sentido dos retirantes. Escondia côdeas nos bolsos para distribuir com eles, como
quem lança migalhas a aves de arribação.
A cabroeira escarninha metia-os à bulha:
— Vem tirar a barriga da miséria...
Párias da bagaceira, vítimas de uma emperrada organização do trabalho e de uma dependência que os
desumanizava , eram os mais insensíveis ao martírio das retiradas.
A colisão dos meios pronunciava-se no contato das migrações periódicas. Os sertanejos eram malvistos
nos brejos. E o nome de brejeiro cruelmente pejorativo.
Lúcio responsabilizava a fisiografia paraibana por esses choques rivais. A cada zona correspondiam tipos
e costumes marcados.
Essa diversidade criava grupos sociais que acarretavam os conflitos de sentimentos. Estrugia a trova
repulsiva:
Eu não vou na sua casa ,
Você não venha na minha,
Porque tem a boca grande ,
Vem comer minha farinha...

Homens do sertão, obcecados na mentalidade das reações cruentas, não convocavam as derradeiras
energias num arranque selvagem. A história das secas era uma história de passividades. Limitavam-se a fitar os
olhos terríveis nos seus ofensores. Outros ronronavam. como se estivessem engolindo golfadas de ódio.
E nas terras copiosas, que lhes denegavam as promessas vistoriadas, goravam seus sonhos de redenção.
Dagoberto olhava por olhar, indiferente a essa tragédia viva.
A seca representava a valorização da safra. Os senhores de engenho, de uma avidez vã, refaziam-se da
depreciação dos tempos normais à custa da desgraça periódica.
O feitor alvitrava a admissão dos retirantes:
— Paga-se pouco mais ou nada...
Mas Dagoberto escarmentava a convergência molesta. Desafogava a fazenda da superpopulação
imprestável, consignada à caridade pública.
À vista do bueiro fumegante que sujava o céu estivo, a matula espetral detinha-se esperançosa. E ficava a
espiar a casa do engenho como uma grande essa armada no negrume do teto velho.
Alguns faziam menção de subir. Mas logo desandavam, aos tombos, na mobilidade incerta.
De quando em quando, um magote vingava o socalco. Chegavam mastigando em seco, para enganar a
fome, nas mais grotescas atitudes da miséria.
Dobravam-se os joelhos, não como pedinchões. Genufletiam moídos de fadiga.
Não se carpiam, como se estivessem realizando um destino irremediável. Nem, sequer, lavavam com
lágrimas as caras poentas.
Escorraçados, retrocediam, arquejantes, sem uma queixa.
E, desengonçando-se, de déu em déu, numa marcha esquecida, o rebotalho errante ia atulhar as feiras,
malignar as cidades.
Dagoberto despercebia-se do desfile macabro. A seca infundia-lhe um sentimento contrastante.
Era uma inquietação seródia, como a brasa remanescente que procura acender o cinzeiro.
Num período de vida em que o homem realiza o que sonhou, ele voltava a sonhar. Amor — pólvora que
se acaba com a primeira explosão. Amor que sabe a frutos apodrecidos. Era como o caminheiro que, fatigado
da jornada , estuga o passo para chegar antes de anoitecer.
Beirava uma idade em que o instinto sexual instigado se difunde por todos os sentidos e é mais
imaginação que materialidade, como a saudade do que se não gozou. Crise das uniões retardatárias.
Havia coisa de 18 anos, inveterava-se na viuvez desconfortada, por uma jura indiscreta:
— Mas eu não encontro outra mulher assim...
E gabava-lhe com minúcias de formas os caracteres da beleza e as prendas ocultas:
— Mulherão! mulherão!
Os dias do campo decorriam-lhe recreativos. Mas, à noite, quando as portas se cerravam, cerrava-se-lhe o
coração. [...]

1. Assinale a afirmação FALSA sobre a linguagem do texto:


a) Predominam os períodos curtos, incisivos.
b) Há muitas frases nominais, como, por exemplo, todo o décimo segundo parágrafo.
c) O autor faz largo uso dos paroxítonos e de longos proparoxítonos, criando um ritmo áspero e forte, como,
por exemplos, “fantasmas estropiados, trôpegos e trêmulos adelgaçados na magreira cômica...”.
d) O texto é predominantemente descritivo, com digressões do autor. Como exemplo, o décimo sétimo
parágrafo.
e) No texto só ocorrem imagens visuais.

2. Sobre o texto, NÃO se pode afirmar:


a) O autor projeta poeticamente o antagonismo de estruturas sociais.
b) O autor preocupa-se com a linguagem bem selecionada e expressiva.
c) Há a presença do enfoque da problemática da seca e da vida nordestina.
d) O ambiente é apenas um pano de fundo para a ação dos personagens, é motivação para a escritura.
e) Quanto à forma de narrar, o texto mantém uma aproximação maior do Romantismo do que do
Realismo/Naturalismo.

2. Rachel de Queiroz (1910-2003)


Escritora, jornalista, dramaturga e militante política cearense, Rachel de Queiroz
foi uma das mais proeminentes artistas do momento.
Sua ficção social nordestina mais conhecida é “O Quinze” (1930), e o
título faz referência ao ano em que a seca assolou o Nordeste.

O quinze (1930) é uma narrativa que conta a trajetória de Chico Bento e


sua família. O protagonista, demitido de seu emprego de vaqueiro devido à seca
de 1915, vê-se obrigado a migrar em busca de condições melhores.

Durante o romance, a família passa por diversas penúrias, enfrentando a


miséria e a privação para chegar até o Recife.

Obras:

● O Quinze, 1930 ● Cem Crônicas escolhidas, ● Cafute e Pena-de-Prata,


● João Miguel, 1932 1958 1986
● Caminho de Pedras, 1937 ● O Brasileiro Perplexo, ● Memorial de Maria Moura,
● As Três Marias, 1939 1964 1992
● A Donzela e a Moura ● O Caçador de Tatu, 1967 ● Cenas Brasileiras, 1995
Torta, 1948 ● O Menino Mágico, 1969 ● Nosso Ceará, 1997
● O Galo de Ouro, 1950 ● Dora, Doralina, 1975 ● Tantos Anos, 1998
● Lampião, 1953 ● As Menininhas e Outras ● Memórias de Menina, 2003
● A Beata Maria do Egito, Crônicas, 1976 ● Pedra Encantada, 2011
1958 ● O Jogador de Sinuca e
Mais Historinhas, 1980

O SENHOR SÃO JOÃO


Dois amigos me sugerem uma crônica sobre o “são-joão no Norte”, comemorando o dia do Santo Batista.
Essa sugestão me dá oportunidade para comentar uma concepção muito engraçada que até entre homens e
mulheres inteligentíssimos existe aqui pelo Rio e, de certo modo, em quase todo o Sul, a respeito do Norte.
Parece que eles consideram o Norte, e especialmente o Nordeste, uma espécie de barraca de pastoril
eternamente em festa: no Natal dançam pastoras, no Ano-Novo o boi-bumbá; dançam fandangos e cheganças,
dançam os congos as suas pantomimas guerreiras, dançam-se as sortes em redor das fogueiras de São João.
Dançam os maracatus no carnaval, dançam de janeiro a dezembro os candomblés. E realmente, enumerando
isso tudo, eu que me ia indignando e contradizendo, verifico envergonhada que realmente há muita dança e
muita cantiga... Bem, mas de qualquer forma a gente daqui exagera. Leve-se em conta em primeiro lugar a
imensa extensão territorial do Norte - aumentada pelas comunicações difíceis. As várias festas em geral são
simultâneas, consagram uma determinada época, e o resto do ano é triste e calado. Sergipe é bem longe do
Maranhão, Belém fica a mais de uma semana de Manaus. Só o Recife é uma espécie de capital de Maceió e
Paraíba, e assim mesmo a distância é suficiente para isolar tradições. Cada um vive a sua vida, celebra as suas
festas - e essa entidade bailarina e pitoresca chamada “o Norte” é pura convenção literária de sulistas.
Falei em tantos lugares, e não falei no Ceará, minha terra, porque no Ceará praticamente não há são-joão.
Uma fogueirinha, uns fogos de vista nas mãos dos meninos ricos, “baile do chitão” nos clubes (instituídos há
poucos anos em imitação aos que se fazem por cá), um raro balão, solto pelo bodegueiro do fim da rua, algum
aluá, afilhados e compadres de fogueira, e as clássicas sortes para ver morte e casamento. Mas tudo isso há pelo
Brasil inteiro, há aqui no Rio, e feito com mais convicção. Que nós, cearenses, somos gente de pouca
comedoria e pouca festança; ainda estamos muito perto do tapuia bisonho, e sempre tivemos poucos negros,
que são a alma das festas populares. Português e estrangeiro mal chegam lá e compram uma casa, vão virando
cabeça-chata e tendo filho que não cresce mais de um metro e cinquenta. O sertanejo é sóbrio e triste - muitas
vezes cético; poucos caboclos vão se dar ao trabalho de cortar lenha no mato para fazer fogueira. Cortar lenha,
sim, mas a tantos cruzeiros o metro cúbico, por conta do fornecedor da estrada de ferro. Nem faz balões, nem
estrói dinheiro com foguetes, nem guarda receita de quitutes. Lá para minha zona, no município de Quixadá,
que já é sertão autêntico, o único festejo popular que apaixona e consome dinheiro e energias é o boi, ou os
papangus - vadiação de Natal e Ano-Bom. Essa sim, tem ainda muita força no coração do povo. Tem burrinhas
com saia de renda, tem bois com chifres dourados, babaus enfeitados de fita de gorgorão, e os trajos do velho,
do mateus, dos papangus são quase tão caprichados quanto os dos cordões de carnaval dos cariocas. Esses
contudo não são a maioria, porque a pobreza mais pobre “vadeia” com bois de lençol remendado, papangus de
pé no chão, “damas” vestidas numa saia velha e um lenço de chita lhe escondendo os atributos masculinos da
cara - pois os costumes não permitem ainda a intromissão de damas de verdade no elenco dos reisados.
Isso tudo, porém, é nas festas do Nascimento. São-joão, meu Deus, é aquela displicência. Nós, em
meninos, fazíamos fogueira - exigíamos a cessão de um dos “metros” de lenha que iam nas costas dos jumentos
a caminho da estação do trem. E se havia milho-verde, comia-se milho assado à beira do fogo.
Aliás, mesmo nesses tenros anos da infância já as exigências da minha alma eram corrompidas pela
literatura. Porque, então, um dos meus livros prediletos era uma tradução portuguesa dos contos de D. Antonio
de Trueba, onde se descreviam os folguedos de São João e São Pedro nas aldeias espanholas; e eu tentava
obstinadamente adaptar o nosso são-joão sertanejo àquele modelo ibérico. Queria que “bailássemos rondas”,
fingia com aluá de milho os copos de jerez que eles bebiam nas histórias; punha um cravo no cabelo e oprimia
terrivelmente irmãos, primos e moleques, obrigando-os a aprender uns versinhos que vinham no original numa
nota à margem do livro, e aos quais ajeitei uma toada de modinha; começavam assim:
S. Juan, S. Pedro,
Santiago in medio...
Mas o que havia de mais abundante nos são-joões eram afilhados. Tínhamos legiões deles, e entre primos
e primas havia uma contabilidade ciumenta, para ver quem os conquistara mais, ao pé da fogueira. Ainda hoje
tenho afilhados com o dobro da minha idade, que tiram o chapéu, estendem a mão e me tomam a bênção em
qualquer lugar onde me encontrem. Não me esqueço de certo dia em que eu ia atravessando a Rua do Ouvidor e
um garboso fuzileiro naval cruzou comigo. Para surpresa minha o militar, ao me ver, parou, fez continência,
depois arrancou o gorro de fitinhas, ergueu a mão no ar quase numa saudação fascista e disse naquela voz
cantada da minha terra, que só de ouvi-la me aperta o coração de saudade:
- Abença, madrinha Rachelzinha!
(Sou a Rachelzinha, pois Madrinha Rachel era minha avó.)
Uns dois impertinentes, ao meu lado, riram. Mas o fuzileiro, imperturbável, recebeu minha bênção, deu e
pediu notícias dos seus e dos meus, e passou, tão indiferente ao ridículo quanto um escocês com o seu saiote.
Só porque era um naval não ia perder o respeito à sua madrinha de fogueira.

Tem gente que não acredita em sorte de são-joão. Quando adolescentes, no colégio de freiras, fizemos
sorte de bacia e sorte de clara de ovo. Na clara de ovo saiu que eu morria aos quinze anos - e me preparei para
esse fim prematuro; fiz até uns versos de despedidas. Uma vez que não tinha amores, cuidei em morrer como
uma virgem cristã, de capela de flores e vestido branco. Vieram contudo os quinze anos, e duas vezes quinze, e
ainda estou penando por este vale de lágrimas. Mas na sorte da bacia saiu tudo preto - destino obscuro que teve
interpretações variadas. Era morte, casamento infeliz, ou ficar para tia? Num velho livro de sortes, antiga edição
portuguesa que arranjáramos não sei onde, dizia assim: “Cara preta na bacia - casamento com homem negro ou
mouro”. Apeguei-me à ideia do mouro. Fazia-o belo e dramático: para me ajudar a imaginação lá estava, em
todo o esplendor Shakespearian©, o modelo clássico de Otelo. E vim atravessando todos os revoltos e sofridos
anos da vida, guardando a lembrança daquele mouro no coração; com o passar do tempo, cheguei quase à
convicção de que os mouros haviam saído da história desde o desastre de Alcácer-Quibir, e esperar por mouros
era o mesmo que esperar por D. Sebastião. Felizmente me enganava.
No Pará, quando eu tinha oito anos, deram-me à meia-noite, em véspera de são-joão, um banho de cheiro
cheiroso, para ter boa sorte. Mas talvez as ervas fossem fracas, ou minha estrela negra muito forte, porque
bastante demorou essa boa sorte para vir. Tomei depois muitos outros banhos de cheiro; tanta macacapuranga,
catinga-de-mulata, priprioca, japana, mucuracaá, consumida à toa! - e agora, quando já desenganada das ervas
eu me passara para os sais de banho ingleses, foi que a sorte mudou.
Entretanto, o melhor são-joão que passei na minha vida não foi em Belém do Pará, no Cariri ou na Bahia.
Faz três anos, foi na cidade de São Paulo, em tempo de frio e de garoa. Era uma sala sossegada; lá fora, no
mundo, tragédias públicas e particulares explodiam como vulcões. Mas a sorte da bacia preta se cumprira: ao
meu lado estava o mouro - afinal encarnado; rodava o dial do rádio, até conseguir, em vez dos jornais de guerra,
um samba de Noel Rosa, aquele tristíssimo Ültimo desejo, que começa falando em noite de São João e acaba
dizendo: “O meu lar é um botequim...”
(Rio,junho de 1944)

(L.P.Truques e Táticas) A obra O quinze de Rachel de Queiroz pertence a fase modernista em que predomina
uma literatura de denúncia. Nesse sentido, convém afirmar que nesse romance a crítica da autora se propõe a
denunciar
(A) a situação degradante da vida dos retirantes causada por fatores climáticos, sociais e econômicos;
(B) somente as consequências da seca na vida da população que vive em situação de pobreza;
(C) somente os efeitos da seca de 1915, que marcou a infância da autora;
(D) a crueldade dos proprietários de terra por não acolher seus trabalhadores no período da seca;
(E) principalmente a precariedade do “Campo de concentração”, local onde os retirantes eram recebidos.

3. Graciliano Ramos (1892-1953)


Graciliano Ramos foi escritor, jornalista e político alagoano. Sem dúvida, sua
obra mais emblemática do período é “Vidas Secas” (1938), onde ele aborda o tema
da seca e a vida de uma família de retirantes que foge do sertão e da miséria.

Capítulo I – Mudança

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas


manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro,
estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam
pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio
seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que
procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu
longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, Sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto
e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada
numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia
iam atrás.
Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no
chão.
- Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.
Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado,
depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se
levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O vôo
negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.
- Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar
alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário – e a obstinação da criança irritava-o.
Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não
sabia onde. Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio,
a lama seca e rachada que escaldava os pés.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos
urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinha Vitória estirou o beiço
indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca
na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos
encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível
abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinha Vitória, pôs o filho no cangote,
levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinha Vitória
aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis.
E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande.
Ausente do companheiro, a cachorra Baleia tomou a frente do grupo. Arqueada, as costelas à mostra,
corria ofegando, a língua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se
retardavam.
Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde
haviam descansado, a beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de
comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto. Agora, enquanto
parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola
pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela, mas logo a recordação
chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa: o resto da farinha acabara, não se ouvia um berro de rês perdida
na catinga. Sinha Vitória, queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos,
pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo
numa confusão. Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com
os pés apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se
declarando a si mesma que ele era mudo e inútil.
Não podia deixar de ser mudo.. Ordinariamente a
família falava pouco. E depois daquele desastre
viviam todos calados, raramente soltavam
palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um
gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.
As manchas dos juazeiros tornaram a
aparecer, Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a
fome, a canseira e os ferimentos. As alpercatas
dele estavam gastas nos saltos, e a embira
tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras muito
dolorosas. Os calcanhares, duros como cascos,
gretavam-se e sangravam.
Num cotovelo do caminho avistou um
canto de cerca, encheu-o a esperança de achar
comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para não estragar força.
Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca, subiram uma ladeira, chegaram aos juazeiros. Fazia
tempo que não viam sombra.
Sinha Vitória acomodou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-os com molambos. O menino mais
velho, passada a vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas secas, a cabeça encostada a uma raiz,
adormecia, acordava. E quando abria os olhos, distinguia vagamente um monte próximo, algumas pedras, um
carro de bois. A cachorra Baleia foi enroscar-se junto dele.

Baleia, de Graciliano Ramos


A cahorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas
avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da
boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço
um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral
ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada
e curta, grossa nas base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.
Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o
saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.
Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que advinhavam desgraça e não
se cansavam de repetir a mesma pergunta:
- Vão bulir com a Baleia?
Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de
que Baleia corria perigo.
Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se difereciavam,
rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiquiro das cabras.
Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas sinhá vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e
esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas
orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-­se e tratou de subjugá-los, resmungando com
energia.
Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e
justa. Pobre da Baleia.
Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na
bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.
Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou
escapar o mais taludo e soltou uma praga:
- Capeta excomungado.
Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um
cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.
Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada,
gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa.
Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido
não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.
Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o
pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto era impossível, levantou um pedaço da cabeça.
Fabiano percorreu o alpendre, olhando as barúna e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais
invisíveis:
-Ecô! ecô!
Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o
terreiro, viu Baleia coçando-se a e esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra
espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore,
agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela,
esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como
o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às
catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos de Baleia, que se pôs latir
desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na caca
chorando alto. Fabiano recolheu-se.
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos
craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés.
Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí por
um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente em
dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro,
mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de
espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha as folhas e
gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros. Caiu antes de alcançar essa cova arredada.
Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteira, mas o resto do corpo ficou deitado de banda.
Nesta posição torcida, mexeu-­se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos
miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas. Uma sede
horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão.
Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latina: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo,
tomavam-se quase imperceptíveis.
Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra
que ladeava a pedra.
Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava­se.
Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de
outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente,
com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.
Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não
experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinha fugido.
Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio
vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele
encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as
pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele,
numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado
quando o vaqueiro batia palmas.
O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo
por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa
tinham-se sumido.
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. Os chocalhos
das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se,
conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a
importância em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.
Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar cabras: àquela hora cheiros de suçuarana
deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por
baixo do caritó onde sinhá Vitória guardava o cachimbo.
Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida
nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não
interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe
a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.
Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não
sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil no barreiro ao fim
do pátio desvaneciam-se no seu espírito.
Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinhá Vitória
retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um
bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos,
numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do outro peito para trás era tudo
insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne
meio comida pela doença.
Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinhá Vitória tinha
deixado o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um
Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro
enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.

1. Um escritor classificou Vidas secas como “romance desmontável”, tendo em vista sua composição
descontínua, feita de episódios relativamente independentes e sequências parcialmente truncadas.
Essas características da composição do livro:
a) constituem um traço de estilo típico dos romances de Graciliano Ramos e do regionalismo nordestino
b) indicam que ele pertence à fase inicial de Graciliano Ramos, quando este ainda seguia os ditames do
primeiro momento do Modernismo
c) diminuem o seu alcance expressivo, na medida em que dificultam uma visão adequada da realidade sertaneja
d) revelam, nele, a influência da prosa seca e lacônica de Euclides da Cunha, em Os Sertões
e) relacionam-se à visão limitada e fragmentária que as próprias personagens têm do mundo

2. Sobre a obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, todas as alternativas estão corretas, EXCETO:
a) o romance focaliza uma família de retirantes, que vive numa espécie de mudez introspectiva, em precárias
condições físicas e num degradante estado de condição humana
b) o relato dos fatos e a análise psicológica dos personagens articulam-se com grande coesão ao longo da obra,
colocando o narrador como decifrador dos comportamentos animalescos dos personagens
c) o ambiente seco e retorcido da caatinga é como um personagem presente em todos os momentos, agindo de
forma contínua sobre os seres vivos
d) a narrativa faz-se em capítulos curtos, quase totalmente independentes e sem ligação cronológica e o
narrador é incisivo, direto, coerente com a realidade que fixou
e) o narrador preocupa-se exclusivamente com a tragédia natural (a seca) e a descrição do espaço não é
minuciosa; pelo contrário, revela o espírito de síntese do autor

3. Leia o fragmento abaixo transcrito da obra Vidas Secas e responda a questão a seguir:
Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a
quentura da terra. Montado confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada,
monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para um lado, para
o outro lado, cambaio, torto e feio.Às vezes, utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se
dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admira as palavras compridas e
difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez
perigosas. (Graciliano Ramos)
O texto, no seu conjunto, enfatiza:
a) a pobreza física do personagem
b) a falta de escolaridade do personagem
c) a miséria moral do personagem
d) a identificação do personagem com o mundo animal
e) nda

Obras: ● Infância (1945)


● Caetés (1933) ● Histórias Incompletas (1946)
● São Bernardo (1934) ● Insônia (1947)
● Angústia (1936) ● Memórias do Cárcere (1953)
● Vidas Secas (1938) ● Viagem (1954)
● A Terra dos Meninos Pelados (1942) ● Linhas Tortas (1962)
● História de Alexandre (1944) ● Viventes das Alagoas, costumes do Nordeste
● Dois Dedos (1945) (1962)

4. José Lins do Rego (1901-1957)


José Lins do Rego foi um escritor paraibano que explorou temas regionalistas
apontando aspectos, políticos, sociais e econômicos do país. Sua obra mais
emblemática do período é “Menino de Engenho”, publicada em 1932). Nesse romance, ele denuncia a realidade
social, ao mesmo tempo que apresenta a decadência do ciclo de açúcar nos engenhos nordestinos.

O escritor produziu e publicou cinco romances aos quais deu a alcunha de “Ciclo da cana-de-açúcar”. São eles,
na ordem cronológica: “Menino de Engenho” (1932), “Doidinho” (1933), Banguê (1934), “O Moleque
Ricardo” (1935) e, por fim, “Usina” (1936). Muitos historiadores e analistas sociais comparam esse ciclo de
obras do escritor paraibano com o ciclo “Introdução à formação da sociedade patriarcal no Brasil”,do
antropólogo pernambucano Gilberto Freyre, cujo primeiro volume é “Casa Grande & Senzala” (1933).

Menino de Engenho possui como narrador e personagem principal Carlinhos, que em


sua idade adulta narra aos leitores um pouco de sua história, que começa no Recife e
passa pelos engenhos nordestinos. Carlinhos, aos quatro anos, estava em casa quando
seu pai assassina sua mãe com um tiro. Seu Tio Juca vai buscá-lo para ir morar com
seu avô materno em seu engenho, chamado Santa Rosa. Chegando lá, ao ter contato
com o campo, fica encantado. Logo que chega, recebe cuidados carinhosos de sua tia
Maria. Aos poucos, vai se familiarizando com o ambiente e seus familiares até então
desconhecidos. A tristeza vai dando lugar à curiosidade de um menino diante do
desconhecido.

trecho:
Pensava então naquilo que junto de gente eu não podia pensar. Já estava no engenho
há mais de quatro anos. Mudara muito desde que viera de Recife.
– Para o ano – diziam – iria para o colégio.
E o que seria esse colégio? Os meus primos contavam tanta coisa de lá, de um diretor medonho, de
bancas, de castigos, de recreios, de exercícios militares, que me deixavam mesmo com vontade de ir com eles.
Mas o engenho tinha tudo para mim. Tia Maria tomava conta de mim como se fosse mãe. E a lembrança de
minha mãe enchia os meus retiros de cinza. Por que morrera ela? E de meu pai, por que não me davam
notícias? Quando perguntava por ele, afirmavam que estava doente no hospital. E o hospital ia ficando assim
um lugar donde não se voltava mais. Via gente do engenho que ia para lá, com carta do meu avô, não retornar
nunca. E as negras quando falavam do hospital mudavam a voz: “Foi para o hospital.” Queriam dizer que foi
morrer.
Tinha um medo doentio da morte. Aquilo da gente apodrecer debaixo da terra, ser comido pelos tapurus,
me parecia incompreensível. Todo o mundo tinha que morrer. As negras diziam que alguns ficavam para
semente. Eu me desejava entre estes felizardos. Por que não podia ficar para semente? Dentro de um navio,
enquanto o mundo todo se acabasse. E nesse barco eu me via cercado de tudo que era bicho, e a minha tia
Maria, a negra Generosa, a vovó Galdina, o meu avô, tudo que me amava estaria comigo. Esta horrível
preocupação da morte tomava conta da minha imaginação.

principais obras:

As principais obras de José Lins do Rego

● Menino de Engenho (1932); ● Água-mãe (1941); ● Poesia e Vida (1945);


● Doidinho (1933); ● Fogo Morto (1943); ● Homens, Seres e Coisas (1952);
● Bangüê (1934); ● Eurídice (1947); ● A Casa e o Homem (1954);
● O Moleque Ricardo (1935); ● Cangaceiros (1953); ● Presença do Nordeste na
● Usina (1936); ● Meus Verdes Anos (1953); Literatura Brasileira (1957);
● Pureza (1937); ● Histórias da Velha Totonha ● O Vulcão e a Fonte (1958);
● Pedra Bonita (1938); (1936); ● Dias Idos e Vividos (1981).
● Riacho Doce (1939); ● Gordos e Magros (1942);

5. Jorge Amado (1912-2001)


Jorge Amado foi um escritor baiano considerado um dos maiores
nomes da literatura regionalista brasileira do século XX. Em suas obras
explorou a diversidade étnica e social brasileira, da qual se destaca
“Capitães de Areia” (1937). Ambientado na cidade de Salvador, os
protagonistas desse romance formavam um grupo de menores abandonados
chamados de “Capitães da Areia”.

Obras:
● O País do Carnaval, 1931
● Cacau, 1933
● Suor, 1934
● Jubiabá, 1935
● Mar Morto, 1936
● Capitães de Areia, 1937
● A Estrela do Mar, poesia, 1938
● Terras do Sem-Fim, 1943
● O Amor do Soldado, 1944
● São Jorge dos Ilhéus, 1944
● Bahia de Todos os Santos, 1944
● Seara Vermelha, 1945
● O Mundo da Paz, 1951
● Os Subterrâneos da Liberdade, 1954
● Gabriela Cravo e Canela, 1958
● Os Velhos Marinheiros, 1961
● Os Pastores da Noite, 1964
● Dona Flor e Seus Dois Maridos, 1966
● Tenda dos Milagres, 1969
● Teresa Batista Cansada de Guerra, 1972
● Tieta do Agreste, 1977
● Farda Fardão Camisola de Dormir, 1979
● O Menino Grapiúna, 1981
● Tocaia Grande, 1984
● O Sumiço da Santa: Uma História de Feitiçaria, 1988
● Navegação de Cabotagem, 1992
● A Descoberta da América pelos Turcos, 1994
● O Milagre dos Pássaros, 1997

Capitães da Areia faz referência aos meninos de rua de Salvador, menores cuja
vida desregrada e marginal é explicada, de uma forma geral, por tragédias familiares
relacionadas à condição de miséria. O grupo de meninos que forma os Capitães se
esconde em um armazém abandonado em uma das praias da capital baiana.
Os personagens que compõem o núcleo central da narrativa apresentam algumas
particularidades: João Grande possui uma força bruta, o professor é lembrado pelo
talento artístico, Sem-Pernas pela amargura existencial, a opressão sertaneja é
representada por Volta-Seca, a sexualidade precoce por Gato, o malandro é o Boa-Vida e
a tendência à religiosidade se manifesta em Pirulito. Todos são liderados por Pedro Bala,
o protagonista do romance.
trecho de “Capitães da Areia”:

O Trapiche

Sob a lua, num velho trapiche abandonado, as crianças dormem.


Antigamente aqui era o mar. Nas grandes e negras
pedras dos alicerces do trapiche as ondas ora se rebentavam
fragorosas, ora vinham se bater mansamente. A água passava
por baixo da ponte sob a qual muitas crianças repousam
agora, iluminadas por uma réstia amarela de lua. Desta ponte
saíram inúmeros veleiros carregados, alguns eram enormes e
pintados de estranhas cores, para a aventura das travessias
marítimas. Aqui vinham encher os porões e atracavam nesta
ponte de tábuas, hoje comidas. Antigamente diante do
trapiche se estendia o mistério do mar-oceano, as noites diante
dele eram de um verde escuro, quase negras, daquela cor
misteriosa que é a cor do mar à noite.
Hoje a noite é alva em frente ao trapiche. É que na sua
frente se estende agora o areal do cais do porto. Por baixo da ponte não há mais rumor de ondas. A areia
invadiu tudo, fez o mar recuar de muitos metros. Aos poucos, lentamente, a areia foi conquistando a frente do
trapiche. Não mais atracaram na sua ponte os veleiros que iam partir carregados. Não mais trabalharam ali os
negros musculosos que vieram da escravatura. Não mais cantou na velha ponte uma canção um marinheiro
nostálgico.A areia se estendeu muito alva em frente ao trapiche. E nunca mais encheram de fardos, de sacos, de
caixões, o imenso casarão. Ficou abandonado em meio ao areal, mancha negra na brancura do cais.
Durante anos foi povoado exclusivamente pelos ratos que ai atravessavam em corridas brincalhonas, que
rolam a madeira das portas monumentais, que o habitavam como senhores exclusivos. Em certa época um
cachorro vagabundo o procurou como refúgio contra o vento e contra a chuva. Na primeira noite não dormiu,
ocupado em despedaçar ratos que passavam na sua frente. Dormiu

depois de algumas noites, ladrando à lua pela madrugada, pois grande parte do teto já ruíra e os raios da
lua penetravam livremente, iluminando o assoalho de tábuas grossas. Mas aquele era um cachorro sem pouso
certo e cedo partiu em busca de outra pousada, o escuro de uma porta, o vão de urna ponte, o corpo quente de
uma cadela. E os ratos voltaram a dominar até que os Capitães da Areia lançaram as suas vistas para o casarão
abandonado.
Neste tempo a porta caíra para um lado e um do grupo, certo dia em que passeava na extensão dos seus
domínios porque toda a zona do areal do cais, como aliás toda a cidade da Bahia, pertence aos Capitães da
Areia, entrou no trapiche.
Seria bem melhor dormida que a pura areia, que as pontes dos demais trapiches onde por vezes a água
subia tanto que ameaçava levá-los. E desde esta noite uma grande parte dos Capitães da Areia dormia no velho
trapiche abandonado, em companhia dos ratos, sob a lua amarela. Na frente, a vastidão da areia, uma brancura
sem fim.Ao longe, o mar que arrebentava no cais. Pela porta viam as luzes dos navios que entravam e saiam.
Pelo teto viam o céu de estrelas, a lua que os iluminava.
Logo depois transferiram para o trapiche o depósito dos objetos que o trabalho do dia lhes proporcionava.
Estranhas coisas entraram então para o trapiche. Não mais estranhas, porém, que aquela meninos, moleques de
todas as cores e de idades as mais variadas, desde os 9 aos 16 anos, que à noite se estendiam pelo assoalho e por
debaixo da ponte e dormiam, indiferentes ao vento que circundava o casarão uivando, indiferentes à chuva que
muitas vezes os lavava, mas com os olhos puxados para as luzes dos navios, com os ouvidos presos às canções
que vinham das embarcações...
É aqui também que mora o chefe dos Capitães da Areia: Pedro Bala. Desde cedo foi chamado assim,
desde seus cinco anos. Hoje tem 15 anos. Há dez que vagabundeia nas ruas da Bahia. Nunca soube de sua mãe,
seu pai morrera de um
balaço. Ele ficou sozinho e empregou anos em conhecer a cidade. Hoje sabe de todas as suas ruas e de
todos os seus becos. Não há venda, quitanda, botequim que ele não conheça. Quando se incorporou aos
Capitães da Areia o cais recém- construído atraiu para as suas areias todas as crianças abandonadas da cidade o
chefe era Raimundo, o Caboclo, mulato avermelhado e forte.
Não durou muito na chefia o caboclo Raimundo. Pedro Bala era muito mais ativo, sabia planejar os
trabalhos, sabia tratar com os outros, trazia nos olhos e na voz a autoridade de chefe. Um dia brigaram. A
desgraça de Raimundo foi puxar uma navalha e cortar o rosto de Pedro, um talho que ficou para o resto da vida.
Os outros se meteram e como Pedro estava desarmado deram razão a ele e
ficaram esperando a revanche, que não tardou. Uma noite, quando Raimundo quis
surrar Barandão, Pedro tomou as dores do negrinho e rolaram na luta mais
sensacional a que as areias do cais jamais assistiram. Raimundo era mais alto e mais velho. Porém Pedro Bala,
o cabelo loiro voando, a cicatriz vermelha no rosto, era de uma agilidade espantosa e desde esse dia Raimundo
deixou não só a chefia dos Capitães da Areia, como o próprio areal. Engajou tempos depois num navio.
Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala à chefia, e foi desta época que a cidade começou a ouvir
falar nos Capitães da Areia, crianças abandonadas que viviam do furto. Nunca ninguém soube o número exato
de meninos que assim viviam. Eram bem uns cem e destes mais de quarenta dormiam nas ruínas do velho
trapiche.
Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de
cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os
seus poetas.

Leia o trecho para responder às questões 1 e 2:

[Sem-Pernas] queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer
o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre
longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos
guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava
“meu padrinho” e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia
levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se
esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de
uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas
desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal
perseguido por outros mais fortes. A perna coxa se recusava a ajudá-lo. E a borracha zunia nas suas costas
quando o cansaço o fazia parar. A princípio chorou muito, depois, não sabe como, as lágrimas secaram. Certa
hora não resistiu mais, abateu-se no chão. Sangrava. Ainda hoje ouve como os soldados riam e como riu aquele
homem de colete cinzento que fumava um charuto.
(Jorge Amado. Capitães da areia.)

1 - Considere as afirmações seguintes.


I. O fragmento do romance, ambientado na cidade de Salvador das primeiras décadas do século passado,
aborda a vida de uma criança em situação de absoluta exclusão social e violência, o que destoa do projeto
literário e ideológico dos escritores brasileiros que compõem a “Geração de 30”.
II. Valendo-se das conquistas do Modernismo, o romance apresenta linguagem fluente e acessível ao
grande público, utilizando-se de um português coloquial, simples, próximo a um modo natural de falar, com o
largo emprego da frase curta e econômica.
III. Sem-Pernas é uma personagem que, embora encarne um tipo social claramente delimitado, o do
menino “pobre, abandonado, aleijado e discriminado”, adquire alguma profundidade psicológica, à medida que
seu passado e suas experiências dolorosas vêm à tona.

Conforme o texto, está correto o que se afirma apenas em:


a) I.
b) II.
c) III.
d) I e II.
e) II e III.

2. O zigue-zague temporal ligado à vida de Sem-Pernas,empregado no fragmento para a composição da


personagem, é construído de maneira muito precisa, por meio da utilização alternada de diversos tempos
verbais. Indique a alternativa em que há, respectivamente, um tempo verbal que expressa fatos ocorridos num
tempo anterior a outros fatos do passado e um tempo verbal usado para marcar o caráter hipotético de certas
ações ou o desejo de que se realizassem.

a) Vivera na casa de um padeiro (...) — uma mão que o acarinhasse (...)


b) Em cada canto estava um com uma borracha comprida. — Sofreu fome.
c) Nunca tivera família. — A perna coxa se recusava a ajudá-lo.
d) A princípio chorou muito (...) — Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora.
e) Ele quer um carinho (...) — Um dia levaram-no preso.

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