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Farmacêutico: profissional de saúde e cidadão

DEBATE
The pharmacist: health professional and citizen

DEBATE
Suely Rozenfeld 1

Abstract This text was presented at the V Con- Resumo O texto foi apresentado no V Congresso
gress on Pharmacy Care/Riopharma with the in- de Assistência Farmacêutica/Riopharma, com o
tent to approach some aspects important for dis- objetivo de abordar aspectos importantes para a
cussing the role of the pharmacist as health profes- reflexão da condição do farmacêutico como profis-
sional and citizen capable of acting in society. To sional e como cidadão capaz de atuar em socie-
this purpose we decided to recall some of the cor- dade. Para tanto, o caminho selecionado foi a re-
nerstones of the Brazilian health reform; the pres- memoração de alguns fundamentos que estrutu-
sure of the industry on health professionals and ram a reforma sanitária no Brasil; a pressão dos
regulatory agencies; the inequity in the distribu- fabricantes sobre os profissionais de saúde e as agên-
tion of medicaments among the different social cias reguladoras; a desigualdade na distribuição
classes. Some of the changes proposed in this paper dos medicamentos entre os diferentes estratos soci-
are: to widen the role the pharmacist plays in phar- ais. Entre as propostas de mudança apontadas es-
macotherapy; to prohibit drug advertising; a glo- tão: a ampliação do papel do farmacêutico na aten-
bal and independent evaluation of the national ção farmacoterapêutica; a proibição da propagan-
regulatory agency; inclusion of information about da de medicamentos; a avaliação global e indepen-
medicament consumption during hospitalizations dente da agência de regulação nacional; e a inclu-
in the national databases. são nas bases de dados nacionais de informações
Key words Pharmaceutical Care, Government sobre medicamentos consumidos durante as hos-
regulation, National Policy of Pharmaceutical pitalizações.
Assistance, Pharmacists Palavras-chave Assistência farmacêutica, Regu-
lamentação governamental, Política Nacional de
Assistência Farmacêutica, Farmacêuticos

1
Escola Nacional de Saúde
Pública, Fundação Oswaldo
Cruz. Rua Leopoldo
Bulhões 1480, Manguinhos.
21041-210 Rio de Janeiro
Brasil.
rozenfel@ensp.fiocruz.br
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Rozenfeld, S.

Panorama geral um terço da população brasileira e se transfor-


maram em assistência principal para os que po-
Estamos vivendo tempos difíceis. dem pagar.
Os cenários nacional e internacional se trans- Denúncias de corrupção põem a nu as peri-
formaram com muita rapidez, nas últimas duas gosas ligações entre as elites econômicas e as es-
décadas. Mas, infelizmente, não parece ter sido feras republicanas, e produzem um clima de des-
para melhor. As transformações se operaram a confiança de todos contra todos.
partir da implantação das mudanças neoliberais, No campo dos profissionais de saúde, ope-
características de um modelo selvagem de eco- raram-se transformações ideológicas preocu-
nomia capitalista. E, também, das dificuldades pantes. Setores antes comprometidos com ban-
de alguns países construírem alternativas capa- deiras progressistas foram cooptados nos bal-
zes de se generalizar com igualdade social e com cões de negócio do poder executivo. Eles acenam
liberdade política. com infinitas e diversificadas possibilidades de
Temos sido atores e platéia de um espetáculo financiamento de projetos, ajustados aos mol-
no qual predomina o mercado, que avassala o des privados. E os profissionais, ainda quando
conjunto da sociedade e se sobrepõe a todas as bem intencionados, ficam reféns da lógica de pro-
outras dimensões da vida humana. Sucessos e vitó- duzir sem produzir qualquer impacto. Uma
rias, pessoais ou coletivos, são medidos pela impi- quantidade interminável de cursos, seminários,
edosa métrica do dinheiro. Importa ter e não ser. congressos, reuniões, oficinas - inúmeras vezes
Importa parecer ter e não verdadeiramente ser. redundantes e sem objetivos claros - substituem
Nós, que trabalhamos em saúde pública há a idéia generosa de preparar recursos humanos
muito tempo, temos sentido essas mudanças no para as transformações que a sociedade requer.
cotidiano. Incontáveis publicações, softwares, filmes e víde-
Nas décadas de 1970 e 1980, acreditávamos os, elaborados com competência técnica, ador-
na capacidade de os governos oferecerem, com mecem em prateleiras, sem qualquer utilidade. A
eqüidade, saúde e educação de boa qualidade. energia despendida na sua preparação entorpece
Acreditávamos no papel articulador dos orga- corações e mentes, e produz a confortável sensa-
nismos internacionais. Acreditávamos nas polí- ção de se estar fazendo alguma coisa útil. O re-
ticas de bem-estar social e de direitos civis. Acre- sultado é o distanciamento crescente dos profis-
ditávamos na organização das pessoas em torno sionais do seu alvo: prover saúde, sobretudo para
a interesses legítimos, como forma ideal de fazer a imensa parcela da população que não pode
valer os direitos dos cidadãos. comprá-la.
Essas crenças produziram, entre outras ações “Organismos não governamentais” saídos da
igualmente positivas, a consigna da OMS Saúde luta contra a ditadura, das lutas sindicais, dos
para todos no ano 2000 e as mudanças na Cons- movimentos de mulheres, foram sendo substi-
tituição Federal do nosso país, que preconiza- tuídos por “indivíduos não governamentais” que,
vam Saúde como direito de todos e dever do Estado em nome de bandeiras populares e legítimas, cap-
e resultaram na criação do Sistema Único de tam dinheiro público para benefícios privados.
Saúde, universal e gratuito. Esse fenômeno se generalizou de tal forma que,
Mas, a partir da década de 1990, o panorama recentemente, provocou a revolta pública do
de transformou. A privatização invadiu o Esta- músico Zé Rodrix. Ao saber que haveria cobran-
do e a desigualdade cresceu. ça de ingressos, ele abandonou a direção de um
No campo institucional, sabe-se que o Siste- espetáculo financiado com recursos da Lei Roua-
ma Único de Saúde garante universalidade e in- net - que desonera do pagamento de impostos
tegralidade. Mas ele tem sido alvejado por pres- as empresas que apóiam manifestações culturais.
sões para privatização. Os que apostam no fra- Segundo ele, o dinheiro de todos, que paga a aven-
casso do Sistema apregoam, aos quatro ventos, tura artística de alguns, deveria voltar integral-
que ele não funciona por ser estatal. Na verdade, mente para o povo1.
ele funciona mal por ser pouco estatal e muito Os indicadores econômicos, sobretudo os do
impregnado pela lógica mercantil, em especial mercado financeiro, mostram vitalidade. O lu-
para medicamentos e equipamentos. Na outra cro líquido declarado do Banco Itaú, no primei-
ponta, há os planos de saúde, campeões de quei- ro semestre do ano de 2007, foi de 4 bilhões de
xas nos órgãos de defesa do consumidor. Na reais, 36% superior ao do ano anterior. O banco
Constituição de 1988, eles foram chamados “as- já anunciou que, no segundo semestre de 2007, o
sistência complementar”. Hoje, envolvem quase lucro será ainda maior2. No setor farmacêutico,
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crescem as fusões entre as empresas e desativa-se esgoto, para que fossemos questionados como
a produção nacional. O nome dos beneficiários nação digna e soberana. O país que nega à imen-
dos lucros exorbitantes fica oculto no mercado sa parcela dos seus cidadãos direitos e benefícios
de ações. E, como aponta Márcia Angell3, os exe- conquistados há mais de cem anos, e permite
cutivos da indústria farmacêutica são pagos com que uma minoria seja contemplada com as opor-
ações da bolsa de valores. Portanto, são grandes tunidades e o conforto do terceiro milênio, pre-
interessados em valorizá-las a partir dos lucros cisa redefinir seu rumo.
obtidos com as vendas. Quando se torna públi-
co que um produto, até então considerado segu-
ro, é nocivo à saúde, as ações da empresa propri- Medicamentos
etária da marca despencam.
Já os indicadores sociais caminham a passos As pressões dos fabricantes
de tartaruga. A mortalidade infantil caiu de 53
para 29 óbitos por 1.000 nascidos vivos. Mas, A modernidade tecnológica não vem sendo
isso aconteceu entre 1990 e 2005, ou seja, num impulsionada por necessidades definidas por cri-
período de quinze anos4. Nesse ritmo, para che- térios epidemiológicos, mas pela pressão dos fa-
gar às taxas de Cuba, hoje, talvez tenhamos que bricantes, para vender muito e rápido. Os danos
esperar até o ano 2025! O percentual da popula- produzidos por novidades insuficientemente tes-
ção brasileira na condição de extrema pobreza tadas, ou por produtos nocivos, cobram seu pre-
também caiu, de 9,5% para 4,2%. Isso aconteceu ço em recursos materiais, já escassos, e em vidas
entre 1992 e 20055, ou seja, em treze anos. Nesse humanas.
passo, não assistiremos à erradicação da pobre- Entre as principais causas dos erros e danos
za absoluta antes de 2020. Os resultados min- associados às ações de assistência à saúde está a
guados se devem à substituição dos grandes pla- falta de independência dos médicos, e das auto-
nos nacionais por propostas fragmentadas. A ridades sanitárias, em relação aos interesses da
aceitação da idéia de que tudo é complexo, tudo indústria.
é demorado, tudo é difícil, tem justificado a im- A pressão dos fabricantes sobre os médicos e
plantação de políticas focais, incompletas, des- pesquisadores sempre foi intensa. Ainda hoje, os
contínuas e de baixa resolutividade. brindes são moeda corrente para a compra das
Os dados da última Pnad confirmam o efei- consciências. Estima-se que 83% dos médicos
to desse tipo de políticas sociais. norte-americanos recebam presentes dos fabri-
O percentual de domicílios com esgoto sani- cantes de medicamentos e equipamentos, na for-
tário adequado subiu de 70% para 71%, entre ma de alimentos, bebidas e ingressos para even-
2005 e 2006, o que significa 1/3 dos lares sem o tos esportivos ou culturais8. Supõe-se que essas
benefício. Quanto à ligação do esgoto doméstico práticas sejam mais intensas em países como o
à rede coletora, o quadro é ainda pior: cerca de nosso, com atuação tímida da vigilância sanitá-
metade dos domicílios não tem ligação com a ria. Elas geram um campo de influência do fabri-
rede de esgoto6. Ao examinar a situação do tra- cante que nada tem de científico. Exemplo nú-
balho infantil, vê-se que a proporção de crian- mero 1 das conseqüências: as pesquisas patroci-
ças, entre 5 e 17 anos de idade, que trabalham nadas pela indústria farmacêutica têm probabi-
caiu menos de 1% entre 2005 e 20067. Ainda que lidade maior de apresentar resultados favoráveis
esse valor não fosse mera oscilação dos núme- aos novos fármacos, comparados aos tradicio-
ros, teríamos que lamentar que o combate ao nais, do que as pesquisas independentes9. Exem-
emprego da mão-de-obra infantil deixa longe da plo número 2: é comum pesquisas patrocinadas
escola, e sujeitos aos agravos do trabalho preco- pelos fabricantes de medicamentos serem inter-
ce, 5 milhões de jovens. rompidas antes do programado, sob a justifica-
Alguns poderiam alegar que, afinal de con- tiva da revelação de resultados benéficos. São es-
tas, as coisas estão melhorando, e que é preciso tudos com resultados falaciosos, que costumam
esperar para ver os benefícios estendidos a to- distorcer as conseqüências de longo prazo dos
dos. A esses, respondemos que não se trata ape- tratamentos, quando ocorrem efeitos adversos
nas de velocidade e de tempo das mudanças. Tra- graves10.
ta-se de aceitar que seja operado um modelo de As pressões dos fabricantes não atingem ape-
sociedade que tolera iniqüidades inaceitáveis. nas médicos e pesquisadores. Organismos inter-
Bastaria uma única criança submetida ao traba- nacionais não têm se destacado por ações inde-
lho, ou um único lar sem ligação com a rede de pendentes. Vou dar dois exemplos: o FDA e a OMS.
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Rozenfeld, S.

Desde 1992, os Estados Unidos delegaram à se visceral, cuja incidência vem aumentando nas
indústria farmacêutica a função de pagar os sa- regiões Norte, Centro–Oeste e Sudeste, princi-
lários dos cientistas do FDA que analisam os palmente em Minas Gerais. O tratamento é feito
pedidos de registro de novos medicamentos. A a base de antimoniais injetáveis, usados no mun-
agência, pressionada para fornecer registros em do todo há mais de setenta anos. Mas ele é dolo-
tempo menor, em vez de solicitar mais recursos roso, muito tóxico e há resistência em alguns
federais para contratar pesquisadores, preferiu países. Uma das poucas alternativas terapêuticas
sustentar seus empregados com recursos dos fa- é a anfotericina B, cujo preço do tratamento va-
bricantes. Com isso, o “cliente” passou a ser a ria entre US$1.500 a US$2.400, muito além do
indústria farmacêutica e não a população norte- alcance da maioria dos pacientes14.
americana. A ação reguladora da agência, que no Uma das formas de tornar o medicamento
passado gozava de credibilidade no mundo todo, mais acessível seria com o licenciamento com-
se enfraqueceu. Uma das conseqüências: a FDA pulsório, conhecido por “quebra de patentes”. É
autorizou a continuação da venda do antiinfla- um recurso previsto na lei brasileira e permite
matório rofecoxib (Vioxx®, da Merck) por mais que, em algumas situações, outros fabricantes
cinco anos, mesmo após publicadas as provas possam comercializar produtos patenteados.
de que a substância dobra o risco de os usuários Isso diminui os preços e possibilita o acesso de
apresentarem derrame e infarto do miocárdio. um maior número de pessoas13. Entretanto, tam-
Além do aspecto sanitário, a medida resulta em bém nessa área vamos aos tropeços. Os preços
gastos com compras de $2,5 bilhões por ano, negociados pelo Brasil para os anti-retrovirais
dos quais um bilhão é dinheiro público11. ficaram até quatro vezes mais caros do que os
Problemas de complacência com os interes- preços praticados no mercado internacional.
ses da indústria têm incidido, também, sobre a Além disso, as transações do governo com os
Organização Mundial da Saúde. No inicio do ano, fabricantes acabaram por paralisar o desenvol-
a sua diretora geral foi duramente criticada por vimento da capacidade de o nosso país fabricar
pesquisadores e membros da organização Médi- genéricos12: a produção de fármacos anti-retro-
cos Sem Fronteiras. Ela sugeriu que o governo virais não é expressiva nem sistemática.
da Tailândia deveria negociar, de forma “equili- Outra iniciativa recente para diminuir preços
brada”, com as empresas farmacêuticas, o licen- e aumentar o acesso é o Programa Farmácia Po-
ciamento compulsório para fabricação de gené- pular, lançado pelo governo federal em 2004, por
ricos de anti-retrovirais e de trombolíticos!12 meio de convênio com as prefeituras. As críticas
ao programa têm sido feitas desde o início e a
O acesso e o excesso mais importante delas é que ele fere o princípio
da universalidade do Sistema Único de Saúde,
Vivemos numa das sociedades mais desiguais previsto na Constituição Federal. Ele retira re-
do planeta. No consumo de medicamentos, as cursos da distribuição gratuita e seria mais pro-
desigualdades também aparecem nos números: duto da propaganda do que política de saúde.
15% a 20% da população não têm acesso a ne- Ele não está articulado ao Programa de Saúde da
nhum tipo de medicamento e cerca de 50% dos Família, o número de itens oferecidos, cerca de
pacientes deixam de conseguir algum remédio 100, é limitado e o número de farmácias está em
que precisariam, por não o encontrar na rede torno de trezentos. Em março de 2006, o Gover-
pública de saúde. Para as camadas mais pobres no Federal criou um “anexo” ao Programa Far-
da população, os gastos com medicamentos po- mácia Popular, chamado Aqui tem Farmácia Po-
dem comprometer 90% dos gastos com saúde, pular. Cerca de três mil farmácias comerciais cre-
que aparecem em quarto lugar entre os gastos denciadas oferecem algumas dezenas de itens,
familiares do brasileiro, atrás apenas de habita- basicamente, para tratar hipertensão e diabetes15.
ção, alimentação e transporte13. Prova da precariedade gerencial do programa:
Se o salário é curto para tratar as doenças após um ano e meio de funcionamento, estão
comuns, com antibióticos, antiinflamatórios ou suspensos, por noventa dias, a partir de 1º de
anti-hipertensivos, a situação é mais grave quan- setembro último, o cadastramento das drogari-
do se trata das doenças negligenciadas. A pesqui- as e farmácias. Prova da precariedade técnica do
sa com novos fármacos não atrai investimentos programa: hipertensão e diabetes estão entre as
das grandes corporações farmacêuticas, a pre- doenças mais prevalentes na população, as que
texto de os tratamentos serem pouco lucrativos. mais matam e para as quais o tratamento far-
Uma das doenças negligenciadas é a leishmanio- macológico é necessário, seguro e consagrado.
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Deveria, portanto, ser alvo de políticas públicas vel. A sua ação é especialmente importante quan-
consistentes e permanentes, com distribuição do os regimes terapêuticos são complexos, com
gratuita de remédios, monitoramento dos resul- administração de múltiplos produtos, em pacien-
tados e articulação com ações preventivas do tes idosos ou crônicos18.
Programa de Saúde da Família e com o Progra- Em vários países, já se reconhece o papel po-
ma Hiperdia do Ministério da Saúde. Entregar o sitivo do farmacêutico na melhoria da qualidade
controle dessas doenças aos mecanismos de mer- da prescrição e da dispensação e, por isso, foi
cado é andar na contramão do conhecimento possível avançar muito mais.
epidemiológico consolidado sobre elas. A Inglaterra é um deles. Lá, um estudo, do
Assim, os remédios continuam caros e 90% inicio da década de 1980, se tornou um marco na
dos brasileiros, cuja renda familiar não atinge história da atividade farmacêutica. Foram com-
três mil reais, têm acesso limitado. parados dois grupos de médicos; um deles rece-
Na outra ponta do consumo, os 10% da po- beu visitais educativas de farmacêuticos clínicos e
pulação que podem comprar remédios na far- material impresso, e o outro apenas material im-
mácia comercial consomem em excesso. A trans- presso. O objetivo da intervenção era melhorar a
formação de situações corriqueiras em doença tem qualidade da prescrição, excluindo dela fármacos
levado ao uso abusivo de medicamentos e à idéia impróprios. Resultado: a proporção de médicos
falsa de que para tudo há uma pílula salvadora. que passou a prescrever de acordo com as orien-
Doenças são fabricadas. A timidez se transforma tações científicas foi maior no grupo que recebeu
em distúrbio da ansiedade, os sintomas pré-mens- as palestras dos farmacêuticos do que no grupo
truais em distúrbio disfórico, os problemas sexu- que recebeu apenas o material impresso19.
ais da mulher se transformam em disfunção se- O resultado de estudos como esse estimulou
xual feminina16. Para todos eles, há um produto outros países a modificar o papel dos farmacêu-
farmacêutico que vai, num passe de mágica, re- ticos e a melhorar a qualidade dos resultados
solver o problema. Nesse processo, o marketing dos tratamentos farmacológicos.
dos fabricantes torna seus cúmplices os profissio- O governo canadense vem defendendo o in-
nais de saúde e a população desinformada. cremento do papel dos farmacêuticos como edu-
A prática do consumo simultâneo de muitos cadores e sua influência positiva no comporta-
produtos leva a interações, sinergismos e ao acú- mento de quem prescreve20. Ainda no Canadá,
mulo de eventos adversos, nos quais os maiores conselhos regionais de farmácia fornecem bole-
prejudicados são os pacientes, principalmente os tins com informações atualizadas e testes auto-
mais idosos. No Rio de Janeiro, 1/3 deles usa cin- aplicados, e condicionam a manutenção do re-
co ou mais produtos17. gistro profissional à aprovação em provas de
O resultado da desigualdade de acesso: quem conhecimento, a cada cinco anos.
pode pagar acaba naufragando num mar de pro- Nos Estados Unidos, os farmacêuticos estão
dutos muitas vezes inócuos, ou, com freqüência, autorizados a fazer ajustes na farmacoterapia,
nocivos. E, quem não pode, fica na fila da rede de acordo com protocolos, em quarenta esta-
SUS esperando por medicamentos que não che- dos, executam imunização em 44 e têm autoriza-
gam, ou refém de iniciativas oficiais instáveis e de ção para prescrever e dispensar certas classes de
baixa cobertura. fármacos que exigem receita, incluindo os anti-
concepcionais emergenciais, em nove estados21.
Na Grã-Bretanha, há a prescrição suplemen-
Algumas propostas tar, que é uma parceria entre um médico e um
farmacêutico para, de comum acordo com o
Os críticos do modelo são postos sob suspeita paciente, elaborar um plano de manejo clínico.
de derrotistas e acusados de não oferecem pro- Esse plano implica em o farmacêutico oferecer
postas. Mas propostas há. Vou apresentar algu- cuidados continuados a pacientes específicos, no
mas para o debate. uso de medicação cardiovascular, respiratória,
endócrina, do sistema nervoso central e outras.
No campo da assistência farmacêutica Os profissionais são treinados em programas
que incluem duzentas horas de estudo, traba-
Propor, como se tem feito, que toda farmácia lham integrados com o clínico, podem solicitar
deva ter um farmacêutico presente durante todo exames laboratoriais e prescrever, segundo o pla-
o horário de funcionamento é o mínimo desejá- no previamente elaborado22.
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No campo da propaganda nismos previstos no Projeto de Lei no 3.337/2004


– são importantes, porém insuficientes. A cobran-
A totalidade das peças publicitárias que vei- ça dessa avaliação global seria uma ação cidadã.
culam propaganda de medicamentos viola, em
algum item, a legislação brasileira atual. Segun- No campo do sistema de informação
do mostrou o pesquisador Álvaro Nascimento,
elas superestimam a qualidade dos produtos É inconcebível que um país onde há perto de
anunciados e omitem seus aspectos negativos23. doze milhões de internações anuais no SUS25, com
Uma importante forma de combater o uso des- administração de pelo menos um medicamento,
necessário de medicamentos é o controle da pro- seja incapaz de saber quais produtos foram ad-
paganda. A proibição da publicidade de remédi- ministrados para quais pacientes. É inimaginá-
os que exigem, ou não, receita médica, seria uma vel que um sistema de informações como o SIH-
forma de desestimular o uso abusivo e melhorar SUS, que detalha cada uma dessas internações,
a prescrição médica. Daí por que é importante não possa, também, apresentar os registros dos
que os profissionais de saúde, em geral, e os far- medicamentos consumidos. Portanto, devemos
macêuticos, em particular, pressionem o poder exigir do Ministério da Saúde a alteração do sis-
legislativo para aprovar legislação que proíba a tema, para que possamos - médicos, farmacêu-
propaganda de medicamentos na mídia. Seria, ticos, pesquisadores - avaliar o impacto real uso
sem dúvida, uma ação de cidadania. dos produtos farmacêuticos no perfil epidemio-
lógico dos pacientes internados.
No campo da regulação
No campo dos valores
Anos atrás, a Sociedade Internacional de Bo-
letins sobre Medicamentos (International Society É fundamental mudar as relações de leigos e
of Drug Bulletins),declarou o seguinte: A falta de de profissionais com a farmacoterapia, e modi-
transparência e de controle democrático das ativi- ficar a cultura do “quanto mais melhor” no con-
dades regulatórias, e o fato de que as taxas pagas sumo de medicamentos. Eles são importantes
pelos fabricantes para obter autorização de funcio- demais para serem submetidos a relações de com-
namento representarem mais de 50% do orçamen- pra e de venda. Em vez de dar ouvidos à propa-
to das agências regulatórias pode enfraquecer a con- ganda, é preciso consultar a literatura científica.
sideração das necessidades públicas e levar algumas Diante de sinais e sintomas de doença, deve-se
agências a serem menos rigorosas vis-à-vis a in- pensar primeiro na possibilidade de instituir um
dústria. É comum medir a efetividade de uma agên- tratamento não farmacológico. E, em caso de
cia em termos do número e da rapidez dos recursos necessidade de tratamento farmacológico, sope-
provenientes das autorizações para a comercializa- sar riscos e benefícios. Os farmacêuticos têm, sem
ção, ao invés da qualidade das decisões24. dúvida, grande contribuição a dar nesse campo
No Brasil, a tão propalada autonomia ge- para o conjunto da sociedade.
rencial, que serviu de sustentáculo para a argu-
mentação dos que eram favoráveis à criação de
uma agência reguladora externa à estrutura mi- Conclusão
nisterial, vem sendo questionada, até por setores
do governo, influenciados, talvez, pela crise no Algumas pessoas poderiam pensar que pintei um
setor da aviação civil. quadro pessimista demais e que há inúmeros
A criação da Anvisa, em 1999, retirou a regu- exemplos de ações bem-sucedidas na atual con-
lação de medicamentos, no plano federal, da es- juntura. É verdade. Mas é preciso lembrar que,
fera direta do Estado. Passados esses anos, e di- exceto em situações de grandes catástrofes ou de
ante das críticas, é importante que a atuação da guerras, é possível constatar a existência de me-
agência seja avaliada globalmente, tendo em vis- lhoras. Mas, o fruto do trabalho consciente e ci-
ta o modelo implantado. É preciso criar um gru- dadão dos 400.000 profissionais farmacêuticos e
po de trabalho independente, que inclua especia- médicos do nosso país26,27 pode trazer resulta-
listas em segurança de medicamentos, para ana- dos muito mais expressivos do que os que vêm
lisar os resultados concretos no enfrentamento sendo apresentados.
das questões de saúde pública e na defesa do con- Continuo acreditando na capacidade de os
sumidor. A exigência de apresentar relatório anual governos oferecerem, com eqüidade, saúde e edu-
das atividades, o instituto da ouvidoria – meca- cação de boa qualidade; no papel dos organismos
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internacionais; e nas políticas de bem-estar social os interesses sanitários da população devem preva-
e de direitos civis. Acredito na organização das lecer sobre os interesses econômicos de minorias.
pessoas em torno a interesses legítimos, como for- É preciso combater, sem tréguas, a mercanti-
ma ideal de fazer valer os direitos dos cidadãos. lização da saúde e o pior fundamentalismo nos
Onde quer que o farmacêutico esteja, no hos- nossos tempos: o do consumo, inclusive de me-
pital ou no centro de saúde, na rede pública ou dicamentos.
em unidades particulares, na farmácia ou na in- É preciso ter a coragem afirmativa e dizer que
dústria, na universidade ou nas unidades de far- outro mundo é possível. E que outro modelo de
macovigilância, ele deve ter sempre em mente que sociedade é necessário.

Agradecimentos

A José Rubens Alcântara Bonfim, pelo envio dos


textos da publicação The Annals of Pharmaco-
therapy utilizados nesse artigo.
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Rozenfeld, S.

Referências

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