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Universidade Federal do Rio Grande do Sul ‐ Faculdade de Veterinária

Programa de Pós‐Graduação em Ciências Veterinárias Relatório de


Disciplina de Seminários em Patologia Clínica (VET 00252)
http://www.ufrgs.br/lacvet
Caso Clínico

IDENTIFICAÇÃO
o
Caso Clínico n 2018/1/08 Espécie: Canino Ano/semestre: 2018/1
Raça: Bulldog Francês | Idade: 2 ano(s) | Sexo: macho | Peso: 10,5 kg
Alunos(as): Karine Marchioro Leal
Médico(a) Veterinário(a) responsável: Victória Cascaes

ANAMNESE
O paciente chegou ao Hospital Veterinário HVPS no dia 21 de março de 2018 (Dia 1) com histórico de há
quatro dias, ter ficado trancado dentro de um caro em um dia de altas temperaturas por
aproximadamente 40 minutos. Quando encontrado, apresentava taquipneia, sialorreia, hipertermia e
mucosas hiperêmicas. Foi levado imediatamente a uma clínica veterinária, onde ficou em observação
durante 24 horas recebendo fluidoterapia, morfina e dipirona. Após a alta, o paciente encontrava‐se
prostrado, em anorexia e com episódios de êmese e foi encaminhado ao HVPS.
Tutor não relata alterações de saúde ou comportamento antes do ocorrido.

EXAME CLÍNICO
O paciente apresentava‐se desorientado, agitado e dispnéico. Mucosas ictéricas, desidratação grave,
petéquias no abdômen e membros, epistaxe discreta, hematoma peniano e algia abdominal severa.
Pressão arterial sistólica em 50 mmHg (110–120 mmHg), tempo de preenchimento capilar de 1 segundo
(1‐2 segundos), frequência cardíaca de 150 bpm (80‐140 bpm), temperatura retal de 41,0°C (37,5‐39,3°C)

EXAMES COMPLEMENTARES
Dia 1
SpO2: 94% (96‐100%), glicemia: 60 mg/dL (65‐118 mg/dL), lactato sanguíneo: 3,6 mmol/L (0,3 – 2,5
mmol/L)

Dia 2
Tempo de protrombina (TP): 20 s (4‐10 s), Tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa): 41 s (9‐24 s),
relação proteína/creatinina urinária: 0,42 (< 0,5 = não proteinúrico).
Ultrassom abdominal
Rins com dimensões mantidas, arquitetura interna e relação corticomedular preservada. Cortical e
medular normoecogênica, junção corticomedular mal definida. Há pontos de calcificações em topografia
de divertículos (sobrecarga renal / nefropatia). Estômago repleto de conteúdo gasoso, com formato
preservado, sem definição de camadas e paredes espessadas medindo 1,23 cm (gastrite severa). Fígado
com dimensões dentro da normalidade, bordos regulares e parênquima hipoecogênico homogêneo
(hepatopatia / congestão / toxemia). Pâncreas em topografia de lobo pancreático direito, foi observado
bordos preservados parênquima hiperecogênico homogêneo medindo 1,33 cm (reatividade).

Dia 4
TP: 10 s, TTPa: 31 s

Dia 6
Ultrassom abdominal
Bexiga com parede levemente espessada e pontos hiperecogênicos (cristais/celularidades). Próstata
hiperecogênica homogênea com uretra prostática dilatada. Rins com perda de definição corticomedular,
ecogenicidade elevada e com pelves dilatadas (hidronefrose/pielonefrite). Vesícula biliar com acentuada
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quantidade de sedimento hiperecogênico grosseiro (lama biliar). Parede do estômago espessada (0,6
cm) compatível com gastrite leve.

Dia 10
TP: 9 s, TTPa: 16 s

Dia 18
Rx de tórax
Opacificação homogênea no lobo caudal direito na projeção ventrodorsal (pneumonia
lobar/consolidação pulmonar). Demais campos pulmonares com infiltração peribronquial leve. Linha
radiopaca no hemitórax cranial esquerdo (mineralização bronquial/efusão pleural focal/pleurite).

Dia 20
Ultrassom abdominal
Rins com dimensões mantidas, arquitetura habitual preservada e perda de definição da junção
corticomedular, ecogenicidade elevada. Apresentando pelves dilatadas medindo 0,74 cm à esquerda e
1,1 cm à direita com ureter proximal medindo 0,7 cm (hidronefrose / pielonefrite). Bexiga em repleção
acentuada, preenchida por conteúdo anecogênico homogêneo e acentuada quantidade de pontos
hiperecogênicos (cristais / celularidade), forma preservada, parede levemente espessada (cistite). Fígado
com dimensões mantidas, contornos lisos, ecotextura preservada, parênquima hipoecogênico
homogêneo (hepatopatia). Estômago preenchido por conteúdo hiperecogênico pastoso, camadas
aparentemente preservadas e parede espessada (0,6 cm), imagem compatível com gastrite leve.

Tabela 1. Exame de Urinálise (dia 20)


Método de coleta: Cateterização
Sedimento urinário Exame químico
Céluas epiteliais: 3‐5 por campo pH: 6,0 (5,0‐6,5)
Cilindros: ausentes Corpos cetônicos: negativo
Hemácias: 40‐50 por campo (aumentado) Glicose: negativo
Leucócitos: 15‐23 por campo (aumentado) Bilirrubina: negativo
Bacteriúria: + Urobilinogênio: 0,2 mg/dL (< 1)
Cristais: 0‐1 de bilirrubina por campo Proteína: traços
Sangue: ++
Exame físico
Densidade específica: 1.012 (1.030‐1.035) Consistência: fluida
Cor: amarela Aspecto: turvo

Dia 23
Teste de compatibilidade sanguínea por aglutinação: doador compatível com receptor
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URINÁLISE
Método de coleta: cateterização Obs.: Data: 22/03/2018 (Dia 2)
Sedimento urinário* Exame químico
 Células epiteliais: 5‐10 ↑  pH: 5,0 (5‐6,5)
 Cilindros: 5‐7 ↑  Corpos cetônicos: negativo
 Hemácias: 5‐10 ↑  Glicose: negativo
 Leucócitos: 0‐3  Bilirrubina: +++ [alta] ↑
 Bacteriúria: ausente  Urobilinogênio: ≈0,2 mg/dL (<1)
 Outros:  Proteína: ++ [≈100 mg/dL] ↑
 Sangue: + [leve] ↑
Exame físico
 Densidade específica: 1038 (1.030‐1.035) ↑  Consistência: Fluida
 Cor: Marrom  Aspecto: Turvo
*número médio de elementos por campo de 400 x; n.d.: não determinado

BIOQUÍMICA SANGUÍNEA
Amostra: soro | Anticoagulante: | Hemólise: ausente Data: 22/03/2018 (Dia 2)
 Proteínas totais*: 50 g/L (60‐80) ↓  Cálcio: mg/dL ( )
 Fósforo: 6,48 mg/dL (2,6‐6,2) ↑
 Proteínas totais**: 50 g/L (54‐71) ↓
 Albumina: 21,8 g/L (23‐33) ↓  Fosfatase alcalina: 299,70 U/L (0‐156) ↑
 Globulinas: 28,2 g/L (27‐44)  AST: U/L ( )
 ALT: 553,50 U/L (0‐102) ↑
 Bilirrubina total: mg/dL ( )
 CK: U/L ( )
 Bilirrubina livre: mg/dL ( )
 Bilirrubina conjugada: mg/dL ( )  Potássio: 2,9 mmol/L (3,5‐5,1) ↓
 Sódio: 135 mEq/L (141‐153) ↓
 Glicose: 86 mg/dL (65‐118)
 : ( )
 Colesterol total: mg/dL ( )
 : ( )
 Ureia: 113,87 mg/dL (21‐60) ↑  : ( )
 Creatinina: 1,87 mg/dL (0,5‐1,5) ↑
Observações:
*Proteínas totais determinadas por refratometria; **Proteínas totais determinadas por espectrofotometria.
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HEMOGRAMA
Data: 22/03/2018 (Dia 2)
Leucograma Eritrograma
 Quantidade: 6.000/µL (6000‐17000)  Quantidade: 4,84 milhões/µL (5,5‐8,5) ↓
 Tipos: Quantidade/µL %  Hematócrito: 34 % (37‐55) ↓
 Mielócitos 0 (0) 0 (0)  Hemoglobina: 11,2 g/dL (12‐18) ↓
 Metamielócitos 0 (0) 0 (0)  VCM: 70,2 fL (60‐77)
 Neutrófilos bast. 306 (0‐300) ↑ 5 (0‐3) ↑  CHCM: 32,90 % (32‐36)
 Neutrófilos seg. 3.978 (3000‐11500) 66 (60‐77)  RDW: %( )
 Basófilos 0 (0) 0 (0)  Reticulócitos: %( )
 Eosinófilos 0 (100‐1250) ↓ 0 (2‐10) ↓ Observações: Presença de excentrócitos e
 Monócitos 408 (150‐1350) 7 (3‐10) codócitos. Metarrubrícitos: 1/100
 Linfócitos 1.308 (1000‐4800) 22 (12‐30) leucócitos. Acentuada Icterícia.
 Plasmócitos 0 (0) 0 (0)
Observações:

Plaquetas
 Quantidade: 73.000/µL (200.000‐500.000) ↓ | Observações:

TRATAMENTO E EVOLUÇÃO
Dia 1
A terapêutica inicial instituída foi fluidoterapia com Ringer lactato intra‐venoso (IV) como “prova de carga” (10 mL/kg/10
min), glicose 50%, maropitant (antiemético), tramadol (analgésico), dipirona (antitérmico/analgésico), oxigenioterapia em
sonda nasal e resfriamento com bolsas de gelo, correntes de ar e aplicação de álcool nas extremidades do paciente. Feito
sondagem uretral para esvaziamento da bexiga. O débito urinário permaneceu entre 1,0–1,8 mL/kg/hora (1‐2
mL/kg/hora). Foram necessárias 3 provas de carga para que a PAS estabilizasse em 100 mmHg.
Após estabilização do quadro, o paciente foi encaminhado para exames.

Dia 2
Foram acrescentadas ao tratamento omeprazol (protetor gástrico), sucralfato (protetor gástrico), ampicilina + sulbactam
(antibiótico), metronidazol (antibiótico), ômega 3 (protetor hapático, antioxidante), vitamina E (antioxidante), ácido
tranexâmico (anti‐fibrinolítico). Manutenção da taxa de fluidoterapia em 3 mL/kg/hora enriquecida com KCl. Foi feita
transfusão com plasma fresco congelado (15 mL/kg) e realizado sondagem nasogástrica para alimentação enteral.

Dia 4
Transfusão de plasma fresco congelado devido a permanência dos sinais clínicos de coagulação intravascular disseminada
(CID).

Dia 6
Paciente com parâmetros estáveis, alimentando‐se sozinho com apetite e sem episódios de vômitos. Foi removida a
sonda uretral, sonda de oxigênio e sonda de alimentação. Foi acrescentado ácido ursodesoxicólico (anticolestático) ao
tratamento.

Dia 7
Recebeu alta assistida com retorno agendado para três dias, seguindo tratamento em casa conforme prescrição.

Dia 10
Retornou para reavaliação. Sem alterações ao exame clínico, exceto pela mucosa do pênis com aspecto cianótico.
Acrescentou‐se o uso de pentoxifilina (vasodilatador periférico) na prescrição.

Dia 18
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Retornou com secreção nasal purulenta, disúria, diarreia alaranjada, emagrecimento (9,5 kg), área de necrose peniana e
dor abdominal intensa. Internado para terapia intensiva. O protocolo de tratamento seguiu o mesmo anterior e
acrescentado metadona (analgésico), nebulização com solução fisiológica (NaCl 0,9%) + acetilcisteína (mucolítico) e
hidróxido de alumínio (quelante de fósforo). Taxa de fluidoterapia aumentada (5 mL/kg/hora).

Dias 19 a 22
Seguia com hiporexia (8,7 kg) e desenvolvendo hipertensão (PAS: 200 mmHg). Aumento da área de necrose do pênis,
flebite e fibrose em todos os membros devido aos acessos venosos. Piora grave do quadro clínico.

Dia 23
Intervenção cirúrgica de penectomia total com uretrostomia, cateterismo central e sonda de esofagostomia. No trans‐
operatório, foi realizada transfusão de sangue total (200 mL).

Dia 27
Estável, recebeu alta para seguir com tratamento em casa.

Dia 32
Retornou para reavaliação. Estava ativo e estável.

Tabela 2. Evolução de parâmetros hematológicos e bioquímicos


Parâmetro (referência) Dia 02 Dia 03 Dia 05 Dia 10 Dia 18 Dia 22 Dia 24 Dia 27 Dia 32
(22/3) (24/3) (26/3) (30/03) (07/4) (11/4) (13/4) (16/4) (21/04)

Eritrograma
Eritrócitos (5.5 ‐ 8.5 milhões /µl) 4,84 4,78 3,75 3,39 3,86 3,75 3,87 3,94 4,56
Hemoglobina (12 – 18 g/dL) 11,2 11,6 8,7 7,8 8,8 8,3 9,0 9,3 9,8
Hematócrito (37 – 55 %) 34 34 26 27 29 29 31 30 34,0
VCM (60 – 77 fL) 70,2 71,1 69,3 81,1 75,1 77,3 80,1 76,1 74,6
CHCM (32 – 36 %) 32,9 34,1 33,5 28,4 30,3 28,3 29,0 31,0 28,8
Leucograma
Leucócitos Totais (6000–17000 /µl) 6.000 8.800 9.800 19.750 26.200 27.900 38.700 17.500 12.600
Metamielócitos (0) 0 0 0 0 0 0 0 0 0
N. bast. (0–300 /µl) 306 0 0 0 262 558 387 0 0
N. seg. (3000–11400 /µl) 3.978 7.920 8.232 18.216 20.436 23.157 34.056 16.100 10.836
Eosinófilos (100 – 750 /µl) 0 0 0 0 0 0 0 175 0
Basófilos (Raros) 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Linfócitos (1000 – 4800 /µl) 1.308 709 1.470 980 1.572 1.953 1.935 700 882
Monócitos (150 – 1350 /µl) 408 176 98 554 3.930 2.232 1.935 525 882
Plaquetas
Plaquetas (200.000‐500.000 /µl) 73.000 78.000 74.000 82.000 261.000 125.000 118.000 172.000 172.000
Bioquímica sanguínea
Prot. totais (60–80 g/L) 50 48 50 69 92 81 72 62 63
Albumina (23–33 g/L) 21,8 23,9 32,1 21,9 23,0 23,8 22,0 ‐ 24,0
ALT (21‐102 U/L) 553,50 ‐ 92,50 62,9 58,14 58,14 87,21 36,5 30,2
Fosf. Alcalina (20–156 U/L) 299,70 ‐ ‐ 629 ‐ ‐ 268 ‐ 205
Uréia (10–60 mg/dL) 113,87 ‐ ‐ 51,57 271,14 120 ‐ ‐ 68
Creatinina (0,5–1,6 mg/dL) 1,87 0,87 0,81 0,85 7,41 1,5 1,52 1,62 1,62
Glicose (60–110 mg/dL) 60,0 ‐ ‐ ‐ ‐ ‐ ‐ ‐
Potássio (3,5‐5,1 mmol/L) 2,9 3,40 2,2 3,7 4,5 2,7 2,7 4,4 4,0
Fósforo (2,60‐6,20 mg/dL) 6,48 ‐ ‐ ‐ 9,25 6,89 ‐ ‐ 6,0
Sódio (141‐153 mEq/L) 135 ‐ ‐ ‐ ‐ ‐ ‐ ‐ ‐
Observações de alterações morfológicas e celulares
Dia 2 Presença de excentrócitos e codócitos. Metarrubricitos: 1/100 leucócitos. Acentuada Icterícia
Dia 4 Presença de anisocitose e policromasia discretas, excentrócitos e codócitos. Matarrubricitos: 4/100 leucócitos. Acentuada icterícia.
Presença de neutrófilos hipersegmentados e macroplaquetas.
Dia 5 Presença de anisocitose e policromasia discretas, excentrócitos, codócitos, corpúsculos de Heinz. Metarrubrícitos: 6/100 leucócitos.
Icterícia.
Dia 10 Presença de anisocitose, policromasia discreta e excentrócitos. Metarrubrícitos: 3/100 leucócitos. Icterícia. Anisocitose plaquetária e
neutrófilos hipersegmentados.
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Dia 18 Presença de anisocitose e policromasia discretas, excentrócitos e equinócitos. Icterícia. Presença de monócitos ativados.
Dia 22 Presença de anisocitose e policromasia discretas, raros excentrócitos. Icterícia. Presença de monócitos ativados.
Dia 24 Presença moderada de anisocitose e esferócitos. Metarrubrícitos: 1/100 leucócitos. Icterícia. Presença de macroplaquetas.
Dia 27 Presença de anisocitose moderada e policromasia discreta, esferócitos, equinócitos. Metarrubrícitos: 3/100 leucócitos. Discreta
Icterícia. Presença de neutrófilos hipersegmentados e macroplaquetas.
Dia 32 Presença de anisocitose e policromasia discretas, excentrócitos, codócitos e esferócitos. Metarrubrícitos: 2/100 leucócitos. Discreta
icterícia.

NECROPSIA E HISTOPATOLOGIA

DISCUSSÃO
Podemos definir esse quadro como intermação, uma hipertermia, não piréxica, que ocorre quando o
metabolismo animal não consegue dissipar o calor corporal com o ambiente podendo chegar a
temperaturas iguais ou acima de 41°C (VITOR et al., 2016). A exaustão térmica esta ocasionalmente
associada à síncope e os efeitos lesivos da hipertermia estão basicamente relacionados à atividade
metabólica e ao consumo de oxigênio celular elevado (ETTINGER; FELDMAN, 1997). A intermação pode
ocorrer rapidamente no cão, principalmente em ambientes fechados e com pouca ventilação. Além
disso, o ofego e sudorese podem levar a desidratação e consequentemente a colapso circulatório.
Anormalidades anatômicas do trato respiratório, como o que ocorre em raças braquiocefálicas, é um
fator agravante ao quadro podendo inibir a troca de calor adequada entre o organismo e o ambiente
(ETTINGER; FELDMAN, 1997). Os sinais clínicos da hipertermia são inicialmente taquipneia,
hiperventilação, hiperemia, taquicardia, hipersalivação, mucosas secas, TPC reduzido, depressão,
estupor, hipotensão, colapso, hematêmese e hemorragias podendo evoluir para coma. Três a cinco dias
após o quadro inicial pode ocorrer falência renal e hepática, arritmia cardíaca, síndrome da insuficiência
respiratória aguda (SIRA) associada a CID e síndrome da resposta inflamatória sistêmica induzida (SIRS)
(GORDON, 2017; TILLEY; SMITH, 2008). Um episódio de hipertermia predispõe o animal a outros
episódios devido ao dano no centro termorregulador (TILLEY; SMITH, 2008).
A permanência da temperatura corporal elevada inibe o sistema nervoso autônomo simpático
impedindo a resposta dos barorreceptores à baixa resistência vascular. Essa vasodilatação sistêmica,
associada à desidratação, leva a hipoperfusão, isquemia e perda de integridade de alguns tecidos
principalmente periféricos e gastrintestinal (GUYTON, 2006). Pode ocorrer insuficiência gastrintestinal
com descamação epitelial, absorção de endotoxinas e hemorragias. Esses fenômenos podem justificar as
alterações gastrintestinais e a necrose da ponta do pênis e uretra.
O desenvolvimento da pneumonia pode ser atribuído à lesão endotelial pulmonar devido a injúria
térmica e metabólica endotoxêmica associada decorrente da insuficiência respiratória aguda ocasionada
pela intermação (BRUCHIM, 2012).

Hemograma
A anemia é resultante de uma doença primária, responsável pela destruição de eritrócitos ou hemólise,
pela perda de sangue decorrente de hemorragia ou pela falha na produção de eritrócitos. Na hemólise,
podemos observar esplenomegalia, icterícia e urina escurecida devido à hemoglobinúria ou
bilirrubinúria. Geralmente a hemorragia não resulta apenas na perda de eritrócitos, mas também, de
outros componentes do sangue como as proteínas. Tanto a hemólise ou anemia por perdas são
classificadas como regenerativas (THRALL et al., 2015). Neste caso, consideramos tanto a hemólise pela
presença de icterícia e urina escura quanto a perda sanguínea pela hipoproteinemia, epistaxe e presença
de petéquias. Na maior parte do tempo, a anemia se classifica como normocítica e normocrômica, sendo
em alguns períodos macrocítica e hipocrômica como nos exames do dia 10, 22 e 24. Em geral, uma
anemia macrocítica e hipocrômica esta associada a uma maior quantidade de células imaturas na
circulação podendo indicar que a medula óssea encontra‐se funcional (regeneração) (THRALL et al.,
2015).
A morfologia dos eritrócitos auxilia muito na definição do diagnóstico etiológico de anemia e de outras
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disfunções. Células policromatofílicas correspondem a eritrócitos jovens precocemente liberados. Há boa


relação entre o grau de policromasia e a contagem de reticulócitos. Anisocitose corresponde à variação
de tamanho dos eritrócitos decorrente da presença de células grandes e pequenas na circulação o que
pode indicar regeneração. Os codócitos são eritrócitos arredondados e finos, com densa área central de
hemoglobina e periferia pálida. Equinócitos são células espiculadas que podem estar associadas à
doença renal e também pode ser decorrentes de artefato na preparação da lâmina. A presença de
esferócitos pode sugerir anemia hemolítica imunomediada. Além disso, os esferócitos podem ser
encontrados após transfusão sanguínea com tipo de sangue inadequado como observado no exame do
dia 24 que coincide com pós‐transfusão de sangue. Os corpúsculos de Heinz e os excentrócitos se
formam a partir da desnaturação oxidativa da hemoglobina. A presença deles torna a célula mais
suscetível à hemólise intra e extravascular. Quando grande quantidade de eritrócitos são afetados, pode
haver anemia hemolítica grave (THRALL et al., 2015).
No leucograma, a partir do dia 18, podemos observar uma leucocitose com desvio a esquerda, além da
presença de monocitose o que sugere um estímulo inflamatório (THRALL et al., 2015).

Avaliação das plaquetas e coagulação


O endotélio vascular é muito sensível à injúria térmica e esse dano pode resultar na liberação de
tromboplastina e fator XII (via intrínseca), ativando a cascata de coagulação complemento, que culmina
em SIRS e microtrombose, além de diátese hemorrágica como resultado da CID (FLOURNOY et al., 2003).
Hematomas, petéquias ou equimoses em um paciente anêmico poderá ser secundário a menor
quantidade de plaquetas, disfunção plaquetária ou distúrbio de coagulação (NELSON; COUTO, 2010;
THRALL et al., 2015). Deficiências de fatores de coagulação que resultam em anemia podem ser
corrigidas por meio da administração de sangue fresco total (se houver considerável perda de sangue) ou
plasma fresco congelado. Além disso, tanto o sangue total, plasma fresco congelado quando o plasma
rico em plaquetas são indicados para o tratamento de pacientes com CID (NELSON; COUTO, 2010). Isso
poderia justificar a necessidade de transfusão de plasma fresco congelado como repositor de fatores de
coagulação devido ao aumento do tempo de TP e TTPa por injúria térmica. A trombocitopenia pode ser
um achado comum na Intermação devido à destruição de megacariócitos e plaquetas ou associado a CID
(FLOURNOY et al., 2003).

Bioquímica sanguínea
A injúria térmica direta aos hepatócitos somada a hipotensão esplênica prolongada podem ser os
fenômenos responsáveis pelo aumento de enzimas como ALT e FA, impregnação por bilirrubina na urina
e alterações de ultrassom que sugerem colestase e toxemia (FLOURNOY et al., 2003). A ALT é um a boa
indicadora de lesão hepática aguda, lesões hepatocelulares, necrose hepática e obstrução biliar em cães.
Seu pico de liberação no sangue ocorre cerca de 3 a 4 dias após a lesão, mas retorna aos seus valores
basais cerca de 2 semanas após (GONZÁLEZ; SILVA, 2017). A concentração de albumina também pode ser
afetada pelo funcionamento hepático. Níveis de albumina diminuídos com níveis de uréia normais ou
elevados acompanhados de níveis de enzimas hepáticas altos são indicadores de falha/lesão hepática
(GONZÁLEZ; SILVA, 2017).
A injúria renal aguda associada à necrose e degeneração tubular é uma sequela resultante da
hipertermia, hipoperfusão, rabdomiólise, hipóxia, ativação de citocinas, mediadores inflamatórios e
vasoativos e microtrombose secundária a CID. Além disso, a filtração de mioglobina devido a
rabdomiólise unida à necrose muscular é nefrotóxica e pode piorar o quadro de insuficiência renal
(FLOURNOY et al, 2003). Esses fatores podem vir ao encontro da oligúria e a azotemia apresentadas que
podem ter três origens: pré‐renal pela desidratação, renal pelos danos observados no exame
ultrassonográfico e nefrotoxicidade e pós‐renal devido a obstrução pela necrose peniana. A excreção da
creatinina só é realizada por via renal, sendo assim, os níveis de creatinina plasmática refletem
diretamente a taxa de filtração renal (GONZÁLEZ; SILVA, 2017). A hiperfosfatemia em dois resultados
isolados vem de encontro ás alterações renais apresentadas nesse mesmo momento. O fosfato
inorgânico no plasma se excreta via renal, sendo mais difusível através do glomérulo do que o cálcio.
Uma diminuição nos níveis plasmáticos de sódio pode ser devido a perdas desse eletrólito na diurese ou
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na desidratação grave (GONZÁLEZ; SILVA, 2017).


A hipocalemia constante durante a evolução do caso, somente compensada com a reposição IV de KCl,
inicialmente, pode ser de origem gástrica (êmese) e se estender por perda sequente da função tubular
renal. A hiperlactemia inicial pode estar relacionada tanto à hipóxia quanto à hipoperfusão sistêmica,
devido, nessas condições de anaerobiose, o ácido pirúvico ser convertido em ácido láctico (GONZÁLEZ;
SILVA, 2017). Além disso, a dosagem de lactato é um excelente indicador de prognóstico e
acompanhamento da evolução do paciente. Altos níveis de lactato, indicam prognóstico ruim.

Urinálise
A falha da função renal pode ter vários graus, que refletem em uma ampla variedade de sintomas
podendo levar a anorexia, letargia, vômito, diarreia, ulcerações gástricas, anemia e alterações nas
características físico‐químicas da urina. Uma urina turva pode sugerir alterações como inflamações,
hemorragias ou cristalúria. A coloração normal da urina é amarela, enquanto a cor marrom, pode indicar
a presença de eritrócitos ou hemoglobina. A hemoglobinúria, ainda, pode estar associada à hemólise
justificando a presença de anemia e icterícia. A densidade urinária reflete o grau de concentração da
urina e, portanto, a capacidade dos túbulos renais de concentrar urina. O aumento da densidade urinária
pode ser observado em casos de desidratação, como visto na urinálise do dia dois. Na urinálise do dia 20,
a urina isostenúrica 1.012 (1.008‐1.012) pode indicar que o rim não fez nenhuma atividade para
concentrar urina em nível de túbulos, mas é importante ressaltar que nesse exame, o paciente estava
internado recebendo fluidoterapia intensa há 36 horas. Em relação à proteinúria (++) da primeira
urinálise, podemos associar ao fator pré‐renal levando em consideração a hipertermia, além de choque e
da hemoglobinúria. No entanto, o exame de relação proteína/creatinina urinária é usado com um
indicador mais sensível de proteinúria, e este, encontrava‐se dentro dos valores de referência. O
aumento da bilirrubina na urina pode sugerir doença hepática, doença hemolítica ou obstrução biliar,
sendo as duas primeiras plausíveis de associação ao caso clínico. A presença de cilindros indica alteração
no trato urinário superior (GONZÁLEZ; SILVA, 2017).

CONCLUSÕES
O presente caso trata‐se de uma síndrome de resposta inflamatória sistêmica (SIRS) induzida por
intermação que pode levar à falência orgânica multissistêmica. É de extrema importância que esses
pacientes sejam atendidos de forma rápida e que seja estabelecido o tratamento intensivo de forma a
causar menos sequelas.

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FIGURAS

Figura 1. Ponta de pênis. Necrose causada pela Figura 2. Título da figura. Legenda da figura
síndrome de resposta inflamatória sistêmica (SIRS) contendo texto descritivo. (© 2099 Autor)
induzida por intermação . (© 2018 )

Figura 3. Título da figura. Legenda da figura Figura 4. Título da figura. Legenda da figura
contendo texto descritivo. (© 2099 Autor) contendo texto descritivo. (© 2099 Autor)

Figura 5. Título da figura. Legenda da figura Figura 6. Título da figura. Legenda da figura
contendo texto descritivo. (© 2099 Autor) contendo texto descritivo. (© 2099 Autor)

Figura 7. Título da figura. Legenda da figura Figura 8. Título da figura. Legenda da figura
contendo texto descritivo. (© 2099 Autor) contendo texto descritivo. (© 2099 Autor)

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