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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Faculdade de Veterinária
Departamento de Patologia Clínica Veterinária Relatório de Caso Clínico
Disciplina de Bioquímica e Hematologia Clínica (VET03121)
http://www.ufrgs.br/favet/bioquimica

IDENTIFICAÇÃO
Caso: 2009/1/02 Procedência: Clínica Veterinária do Forte No da ficha original: D495
Espécie: felina Raça: siamês Idade: 5 anos Sexo: macho Peso: 6,5 kg
Alunos(as): Fernanda Pereira Siqueira, Letícia Talitta Baretta, Michele Schnell e Ano/semestre: 2009/1
Rachel Galon da Silva.
Residentes/Plantonistas:
Médico(a) Veterinário(a) responsável: Jane Guimarães Sandoval

ANAMNESE
O felino apresentava apatia, anorexia e perda de peso.
A proprietária relatou que houve uma troca súbita de ração, pela qual o animal não demonstrou interesse no
primeiro momento; não foi observado se nos dias seguintes o animal se alimentou; observou-se apenas que
a ração estava sendo consumida, mas existem outros animais na casa que poderiam estar se alimentando
dela; a anorexia do paciente só foi percebida com a perda de peso e apatia, aproximadamente uma semana
após a troca da ração.

EXAME CLÍNICO
Mucosas ictéricas, desidratação, temp. retal 38,7°C (37,5 – 39,3°C), alteração hepática evidenciada na
ultrassonografia.

EXAMES COMPLEMENTARES
Ultrassonografia:
Fígado com dimensões aumentadas, contornos arredondados e ecotextura preservada. Parênquima
homogêneo com a ecogenicidade elevada.
Ves. biliar moderadamente repleta por conteúdo anecogênico, formato preservado com paredes finas. Não
apresentou imagens ultrassonográficas sugestivas de cálculos e nem sedimento biliar.
Cav. Gástrica preenchida por pequena quantidade de conteúdo gasoso. Camadas, aparentemente,
preservadas, paredes regulares e normoespessas.
Baço com dimensões mantidas, contornos dentro da normalidade e ecoextura preservada: parênquima
homogêneo com calibre normal da veia esplênica.
Rins com dimensões mantidas, contornos regulares e limites córticomedulares pouco preservados.
Bexiga moderadamente repleta, preenchida por conteúdo anecogênico homegêneo.
Outras informações: alças intestinais de distribuição topográfica habitual, peristaltismo evolutivo, camadas,
aparentemente, preservadas, paredes regulares e normoespessas.

URINÁLISE
Método de coleta: micção natural Obs.:
Exame físico
cor consistência odor aspecto densidade específica (1,020-1,040)
Esverdeado Turvo 1,015
Exame químico
pH (6,0-7,0) corpos cetônicos glicose pigmentos biliares proteína hemoglobina sangue nitritos
7,0 - - ++ + - - -
Sedimento urinário (n médio de elementos por campo de 400 x)
o

Células epiteliais: 1 Tipo: Transição Hemácias: 0


Cilindros: 1 Tipo: Hialinos Leucócitos: 1
Outros: Tipo: Bacteriúria: leve
n.d.: não determinado
Caso clínico 2009/1/02 página 2

BIOQUÍMICA SANGÜÍNEA
Tipo de amostra: soro Anticoagulante: Hemólise da amostra: ausente
Proteínas totais: g/L (54-78) Glicose: mg/dL (73-134) ALP: 138 U/L (0-93)
Albumina: g/L (21-33) Colesterol total: mg/dL (95-130) ALT: 162 U/L (0-83)
Globulinas: g/L (26-51) Uréia: mg/dL (43-64) CPK: U/L (0-125)
BT: mg/dL (0,15-0,5) Creatinina: mg/dL (0,8-1,8) AST: 52 (26 - 43)
BL: mg/dL (-) Cálcio: mg/dL (6,2-10,2) : ( )
BC: mg/dL (-) Fósforo: mg/dL (4,5-8,1) : ( )
BT: bilirrubina total BL: bilirrubina livre (indireta) BC: bilirrubina conjugada (direta)

HEMOGRAMA
Leucócitos Eritrócitos
Quantidade: 10.700/μL (5.000-19.500) Quantidade: 10,5 milhões/μL (5-10)
Tipo Quantidade/μL % Hematócrito: 41,0 % (24-45)
Mielócitos 0 (0) 0 (0) Hemoglobina: 12,6 g/dL (8-15)
Metamielócitos 0 (0) 0 (0) VCM (Vol. Corpuscular Médio): 39 fL (39-55)
Bastonados 0 (0-300) 0 (0-3) CHCM (Conc. Hb Corp. Média): 30,7 % (31-35)
Segmentados 7.062 (2.500-12.500) 66 (35-75) Morfologia:
Basófilos 0 (0) 0 (0)
Eosinófilos 428 (0-1.500) 4 (2-12)
Monócitos 856 (0-850) 8 (1-4)
Linfócitos 2.354 (1.500-7.000) 22 (20-55) Plaquetas
Plasmócitos 0 (0) 0 (0) Quantidade: /μL (300.000-800.000)
Morfologia: Observações: Plasma ictérico

TRATAMENTO E EVOLUÇÃO
20/04 - A fluidoterapia de eleição foi solução fisiológica 0,9% de NaCl; na primeira semana foi administrada
500 mL/dia por via intravenosa; alimentação forçada via seringa (Hill’s Prescription Diet Canine/Feline a/d¹
– 80 mL/dia).

22/04 - O paciente passou a apresentar salivação intensa diante a alimentação forçada. Também começou
a apresentar vômitos; a alimentação via seringa foi substituída por sonda oro-esofágica. Foram
administrados os seguintes medicamentos: Plasil (cloridrato de metoclopramida) 0,2 mg/kg de 12/12 horas
por via subcutânea até cessarem vômitos, sendo um importante antiemético de doenças metabólicas; Antak
(cloridrato de ranitidina) foi utilizado na dose de 1mg/kg por via subcutânea de 12/12 horas durante 10 dias,
sendo um antihistamínicos, atuando protetor de mucosa gástrica, inibindo a secreção gástrica.

27/04 – A fluidoterapia foi reduzida para 250 ml/dia, sob mesma via e solução.

04/05 – O animal começou a beber água, voluntariamente; demonstrava interesse pelo alimento, mas
ainda não comia e ainda apresentava salivação; não apresentava mais vômitos; as mucosas estavam menos
ictéricas; o peso manteve-se estável (6,5 kg); o aporte da fluidoterapia passou a ser por via subcutânea,
sendo administrados no total 100 mL/dia; a soroterapia foi suspensa após uma semana e tinha como
objetivo manter o animal hidratado caso houvesse insucesso na alimentação forçada.

14/05 – O animal estava mais ativo. Alimentava-se (pouco), voluntariamente, e a salivação estava
diminuída. A sonda oro-esofágica foi substituída pela alimentação através de seringa novamente.
Foi realizada a repetição do seguinte exame bioquímico:

ALT 104 (< 83 U/L)

02/06 – O animal estava bem disposto, alimentava-se, normalmente, por conta própria. As mucosas
estavam com coloração normal e o peso era de 6,45 kg. Apesar do animal se alimentar voluntariamente, foi
recomendado continuar a alimentação via seringa por mais uma semana.
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Novos exames mostraram que o plasma ainda estava ictérico, AST com leve alteração, ALT e FA normais:
HEMOGRAMA
LEUCOGRAMA ERITROGRAMA
Leucócitos totais (/ μL): 10700 (5000 a 19500) Eritrócitos (x 106 / μL) 7,57 5,0 a 10
Relativo (%) Absoluto (/ μL) Hemoglobina (g / dL) 11,3 8,0 a 15
Mielócitos 0 0 (zero) Hematócrito (%) 36 24 a 45
Metamielócitos 0 0 (zero) VCM (fL) 47,55 40 a 60
N. Bastonetes 0 0 (0 – 300) CHCM (%) 31,39 31 a 35
N. Segmentados 75 16800 (2500 – 12500)
Eosinófilos 04 896 (100 – 1500)
Basófilos 0 0 (raros)
Monócitos 01 224 (0 - 850)
Linfócitos 20 4480 (1500 - 7000)

EXAMES BIOQUÍMICOS
Albumina : 27,62 (21-33 g/L) FA : 63,14 (< 93 U/L)
ALT : 69,69 (< 83 U/L) GGT : 6,61 (< 8 U/L)
AST : 43,53 (< 43 U/L) Glicose : 123,94 (73 - 160 mg/dL)
Bilirrubina total: 1,87 (0,15 – 0,5 mg/dL) Globulinas : 46,62 (27 – 50 g/L)
Colesterol : 188,95 (74 – 130 g/dL) Proteína total : 74,24 (54 – 78 g/L)
Creatinina : 1,02 (0,8 – 1,8 mg/dL) Uréia : 32,19 (43 – 64 mg/L)

09/06 – O paciente permanecia alimentando-se, normalmente, e bem disposto; recebeu alta.


__________
¹ Hill’s Prescription Diet Canine/Feline a/d – Composição: água, fígado de aves, carne de frango, farelo de milho, caseína, óleo de
peixe, tripolifosfato de sódio, goma guar, carbonato de cálcio, taurina, sais minerais (carbonato de cálcio, cloreto de potássio, óxido de
magnésio, óxido de zinco, sulfato ferroso, sulfato de cobre, óxido de manganês, iodeto de cálcio, selenito de sódio), vitaminas (cloreto
de colina, vitamina D3, vitamina E, mononitrato de tiamina, niacina, pantotenato de cálcio, cloridrato de piridoxina, riboflavina, ácido

NECRÓPSIA (e histopatologia)
Patologista responsável:

DISCUSSÃO
HEMOGRAMA: sem alterações significativas para o diagnóstico.

URINÁLISE: a bilirrubina e o urobilinogênio aumentados na urina indicam comprometimento da função


hepática e conferem a coloração esverdeada à amostra urinária. A bilirrubina presente na urina representa
apenas a fração conjugada, já que esta é lipossolúvel e pode ser excretada na urina ao contrário da
bilirrubina ligada à albumina. O urobilinogênio, que nesse caso não pode ser excretado pela bile, também é
excretado pela urina.
A densidade da urina abaixo da normalidade pode ser explicada pela utilização de fluidoterapia, ocasionando
poliúria e produzindo urina diluída.
A turbidez da urina pode ter ocorrido pela presença de células e bactérias evidenciadas no exame do
sedimento da urina, que foi coletada por micção natural.

EXAME BIOQUÍMICO: o aumento da atividade das enzimas Alanina Aminotransferase (ALT), Aspartato
Aminotransferase (AST) e Fosfatase Alcalina (FA) indicam lesão hepática.
ALT é uma enzima considerada altamente hepato-específica em cães e gatos. Alterações metabólicas que
ocasionam acúmulo de lipídios nos hepatócitos podem causar lesão de hepatócitos e consequentemente
extravasamento de ALT (THRALL, 2006).
A AST é uma enzima que está presente no citoplasma e em maior parte nas mitocôndrias, portanto é
necessária uma lesão maior para que haja seu extravasamento. Esta enzima pode ser usada para avaliar
lesão hepática em pequenos animais da mesma forma que a ALT, porém com uma especificidade muito
menor, pois também é liberada quando há lesão muscular. Em cães e gatos, o aumento da atividade sérica
de AST decorre das mesmas doenças hepáticas que causam elevação de ALT (THRALL, 2006).
Em felinos, nem toda hepatopatia causa um aumento de FA significativo, pois os seus hepatócitos possuem
menor quantidade de FA; apesar disso, a FA se mostrou aumentada nesse caso, indicando a lesão hepática.
Caso clínico 2009/1/02 página 4

Doenças hepatocíticas que resultam em acentuada tumefação dos hepatócitos, como a lipidose hepática,
podem obstruir os pequenos canalículos biliares e também induzir a maior produção e liberação de FA.
Outra alteração observada no exame bioquímico foi a presença de plasma ictérico; isto ocorre pela presença
de pigmentos biliares na circulação sanguínea. Provavelmente, neste caso, a bilirrubina livre (BL) está sendo
produzida normalmente, mas seu nível sérico está aumentado porque a taxa de conjugação está baixa
devido à lesão hepática. O nível sérico de bilirribunina conjugada (BC) também está aumentado, pois fluxo
pelos canalículos biliares está prejudicado, ocasionando o refluxo da BC para a circulação. Grande parte dos
felinos (aproximadamente 75%) com lipidose hepática apresenta aumento da concentração sérica de
bilirrubina, provavelmente, devido à colestase (THRALL, 2006). A BC que é excretada pela bile é reduzida a
urobilinogênio no intestino. O urobilinogênio também não pode ser excretado pela bile e reflui para a
circulação.

ULTRASSONOGRAFIA: hepatomegalia pode resultar de doenças infiltrativas, como a lipidose e é


caracterizado pelo aumento visível do tamanho e pelos bordos que ficam arredondados. Um aumento difuso
na ecogenicidade pode ocorrer como resultado de infiltração gordurosa generalizada (KEALY, 2005).

COMENTÁRIOS: a solução fisiológica (0,9% NaCl) foi de eleição para a manutenção do animal em estado
hidratado. Não foi utilizado Ringer lactato porque o metabolismo do lactato poderia estar prejudicado no
fígado (BIRCHARD, 2008). Também não utilizou-se benzodiazepinicos para estimular o apetite pois são
contraindicados na lipidose hepática (CHANDLER et al., 2006). Quando o diagnóstico dado é de lipidose
hepática, o caráter mais importante do tratamento, sem dúvida, é o suporte nutricional (CHANDLER et al.,
2006). Manter um balanço energético favorável favorece uma recuperação do equilíbrio metabólico e a
reversão dos sinais clínicos associados.
Em casos de lipidose hepática, a dieta correta pode ter impacto significativo na recuperação da
funcionalidade do fígado e, em muitos casos, permitir sua regeneração, satisfazendo, assim, requerimentos
de proteína e nutrientes do paciente. Por isso, para o tratamento foi escolhido uma alimentação com a ração
Prescription Diet a/d (Hill’s Pet Nutrition) que reduz a sobrecarga do fígado ao fornecer quantidades
específicas de sódio, proteína, além de gorduras e carboidratos facilmente digeríveis. Assim, este tipo de
dieta irá ajudar a controlar a doença presente e melhorar a função hepática.

A lipidose hepática felina é uma doença que se caracteriza pelo acúmulo de gordura nos hepatócitos, de
maneira a prejudicar sua função; felinos de qualquer idade ou raça podem ser acometidos, e fatores como a
obesidade e longos períodos de anorexia são fatores desencadeantes da doença, ocasionando alto nível de
lipomobilização; há formação de fígado gorduroso, que provoca colestase intra-hepática e falência hepática
progressiva; o acúmulo de gordura no fígado se dá quando ocorre um desequilíbrio entre o ingresso e o
egresso de lipídios nos hepatócitos; o tratamento é longo, o que pode desestimular os proprietários, e o
prognóstico é reservado. Quando não tratada, a doença é fatal.

CONCLUSÕES
De acordo com a anamnese, exame clínico e exames laboratoriais, o diagnóstico foi de lipidose hepática
desencadeada, principalmente, devido à obesidade do animal antes da doença associado à anorexia devido
à troca abrupta de ração.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIRCHARD, S. J. Manual Saunders: clínica de pequenos animais. 3.ed. São Paulo: Roca, 2008. 2048 p.
CHANDLER, E. A.; GASKELL, C. J.; GASKELL, R. M. Clínica e terapêutica em felinos. 3.ed. São Paulo:
Roca, 2006. 590 p.
KEALY, J. K. Radiologia e ultra-sonografia do cão e do gato. 3.ed. São Paulo: Manole, 2005. 436 p.
THRALL, M. A. Hematologia e bioquímica clínica veterinária. São Paulo: Roca, 2006. 582 p.

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