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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Faculdade de Veterinária
Departamento de Patologia Clínica Veterinária Relatório de Caso Clínico
Disciplina de Bioquímica e Hematologia Clínicas (VET03121)
http://www.ufrgs.br/bioquimica

IDENTIFICAÇÃO
Caso: 2013/2/10 Ano/semestre: 2013/2
Espécie: canina | Raça: Poodle | Idade: 13 anos | Sexo: fêmea | Peso: 3,580 kg
Alunos(as): Ana Paula Pinto Beck, Jéssica Biasi Murliki e Maielli Martins Marçal
Médico(a) Veterinário(a) responsável: Guilherme Luiz Carvalho de Carvalho

ANAMNESE
O animal consultou no setor de oncologia do HCV-UFRGS com o intuito de retirar tumores mamários.
A proprietária relatou que foi diagnosticado diabetes há cerca de 3 meses e foi receitado insulina NPH, 3 UI
uma vez ao dia. Demonstrou sintomas de hipoglicemia; por esse motivo, foi encaminhada para uma consulta
com um endocrinologista. Apresenta poliúria e polidipsia e urina em locais inadequados. Além da ração
sempre disponível, come de tudo que os proprietários estão comendo. Apresentou intensa polifagia. Foi
diagnosticado com cardiopatia em 24/10/12, e não foi tratada. Em fevereiro de 2013 teve piometra e foi
submetida a ovariohisterectomia. Já apresentava tumores mamários na época, que não foram retirados e
cresceram muito desde então.

EXAME CLÍNICO
03/09/2013:
-Mucosas normocromadas
-Doença periodontal intensa, com halitose, tártaro e ausência de alguns dentes.
-Condição corporal (cc): 2,5 (1: magro; 3: ideal; 5: obeso)
-Frequência cardíaca: 128 bpm (70-160 bpm).
-Temperatura retal: 39,2°C (38,5-39,5°C).
-Catarata bilateral.
-Glicemia ambulatorial: 491 mg/dL (65-118 mg/dL).
-Presença de tumores de mama.

EXAMES COMPLEMENTARES
Ultrassonografia:
Fígado com dimensões mantidas, contornos regulares, parênquima hiperecogênico e moderadamente
heterogêneo. Sugestivo de hepatopatia. Vesícula biliar com repleção adequada, parede fina e conteúdo com
pequeno depósito ecogênico (lama biliar). Demais órgãos abdominais sem alterações ecográficas visíveis.

URINÁLISE (03/09/2013)
Método de coleta: micção natural Obs.:
Exame físico
Cor Consistência Aspecto Densidade específica (1,015-1,045)
amarelo claro fluida límpido 1,040
Exame químico
pH (5,5-7,5) Corpos cetônicos Glicose Bilirrubina Urobilinogênio Proteína Sangue
5,5 - ++++ - 0,2 UE/dL - -
Sedimento urinário (n médio de elementos por campo de 400 x)
o

Células epiteliais: escamosas (0-1) Hemácias: <5


Cilindros: Leucócitos: 0
Outros: Bacteriúria: ausente
n.d.: não determinado

BIOQUÍMICA SANGUÍNEA (05/09/2013)


Tipo de amostra: soro Anticoagulante: Hemólise da amostra: ausente
Proteínas totais: g/L (54-71) Glicose: 480 mg/dL (65-118) FA: 107 U/L (0-156)
Albumina: 36,7 g/L (26-33) Colesterol total: 321 mg/dL (135-270) ALT: 94 U/L (0-102)
Globulinas: g/L (27-44) Uréia: 37 mg/dL (21-60) CPK: U/L (0-121)
BT: mg/dL (0,1-0,5) Creatinina: 0,8 mg/dL (0,5-1,5) Frutosamina: 470 mmol/L (170 - 338)
BL: mg/dL (0,01-0,49) Cálcio: mg/dL (9,0-11,3) Triglicerídeos: 138,6 mg/dL (32-138)
BC: mg/dL (0,06-0,12) Fósforo: mg/dL (2,6-6,2) : ( )
Observações:
BT: bilirrubina total BL: bilirrubina livre (indireta) BC: bilirrubina conjugada (direta)
Caso clínico 2013/2/10 página 2

HEMOGRAMA (05/09/2013)
Leucócitos Eritrócitos
Quantidade: 12.200/L (6.000-17.000) Quantidade: 6,79 milhões/L (5,5-8,5)
Tipo Quantidade/L % Hematócrito: 47,0 % (37-55)
Mielócitos 0 (0) 0 (0) Hemoglobina: 16,5 g/dL (12-18)
Metamielócitos 0 (0) 0 (0) VCM (Vol. Corpuscular Médio): 69 fL (60-77)
Bastonetes 0 (0-300) 0 (0-3) CHCM (Conc. Hb Corp. Média): 35,1 % (32-36)
Segmentados 9.516 (3.000-11.500) 78 (60-77) RDW (Red Cell Distribution Width): 13 % (14-17)
Basófilos 0 (0) 0 (0) Observações: PPT (proteínas plasmáticas
Eosinófilos 122 (100-1.250) 1 (2-10) totais): 80 g/L (60 -80) por refratometria
Monócitos 1.708 (150-1.350) 14 (3-10)
Linfócitos 854 (1.000-4.800) 7 (12-30)
Observações: Plaquetas
Quantidade: 512.000/L (200.000-500.000)
Observações:

TRATAMENTO E EVOLUÇÃO
03/09/2013: a terapêutica prescrita foi insulina NPH (insulina humana recombinante) 2 UI duas vezes ao
dia; ração balanceada, rica em fibras, proteínas, e carboidratos de absorção lenta, duas vezes ao dia; e em
caso de quadro de hipoglicemia, uma fonte de glicose disponível para ministrar ao cão (mel).
02/10/2013: o animal retornou ao HCV para uma nova avaliação clínica e a proprietária relatou que o
apetite estava mais controlado, ganhou peso, passando de um escore corporal 2, para 3 (1: magro; 3: ideal;
5: obeso). Houve uma diminuição na poliúria e polidipsia. Foi receitado um protetor hepático.
31/10/2013: Realizou mastectomia unilateral total.

Tabela 1.
05/09/13 02/10/13 29/10/13
Bioquímica sanguínea
Glicose (65-118 mg/dL) 480 387,3 n.d.
Albumina (26-33 g/dL) 36,71 33,65 n.d.
TGP (ALT) ( < 102 U/L) 94,93 118,4 51,76
Fosfatase Alcalina ( < 156 U/L) 107 274,6 n.d.
Colesterol Total (135-270 mg/dL) 321,8 340,2 n.d.
Creatinina (0,5-1,5 mg/dL) 0,85 0,85 0,76
Frutosamina (170-338 umol/L) 470 284,1 n.d.
Uréia (21-60 mg/dL) 37,63 47,01 n.d.
Triglicerídeos (32-138 mg/dL) 138,6 64,3 n.d.
Proteína Plasmática Total (60-80 g/L) 80 88 76
(refratometria)

Hemograma
Hematócrito (37-55 %) 47 40 46
Eritrócitos (5.5-8.5 106/µL) 6,79 6,58 7,1
Hemoglobina (12-18 g/dL) 16,5 14,0 16
V.C.M. (60-77 fL) 69,2 60,8 64,8
C.H.C.M. (32-36 %) 35,1 35,0 34,8

Leucócitos (6000-17000 /µL) 12200 8700 7500


Mielócitos (zero) 0 0 0
Metamielócitos (zero) 0 0 0
N Bastonetes (0-300 /µL) 0 0 0
N Segmentados (3000-11500 /µL) 9516 7656 4800
Eosinófilos (100-1250 /µL) 122 0 0
Basófilos (raros) 0 0 0
Monócitos (150-1350 /µL) 1708 0 1350
Linfócitos (1000-4800 /µL) 854  1044 1350
Plaquetas (200.000- 500.000 /mm³) 512.000 n.d. 216.000

Obs.: No exame do dia 02/10 houve agregação plaquetária.

NECRÓPSIA (e histopatologia)
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DISCUSSÃO
Urinálise
A glicosúria ocorreu devido ao aumento da glicemia, que ultrapassou o limiar de reabsorção tubular renal.
Em cães, isto frequentemente acontece quando a concentração de glicose no sangue é superior a 180-220
mg/dL.[4] A perda de glicose na urina exerce uma ação osmótica, retendo água nos túbulos renais e
causando poliúria e desidratação, com a consequente polidipsia.[3]

Hemograma (05/09/2013)
Linfopenia, ocorre em resposta a glicocorticóides endógenos ou exógenos em animais. A liberação de
glicocorticóides endógenos, em resposta a doenças sistêmicas podem desempenhar um papel importante na
produção da linfopenia.[5]
A periodontite causa um processo infeccioso crônico, que estimula a liberação de cortisol, hormônio
característico de processos inflamatórios. O cortisol faz antagonismo a insulina, por alterar seu metabolismo,
diminuir sua concentração ou afinidade de ligação do receptor de insulina da membrana da célula.[7]
A monocitose, pode ser em decorrência de uma inflamação crônica[11], correlacionada com a neoplasia
mamária e a doença periodontal, embora não apresente leucocitose.[4]

Bioquímica sanguínea
A paciente chegou ao HCV apresentando um quadro de hiperglicemia, que pode ser resultante de uma
relativa, ou absoluta deficiência de secreção de insulina pelas células betapancreaticas, causando uma
redução na entrada de glicose nos tecidos.[4] Além disso, ocorre aumento da glicogenólise e
gliconeogênese, o que exacerba a hiperglicemia [3]. O glucagon contribui para o aumento da glicose, assim
como outros hormônios do estresse.[10]
A alta de frutosamina (470 umol/L), apresentada no primeiro exame (05/09/2013), é o indicativo mais
confiável de que essa hiperglicemia não era transitória. A frutosamina é uma proteína(albumina) glicosilada
usada para monitorar o controle da glicemia. A extensão da glicosilação das proteínas do soro esta
diretamente relacionada à concentração de glicose sanguínea. Quanto maior a concentração média de
glicose durante 2 a 3 semanas, maior será a concentração de frutosamina. Essa concentração não é afetada
pelo aumento agudo na concentração de glicose no sangue, tal como ocorre por estresse ou excitação.[4]
A elevação na atividade da alanina aminotransferase (ALT) sérica indica um escape de enzimas através de
uma alteração das membranas hepatocelulares: neste caso, a lipidose hepática que acompanha
frequentemente a diabetes mellitus é provavelmente a causa.[6] A mobilização de ácidos graxos do tecido
adiposo e aminoácidos do tecido muscular para entrarem nas vias gliconeogênicas, sobrecarregaram o
tecido hepático levando ao aumento dessa enzima, bem como, o aumento (274,6 U/L) da fosfatase
alcalina(FA). O aumento da produção de FA e de sua atividade sérica pode ser notada em casos de
colestase, doenças crônicas, diabetes mellitus e também pela liberação de cortisol.[11]
A hiperlipidemia clássica do diabetes mellitus é caracterizada por hipercolesterolemia e hipertrigliceridemia
e deve-se à inadequada remoção dos quilomicrons da circulação devido à deficiência de insulina. A
hiperlipidemia é um importante fator envolvido na resistência à insulina.[9]
A albumina discretamente aumentada (36,711 g/dL), pode ser decorrente de uma leve desidratação
causada pela poliúria.[11]
Houve um discreto aumento nas proteínas plasmáticas totais, 88 g/L (60-80), sugestivo de uma
desidratação causada pela poliúria.[1]
A dose elevada de insulina, receitada anteriormente para a paciente, causou episódios de hipoglicemia.
Existe uma resposta fisiológica normal à iminente hipoglicemia induzida por insulina em excesso. Quando a
concentração de glicose no sangue diminui para menos de 65 mg/dL ou quando a concentração de glicose
no sangue diminui rapidamente, há uma estimulação direta da glicogenólise hepática e secreção de
hormônios diabetogênicos, mais notavelmente a epinefrina e glucagon, aumentando a concentração de
glicose no sangue, minimizando os sinais de hipoglicemia, e causando hiperglicemia(Efeito Somogyi).[4]
A formação de catarata é uma complicação comum na presença de hiperglicemia. Alterações nas relações
osmóticas na lente, induzidas pelo acúmulo de sorbitol e frutose, açucares que são potentes agentes
hidrofílicos, causam um influxo de água para o interior da lente, levando ao inchaço e ruptura da fibra ótica
e ao desenvolvimento da patologia.[7]
O animal apresentou quadro de piometra em 2012 e foi submetido a ovariohisterectomia terapêutica. Já
apresentava tumor mamário em desenvolvimento na mesma data, no entanto, não foi realizado tratamento
para a neoplasia. Ambas patologias, estimulam a secreção de progesterona, que por sua vez, pode
aumentar a secreção de GH pelo tecido mamário, sendo esse, um importante fator envolvido na resistência
a insulina, o que contribui para a hiperglicemia.[8]
A dieta indicada, rica em complexos hidratos de carbono e fibra solúvel, amortizam as mudanças pós
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prandiais dos níveis de glicose no sangue, favorecendo o controle da glicemia. A fibra torna mais lenta a
digestão e absorção dos hidratos de carbono dietéticos, com a consequente diminuição da curva de resposta
à glicose, depois das refeições.[2]
Os exercícios ajudariam no controle por baixar a concentração de glicose sanguínea, aumentar a
mobilização de insulina de seu local de injeção pelo aumento do fluxo sanguíneo e linfático para os músculos
em exercício e por estimular o transporte de glicose para as células musculares.[7]

CONCLUSÕES
A sintomatologia clínica, as alterações laboratoriais e o histórico da paciente são compatíveis com o
diagnóstico de diabetes mellitus insulino-dependente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] BIRCHARD, S.; SHERDING, R. Manual Saunders de clínica de pequenos animais. 3.ed. São Paulo:
Roca, 2008. Cap.5
[2] CASE, L. P.; CAREY, D. P.; HIRAKAWA, D. A. Nutrição canina e felina. Hardcourt Brace, 1998. Cap.29
[3] GONZALEZ, F. H. D.; SILVA, S. C. Introdução à bioquímica clínica veterinária. 2.ed. Porto alegre,
RS:Editora da Universidade/UFRGS, 2006. Cap.5
[4] FELDMAN, E. C.; NELSON, R. W. Canine and Feline Endocrinology and Reproduction. 3.ed.
Saunders, 2004. Cap.11
[5] HARVEY, J.W. Veterinary Hematology: A Diagnostic Guide and Color Atlas. Saunders/Elsevier, St.
Louis. 384 p. 2012
[6] MEYER, D. J. Medicina de laboratório veterinário: interpretação e diagnóstico. São Paulo: Rocca, 1995.
Cap.5
[7] NELSON, R. W.; COUTO C. G. Medicina interna de pequenos animais. 4. ed. 2010. Editora Elsevier.
Cap.52
[8] PÖPPL, A. G. Estudos Clínicos sobre fatores de risco e a resistência à insulina na diabetes mellitus em
cães. 2012. 215f. Tese de doutorado em ciências veterinárias PPGCV, Faculdade de Veterinária,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.
[9] PÖPPL A.G. González F.H.DD. 2005. Aspectos epidemiológicos e clínico-laboratoriais da Diabetes Mellitus
em cães. Acta Scientiae Veterinariae. 33. 33-40
[10] RIJNBERK, A.; KOOISTRA, H. S. Clinical Endocrinology of Dogs and Cats. Alemanha:
Schulütersche, 2012. Cap.5
[11] THRALL, M.A et al. Hematologia e Bioquímica clínica veterinária. São Paulo: Roca, 2007. Cap.12,
23, 26.

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