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Ciência: Natureza e Objetivos

Ernest. Nagel*

Geralmente, o homem não dá atenção às técnicas de que se vale para


solucionar problemas, a não ser que os métodos habituais venham a
revelar-se insatisfatórios face a questões novas. Na história da Ciência,
pelo menos, preocupação maior com problemas de ordem metodológica
emerge, frequentemente, do fato de formas costumeiras de análise
mostrarem-se inadequadas ou de apresentarem imperfeições os modos
tradicionais de apreciar a evidência e de interpretar as conclusões da
investigação. Nos dias atuais, tão fortemente marcados pelas comoções
sociais, não surpreende, portanto, que os cientistas e filósofos
profissionais estejam obrigados a dar grande atenção à lógica da
Ciência e ao significado amplo das conquistas científicas. A literatura
contemporânea acerca da filosofia da Ciência é, basicamente, uma
resposta crítica a algumas das dificuldades intelectuais criadas pelos
recentes desenvolvimentos científicos.
Há, em verdade, três aspectos da Ciência atual que nos
convidam a séria reflexão e nos auxiliam a definir-lhe a natureza e os
objetivos; tenciono abordar superficialmente cada um desses aspectos,
embora reconhecendo que as limitações de espaço tornam impossível
tratar adequadamente inda que de um só.
1. Talvez o traço mais saliente da Ciência – e, por certo, o que mais
comumente se realça seja o de que permite [14] controle prático da
Natureza. Tornar-se-ia enfadonho realçar as grandes contribuições da
investigação científica em prol do bem-estar humano ou mesmo aludir
aos ramos principais da Tecnologia, como por exemplo a Medicina, que
tiraram proveito dos avanços da pesquisa fundamental, teórica e
experimental. Baste assinalar que a Ciência aplicada transformou a face
da Terra e traçou os contornos da civilização ocidental contemporânea.
Sendo esses frutos tecnológicos da investigação científica os
que os homens sem treino científico ou interesses teóricos podem mais
facilmente apreciar, o domínio sobre a Natureza, que muitas vezes
decorre da pesquisa fundamental, é a justificação última da Ciência
* Publicado em: Morgenbeser, Sidney. (Org.) (1979): Filosofia da Ciência. Trad.
Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, p. 11-24.

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para a maioria das pessoas. Como a realização de investigações
científicas demanda, hoje em dia, grandes investimentos, que
dependem, largamente, de fundos públicos, muitos pesquisadores,
quando descrevem a natureza da Ciência a auditórios de leigos, aos
quais caberá, afinal, custear a maior parte dos gastos necessários,
tendem a acentuar, quase que exclusivamente, os benefícios práticos a
esperar de estudos básicos.
Embora, eu, nem por um momento, subestime a importância da
Ciência como fonte de recursos tecnológicos que, aperfeiçoados e
disseminados, contribuem para a melhoria da vida humana, creio, não
obstante, que a concepção da Ciência como algo que produz,
incessantemente, novos meios de dominar a Natureza, tem sido
sublinhada com demasiada ênfase, levando a esquecer outros de seus
aspectos. De modo algum se dá que a conquista de bens e vantagens de
caráter prático seja o único ou o principal motivo que incentiva o
homem a entregar-se à investigação científica; e quando esse motivo se
torna o principal, surge um quadro fortemente distorcido tanto dos
objetivos complexos da Ciência como de sua própria história.
Além disso, aquela ênfase pode levar a sociedade a encarar de
maneira perigosamente errônea o cientista, vendo-o como homem
miraculoso, capaz de resposta infalível para todas as mazelas humanas.
Não se deve esquecer também a generalizada tendência de considerar a
Ciência como responsável pela maneira bárbara por que, às vezes, são
utilizadas as suas conquistas imputação indubitavelmente injusta, que
pode levar a desprezá-la, mas que se torna plausível quando ela é
identificada às suas consequências tecnológicas.
[15] 2. A Ciência assume outro aspecto quando concebida como
algo que se propõe atingir conhecimento sistemático e seguro, de sorte
que seus resultados possam ser tomados como conclusões certas a
propósito de condições mais ou menos amplas e uniformes sob as quais
ocorrem os vários tipos de acontecimentos. Em verdade, segundo
fórmula antiga e ainda aceitável, o objetivo da Ciência é “preservar os
fenômenos” - isto é, apresentar acontecimentos e processos como
especificações de leis e teorias gerais que enunciam padrões invariáveis
de relações entre coisas. Perseguindo esse objetivo, a Ciência busca
tornar inteligível o mundo; e sempre que o alcança, em alguma área de
investigação, satisfaz o anseio de saber e compreender que é, talvez, o
impulso mais poderoso a levar o homem a empenhar-se em estudos

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metódicos. Sabe-se que é por ter colimado, de maneira usualmente
bem-sucedida, seus fins, que a atividade iniciada na antiguidade grega e
atualmente chamada “Ciência” tem-se mostrado fator importante no
desenvolvimento da civilização liberal: serviu para eliminar crenças e
práticas supersticiosas, para afastar temores brotados da ignorância e
para fornecer base intelectual de avaliação de costumes herdados e de
normas tradicionais de conduta.
Seria, naturalmente, afrontar a evidência, negar que muito antes
do início da pesquisa sistemática os homens dispunham de
conhecimentos razoavelmente aceitáveis acerca de muitas das
características do ambiente físico, biológico e social. Em verdade, ainda
hoje, boa parte das informações de que necessitamos para orientação
normal de nossas vidas não é produto de investigação científica
sistemática, mas é o que normalmente se chama conhecimento nascido
do “bom senso”.
Não obstante, esse tipo de conhecimento está sujeito a
numerosas limitações sérias, algumas das quais devem ser apontadas.
Assim, as crenças baseadas no bom senso são, em geral, imprecisas, e,
frequentes vezes, aproximam coisas e processos que diferem de
maneira essencial; não raro, são incoerentes de modo que a preferência
por uma de duas crenças incompatíveis, como base para a ação, é
arbitrária; tendem a ser fragmentárias, em consequência do que as
relações lógicas e substantivas entre enunciados independentes são, de
hábito, ignoradas; são geralmente aceitas com reduzida consciência do
alcance de sua legítima [16] aplicação; são, via de regra, miopemente
utilitaristas, preocupadas, em boa porção, com assuntos diretamente
relacionados com interesses práticos imediatos e normalmente
aplicáveis apenas a áreas de experiência rotineira; por fim, e acima de
tudo, as crenças baseadas no bom senso desprezam possibilidades
outras para enfrentar problemas concretos, mantendo vigência por força
da autoridade conferida por um costume que não se critica e que,
portanto, não pode ser prontamente modificado de modo a tornar as
crenças guias seguros para enfrentar situações novas.
Embora não se possa traçar linha nítida entre as asserções
baseadas no bom senso e as conclusões da pesquisa científica – pois é
certo que toda investigação científica parte de crenças e distinções
oriundas do bom senso e, ao fim, a ele refere as suas descobertas a
Ciência tem como sinal distintivo o de tentar deliberadamente alcançar

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resultados total ou parcialmente livres das limitações do senso comum.
Conquanto a amplitude com que se alcançam tais conclusões
varie nos diferentes ramos da Ciência, e conquanto seja
indubitavelmente maior nas ciências naturais, nenhum campo de
investigação sistemática foi inteiramente mal-sucedido nessa tentativa.
Em geral, as conclusões da investigação científica são apoiadas por
evidência mais adequada e apresentam melhores razões para serem
consideradas conhecimento certo do que as crenças baseadas no bom
senso. Adiante direi alguma coisa mais a esse respeito. De momento,
contudo, desejo tornar claro que embora as descobertas científicas
sejam, costumeiramente, dignas de crédito, não são, em princípio,
infalivelmente verdadeiros nem insuscetíveis de emenda os relatórios
científicos acerca de específicas questões de fato ou as leis e teorias
elaboradas para indicar as condições invariáveis sob as quais os
fenômenos ocorrem.
Houve tempo em que se admitiu que para ser genuinamente
científica, uma proposição deveria ser reconhecida como
inquestionavelmente certa e absolutamente necessária. Tomando a
Geometria dedutiva como paradigma, esse modo de ver sustentava que
à Ciência não basta simplesmente atestar quais são os fatos, cabendo-
lhe demonstrar que os fatos devem ser como são e não poderiam
ocorrer de outra maneira; mas, uma vez que, para estabelecer
demonstrativamente um enunciado, são [17] necessárias premissas que
não podem ser demonstradas, essa corrente entendia que as premissas
básicas de uma Ciência devem ser suscetíveis de apreensão como
autoevidentes e necessariamente verdadeiras.
Essa concepção da natureza da Ciência era plausível, enquanto a
geometria euclidiana constituía o único exemplo de conhecimento
sistematizado; continua a ser defendida por muitos pensadores
contemporâneos que admitem que “o universo é racional” e, assim,
“não pode haver resíduo de fatos irracionais (isto é, contingentemente
verdadeiros) no conjunto da Ciência”. Todavia, à luz da história da
Ciência, tal concepção é insustentável. Com efeito, não há Ciência
alguma cujos pressupostos básicos relativos a questões de fato sejam
realmente autoevidentes e o progresso da investigação, em todos os
ramos da Ciência, revelou que princípios tidos como basilares em certa
época tiveram de ser modificados ou substituídos para manter
adequação a fatos revelados por novas descobertas. A tese de que os

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chamados primeiros princípios da Ciência são passíveis de alteração é
claramente ilustrada por desenvolvimentos atuais da Física, onde se
tem procedido a revisões radicais em pressupostos teóricos que haviam
sido considerados indubitáveis.
Não sucede, porém, que essas revisões de pressupostos básicos
possam ser corretamente interpretadas como sinais da “falência” da
Ciência moderna – tal como a têm frequentemente caracterizado
pensadores presos à errônea noção do racionalismo clássico, segundo a
qual a Ciência que não pode garantir serem suas conclusões
indiscutivelmente certas falhou em seu objetivo de conduzir a
conhecimento genuíno. E, mais ainda, essas revisões não justificam um
ceticismo global com relação à possibilidade de obter conhecimento
seguro acerca do mundo por meio da pesquisa científica ceticismo que,
por sua vez, surge a partir da insustentável hipótese de que, sendo todas
as conclusões da pesquisa científica passíveis, em tese, de correção,
nenhuma conclusão é, verdadeiramente, um acréscimo estável ao corpo
de conhecimento. Seja-me permitido citar um exemplo que desmente
essa última hipótese e que, ao mesmo tempo, mostra que, fornecendo
explicações bem fundadas para os fenômenos observados, a Ciência
atende ao perene anseio de conhecimento e compreensão sistemáticos.
[18] Galileu assinalou que, aparentemente, há um limite
superior para o tamanho de animais tais como o homem e levantou a
questão de saber se, a despeito do que se possa julgar, houve tempo em
que homens de proporções gigantescas pisassem a face da Terra.
Mostrou ele, através de cuidadoso experimento, que a resistência de
uma estrutura varia de acordo com sua secção transversal e admitiu,
com fundadas razões, que a capacidade de os ossos animais suportarem
forças de pressão também varia proporcionalmente à área de suas
secções transversais. Por outro lado, o peso de um animal terrestre (que
deve ser suportado pelos membros) é proporcional ao volume do
mesmo animal. Em consonância com isso, cabe dizer que a resistência
dos ossos animais é proporcional ao quadrado das dimensões lineares
do animal, enquanto o peso que esses ossos devem suportar é
proporcional ao cubo das dimensões lineares. Em consequência, há
limites definidos para o tamanho dos animais terrestres e, assim,
gigantes com membros proporcionais aos dos homens comuns não
poderiam existir, pois tais criaturas sucumbiriam sob o próprio peso.
Investigações levadas a efeito nos três séculos seguintes

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refinaram e tornaram mais precisa a conclusão de Galileu, e as
presunções em que ele a baseou, mas não chegaram a modificá-la
substancialmente. O exemplo sustenta, pois, a tese de que, embora
sejam passíveis de correção as descobertas científicas, o conteúdo da
Ciência não é um fluxo instável de opiniões, mas, ao contrário, a
Ciência pode alcançar êxito no seu propósito de fornecer explicações
dignas de confiança, bem fundadas e sistemáticas para numerosos
fenômenos.
3. É tempo de considerar o terceiro aspecto que a Ciência apresenta:
seu método de investigação. Aspecto muitas vezes mal interpretado e
sempre difícil de descrever com brevidade, mas que é, talvez, seu traço
mais permanente e garantia última do crédito que merecem as
conclusões da investigação científica.
Afirmação frequente, subscrita, às vezes, por eminentes
cientistas, é a de que “não há, como tal, um método científico”, mas
apenas “a utilização livre e ampla da inteligência”. Essa afirmação terá
procedência, caso a expressão “método científico” seja considerada
como equivalente a um conjunto de regras fixas, [19] aceitas de
maneira geral e orientadas a proporcionar a descoberta de soluções para
qualquer problema. Não há dúvida de que a análise histórica do método
científico leva a colocar ênfase considerável, se não exclusiva, na tarefa
de formular preceitos para desvendar as causas ou efeitos dos
fenômenos e para elaborar leis e teorias a partir dos resultados da
observação. Entretanto, nenhuma das regras propostas para orientar
descobertas atinge o propósito visado; e a maioria dos estudiosos do
assunto concorda em que pretender estabelecer tais regras é
empreendimento sem esperança.
Que é, então, método científico? Devo esclarecer,
preliminarmente, que o vocábulo “método” não é sinônimo do
vocábulo “técnica”. A técnica de mensuração de comprimentos de
ondas luminosas por meio do espectroscópio é patentemente diversa da
técnica de mensuração da velocidade de um impulso nervoso e ambas
diferem das técnicas empregadas para determinação dos efeitos de um
tipo de organização empresarial sobre a produtividade. As técnicas, via
de regra, variam de acordo com o assunto de que se trata e podem
alterar-se rapidamente com o progresso tecnológico. De outro lado,
todas as ciências empregam um método comum em suas investigações,
na medida em que utilizam os mesmos princípios de avaliação da

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evidência; os mesmos cânones para julgar da adequação das
explicações propostas; e os mesmos critérios para selecionar uma
dentre várias hipóteses.
Em suma, método científico é a lógica geral, tácita ou
explicitamente empregada para apreciar os méritos de uma pesquisa.
Convém, portanto, imaginar o método da Ciência como um conjunto de
normas-padrão que devem ser satisfeitas, caso se deseje que a pesquisa
seja tida por adequadamente conduzida e capaz de levar a conclusões
merecedoras de adesão racional. Pretendo, agora, examinar,
ligeiramente, alguns elementos do método científico assim entendido.
Comecemos lembrando que a Ciência é uma instituição social e
que o cientista é membro de uma comunidade intelectual dedicada à
perseguição da verdade, segundo padrões que evolveram e se
mostraram satisfatórios, ao longo de um contínuo processo de crítica.
Muitos pensadores imaginaram que a objetividade das conclusões
alcançadas pela Ciência estaria assegurada, [20] se os cientistas
deliberassem não aceitar qualquer proposição a respeito da qual
pairasse sombra de dúvida ou que não fosse transparentemente
verdadeira. Os homens, raramente se dão conta de que há muito de
hipotético no que têm por indubitável e, muitas vezes, acreditam-se
livres de compromissos intelectuais de qualquer espécie, quando, na
verdade, estão endossando tacitamente muito de falso.
Embora a deliberação de adotar atitude crítica relativamente às
presunções possa ter certo valor, a objetividade da Ciência não é
consequência dela. Ao contrário, a objetividade deve-se a uma
comunidade de pensadores, cada qual deles a criticar severamente as
afirmações dos demais. Nenhum cientista é infalível e todos apresentam
suas peculiares deformações intelectuais ou emocionais. As
deformações raramente são as mesmas; e as ideias que sobrevivem às
críticas de numerosos espíritos independentes revelam maior
probabilidade de serem legítimas do que as concepções tidas por
válidas simplesmente pelo fato de parecerem autoevidentes a um
pensador isolado.
Seja-me permitido, a seguir, discorrer sobre a maneira popular,
algumas vezes endossada por cientistas, de imaginar que a pesquisa
científica deve principiar com a coleta de dados; os dados assim
coligidos passariam por um crivo lógico, daí resultando formulação
univocamente determinada de certa regularidade entre os

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acontecimentos estudados. A improcedência dessa versão torna-se
evidente quando constatamos que não é fácil precisar quais os fatos a
coletar para resolver dado problema, nem é fácil saber se é realmente
fato aquilo que é apresentado como tal.
Para exemplificar, quais os fatos que deveriam ser reunidos para
pesquisa das causas da leucemia? É a lua maior quando está próxima do
horizonte do que quando se encontra no zênite? O número de fatos que
se poderia reunir é enorme e seria impossível examiná-los todos; e o
que se tem como fato pode não passar de uma ilusão. Faz-se claro,
portanto, que os fatos devem ser selecionados segundo pressupostos
que indiquem os relevantes para a solução de um dado problema; e as
observações devem ser realizadas segundo condições que se presuma
excluírem a possibilidade de que relatórios do que se alega ter sido
observado incidam em erro grosseiro. Assim, qualquer [21]
significativa coleta de fatos para fins de pesquisa é controlada por
pressupostos de vários tipos, dependentes do cientista e não do assunto
investigado. Como os fatos não são relevantes ou irrelevantes por si
mesmos, o cientista está obrigado a adotar algumas hipóteses
preliminares acerca de quais os fatos de interesse para o problema que
enfrenta a determinar, por exemplo, quais dentre os numerosos fatores
que podem estar presentes, ligam-se causalmente ao fenômeno em
exame e até que essas hipóteses sejam alteradas são elas que orientam a
investigação.
Ausentes essas hipóteses, a pesquisa é cega e sem objetivo. Não
há, porém, regras para fazer surgirem hipóteses frutíferas; como Albert
Einstein observou repetidamente, as hipóteses que constituem as
modernas teorias da Física são “livres criações da mente”, cuja
invenção e elaboração requerem dotes imaginativos análogos aos que
permitem a criação artística.
Não obstante, ainda que se deva admitir que a imaginação
criadora tem um papel a desempenhar no campo da investigação
científica, a Ciência não é poesia nem especulação; as hipóteses
levantadas durante a pesquisa, assim como outras explicações propostas
para certa classe de fenômenos, devem ser submetidas a teste. Em
geral, este teste requer que se examine a compatibilidade de uma
hipótese (ou de suas consequências lógicas) simultânea mente com
estados de coisas observáveis e com outras hipóteses cuja concordância
com fatos observados já tenha sido assentada.

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Não cabe aqui uma pormenorizada análise da lógica empregada
para submeter a teste as hipóteses; mas cabe referência, ainda que
breve, à noção de investigação controlada — que é, talvez, de todos os
elementos de uma lógica desse tipo, o mais importante. Um exemplo
simples deve ser bastante para indicar a maneira como se caracterizam
tais investigações. A crença outrora muito comum de que banhos com
água fria e salgada eram benéficos para os pacientes atacados de febres
altas parece ter-se baseado em repetidas observações de que melhoras
resultavam desse tratamento. Entretanto, independentemente de indagar
se a crença é ou não legítima – e na verdade não o é – a evidência em
que se baseava é insuficiente para sustentá-la. Aparentemente, não
ocorreu aos que aceitavam essa [22] crença indagar se pacientes não
submetidos ao mesmo tratamento poderiam mostrar melhoria
semelhante. Em suma, a crença não era o resultado de uma investigação
controlada ou seja, o curso da moléstia em pacientes submetidos ao
tratamento não era comparado ao seu curso num grupo “de controle”,
constituído por pacientes que não o recebiam, de modo que não havia
base racional para decidir se o tratamento produzia algum efeito.
De maneira mais geral, uma investigação é controlada somente
se, criando alguma espécie de processo de eliminação torna possível
determinar os efeitos diferenciais de um fator que se considera
relevante para a ocorrência de dado fenômeno. São esses processos de
eliminação, algumas vezes, mas não necessariamente,
experimentalmente viáveis; em muitos setores e em sua maioria, não o
são, de modo que recursos analíticos sutis e complicados devem ser,
frequentemente, empregados para que se extraia da evidência existente
a informação que se faz necessária e que tornará possível racional
tomada de posição acerca dos méritos de uma hipótese. De uma forma
ou de outra, a noção de controle é elemento essencial da lógica do
método científico – pois, via de regra, a confiança merecida pelos
resultados científicos é função da multiplicidade e do rigor dos
controles a que foram submetidos.
Gostaria, por fim, de fazer ligeiro comentário acerca do papel
das distinções quantitativas e da mensuração no ampliar os objetivos da
Ciência e no aumentar o grau de confiança a depositar nas conclusões
por ela alcançadas. Embora haja importantes diferenças estruturais
entre as várias determinações quantitativas, todos os tipos de
mensuração desempenham função tripla. A primeira é a de aumentar a

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precisão, reduzindo assim a fluidez, com que os fatos produzidos e as
explicações para eles propostas podem ser apresentados, de maneira
que a forma de apresentação seja, mais facilmente, submetida a teste. A
segunda é a de tornar possíveis discriminações mais minuciosas dos
traços dos vários assuntos, de modo que enunciados a respeito deles
tenham condição de ser submetidos a controles mais rigorosos. A
terceira é a de permitir comparações mais gerais entre os diversos
acontecimentos a fim de possibilitar que sejam formuladas, sistemática
e acuradamente, as relações [23] entre as coisas. É, portanto, errôneo
sustentar, como ocorre muitas vezes, que as chamadas ciências
quantitativas, fazendo amplo uso da mensuração, ignoram, por isso
mesmo, os aspectos qualitativos da realidade. Quão despida de base é
essa posição, será evidenciado por um exemplo simples.
Os seres humanos estão capacitados a distinguir certo número
de diferenças na temperatura dos objetos e termos tais como “quente”,
“morno”, “tépido”, “frio” e “gelado” correspondem a distinções
reconhecidas. Mas essas diferenças não foram ignoradas ou negadas
quando, no século XVII, se inventou o termômetro; ao contrário, a
invenção desse instrumento traduziu o fato de que as variações de
temperatura que eram experimentadas, em relação a muitas substâncias,
estavam ligadas a alterações dos volumes relativos dessas substâncias.
Em consequência, variações de volume podem ser utilizadas para
indicar alterações no estado físico de um corpo, alterações que, em
alguns casos, correspondem a diferenças de temperatura sentidas pelo
homem. A par disso, é possível assinalar diferenças menores nas
variações de volume do que nas alterações de temperatura, diretamente
percebidas; e há extremos de calor e frio além da capacidade de
discriminação dos seres humanos, embora, nesses extremos, possam ser
ainda apontadas as alterações de volume. Por isso mesmo, cabe dizer
que, usando uma escala termométrica, não somos levados a ignorar
diferenças qualitativas: o uso da escala permite-nos assinalar diferenças
de qualidade que, de outra forma, nos passariam despercebidas,
habilitando-nos, ao mesmo tempo, a ordenar essas qualidades de
maneira clara e uniforme.
Concluirei com um sumário. A força básica, geradora da
Ciência, é o desejo de obter explanações simultaneamente sistemáticas
e controláveis pela evidência fatual. O fim específico da Ciência é,
portanto, a descoberta e a formulação, em termos gerais, das condições

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sob as quais ocorrem os diversos tipos de acontecimento, servindo os
enunciados generalizados dessas condições determinantes como
explicações dos fatos correspondentes. Esse objetivo só pode ser
atingido identificando ou isolando certas propriedades do assunto
estudado e estabelecendo quais os reiterados padrões de dependência
que governam a inter-relação daquelas propriedades. Em razão disso,
[24] quando uma investigação alcança êxito, proposições que, até
então, pareciam independentes, surgem como ligadas umas às outras de
maneira determinada, em função do lugar que vêm a ocupar num
sistema de explicações.
É de importância primordial, entretanto, encarar esses sistemas
explicativos não como corpo de conclusões fixas e indubitáveis, mas
como resultados não definitivos de um contínuo processo de
investigação que envolve incessante uso de um particular método
intelectual de crítica. Esse método lógico é a glória específica da
Ciência moderna e o alicerce espiritual de toda civilização
genuinamente liberal. Nada pode substituí-lo na tarefa de atingir
conclusões fundadas acerca do mundo em que os homens vivem e do
lugar que nele ocupam.

Sobre o autor:
Ernest Nagel (1901-1985), nasceu em Novemesto, na antiga Checoslováquia. Foi para
os Estados Unidos em 1911, onde estudou no College of the City of New York e na
Colúmbia University. Presidiu a Association for Symbolic Logic e a American
Philosophical Association for the Advancement of Science.

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