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CIÊNCIA: NATUREZA E OBJETIVO.

Ernest Nagel

Geralmente, o Homem não dá atenção às técnicas de que se vale para solucionar


problemas, a não ser que os métodos habituais venham a revelar-se insatisfatórios face a
questões novas. Na história da Ciência, pelo menos, preocupação maior com problemas de
ordem metodológica emerge, freqüentemente do fato de formas costumeiras de análise
mostrarem-se inadequadas ou de apresentarem imperfeições nos modos tradicionais de
apreciar a evidência e de interpretar as conclusões da investigação. Nos dias atuais, tão
fortemente marcados pelas comoções sociais, não surpreende, portanto, que os cientistas e
filósofos estejam obrigados a dar grande atenção à lógica da Ciência e ao significado
amplo das conquistas científicas. A literatura contemporânea acerca da filosofia da Ciência
é, basicamente, uma resposta crítica a algumas das dificuldades intelectuais criadas pelos
recentes desenvolvimentos científicos.
Há, em virtude, três aspectos da Ciência atual que nos convidam a séria reflexão e nos
auxiliam a definir-lhe a natureza e os objetivos; tenciono abordar superficialmente cada um
desses aspectos, embora reconhecendo que as limitações de espaço tornam impossível tratar
adequadamente ainda que de um só.
1 – Talvez o traço mais saliente da Ciência e, por certo, o que mais comumente se
realça seja o de que permite controle prático da Natureza. Tornar-se-ia enfadonho realçar as
grandes contribuições da investigação científica em prol do bem-estar humano ou mesmo
aludir aos ramos principais da tecnologia, como por exemplo a Medicina, que tiraram
proveito dos avanços da pesquisa fundamental, teórica e experimental. Basta assinalar que a
Ciência aplicada transformou a face da terra e traçou os contornos da civilização ocidental
contemporânea.
Sendo esses frutos tecnológicos da investigação científicas os que os homens sem
treino científico ou interesses teóricos podem mais facilmente apreciar, o domínio sobre a
Natureza, que muitas vezes decorre da pesquisa fundamental, é a justificação última da
Ciência para a maioria das pessoas. Como a realização de investigações científicas
demanda, hoje em dia, grandes investimentos, que dependem, largamente, de fundos
públicos, muitos pesquisadores, quando descrevem a natureza da Ciência a auditórios de
leigos, aos quais caberá, afinal, custear a maior parte dos gastos necessários, tendem a
acentuar, quase que exclusivamente, os benefícios práticos a esperar de estudos básicos.
Embora, eu, nem por um momento, subestime a importância da Ciência como fonte
de recursos tecnológicos que, aperfeiçoados e disseminados, contribuem para a melhoria da
vida humana, creio, não obstante, que a concepção da Ciência como algo que produz,
incessantemente, novos meios de dominar a Natureza, tem sido sublinhada com demasiada
ênfase, levando a esquecer outros de seus aspectos. De modo algum se dá a conquista de
bens e vantagens de caráter prático seja o único ou o principal motivo que incentiva o
homem a entregar-se à investigação científica; e quando esse motivo se torna o principal,
surge um quadro fortemente distorcido tanto dos objetivos complexos da Ciência, como de
sua própria história.

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Além disso, aquela ênfase pode levar a sociedade a encarar de maneira
perigosamente errônea o cientista, vendo-o como homem miraculoso, capaz de resposta
infalível para todas as mazelas humanas. Não se deve esquecer também a generalizada
tendência de considerar a Ciência como responsável pela maneira bárbara por que, às
vezes, são utilizadas as suas conquistas – imputação indubitavelmente injusta, que pode
levar a desprezá-la, mas que se torna plausível quando ela é identificada às suas
conseqüências tecnológicas.
2 – A Ciência assume outro aspecto quando concebida como algo que se propõe
atingir conhecimento sistemático e seguro, de sorte que seus resultados possam ser tomados
como conclusões certas a propósito de condições mais ou menos amplas e uniformes sob as
quais ocorrem os vários tipos de acontecimentos. Em verdade, segundo fórmula antiga e
ainda aceitável, o objetivo da Ciência é “preservar os fenômenos” – isto é, apresentar
acontecimentos e processos como especificações de leis e teorias gerais que enunciam
padrões invariáveis de relações entre outras coisas. Perseguindo esse objetivo, a Ciência
busca tornar inteligível o mundo e sempre o alcança, em alguma área de investigação,
satisfaz o anseio de saber e compreender que é, talvez, o impulso mais poderoso a levar o
homem a empenhar-se em estudos metódicos. Sabe-se que é por ter colimado, de maneira
usualmente bem sucedida, seus fins, que a atividade iniciada na antiguidade grega e
atualmente chamada “Ciência” tem-se mostrado fator importante no desenvolvimento da
civilização liberal: serviu para eliminar crenças e práticas supersticiosas, para afastar
temores brotados da ignorância e para fornecer base intelectual de avaliação de costumes
herdados e de normas tradicionais de conduta.
Seria, naturalmente, afrontar a evidência, negar que muito antes do início da
pesquisa sistemática dos homens dispunham de conhecimentos razoavelmente aceitáveis
acerca de muitas das características do ambiente físico, biológico e social. Em verdade,
ainda hoje, boa parte das informações de que necessitamos para orientação normal das
nossas vidas não é produto de investigação científica sistemática, mas é o que normalmente
se chama conhecimento nascido do “bom senso”.
Não obstante, esse tipo de conhecimento está sujeito a numerosas limitações sérias,
algumas das quais devem ser apontadas. Assim, as crenças baseadas no bom senso são, em
geral, imprecisas, e, freqüentes vezes, aproximam coisas e processos que diferem de
maneira essencial; não raro são incoerentes de modo que a preferência por uma de duas
crenças incompatíveis, como base para a ação, é arbitrária; tendem a ser fragmentárias, em
conseqüência do que as relações lógicas e substantivas entre enunciados independentes são,
de hábito, ignoradas; são geralmente aceitas com reduzida consciência do alcance de sua
legítima aplicação; são, via de regra, miopemente utilitaristas, preocupadas, em boa
porção, com assuntos diretamente relacionados com interesses práticos imediatos e
normalmente aplicáveis apenas a áreas de experiência rotineira; por fim, e acima de tudo, as
crenças baseadas no bom senso desprezam possibilidades outras para enfrentar problemas
concretos, mantendo vigência por força da autoridade conferida por um costume que não se
critica e que, portanto, não pode ser prontamente modificado de modo a tornar as crenças
guias seguros para enfrentar situações novas.
Embora não se possa traçar linha nítida entre as asserções baseadas no bom senso e
as conclusões da pesquisa científica - pois é certo que toda investigação científica parte de
crenças e distinções oriundas do bom senso e, ao fim, a ele refere as suas descobertas – a
Ciência tem como sinal distintivo o de tentar deliberadamente alcançar resultados total ou
parcialmente livres das limitações do senso comum.

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Conquanto a amplitude com que se alcançam tais conclusões varia nos diferentes
ramos da Ciência, e conquanto seja indubitavelmente maior nas ciências naturais, nenhum
campo de investigação sistemática foi inteiramente mal sucedido nessa tentativa. Em geral,
as conclusões da investigação científica são apoiadas por evidência mais adequada e
apresentam melhores razões para serem consideradas conhecimento certo do que as crenças
baseadas no bom senso. Adiante direi alguma coisa mais a esse respeito. De momento,
contudo, desejo tornar claro que embora as descobertas científicas sejam, costumeiramente,
dignas de crédito, não são, em princípio, infalivelmente verdadeiros nem insuscetíveis de
emenda os relatórios científicos acerca de específicas questões de fato ou as leis e teorias
elaboradas para indicar as condições invariáveis sob as quais os fenômenos ocorrem.
Houve tempo em que se admitiu que para ser genuinamente científica, uma
proposição deveria ser reconhecida como inquestionável certa e absolutamente necessária.
Tomando a Geometria dedutiva como paradigma, esse modo de ver sustentava que à
Ciência não basta simplesmente atestar quais são os fatos, cabendo-lhe demonstrar que os
fatos devem ser como são e não poderiam ocorrer de outra maneira; mas, uma vez que, para
estabelecer demonstrativamente um enunciado, são necessárias premissas que não podem
ser demonstradas, essa corrente entendia que as premissas básicas de uma Ciência devem
ser suscetíveis de apreensão como auto-evidentes e necessariamente verdadeiras.
Essa concepçào da natureza da Ciência era plausível, enquanto a geometria
euclidiana constituía o único exemplo de conhecimento sistematizado; continua a ser
defendida pôr muitos pensadores contemporâneos que admitem que o “universo é racional”
e, assim “não pode haver resíduo de fatos irracionais (isto é, contingentemente verdadeiros)
no conjunto da Ciência”. Todavia, à luz da história da Ciência, tal concepção é
insustentável. Com efeito, não há ciência alguma cujos pressupostos básicos relativos a
questões de fato sejam realmente auto-evidentes, e o progresso da investigação, em todos
os ramos da Ciência, revelou que princípios tidos como basilares em certa época tiveram de
ser modificados ou substituídos para manter adequação a fatos revelados por novas
descobertas. A tese de que os chamados primeiros princípios da Ciência são passíveis de
alteração é claramente ilustrada por desenvolvimentos atuais da Física, onde se tem
procedido a revisões radicais em pressupostos teóricos que haviam sido considerados
indubitáveis.
Não sucede, porém, que essas revisões de pressupostos básicos possam ser
corretamente interpretadas como sinais da “falência” da Ciência moderna – tal como a tem
freqüentemente caracterizado pensadores presos à errônea noção de racionalismo clássico,
segundo a qual a Ciência que não pode garantir serem suas conclusões indiscutivelmente
certas falhou em seu objetivo de conduzir a conhecimento genuíno. E, mais ainda, essas
revisões não justificam um ceticismo global com relação à possibilidade de obter
conhecimento seguro acerca do mundo por meio da pesquisa científica – ceticismo que, por
sua vez, surge a partir da insustentável hipótese de que, sendo todas as conclusões da
pesquisa científica passíveis, em tese, de correção, nenhuma conclusão é, verdadeiramente,
um acréscimo estável ao corpo de conhecimento. Seja-me permitido citar um exemplo que
desmente essa última hipótese e que, ao mesmo tempo, mostra que, fornecendo explicações
bem fundadas para os fenômenos observados, a Ciência atende ao perene anseio de
conhecimento e compreensão sistemáticos.
Galileu assinalou que, aparentemente, há um limite superior para o tamanho de
animais tais como o homem e levantou a questão a saber se, a despeito do que se possa
julgar, houve tempo em que homens de proporções gigantescas pisassem a face da Terra.

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Mostrou ele, através de cuidadoso experimento, que a resistência de uma estrutura varia de
acordo com sua secção transversal e admitiu, com fundadas razões, que a capacidade de os
ossos animais suportarem forças de pressão também varia proporcionalmente à área de suas
sucções transversais. Por outro lado, o peso de um animal terrestre (que deve ser suportado
pelos membros) é proporcional ao volume do mesmo animal. Em consonância com isso,
cabe dizer que a resistência dos ossos animais é proporcional ao quadrado das dimensões
lineares do animal, enquanto o peso que esses ossos devem suportar é proporcional ao cubo
das dimensões lineares. Em conseqüência, há limites definidos para o tamanho dos animais
terrestres e, assim, gigantes com membros proporcionais aos dos homens comuns não
poderiam existir, pois tais criaturas sucumbiriam sob o próprio peso.
Investigações levadas a efeito nos três séculos seguintes refinaram e tornaram mais
precisa a conclusão de Galileu, e as presunções em que ele a baseou, mas não chegaram a
modificá-la substancialmente. O exemplo sustenta, pois, a tese de que, embora sejam
passíveis de correção as descobertas científicas, o conteúdo da Ciência não é um fluxo
instável de opiniões, mas, ao contrário, a Ciência pode alcançar êxito no seu propósito de
fornecer explicações dignas de confiança, bem fundadas e sistemáticas para numerosos
fenômenos.
3 – É tempo de considerar o terceiro aspecto que a Ciência apresenta: seu método de
investigação. Aspecto muitas vezes mal interpretado e sempre difícil de descrever com
brevidade, mas que é, talvez seu traço mais permanente e garantia última do crédito que
merecem as conclusões da investigação científica.
Afirmação freqüente, subscrita, às vezes, por eminentes cientistas, é a de que “não
há, como tal, um método científico”, mas apenas “a utilização livre e ampla da
inteligência”. Essa afirmação terá procedência, caso a expressão “método científico” seja
considerada como um conjunto de regras fixas, aceitas de maneira geral e orientadas a
proporcionar a descoberta de soluções para qualquer problema. Não há dúvida de que a
análise histórica do método científico leva a colocar ênfase considerável se não exclusiva,
na tarefa de formular preceitos para desvendar as causas ou efeitos dos fenômenos e para
elaborar leis e teorias a partir dos resultados da observação. Entretanto, nenhuma das regras
propostas para orientar descobertas atinge o propósito visado; e a maioria dos estudiosos do
assunto concorda em que pretender estabelecer tais regras é empreendimento sem
esperança.
Que é, então método científico ? Devo esclarecer, preliminarmente, que o vocábulo
“método” não é sinônimo do vocábulo “técnica”. A técnica de mensuração de
comprimentos de ondas luminosas por meio do espectroscópio é patentemente diversa da
técnica de mensuração da velocidade de um impulso nervoso e ambas diferem das técnicas
empregadas para determinação dos efeitos de um tipo de organização empresarial sobre a
produtividade. As técnicas, via de regra, variam de acordo com o assunto de que se trata e
podem alterar-se rapidamente com o progresso tecnológico. De outro lado, todas as ciências
empregam um método comum em suas investigações, na medida em que utilizam os
mesmos princípios de avaliação da evidência; os mesmos cânones para julgar da adequação
das explicações propostas; e os mesmos critérios para selecionar uma dentre várias
hipóteses.
Em suma, método científico é a lógica geral, tácita ou explicitamente empregada
para apreciar os méritos de uma pesquisa. Convém, portanto, imaginar o método da Ciência
como um conjunto de normas-padrão que devem ser satisfeitas, caso se deseje que a
pesquisa seja tida por adequadamente conduzida e capaz de levar a conclusões merecedoras

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de adesão racional. Pretendo, agora, examinar, ligeiramente, alguns elementos do método
científico assim entendido.
Comecemos lembrando que a Ciência é uma instituição social e que o cientista é
membro de uma comunidade intelectual dedicada à perseguição da verdade, segundo
padrões que evoluíram e se mostraram satisfatórios, ao longo de um contínuo processo de
crítica. Muitos pensadores imaginaram que a objetividade das conclusões alcançadas pela
Ciência estaria assegurada, se os cientistas deliberassem não aceitar qualquer proposição a
respeito da qual pairasse sombra de dúvida que não fosse transparentemente verdadeira. Os
homens, raramente se dão conta de que há muito de hipotético no que tem por indubitável
e, muitas vezes, acreditam-se livres de compromissos intelectuais de qualquer espécie,
quando, na verdade, estão endossando tacitamente muito de falso.
Embora a deliberação de adotar atitude crítica relativamente às presunções possa
Ter certo valor, a objetividade da Ciência não e conseqüência dela. Ao contrário, a
objetividade deve-se a uma comunidade de pensadores, cada qual deles a criticar
severamente as afirmações dos demais. Nenhum cientista é infalível e todos apresentam
suas peculiares deformações intelectuais ou emocionais. As deformações raramente são as
mesmas; e as idéias que sobrevivem às críticas de numerosos espíritos independentes
revelam maior probabilidade de serem legítimas do que as concepções tidas por válidas
simplesmente pelo fato de parecerem auto-evidentes a um pensador isolado.
Seja-me permitido, a seguir, discorrer sobre a maneira popular, algumas vezes
endossada por cientistas, de imaginar que a pesquisa científica deve principiar com a coleta
de dados; os dados assim coligidos passariam por um crivo lógico, daí resultando
formulação univocamente determinada de certa regularidade entre os acontecimentos
estudados. A improcedência dessa versão torna-se evidente quando constatamos que não é
fácil saber se é realmente fato aquilo que é apresentado como tal.
Para exemplificar, quais os fatos que deveriam ser reunidos para pesquisa das
causas da leucemia ? É a lua maior quando está próxima do horizonte do que quando se
encontra no zênite ? O número de fatos que se poderia reunir é enorme e seria impossível
examiná-los todos; e o que se tem como fato pode não passar de uma ilusão. Faz-se claro,
portanto, que os fatos devem ser selecionados segundo pressupostos que indiquem os
relevantes para a solução de um dado problema; e as observações devem ser realizadas
segundo condições que se presuma excluírem a possibilidade de que relatórios do que se
alega ter sido observado incidam em erro grosseiro. Assim, qualquer significativa coleta de
fatos para fins de pesquisa é controlada por pressupostos de vários tipos, dependentes do
cientista e não do assunto investigado. Como os fatos não são relevantes ou irrelevantes por
si mesmos, o cientista está obrigado a adotar algumas hipóteses preliminares acerca de
quais os fatos de interesse para o problema que enfrenta – a determinar, por exemplo, quais
dentre os numerosos fatores que podem estar presentes, ligam-se casualmente ao fenômeno
em exame – e até que essas hipóteses sejam alteradas são elas que orientam a investigação.
Ausentes essas hipóteses, a pesquisa é cega e sem objetivo. Não há, porém, regras
para fazer surgirem hipóteses frutíferas; como Albert Einstein observou repentinamente, as
hipóteses que constituem as modernas teorias da Física são “livres criações da mente”, cuja
invenção e elaboração requerem dotes imaginativos análogos aos que permitem a criação
artística.
Não obstante, ainda que se deva admitir que a imaginação criadora tem um papel a
desempenhar no campo da investigação científica, a Ciência não é poesia nem especulação;
as hipóteses levantadas para certa classe de fenômenos, devem ser submetidas a teste. Em

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geral, este teste requer que examine a compatibilidade de uma hipótese (ou de suas
conseqüências lógicas) simultaneamente com estados de coisas observáveis e com outras
hipóteses cuja concordância com fatos observados já tenha sido assentada.
Não cabe aqui uma pormenorizada análise da lógica empregada para submeter a
teste as hipóteses; mas cabe referência, ainda que breve, à noção de investigação controlada
– que é talvez, de todos os elementos de uma lógica desse tipo, o mais importante. Um
exemplo simples deve ser bastante para indicar a maneira como se caracterizam tais
investigações. A crença outrora muito comum de que banhos com água fria e salgada eram
benéficos para os pacientes atacados de febres altas parece ter-se baseado em repetidas
observações de que melhoras resultavam desse tratamento. Entretanto, independentemente
de indagar se a crença é ou não legítima – e na verdade não o é – a evidência em que se
baseava é insuficiente para sustentá-la. Aparentemente, não ocorreu aos que aceitavam essa
crença indagar se pacientes não submetidos ao mesmo tratamento poderiam mostrar
melhora semelhante. Em suma, a crença não era o resultado de uma investigação controlada
– ou seja, o curso da moléstia em pacientes submetidos ao tratamento não era comparado ao
seu curso num grupo “de controle” constituído por pacientes que não o recebiam, de modo
que não havia base racional para decidir se o tratamento produzia algum efeito.
De maneira mais geral, uma investigação é controlada somente se, criando alguma
espécie de processo de eliminação torna possível determinar os efeitos diferenciais de um
fator que se considera relevante para a ocorrência de dado fenômeno. São esses processos
de eliminação, algumas vezes, mas não necessariamente, experimentalmente viáveis; em
muitos setores e em sua maioria não o são, de modo que recursos analíticos sutis e
complicados dever ser, freqüentemente, empregados para que se extraia da evidência
existente a informação que se faz necessária e que tornará possível racional tomada de
posição acerca dos méritos de uma hipótese. De uma forma ou de outra, a noção de controle
é elemento essencial da lógica do método científico – pois, via de regra, a confiança
merecida pelos resultados científicos é função da multiplicidade e do rigor dos controles a
que foram submetidos.
Gostaria, por fim, de fazer ligeiro comentário acerca do papel das distinções
quantitativas e da mensuração no ampliar os objetivos da Ciência e no aumentar o grau de
confiança a depositar nas conclusões por ela alcançadas. Embora haja importantes
diferenças estruturais entre as várias determinações quantitativas, todos os fatos produzidos
e as explicações para eles propostas podem ser apresentados, de maneira que a forma de
apresentação seja, mais facilmente, submetida a teste. A segunda é a de tornar possíveis
discriminações mais minuciosas dos traços dos vários assuntos, de modo que enunciados a
respeito deles tenham condição de ser comparações mais gerais entre os diversos
acontecimentos a fim de possibilitar que sejam formuladas, sistemática e acuradamente, as
relações entre as coisas. É, portanto, errôneo sustentar, como ocorre muitas vezes, que as
chamadas ciências quantitativas, fazendo amplo uso da mensuração, ignoram, por isso
mesmo, os aspectos qualitativos da realidade. Quão despida de base é essa posição, será
evidenciado por um exemplo simples.
Os seres humanos estão capacitados a distinguir certo número de diferenças na
temperatura dos objetos e termos tais como “quente”, “morno”, “tépido”, “frio” e “gelado”
correspondem a distinções reconhecidas. Mas essas diferenças não foram ignoradas ou
negadas quando, no século XVII, se inventou o termômetro; ao contrário, a invenção desse
instrumento traduziu o fato de que as variações de temperatura que eram experimentadas,
em relação a muitas substâncias, estavam ligadas a alteração dos volumes relativos dessas

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substâncias. Em conseqüência, variações de volume podem ser utilizadas para indicar
alterações no estado físico de um corpo, alterações que, em alguns casos, correspondem a
diferenças de temperatura sentida pelo homem. A par disso, é possível assinalar diferenças
menores nas variações de volume do que nas alterações de temperatura, diretamente
percebidas; e há extremos de calor e frio além da capacidade de discriminação dos seres
humanos, embora nesses extremos, possam ser ainda apontadas as alterações de volume.
Por isso mesmo, cabe dizer que, usando uma escala termométrica, não somos levados a
ignorar diferenças qualitativas: o uso da escala permiti-nos assinalar diferenças de
qualidade que, de outra forma, nos passariam despercebidas, habilitando-nos, ao mesmo
tempo, a ordenar essas qualidades de maneira clara e uniforme.
Concluirei com um sumário. A força básica, geradora da Ciência, é o desejo de
obter explanações simultaneamente sistemáticas e controláveis pela evidência fatual. O fim
específico da Ciência é, portanto, a descoberta e a formulação, em termos gerais, das
condições sob as quais ocorrem os diversos tipos de acontecimento, servindo os enunciados
generalizados dessas condições determinantes como explicações dos fatos correspondentes.
Esse objetivo só pode ser atingido identificando ou isolando certas propriedades do assunto
estudado e estabelecendo quais os reiterados padrões de dependência que governam a inter-
relação daquelas propriedades. Em razão disso, quando uma investigação alcança êxito,
proposições que, até então, pareciam independentes, surgem como ligadas umas às outras
de maneira determinada, em função do lugar que vêm a ocupar num sistema de explicações.
É de importância primordial, entretanto, encarar esses sistemas explicativos não
como corpo de conclusões fixas e indubitáveis, mas como resultados não definitivos de um
contínuo processo de investigação que envolve incessante uso de um particular método
intelectual de crítica. Esse método lógico é a glória específica da Ciência moderna e o
alicerce espiritual de toda civilização genuinamente liberal. nada pode substituí-lo na tarefa
de atingir conclusões fundadas acerca do mundo em que os homens vivem e do lugar que
nele ocupam.

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