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SEMANAL
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ILHAS:. SEMANAL

ANTÓNIO
DAMÁSIO
ILHAS:E€3,70

EXCLUSIVO
“SÓ PORQUE AS RECORDAÇÕES
. CONT. E. CONT.

SOMOS ESPERTOS DE OBAMA


E BEM-EDUCADOS DA INFÂNCIA
. 2/1 A 8/1/2020

RNA
NÃO SIGNIFICA ATÉ À CASA
25/11/2020

QUE TENHAMOS BRANCA


SEMPRE RAZÃO”
1400
Nº A
Nº 1446 . 19/11

M ENSAGEIRO

A TERAPIA QUE NOS


DEVOLVE A ESPERANCA
A BIOTECNOLOGIA mRNA USADA NAS PRIMEIRAS VACINAS DA COVID-19 TEM TAMBÉM POTENCIAL
PARA SER UMA ARMA PODEROSA CONTRA O CANCRO E MUITAS OUTRAS DOENÇAS
COMO FUNCIONA • AS EXPERIÊNCIAS EM PORTUGAL • O NEGÓCIO MULTIMILIONÁRIO
DIVER 300M

CERTIFICAÇÃO MASTER CHRONOMETER


Por detrás da elegância de cada
Master Chronometer está um extremo grau
de exigência: 8 testes ao longo de 10 dias,
para garantir uma precisão e resistência
anti-magnética superiores.

BOUTIQUE OMEGA
Av. da Liberdade, 192A • Lisboa
VISÃO
19 NOVEMBRO 2020 / Nº 1446

12 Entrevista: Julia Steinberger

RADAR
16 Raios X
18 A semana em 7 pontos
20 Holofote
22 Inbox
LUÍS BARRA

23 Almanaque
24 Transições
26 Próximos capítulos
28 Imagens do mundo 40 “O pessimismo contribui para piorar as coisas”
Ser otimista também é, defende António Damásio, uma forma de
FOCAR contrariar o declínio. Em entrevista à VISÃO, o neurocientista discorre
sobre o momento que atravessamos, da pandemia e emergência climática
72 Os desafios da direita aos populismos e movimentos negacionistas
em Portugal
76 Frederico Lourenço
e a força do latim 32 RNA, as três letras que revolucionam a medicina
As vacinas contra o SARS-CoV-2 mais bem posicionadas para serem
78 Santa Casa: Prémios aprovadas utilizam uma técnica inovadora. O impacto da investigação
Neurociências dedicada ao RNA não se fica por aí. A cura do cancro e a de muitas
doenças genéticas também podem depender desta molécula
VAGAR
80 Quando a rua é o palco 48 Eu, Barack Obama
88 Tendências: os nossos Pré-publicação do primeiro capítulo de Uma Terra Prometida, as memórias
bichos “tech” de Barack Obama. Nas páginas seguintes, o escritor e historiador Jon
Meacham antecipa as dificuldades do Presidente eleito dos EUA, Joe Biden

VISÃO SETE
60 A corrida ao hidrogénio verde
Investigação da VISÃO sobre os bastidores das negociações do gabinete
de João Galamba para a estratégia de investimento no hidrogénio verde

66 Ferencz, o sobrevivente
Nos 75 anos dos Julgamentos de Nuremberga, perfil de Ben Ferencz
que, com 100 anos, é o último procurador com memórias diretas
desse momento histórico
91 Jogos de tabuleiro

OPINIÃO Online  W W W.V I S A O . P T


Últimos artigos no site da VISÃO
8 Dulce Maria Cardoso
10 Rui Tavares Guedes
75 Pedro Norton
90 Miguel Araújo
114 Ricardo Araújo Pereira
Luís Delgado Manuel Delgado Manuela Niza
LINHAS DIREITAS ADMINISTRADOR HOSPITALAR IGUALMENTE DESIGUAIS
O que quer Trump? De novo a As pessoas primeiro
Interdita a reprodução, mesmo parcial, exclusividade dos (neste País, um cão
de textos, fotografias ou ilustrações sob médicos vale mais do que um
quaisquer meios, e para quaisquer fins,
inclusive comerciais. homem)
Todos os dias, um novo texto assinado por um dos 28 especialistas convidados

4 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


#joyelectrified by
LINHA DIRETA Correio do leitor

RNA, a revolução na medicina


As vacinas contra o vírus SARS-
CoV-2 mais bem posicionadas
para serem aprovadas baseiam-
se numa técnica inovadora
que implica a manipulação de
RNA, a molécula que traduz a
informação do ADN. Neste caso,
os cientistas pretendem utilizar
o RNA mensageiro (mRNA)
A crise económica veio acentuar
para ensinar as células do corpo todas as nossas fragilidades.
humano a fabricarem uma das
proteínas do vírus pandémico
Para sermos honestos, ninguém
e, assim, despertar uma reação sabe como vamos sair disto
imunitária. As farmacêuticas Ana Rita Seguro, Lisboa
Pfizer e Moderna anunciaram,
nas duas últimas semanas, CRÓNICA RAP
O perigo de envenenamento e asfixia
resultados preliminares que da democracia estão metafórica e
revelam uma eficácia de 90%, ou mais, das suas vacinas. magistralmente expressos na excelente
Num trabalho assinado pelas nossas jornalistas Mariana Almeida Nogueira crónica de Ricardo Araújo Pereira,
e Vânia Maia, e que faz o tema de capa desta edição da VISÃO, revelamos intitulada Diário de Rui Rio, de Ricardo
Araújo Pereira [edição 1445].
em que consiste esta técnica inovadora que pode revolucionar a medicina, Lurdes Esteves, Queluz
sobretudo no tratamento do cancro e de doenças genéticas. “Estou
convencida de que estamos a entrar numa nova era”, afirma a presidente PANDEMIA
Carmo Fonseca da RNA Society, a sociedade científica internacional que Ao fim de oito meses de estratégias de
confinamento e medidas, percebemos
junta especialistas nesta área. “Estão a chegar agora as primeiras terapias que estamos praticamente no ponto zero
de RNA, mas vão chegar muitas mais”, acredita a também presidente do na luta contra a Covid-19, num compasso
Instituto de Medicina Molecular. A VISÃO ouviu especialistas, como o de espera. Certo é que os primeiros países
investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, João Tavanez, ou a erradicarem a Covid-19 vão estar na
linha da frente para a retoma económica,
o presidente do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade com maior efeito nos países que têm uma
de Coimbra, Luís Pereira de Almeida, sobre as potencialidades da utilização forte dependência económica do turismo,
do RNA nas mais diversas áreas da medicina. Já há vários tratamentos como é caso de Portugal. No ritmo atual,
vamos demorar anos para nos livrar deste
aprovados, incluindo em Portugal, mas por ora não existe qualquer vacina pequeno diabólico.
à base de RNA, a do coronavírus seria a primeira. Afinal, esta revolução Orlando Anselmo
científica ainda enfrenta desafios. Um artigo que o leitor poderá ler a partir
Primeiro foi dito que a atividade
da página 32 desta edição, na qual também publicamos uma entrevista em cultural não podia parar, depois fomos
primeira mão a António Damásio, que acaba de publicar um novo livro, incentivados ao consumo natalício para
Sentir & Saber, escrito em grande parte sob o signo da pandemia. “Temos alavancar a economia, mas agora o
de nos manter otimistas”, alerta o neurocientista português, há muito Governo muda o discurso e manda toda
a gente para prisão domiciliária, uma
radicado na Califórnia, EUA. espécie de castigo para culpabilizar o
mau comportamento dos cidadãos em
relação ao contágio do vírus. Parece
cientificamente discutível confinar
milhões de pessoas, muitas delas
Já nas bancas saudáveis, em nome da “defesa da saúde”.
Emanuel Caetano, Ermesinde

Contactos
visao@visao.pt
As cartas devem ter um máximo
de 60 palavras e conter nome, morada
e telefone. A revista reserva-se
o direito de selecionar os trechos
que considerar mais importantes.

NOVA MORADA
EMERGÊNCIA EMOÇÕES ANTÓNIO CORREIO: Rua da Fonte da Caspolima
CLIMÁTICA O que são e como DAMÁSIO – Quinta da Fonte,
Desafios, soluções, devemos lidar com O novo livro do Edifício Fernão Magalhães, 8,
heróis elas neurocientista 2770-190 Paço de Arcos

6 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


AUTOBIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA

O miolo
das palavras
POR DULCE MARIA CARDOSO
ILUSTRAÇÃO: SUSA MONTEIRO

8 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


E
stou sentada num café no centro de Leipzig, sérios, mas o resultado era o oposto, o mundo tornava-se
junto à Igreja de São Tomás. Quero beber um chá extremamente complexo. Quando cresceres logo per-
e comer uma fatia de bolo, mas não os sei pedir cebes, prometiam-me. Mentira. Cresci e continuo a não
em alemão. Tão-pouco o empregado fala inglês perceber a maior parte das coisas. Por exemplo, o que faço
ou o café tem uma ementa para estrangeiros. No aqui em Leipzig? Quer dizer, sei que vim a trabalho. Mas
meu lado direito, mais ao fundo, duas senhoras porque se tornou necessário este vir a trabalho? Quando
bebem chá. Aponto para elas e faço o gesto de ainda estava em casa, a fazer a mala para partir, tropecei
levar a chávena à boca. Depois viro-me para o nas cartas do Séneca e lá estava o aviso, Estar em todo o
lado esquerdo e descubro uma rapariga de cabelo lado é o mesmo que não estar em parte alguma (...) uma
azul e tatuagens coloridas nos braços a comer planta nunca se robustece se continuamente a mudar-
uma apetitosa fatia de bolo de chocolate. Quero este bolo, mos de lugar, nada enfim, por muito útil, conserva a
dizia à minha mãe, apontando para a montra de vidro da utilidade em contínua mudança. Ainda assim, parti. A voz
pastelaria Riviera. Ao estender o dedo no café de Leipzig é do Séneca abafa as que me rodeiam.
ainda a minha mãe que me olha embevecida. Carregamos Alguém fala mais alto e por instantes o alemão volta
pela vida fora o amor que recebemos na infância. Como a ser a língua dos maus. Nos primeiros meses da resi-
uma armadura indestrutível. dência literária que fiz na Villa Concordia, em 2010, dava
As máscaras na cara dificultam-nos a comunicação, por mim angustiada quando, já no meu quarto, ouvia os
não faço ideia o que o empregado percebeu dos meus bolseiros alemães falarem lá fora. Levei algum tempo a
gestos. O café é de uma imponência austera, madeiras descobrir que os muitos filmes de Hollywood sobre a II
nobres, candeeiros belos e discretos, uma penumbra de Guerra Mundial que eu vira em criança no cinema África
veludo, bolos à fatia dispostos em pratos de pé alto, louça tinham deixado uma traumática marca sonora em mim.
de porcelana, janelas rasgadas para a Anos mais tarde, fiz outra
rua, fatias de stollen em caixas decora- residência literária, desta vez em
das com motivos outonais. O Steven, o
meu tradutor para o alemão, disse-me
Quero este bolo, Wannsee. Wannsee é um lugar
muito belo. Lagos onde as nuvens
há umas horas, antes de iniciarmos dizia à minha mãe, deslizam sem pressa, palacetes
a conferência em que falámos de O apontando para a com ancoradouros que parecem
Retorno, Ainda se nota a RDA em Lei-
pzig. Com os microfones já ligados, leu montra de vidro da braços estendidos sobre a água,
árvores pacíficas e centenárias. Nas
durante mais de dez minutos excertos pastelaria Riviera. muitas caminhadas que dei pelos
do romance para um público atento.
Perdida em palavras que de alguma
Ao estender o dedo no parques, havia uma pergunta que
não me saía da cabeça: como é que
maneira eram minhas, mas que eu não café de Leipzig é ainda a beleza não nos salva? Ali, no meio
reconhecia, distraí-me a pensar se o a minha mãe que de tanta beleza, há pouco mais de
Steven libertaria na cabeça daquelas
pessoas o que existiu na minha antes me olha embevecida. meio século, 15 homens reuniram-
se sob o comando de Reinhard
de ele ter sido aprisionado pelas pala- Carregamos pela Heydrich para debaterem a forma
vras que usei ao escrever O Retorno.
No final da conversa, pediram-me
vida fora o amor que mais rápida de juntarem os judeus
europeus e de os enviarem para os
que eu lesse. Em português, claro. recebemos na infância campos de extermínio. Quase no
Eram agora eles que não associavam fim da reunião, cerca de 90 minutos
significado aos sons que a minha voz passados, foi servido conhaque. Um
ia criando. Isso não lhes diminuiu a atenção como pouco dos participantes, Adolf Eichmann, preso duas décadas
antes acontecera comigo, parecia até que eles a tinham re- mais tarde na Argentina pelos serviços secretos israelitas,
dobrado. Música? A procura dela, sem dúvida. Só consigo contou que Heydrich estava muito satisfeito com a
ser levada pelos sentidos quando deixo de querer enten- forma como a reunião decorrera. Heydrich esperava
der. Com uma chávena de chá e uma fatia de bolo à minha alguma resistência à sua proposta e espantara-se com o
frente, concentro-me em tentar desprender-me da razão. empenhado e entusiasta assentimento que recebera dos
Saboreio a melodiosa e enigmática casca das palavras. De- restantes. Noventa minutos. Em apenas 90 minutos as
tenho-me no homem que gesticula ao telemóvel, no choro palavras haviam encontrado forma de escavar caminho
resmungado de uma criança, na velocidade do emprega- até ao horror. Não a áspera casca alemã das palavras, mas
do a passar entre as mesas, na rapariga das tatuagens que o seu miolo universal que tantas vezes apodrece. Ainda
acaricia distraída o braço, no sorriso das mulheres que be- agora, quando o Trump perdeu as eleições, I’d actually
bem chá, julgo ouvir Amerika e Trump numa mesa à volta like to go back to the old times of Tudor England, I’d put
da qual se reúne um grupo que discute acaloradamente. the heads on pikes. Calem-nos.
Não entender nada do que se diz à minha volta faz com De repente, vinda da igreja, a música irrompe no café.
que o mundo se me apresente mais simples e que a sua Bach. Lembro-me, então, de que os seus restos mortais
compreensão seja pueril. estão guardados aqui ao lado.
Em criança, também não percebia o que os adultos Erbarme dich, mein Gott.
diziam nas conversas sobre trabalho e outros assuntos Tende piedade, meu Deus. visao@visao.pt

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 9


OPINIÃO
HISTÓRIAS
DA CAPA
A mudança que está
a passar-nos ao lado?
P O R R U I T A V A R E S G U E D E S / Diretor-executivo 1

O
mundo está a mudar, mas nem ganização Mundial do Comércio, no final de
sempre no lado para o qual insis- 2001, uma notícia desvalorizada, então, pelo
timos em olhar. Se calhar, em vez impacto dos atentados do 11 de Setembro.
de concentrarmos tanto as nossas A assinatura do acordo para a Parceria
atenções sobre quem sai ou entra Económica Regional Abrangente (RCEP,
na Casa Branca, à espera das im- na sigla em inglês) é o primeiro passo para
plicações que isso pode ter para o a criação da maior área de comércio livre
nosso futuro, devíamos também do mundo, superando a União Europeia e A biotecnologia é a
perder mais algum tempo a tentar observar a América do Norte. É também a primeira grande esperança
e perceber o que está a acontecer do outro vez que os EUA não estão no centro de um da medicina e, por-
lado do globo e que, para todos os efei- acordo deste tipo – aliás, nem sequer foram tanto, uma imagem
tos, a nós, portugueses, nem sequer nos é convidados. Este é também um acordo que das moléculas de
desconhecido: é nas terras e nos mares para demorou oito anos a ser negociado, mas que DNA e RNA podia
onde, no passado, dirigimos as nossas cara- acabou por ser concretizado neste momen- estar na capa
velas e o nosso espírito de aventura, como to, porque as circunstâncias assim o exigem,
pioneiros de um dos primeiros movimentos face à crise global, e a trimestres sucessivos
de globalização no planeta, que se começa a
transferir o centro do mundo.
com os indicadores económicos em queda.
Num tempo de pandemia, de apelos
2
Assim sendo, seria bom dedicarmos al- ao protecionismo e do crescimento de
gum momento de atenção ao acordo de livre sentimentos antiglobalização, é daquele
comércio que acaba de ser assinado por 15 lado do mundo que chega o exemplo de
países da zona da Ásia-Pacífico, que incluiu, uma resposta baseada na cooperação e no
pela primeira vez em conjun- multilateralismo, criando
to, potências como a China, um mercado gigante que,
o Japão e a Coreia do Sul, No conjunto dos independentemente das
mas também países de matriz 15 países que diferenças, abrange 2,2
ocidental, como a Austrália e
a Nova Zelândia, além de uma
criaram agora mil milhões de pessoas e
cerca de um terço do PIB
dezena de outras nações, que o maior bloco mundial.
A mesma ideia
também podia ser
vão desde a gigante e diversi- comercial do Podemos olhar para este adaptada para in-
ficada Indonésia à minúscula, mundo, houve acordo apenas pelo prisma cluir um elemento
mas rica, Singapura. do que ele significa acerca
No “nosso lado” do mun- menos mortes da ascensão da China. Essa
humano e, dessa
forma, aproximar o
do, ainda incrédulo com o por Covid-19 do é, no entanto, uma visão assunto do leitor
pesadelo da segunda vaga da que... em França redutora. Há ali, de facto,
pandemia, à espera de que se uma tentativa de recen-
conclua a transição de poder
em Washington e a aguardar que a União
tragem do mundo, por
parte de muitos mais países. E não só na
3
Europeia saiba estar à altura das suas res- economia, como o futuro o demonstrará.
ponsabilidades perante a maior crise econó- Há também outras práticas e mudanças
mica da sua História, a notícia de um tratado que deviam chamar-nos a atenção. Basta
entre países distantes quase tem justificação olhar para este facto, por exemplo: no
para passar despercebida – ainda para mais conjunto dos 15 países que criaram agora
quando, além dos Estados citados, inclui ou- o maior bloco comercial do mundo, houve
tros que apenas nos habituámos a classificar menos mortes por Covid-19 do que... em
como “exóticos”, como são os casos do Viet- França ou em Itália, individualmente. E os
name, do Laos, da Tailândia ou da Birmâ- mesmos 15 países fecharam anos de nego-
nia. A verdade, no entanto, é que podemos ciações para dar resposta à crise, enquanto Mas o melhor é
estar perante um dos acontecimentos que, na União Europeia dois Estados (Hungria apresentar a sigla
dentro de uma ou duas décadas, poderá ser e Polónia) conseguem bloquear a bazuca da técnica que pro-
recordado como um dos que, neste estranho por que todos ansiavam e de que precisam, mete revolucionar
ano de 2020, maiores implicações teve para quase hipotecando as hipóteses de recu- a medicina, tanto
o futuro da economia mundial e, por essa peração económica da Europa. A mudança, agora face à pan-
razão, para as nossas vidas – porventura, ao assim, vai passar-nos mesmo ao lado. demia como em
nível do que foi a entrada da China na Or- rguedes@visao.pt relação a outras
doenças

10 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


Julia Steinberger Professora de Economia Ecológica

Queremos mesmo contar com


magia para nos salvarmos? Ou
queremos responsabilizarmo-
-nos? É isso que defendo, com
maior equidade, maior eficiência
energética e acabando com
o consumo excessivo
LUÍS RIBEIRO T H I B A U LT S C H E E B E R G E R

12 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


Q
Queremos travar as alterações
climáticas e a perda de biodiversidade?
Só há uma saída: o decrescimento
económico. Esta é a ideia-base
defendida pela professora americana
Julia Steinberger, da Universidade
de Lausana, Suíça. Filha de Jack
Steinberger, vencedor do Nobel
da Física em 1988 (fugido da
mudança que precisamos de operar
não é compatível com o crescimento
económico contínuo.
Há uma correlação entre
crescimento do PIB e as emissões
per capita. É uma prova de que é
impossível ser-se rico e ter baixas
emissões?
Sim, absolutamente. Em média,
quanto mais rico é o país, maiores
são as emissões per capita. Temos um
estudo que demonstra que, quanto
mais dinheiro tem uma pessoa, maior
é a sua pegada ecológica. É impossível
ser-se rico e não ter um grande
impacto no ambiente.
Portanto, a única solução é o
decrescimento?
Acredito que sim. O que nos interessa
são os resultados e, nesse sentido,
precisamos de decrescimento no
uso de energia, de materiais e de
terra, devido aos impactos que têm.
ideias e as ferramentas económicas
para seguir em frente de outra
forma. O único obstáculo é quem
está a beneficiar com o crescimento
económico. E uma das coisas que
sabemos pelo trabalho de Thomas
Piketty e outros economistas é que o
crescimento económico é um motor
de desigualdade: quanto mais cresce
uma economia capitalista, mais
desigual se torna. O crescimento vai
predominantemente para os mais
ricos. Isso significa que temos mesmo
de mudar os nossos sistemas.
Já a acusaram de ser comunista
por dizer isso... É possível ter um
sistema que não é nem capitalista
nem comunista?
As pessoas foram levadas a pensar
que só temos duas possibilidades:
o capitalismo ou o Gulag. Essa falta
de imaginação é muito perigosa.
O que está a faltar nesta equação
Alemanha nazi com o advento do Portanto, o foco não é tanto como a “capitalismo ou União Soviética” é
antissemitismo), a especialista em economia se está a comportar, mas a democracia. Temos de tornar as
Economia Ecológica vai explicar os sim em reduzir estes impactos. Devido economias democráticas e garantir
seus argumentos na 4ª edição de ao que sabemos sobre a correlação que são o melhor para nós. Tanto
Human Entities – A cultura na era da entre atividade económica e impactos no sistema capitalista como no
inteligência artificial, organizada pelo ambientais, muito provavelmente isso soviético, o mercado não está a servir
grupo artístico CADA em parceria com significa que precisamos de decrescer, as pessoas nem as pessoas decidem
a Trienal de Arquitetura de Lisboa, ponto final. Certamente, teremos como o mercado deve funcionar. No
no espaço ao ar livre da Trienal, no de decrescer em certos setores da capitalismo, o objetivo é a acumulação
próximo dia 26 de novembro. economia. de riqueza para os ricos; no socialismo
Em entrevista à VISÃO, a investigadora As pessoas vão aceitar piorar? soviético, era o que quer que o
garante que há recursos para todos Dizer-lhes que não podem ter governo decidisse que melhor servia
vivermos confortavelmente – mas só perspetivas de melhorarem as suas o seu poder. Mas nunca tivemos nada
se reduzirmos de forma drástica o vidas não destruiria o espírito no meio. Não: as economias têm de
consumo supérfluo e revolucionarmos humano? servir as sociedades e as pessoas
o sistema capitalista. O espírito humano está a ser posto podem decidir não fazer as economias
Muito se tem falado sobre a em risco pelo crescimento. Há muita crescerem porque isso vai afetar a sua
insustentabilidade do crescimento gente que gosta de pôr as coisas qualidade de vida. Podemos decidir
infinito num planeta com recursos nesses termos, que crescimento e focar-nos em educação, sistemas
finitos. É impossível crescer prosperidade estão ligados. Mas não de saúde, alimentação saudável,
continuamente? é verdade. Os meus estudos têm qualidade de vida para toda a gente.
Não é possível. Sempre que a demonstrado que crescimento não é Apostar na eficiência de forma a
economia cresce, a procura de igual a qualidade de vida. Além disso, termos o suficiente para todos.
recursos também cresce. Há países o nosso crescimento atual está a pôr- Em França, a tentativa de avançar
que julgam que as suas economias nos numa trajetória que os cientistas com taxas de carbono sobre
estão a conseguir dissociar o do clima dizem que vai impedir a os combustíveis redundou no
crescimento do gasto de recursos, possibilidade da civilização humana movimento dos Coletes Amarelos
mas isso é porque não levam em num século. Não, a prosperidade e em tumultos por todo o país. As
conta os recursos usados noutros não vem com o crescimento. Não pessoas estarão mesmo dispostas a
países [consumo de produtos é verdade hoje, não foi verdade no pagar o preço da mudança?
feitos noutras regiões do mundo]. passado e, no futuro, se continuarmos Isso só confirma o que eu estava
Se contarmos com esse contexto a fazer o mesmo, será devastador. a dizer: estas decisões têm de
internacional, o crescimento é sempre Temos de encontrar outro caminho. ser tomadas de baixo para cima,
acompanhado por um aumento do É uma questão de mudarmos a bem democraticamente, e não impostas
material usado e de consumo de ou a mal? de cima para baixo. As assembleias
energia. Para evitarmos alterações Se formos obrigados a mudar devido de cidadãos pelo clima em França
climáticas e perdas de biodiversidade às alterações climáticas, já será têm soluções muito abrangentes, mas
catastróficas, temos mesmo de mudar demasiado tarde. O futuro é de tal que são igualitárias, que levam em
o nosso impacto no ambiente, ou forma desolador que temos de tomar conta as pessoas que são prejudicadas
seja, o uso de recursos. A escala de medidas preventivas. E temos as pelas medidas. Pelo contrário, impor

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 13


uma taxa sobre o gasóleo afetaria
sobretudo os mais desfavorecidos.
Quanto mais por decrescer. Sabemos exatamente
que tipo de melhorias esperar. Há
Para termos justiça, é preciso que as dinheiro tem uma estudos sobre isso: devido às leis
decisões sejam democráticas.
Foi coautora de um estudo que
pessoa, maior da termodinâmica, às leis da física,
sabemos que avanços tecnológicos são
mostra que a população mundial é a sua pegada possíveis e impossíveis. Esperar que
poderia sobreviver com 40% da
energia que estamos a usar agora,
ecológica. a fada madrinha nos venha salvar é
loucura. Não podemos contar com a
tendo uma vida decente. O que É impossível ser-se tecnologia para impedir os cataclismos
significa uma vida decente?
Uma vida que permita que as pessoas
rico e não ter um climáticos que nos esperam.
Estudos mostram que pessoas
vivam todos os dias sem medo, sem grande impacto que já fazem pequenos esforços
pobreza, sem privação, e de modo
a conseguirem tirar partido do seu
no ambiente sustentáveis no seu dia a dia são
mais resistentes do que quem não
potencial. Não estamos a falar de faz nada a, por exemplo, pagar
luxo ou de ostentação. O consumo impostos sobre o carbono, que é
excessivo não melhora o bem-estar uma medida de alto impacto. Isto
nem a felicidade. Estamos, portanto, a não a leva a perder a esperança na
falar de um ambiente de vida decente, humanidade?
um casa boa e sólida, nem demasiado investindo em acesso eficiente a Não, porque não acredito que a
quente nem demasiado fria, acesso serviços energéticos. Investimento solução esteja nas ações individuais, no
a comunicação, incluindo internet, público. virtuosismo de cada um de nós, nem
acesso a equipamentos como máquinas No final do século XVIII, na imposição de taxas de cima para
de lavar, suficiente mobilidade, que Malthus previu que a melhoria baixo. A mudança só é possível através
dê para visitarmos os nossos amigos e das condições de vida levaria ao de processos democráticos coletivos.
família e ir para o trabalho e um voo a aumento da população e, logo, à A minha esperança é nos movimentos
cada dois anos para quem precise de catástrofe, por não haver alimentos de jovens, que acreditam conseguir dar
viajar. Se as pessoas tiverem tudo isto, para todos. Essa previsão não se este passo juntos. A nossa legitimidade
não se vão sentir pobres. concretizou devido aos avanços enquanto pessoas não vem de termos
Teríamos, então, as nossas tecnológicos, especialmente após ou não umas colunas de última
necessidades básicas asseguradas. a Revolução Agrícola nos anos 50 geração ou um carro grande – vem
O que mudaria era o consumo e 60. Os avanços na tecnologia não da capacidade de falarmos uns com
excessivo. Em vez de comprarmos nos podem salvar, desta vez? os outros, de tomarmos decisões
50 peças de roupa por ano, Temos muitos dados sobre avanços em conjunto e criarmos um mundo
compraríamos apenas dez. É isso? tecnológicos das últimas décadas. melhor. Não podemos receber ordens
Sim. É um nível de consumo Para evitarmos alterações climáticas de pessoas muito poderosas que
suficiente. catastróficas, para evitarmos o lucram com o nosso consumo.
Para que essa média global de colapso da civilização, mantendo Esta nova geração é mais resistente
40% seja alcançada, nos países o crescimento económico, só um a essa pressão consumista do que as
desenvolvidos as pessoas teriam milagre tecnológico. Não estamos gerações anteriores?
de reduzir o uso de energia em a falar de um avanço tecnológico Acredito que sim. Esta geração já
95 por cento. Podemos viver normal, mas sim de magia. Atendendo percebeu que tem de se endividar
confortavelmente usando apenas ao que nos espera, queremos para tudo: educação, habitação... A
5% da energia? mesmo contar com a magia para economia já não protege os jovens
No estudo, assumimos igualdade total: nos salvarmos? Ou queremos nem lhes dá oportunidades, apenas
todos têm acesso aos mesmos serviços responsabilizarmo-nos e proteger lhes extrai dinheiro e tempo. Este
energéticos no mundo inteiro. Com a qualidade de vida, reduzindo o capitalismo é uma forma predatória
tecnologia mais eficiente, podemos consumo de recursos? É isso que de economia que lhes está a roubar o
usar muito menos energia. Temos de defendo, com maior equidade, maior futuro.
evitar mais consumo do que aquele eficiência energética e acabando com o Trump é o seu principal objeto de
que as pessoas precisam, que é o consumo excessivo. E ainda estou para ódio, ultimamente. Quão maus
lado da suficiência, mas há também perceber porque é que defender isto foram estes últimos quatro anos
o lado da eficiência – gastar menos faz de mim maluca. para o ambiente?
energia. É o suficiente para viver Diz que salvar o mundo através Foram um desastre completo para o
confortavelmente? Há muita gente da tecnologia é equivalente ambiente e para os seres humanos.
em países ocidentais, como Portugal, a magia. Mas a Revolução Um dos pontos mais baixos foi talvez
Suíça e certamente Inglaterra, que Agrícola, que permitiu aumentar ele tentar manter vivos combustíveis
não tem qualidade de vida devido à exponencialmente a produção, fósseis sem viabilidade económica,
grande desigualdade de rendimentos também pareceria magia há 100 subsidiando-os. Outro foi a forma
e de acesso a serviços. Muitos porque anos... como tratou os refugiados climáticos
são pobres, passam o inverno com Não temos tempo para esperar e ver o vindos da América Latina, trancando-
frio, e por causa disso têm problemas que acontece. Temos só umas décadas os em jaulas, separando os pais dos
de saúde. Podemos fazer melhor, para reverter a situação, e fazê-lo passa filhos... Tem sido horrível. lribeiro@visao.pt

14 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


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Juntámos uma saborosa combinação à nossa As culturas vivas probióticas em leite


gama de Kefir. Assim nasce o novo Kefir Vigor fermentado melhoram a digestão da lactose*.
Frutos Vermelhos, um leite fermentado com Kefir Vigor possui um perfil equilibrado entre
12 culturas vivas de kefir, probiótico* e com baixo acidez e doçura, está pronto a beber e pode
teor de gordura, que vem dar mais sabor ainda ser criativamente combinado com fruta,
e bem-estar* aos seus dias. Vigor seguiu um percurso cereais ou sementes.
de inovação e de valorização do leite fresco. A chegada do novo Kefir Frutos Vermelhos vem
Kefir Vigor é uma opção deliciosa e funcional para enriquecer a gama já composta por Kefir Vigor
quem quer cultivar o seu bem-estar*. Natural e Kefir Vigor Manga Maracujá.

O que são probióticos?


A palavra probiótico provém do grego e do latim Os microrganismos mais estudados pertencem
e significa «a favor da vida». Os alimentos probióticos essencialmente a dois géneros – Lactobacillus
contêm culturas vivas ou “bactérias boas”, ou seja, e Bifidobacterium – mas têm vindo a ser investigados
microrganismos vivos que, quando administrados outros microrganismos. A maior parte encontra-se em
em quantidades adequadas, proporcionam benefícios alimentos fermentados, principalmente produtos
para a saúde do hospedeiro. lácteos, como é o caso de Kefir Vigor.

* As culturas vivas em leite fermentado ajudam à manutenção da saúde e do bem-estar, melhorando a digestão da lactose em indivíduos com dificuldade de digestão da lactose.

Bowl de frutos vermelhos


Coloque numa taça o novo Kefir frutos vermelhos.
Adicione uma banana triturada e envolva.
Acrescente alguns mirtilos, morangos, framboesas ou romã.

E voilá, está pronto o seu pequeno-almoço.

Ingredientes:
1 embalagem de Kefir Vigor Frutos Vermelhos
1 banana
Mistura de frutos vermelhos q.b. Sugestão de apresentação.
RAIOS X

Linguagem universal Em 2021, o alfabeto universal de ideogramas


passará a contar com mais de 3 300 exemplares.
E, cada vez mais, os emojis são para todos

M A N U E L B A R R O S M O U R A mbmoura@visao.pt

Os emojis são ideogramas e tiveram origem, na década de 90 do século passado, nos telemóveis no Japão, onde foram precedidos
pelos emoticons, carateres gráficos – pontuação, letras ou números – para transmitir emoções e expressões faciais. Em 1995,
o Consórcio Unicode, que supervisiona o inventário de carateres de processamento de texto eletrónico desde 1991 e define um
padrão para símbolos, carateres em diferentes scripts e emojis, codificados uniformemente em diferentes plataformas, registou
os primeiros 75 ideogramas – símbolos gráficos utilizados para representar uma palavra ou um conceito abstrato

BARBAS: CADA UM COM A SUA


O Unicode tem o objetivo de padronizar
as escolhas para humanos no conjunto

1 em 5 tweets 50% 5 mil milhões de emojis, o que frequentemente envolve


garantir que haja opção para mulheres
de emojis são
dos posts e homens, mas também propostas neutras.
19,4% de Instagram
enviados, todos
os dias, no Facebook Esta atualização não é diferente com o emoji
incluem um incluem e no Facebook para uma pessoa com barba. Há para
emoji emojis Messenger homens, mulheres e quem não quiser
identificar-se nem com uns nem com as
outras. E há-os, também, com todos os tons
de pele e cores de cabelo.

EVOLUÇÃO 1999 Nascem os emojis! O conjunto original


GRÁFICA inclui ícones de clima, trânsito, tecnologia e
horas.
DO EMOJI
1F505
2010 O Unicode adota oficialmente
3 353
o emoji, adicionando centenas de outros -
como rostos de gatos expressando 3 136
felicidade, raiva e lágrimas. 3 019
2015 Emoji recebe uma atualização 2 789
de diversidade com cinco novos tons de pele
e um conjunto de casais do mesmo sexo. 2 628
2016 As atualizações dão origem
aos emojis de pai solteiro, bandeira 2 389
do orgulho gay e mulher que levanta pesos.

2017 Novas propostas de emojis sugerem


personagens para transmitir informações
através da língua e cultura, como um
mosquito para representar doenças como
malária e zika.
1 624

3 353
MULTIPLICAÇÃO IMPARÁVEL
NÚMERO DE EMOJIS DISPONÍVEIS AO LONGO DOS ANOS
E ALGUNS DOS QUE FORAM SENDO LANÇADOS EM CADA ANO
1 263
1 145 1 158 2020 viu o lançamento de
117 novos emojis, aumentando o
número total de pictogramas
para 3 136. Para o próximo ano,
estão já aprovados 217 novos
emojis, o que fixará o número
total em 3 353. Além de um
coração em chamas, de smiles
nas nuvens ou de olhos em
espiral, a nova gama volta a
apostar nos temas da inclusão e
76 78 86 94 108 112 139 da liberdade de género

1995 ... 2000 ... 2002 2003 ... 2005 ... 2008 2009 2010 ... 2012 ... 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021
FONTE Unicod Consortium, Emojipedia, Statista, Wired INFOGRAFIA MT/VISÃO

16 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


Há mais de 90 anos a trabalhar
na investigação e no desenvolvimento
das áreas em que atuamos.
Séculos de boas causas.
Em 1927, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa passou a gerir, como
seu, o Sanatório de Sant’Ana, iniciando o caminho na investigação
e contribuindo para a procura da cura da tuberculose óssea.
Hoje, a Santa Casa desenvolve políticas de saúde ambiciosas e apoia
a investigação científica e médica de excelência nas suas áreas
de atuação.

www.scml.pt
7
PONTOS DA SEMANA

POR
C ATA R I N A G U E R R E I R O *

CHEGA CAUSA TURBILHÃO NO PSD


Luís Marques Mendes chama-lhe o nacional”. Mas, enquanto se somavam
“Euromilhões da política” e Manuela críticas internas a Rui Rio, o seu antigo
Ferreira Leite considera-o a forma adversário na corrida à liderança,
ideal de o PSD mostrar a António Costa Miguel Pinto Luz, saiu em defesa do
que há “alternativas a uma governação acordo com o partido de André Ventura
de esquerda”. Já Paula Teixeira Pinto e colocou na mesa os argumentos dos
garante que ele limita o PSD, Jorge que aprovam o caminho: se o PS pode
Moreira da Silva classifica-o como aliar-se com a “esquerda radical”, não
xenófobo e Rui Machete teme que possa faz sentido que o PSD se “autolimite”
prejudicar o resultado do partido nas e abdique da capacidade de congregar
próximas eleições. forças políticas; os sociais-democratas
A forma como vários sociais- que criticam a ideia estão a propagar o
democratas falam do Chega, e do discurso do adversário e não há razão
acordo feito nos Açores com o PSD para surpresa, pois o tema das alianças
depois das regionais, torna clara a com André Ventura foi discutido pelo
divisão que se instalou no partido próprio Rui Rio quando este foi eleito
liderado por Rui Rio. para liderar o partido.
Aliás, o antigo vice de Passos Coelho, Na época, em janeiro de 2020, o Chega
Jorge Moreira da Silva, num artigo tinha acabado de conseguir um lugar
que escreveu no jornal Público, veio no Parlamento, na sequência das
já pedir a realização de um congresso legislativas de outubro de 2019. E Rui
extraordinário para o partido clarificar Rio, numa entrevista que deu à TSF nas
as posições e a estratégia. Uma ideia que vésperas das eleições internas, pensava
não tardou a ser apoiada por outros, assim: “O Chega é muito jovem, só tem
como foi o caso da antiga ministra da um deputado, é muito difícil perceber
Justiça, Paula Teixeira da Cruz. “Não o que vai ser dentro de um ano ou dois.
só é necessária uma clarificação face Acho que é um bocadinho exagerado
ao que ocorreu nos Açores, como é classificarmos o Chega de fascista ou de
necessária uma clarificação sobre o que extrema-direita. Tem algumas posições
se nos depara no continente”, disse. Até extremistas e de perfil populista, se
porque, garantiu Marques Mendes, está forem ganhando peso no Chega não
instalada a perceção “de que um acordo será possível entendimentos com o PSD,
com o Chega se pode repetir no plano se se forem moderando penso que sim.”
*Editora-Executiva
cguerreiro@visao.pt

18 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


8
DEFESA FRASE

A vacina só por si
não será suficiente”
Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral
da OMS, depois de serem anunciados resultados
animadores sobre duas vacinas contra a Covid-19

milhões
e 400 mil EUA

euros Jill Biden não


é o preço da lancha quer deixar de
Bojador, de 35 metros,
que foi adquirida pela dar aulas
GNR, tornando-se A futura primeira-
a maior alguma vez dama norte-americana,
comprada por esta Jill Biden, já revelou
polícia. Segundo que quer manter a
o comando-geral da sua independência
GNR, esta nova lancha profissional e anunciou
deverá entrar em que pretende continuar a
operações durante dar aulas, mesmo depois
o 1º semestre de 2021. de o marido tomar posse
RELIGIÃO
A compra, diz o DN, como Presidente dos
gerou polémica no seio
da Marinha, que garante
Bispos dizem que afinal ainda não há EUA, a 20 de janeiro. Jill
existir uma duplicação decisão sobre Missa do Galo Biden, que é professora
de inglês há 30 anos, já
desnecessária de meios. tinha quebrado a tradição
Depois de o líder da Conferência Episcopal Portuguesa
(CEP), José Ornelas, ter anunciado, no último fim de quando continuou a
semana, a possibilidade de suspender a Missa do Galo, exercer a sua profissão
SAÚDE durante o mandato
por causa da pandemia, os bispos decidiram esclarecer
do marido como vice-
Estimativas a situação. E numa nota explicam que nada está
decidido, rejeitando “antecipar cenários”. Sublinham que presidente dos EUA.
negras sobre tem sido “possível celebrar em segurança no interior
dos templos” e aproveitam para apelar às famílias para
Agora, Jill Biden aposta
em tornar-se a primeira
a Covid-19 que depois dos eventos religiosos evitem situações de mulher de um Presidente
risco, como reuniões familiares. Os bispos dizem que dos EUA a manter o seu
Nos últimos dias, bateram- antigo emprego.
-se constantemente irão estar “atentos” às condições que se registem no
recordes de óbitos e Natal e que tomarão “as orientações necessárias”.
infeções por Covid-19,
em Portugal. Segundo
UE
as estimativas da
Associação Portuguesa
de Administradores
Brexit: corrida contra o tempo
Hospitalares (APAH), esta nas negociações
sexta, dia 20, o número
de camas ocupadas nas Com o final do período e o acesso dos pescadores
unidades de cuidados de transição do Brexit a da UE a águas do Reino
intensivos (UCI) pode aproximar-se, o Reino Unido Unido têm sido os temas
chegar aos 605. e a União Europeia (UE) mais difíceis de negociar.
A associação traça estão ainda em negociações. A falta de um acordo
também um cenário mais Uma verdadeira corrida levaria a que, a partir de
otimista de 404 pessoas contra o tempo, pois o 31 de dezembro, as trocas
nas UCI. Mas a verdade é acordo tem de ser ratificado comerciais entre o Reino
que, nas últimas semanas, e entrar em vigor a 1 de Unido e a UE passassem
as piores estimativas janeiro de 2021 – dia em que a ser sujeitas a taxas
da APAH são as que ficam termina o chamado período alfandegárias e tivessem
mais próximas transitório. A concorrência, limites estabelecidos às
da realidade. a resolução de diferendos importações e exportações.

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 19


HOLOFOTE

Carrie Symonds A rainha de Downing Street


“Chanfrada” Previdente
A companheira A NOIVA DO PRIMEIRO- Com 32 anos,
menos 24 do que o
e noiva de Boris
Johnson, ela -MINISTRO DO REINO primeiro-ministro,
própria uma
antiga diretora
UNIDO É ACUSADA Carrie Symonds
é, no mínimo, a
de comunicação
dos Tories, era
DE INTERFERIR CADA responsável pelo
facto de Boris
Saneadora há muito descrita VEZ MAIS NAS DECISÕES Desocupada Johnson ser agora
por Cummings e um amigo do
Após meses de
conspirações e companhia como POLÍTICAS E DE DITAR Após os tabloides
e até o circunspeto ambiente e admitir
implacáveis lutas
de bastidores,
“Princess Nut
Nut” (literalmente A NOVA ESTRATÉGIA Financial Times
terem relatado
a necessidade de
reformas. Seja
Dominic “Princesa
Amendoim,
DE COMUNICAÇÃO os conflitos ou não uma nova
versão de Lady
Cummings, o
principal assessor Amendoim”) – um
título obviamente
DO GOVERNO no interior de
Downing Street Macbeth, ela terá
contribuído para
do primeiro- e a crescente
depreciativo FILIPE FIALHO
influência de afastar Cummings,
-ministro britânico,
que é suposto Carrie sobre neutralizando-
viu-se obrigado a
sair de vez pela aludir ao caráter Boris Johnson, -lhe a estratégia
mais conhecida “chanfrado” e o gabinete do radical contra os
porta política do “autoritário” primeiro-ministro supostos inimigos
reino, o número 10 de Carrie fez saber que ela de um Reino
de Downing Street, Symonds, não tem qualquer Unido soberano
em Londres, além de a papel oficial e e próspero: a UE,
residência oficial equiparar a negou os rumores os funcionários
do chefe de um esquilo, de que poderia públicos, os juízes,
Governo. Fez-se devido assumir um os jornalistas,
ainda acompanhar ao seu cargo pago pelos a BBC e as
de alguns dos seus rosto algo contribuintes. instituições em
colaboradores pontiagudo. Off the record: a geral. O casal
mais fiéis, todos “Rainha visada queixou-se de inquilinos
defensores louca” e ainda de estar de Downing
incondicionais “Nova Diana” a ser “vítima de Street sabe que
do Brexit e das eram outros sexismo” e de o Governo tem
guerras identitárias dos epítetos todos os que a de fazer mais e
que permitiram usados. acusam de “chefiar melhor contra
ao Partido o Governo pelo a pandemia e a
Conservador WhatsApp” em crise económica,
conquistar uma vez de se dedicar quando um hard
maioria de 80 a Wilfred Brexit está a seis
deputados no Nicholas, o semanas
Parlamento, filho que teve de acontecer.
nas legislativas de Boris e E nenhum deles
do final do ano que nasceu parece importar-
passado. Estes a 29 de -se com o facto
despedimentos abril. de já se falar em
sumários, segundo Rishi Sunak, atual
a Imprensa local, titular da pasta das
devem-se a uma Finanças, como
pessoa: Carrie possível sucessor
Symonds. de Boris...

20 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


INBOX

M O D É S T I A À PA R T E
Às vezes
Temos que deixar
de ser um país
gostaria
de maricas e de ser mais
enfrentar isso de
peito aberto como Bob
JAIR BOLSONARO
Presidente do Brasil queixa-se
de que “tudo agora é pandemia.
Dylan. Ele é
uma lenda
Tem que acabar com esse
negócio, pô.”

e está-se a
marimbar.
Eu não sou
assim
PAUL MCCARTNEY
Recordo que estava Prestes a lançar o álbum McCartney III,
muito aborrecido o ex-Beattles elogia o colega norte-
-americano: “Gosto sempre do que ele faz”
pela derrota com o
Atlético Madrid, mas,
FRASE DA SEMANA
cinco minutos mais
tarde, disse para mim
próprio: És um idiota. Nenhuma de nós
Estás preocupado
por perder um jogo
aqui fala de como
de futebol quando o é que se pilota um
mundo está a passar C H O Q U E F R O N TA L avião, mas toda a
pelo momento mais
difícil que alguma vez gente sabe como
teve de enfrentar é que se trata a
JURGEN KLOPP
Treinador do Liverpool conta pandemia
este episódio no documentário GRAÇA FREITAS
The End of the Storm Diretora-Geral da Saúde recusa
que tenha falhado na comunicação

Quis que ele [Trump]


salvasse o país de Sobre o avanço Não se fazem
chegar ao ponto em do fascismo nos acordos com
que estamos. Estava Açores, que temos partidos xenófobos,
hoje? Alguma racistas,
a torcer pelo tipo. Mas novidade especial? extremistas e
não adiantou RUI RIO populistas. Ponto!
EDDIE VEDDER Líder do PSD desvaloriza JORGE MOREIRA
Líder dos Pearl Jam reconhece polémica em torno do DA SILVA
que o Presidente norte- entendimento com o Ex-vice-presidente
americano “nunca teve Chega para viabilizar de Passos Coelho
qualidades que o redimissem” governo de direita nos pede um Congresso
Açores Extraordinário no PSD

Fontes: Uncut, Agência Lusa, Público, Twitter, O Globo, Record, BlitZ


22 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020
ALMANAQUE

NÚMEROS DA SEMANA

€1,6 milhões
Um pombo-correio belga,
chamado New Kim, com
2 anos, estabeleceu um
recorde mundial ao ser vendido
num leilão por 1,6 milhões
de euros. O recorde anterior
pertencia também a um pombo
belga, Armando, que tinha sido
vendido em março de 2019 por
1,252 milhões de euros.

25-15
GETTY
Túnel da discórdia A Argentina venceu no sábado,
14, pela primeira vez na sua
história à Nova Zelândia, ao
31º encontro entre as duas
O Governo inglês quer fazer passar uma autoestrada por baixo seleções, na segunda jornada
do monumento megalítico de Stonehenge do Rugby Championship, em
Sydney, na Austrália. O médio
O Governo britânico deu luz verde à o alargamento daquilo que atualmente de abertura Nicolás Sánchez
construção de um túnel por baixo de é uma estrada para uma autoestrada. é o novo herói do desporto
Stonehenge e, com isso, desencadeou As obras devem começar em 2023 e argentino, ao marcar todos
uma onda de críticas de ambientalistas, têm uma duração prevista de cinco os pontos da primeira vitória,
historiadores e arqueólogos. anos. Kate Mayor, diretora executiva por 25-15, dos Pumas sobre
O grupo Stonehenge Alliance, liderado da English Heritage − a autoridade que os All Blacks.
pelo historiador Tom Holland, lançou supervisiona a integridade dos monu-

7
uma petição contra o projeto, apoiada mentos britânicos − deu o seu apoio ao
por 125 000 assinaturas, e prometeu projeto, considerando que significará
levar a batalha ao Supremo Tribunal. “o fim da estrada barulhenta e intru-
A Unesco, que declarou o monumento siva” que impede o monumento de ser Lewis Hamilton, ao volante de
megalítico Património da Humanidade apreciado no nível do solo. O professor um Mercedes, conquistou no
em 1986, também se opõe ao projeto David Jacques, que chefia um projeto domingo, 15, o sétimo título
de sepultamento da estrada A303, que arqueológico nas proximidades do mundial de Fórmula 1 da sua
atualmente passa a menos de 200 me- monumento, classificou, por seu lado, carreira, ao vencer o Grande
tros daquele espaço arqueológico. a decisão como “um escândalo inter- Prémio da Turquia, 14ª prova
O projeto, estimado em cerca de dois nacional” e alertou que a construção da temporada, chegando às
mil milhões de euros, inclui a constru- do túnel pode ter um sério impacto em 94 vitórias, um novo máximo
ção de um túnel de três quilómetros e todas as inúmeras escavações na área. da modalidade. O piloto
britânico igualou o alemão
Michael Schumacher que era,
ESTUDO DA UNIVERSIDADE DE TORONTO até agora, o único a vencer
sete campeonatos do mundo.
Para a bebedeira passar, há que hiperventilar
Cientistas da Universidade de Toronto descobriram que
ajudar as pessoas a hiperventilar com segurança ajuda
a eliminar três vezes mais rapidamente o álcool do que
quando se respira normalmente. Para que esta hiperven-
$5 100 milhões
A Organização Mundial da
tilação controlada seja possível, a equipa de cientistas Saúde anunciou na sexta-feira,
utilizou o ClearMate, habitualmente usada para combater intoxicações com dióxido de 13, que o mecanismo de apoio
carbono. O álcool é uma toxina que se decompõe através da metabolização no fígado. Este à luta contra a Covid-19 já
processo leva, no entanto, tempo a decorrer e não pode ser acelerado, o que se torna crítico reuniu compromissos que
quando a quantidade de álcool ingerido é de tal forma elevada que pode ser perigosa ou até chegam a 5,1 mil milhões de
mesmo fatal. O que este estudo-piloto, cujo resultado foi publicado na conceituada Nature, dólares, mas avisa que serão
vem agora mostrar é que o álcool pode também ser eliminado através da respiração e que a precisos mais 4,2 mil milhões,
hiperventilação assistida por profissionais de saúde pode ajudar a salvar vidas. este ano.

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 23


TRANSIÇÕES

MORTES
Fundador do Jornal Novo
e da revista Opção que
passou pela redação
de vários meios de
comunicação, como Diário
de Lisboa, A Capital, TSF
e RTP, e publicou mais de
duas dezenas de obras.
Nos anos 1990, integrou
a Alta Autoridade para
a Comunicação Social.
Jornalista, escritor,
publicitário, investigador,
com formação em História,
nasceu em 1937 numa
família de escritores e
jornalistas; herdou do pai o
nome, mas assinava Artur
Portela Filho. Morreu
no passado dia 10, em
Abrantes, com 83 anos,
vítima de Covid-19.

O coronel Luís Macedo,


que fez parte do grupo de GONÇALO RIBEIRO TELLES (1922-2020)
engenharia do Exército que
concebeu e organizou o
plano da revolução do 25 de
Abril de 1974 e é apontado
como braço-direito de Otelo
O arquiteto do futuro
Saraiva de Carvalho, faleceu Era um conservador com ideias revolucionárias para o território
em Moçambique vítima e que, hoje, são de todos. Saberemos merecê-lo?
da Covid-19, anunciou no
domingo, 15, o presidente Foi moderado numa época de em socalcos. Para ele, o trabalho do
da Associação 25 de Abril, radicalismos políticos e visionário homem era a continuidade, fazer
Vasco Lourenço. quando ainda vivíamos a ressaca perdurar a paisagem na memória e
da ditadura, contra a qual militou nos anos por contar. Era também
ativa e civicamente. Quem olha para esse o seu desígnio, sempre
O antigo guarda-redes
o que Portugal se autoinfligiu em com a ruralidade a borbulhar na
internacional inglês Ray
Clemence morreu no
termos de gestão ambiental e de alma conservadora e uma noção
domingo, 15, aos 72 anos. ordenamento do território fica com de progresso que desprezava o
Grande rival de Peter a sensação de que não o merecíamos, decorativo, as febres, as modas
Shilton na luta por lugar no tempo e no modo. Ainda assim, e os burocratas de turno. Foi
na baliza da seleção como explicou Viriato Soromenho- construtor de espaços emblemáticos,
inglesa, Clemence somou Marques, “só podemos estremecer” governante, líder político e de
61 internacionalizações, se imaginarmos o que seria deste movimentos que geraram ideais
duas delas contra Portugal País sem a legislação, a obra e o ambientalistas hoje unânimes,
em 1974 e 1975. Ao pensamento que nos legou Gonçalo bandeira e património de correntes
serviço do Liverpool, onde Ribeiro Telles (Lisboa, 1922), arquiteto políticas adversas. No montado,
alinhou entre 1967 e 1981, paisagista, ecologista e monárquico. redescobria o mistério da eternidade.
conquistou cinco títulos de Nasceu urbano, mas a puxar para E se fosse árvore, disse ao Expresso,
campeão inglês, três Taças o campo. Amadureceu num tempo teria sido um sobreiro, espécie
dos Clubes Campeões menos veloz, em que a lentidão das resistente, resiliente e generosa,
Europeus, duas Taças UEFA, caminhadas e a preguiça do olhar de dar muito exigindo pouco, qual
uma Taça de Inglaterra e o ensinaram a ler o povo na sua autorretrato. Contava 98 anos
uma Taça da Liga. Com a relação com a terra e a Natureza. quando faleceu, na quarta-feira, 11.
camisola do Tottenham, Viajou, buscou estudo e referências. Mas se um sobreiro dura, em média,
entre 1981 e 1988, venceu Viu a Alemanha reconstruir-se no dois séculos, é de esperar que as suas
uma Taça UEFA e uma Taça
pós-guerra e apaixonou-se pelo ideias não durem menos. Ou não
de Inglaterra.
Douro sublimado de Torga, prodígio tivesse sido ele o arquiteto do futuro.
humano de horizontes dilatados, Miguel Carvalho

24 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


Não bastará
usar
PRÓXIMOS CAPÍTULOS
máscara
para assistir
aos jogos

PERISCÓPIO

MANIFESTO Alegre saiu em defesa


Trump? Ventura do mais recente
também serve Prémio Camões, Vítor
A tomada de posição Aguiar e Silva, muito
de 54 personalidades atacado pelo seu
da direita democrática, passado “alinhado
contra o extremismo, com a ditadura”.
através de uma carta, Alegre diz que Aguiar
no Público, começou e Silva é “um grande
a ser “negociada” teórico da literatura,
semanas antes do um intelectual de
acordo do PSD com o primeira água” e que o
Chega, nos Açores. O prémio é “muitíssimo
“inspirador” – por assim merecido”. Como
dizer... – do documento revela o jornalista
não foi Rui Rio ou André (da VISÃO) Miguel
Ventura, mas... Donald Carvalho, no seu livro
Trump. Só que, quando Amália, Ditadura
TÓQUIO2020-2021 foi tornada pública, e Revolução, já em
depois de muitos dias janeiro de 1975,

Torcer em silêncio?
a andar de mão em em pleno PREC,
mão, entre supressões quando Alain Oulman
de parágrafos e procurou, entre os
acrescentos de outros, autores de esquerda
A organização dos Jogos Olímpicos acredita que vai até toda a gente estar das letras dos fados
ter público nas bancadas, sem obrigar estrangeiros de acordo, as eleições de Amália Rodrigues,
norte-americanas já assinaturas para a
a fazer quarentena. Não podem é gritar publicação de um
tinham decorrido e
o tema dos Açores texto de desagravo à
O comité organizador dos Jogos Olímpicos de Tóquio – estava ali, quentinho, diva, acusada de ser
originalmente marcados para o passado mês de julho e pronto a servir... “fascista”, Manuel
reagendados para o período de 23 de julho a 8 de agosto Alegre foi o único a
do próximo ano – está convencido de que vai ser possível CORAGEM assinar. Ontem, como
realizar o torneio com a presença de público nas bancadas A autoridade moral hoje – nas palavras
e sem obrigar os espectadores estrangeiros a fazer de Alegre de então do poeta
quarentena. Para isso, e de forma a prevenir infeções por Em entrevista ao – contra o “novo
Covid-19, serão impostas medidas. Uma delas consiste em Expresso, Manuel obscurantismo”.
proibir os espectadores de gritar ou de falar alto durante as
competições. Entre as outras medidas constam a garantia
de uma boa ventilação nas áreas cobertas, a instalação de
desinfetantes para as mãos e o fornecimento de telas e de
outros separadores físicos para se manter a distância social.
“As deslocações dos atletas e dos elementos das comitivas
serão severamente restritas a duas semanas após a entrada no
Japão, mas essa medida será difícil de ser implementada nos
espectadores”, disse o diretor-executivo
do comité organizador, Toshiro Muto.
Reconhecendo como “irrealista” impedir
milhares de estrangeiros de circular em
Tóquio, Muto referiu que as medidas
ESTAMOS anti-Covid-19 vão incidir em “pré-
CADA VEZ MAIS testes, vigilância sanitária, triagem PARTIDO
cuidadosa na fronteira, verificações Dissidentes do PS?...
CONFIANTES DE pós-entrada e ação rápida se os E, entretanto, Lisboa foi surpreendida por este
QUE TEREMOS sintomas aparecerem”. A confiança dos cartaz à beira do Museu da Eletricidade plantado:
organizadores aumentou depois da vem aí um novo partido, cujo único programa
UM NÚMERO realização de competições-teste nas será a “exportação de hidrogénio e produção de
RAZOÁVEL DE últimas semanas, em Tóquio, durante painéis solares”. Será que o secretário de Estado
as quais dois mil espectadores viram a da Energia, João Galamba, ou os ministros Siza
ESPECTADORES sua temperatura corporal a ser medida, Vieira e Matos Fernandes estão a pensar fundar
THOMAS BACH tiveram de usar máscara e de desinfetar uma nova força política?
Presidente do
Comité Olímpico as mãos e foram proibidos de gritar,
Internacional para evitar espalhar perdigotos. M.B.M.

26 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


IMAGENS

GETTY IMAGES
O PODER CAIU
NA RUA
Em apenas uma semana, o Peru mudou de Presidente três
vezes, devido à reação popular. Será que fica por aqui?

GOLPE E CONTRAGOLPE
O caos político no Peru
iniciou-se na terça-feira,
10, quando o Presidente
Martín Vizcarra, no cargo
desde 2018, foi destituído,
num processo-relâmpago
liderado por Manuel Merino,
presidente do Congresso
e que, por inerência, o
substituiu de imediato. Esse
“golpe” foi o rastilho para
incendiar com protestos as
ruas de Lima e de outras
cidades. Cinco dias depois,
Merino foi obrigado a
demitir-se

28 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


À TERCEIRA SERÁ DE VEZ?
O deputado centrista
Francisco Sagasti tornou-
-se, na segunda-feira,
16, Presidente interino,
depois de ter sido eleito
líder do Congresso pelos
deputados, assumindo assim,
automaticamente, a chefia
de Estado. Aos 76 anos, este
engenheiro, que fez carreira
como consultor no Banco
Mundial, é bem-visto tanto
pela esquerda como pela
direita. Já anunciou que
formará um governo amplo
e plural e que a sua principal
tarefa é garantir a realização
de eleições em julho de 2021

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 29


IMAGENS

GETTY IMAGES
REGRESSO
À VIDA
Depois da tempestade e dos períodos de confinamento,
é preciso deitar mãos à obra e tentar recuperar o tempo
perdido – com alguns sinais de esperança

MANILA, FILIPINAS
Os residentes do subúrbio
de Marikina tentam
ajudar-se mutuamente,
após a passagem do tufão
Vamco, que destruiu várias
habitações e provocou
enormes inundações

FUENGIROLA, ESPANHA
Um gorila recém-nascido
ao colo da sua mãe, num
parque da Andaluzia onde
se tentam reproduzir as
condições naturais em que
a espécie habita em África.
O nascimento da cria foi
o corolário de vários anos
a tentar formar um grupo
reprodutor, em cativeiro,
mas longe dos caçadores
furtivos

30 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


LOS ANGELES, EUA
Este não é um dos
engarrafamentos
normais na maior cidade
da Califórnia, mas antes
uma fila para os testes
de Covid-19, depois
de ter sido imposta a
quarentena obrigatória a
todos os que entrem no
estado

MUMBAI, ÍNDIA
Após oito meses de
encerramento, devido à
pandemia, os templos
hindus começam a
ser preparados para
voltar a receber os fiéis
– mesmo a tempo das
celebrações do Diwali

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 31


Inovação As vacinas de mRNA
ensinam o corpo humano a produzir
proteínas do vírus, que provocam
uma reação imunitária
mRNA
A TERAPIA
DO FUTURO
A biotecnologia na base das vacinas mais promissoras contra
o SARS-CoV-2 é considerada pelos cientistas uma porta aberta
para o futuro. Mas o impacto da investigação dedicada ao RNA
mensageiro não se fica por aqui. A cura do cancro e de muitas
doenças genéticas também pode depender desta molécula.
E até já existem medicamentos aprovados
M A R I A N A A L M E I D A N O G U E I R A E VÂ N I A M A I A

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 33


B
BNT162b2. É provável que esta sequência
de letras e de números não tenha qualquer
significado para o leitor, mas este é o nome
provisório da vacina contra o SARS-CoV-2
desenvolvida pela empresa biotecnológica
alemã BioNTech e pela farmacêutica norte-
-americana Pfizer.
Na semana passada, apesar de a última fase
dos ensaios clínicos ainda não estar concluída,
o consórcio anunciou que os testes prelimi-
nares à BNT162b2 indicam uma eficácia de 90
por cento. Já esta semana, coube à biotecno-
lógica norte-americana Moderna revelar que
Rapidez O RNA
pode ser facilmente
replicado em
laboratório e, por
isso, há muito
genético seja traduzido em proteínas, é ne-
cessário, em primeiro lugar, a ação, ainda no
núcleo, de uma grande molécula chamada
ácido ribonucleico (RNA), que sintetiza RNA
mensageiro ou mRNA – que fará, então, essa
a vacina que também está a desenvolver tem que estas vacinas tradução, já fora do núcleo, no citoplasma
uma capacidade de proteção estimada em eram apontadas da célula. “No fundo, é um intermediário
como possíveis
94,5 por cento. entre o nosso genoma e o objetivo final que
soluções em caso
Embora estas conclusões ainda não tenham é a síntese e formação das proteínas”, afirma
de pandemia
sido publicadas em nenhuma revista cientí- Ana Coroadinha, investigadora do Instituto de
fica, a confirmarem-se, não são apenas uma Biologia Experimental e Tecnológica (IBET).
boa notícia para o combate à Covid-19, mas
também para toda a investigação relacionada ATAQUE AO CORONAVÍRUS
com o RNA. As vacinas tradicionais contêm uma versão
A vacina da BioNTech e da Pfizer, assim atenuada do vírus, ou seja, o agente pato-
como a da Moderna, baseia-se na técnica de génico já não é capaz de causar doença, mas

94,5%
imunização mais inovadora, que recorre ao ainda consegue provocar uma reação imu-
RNA mensageiro (mRNA). Se ambas forem nológica – é o caso das vacinas do sarampo,
aprovadas, serão as primeiras vacinas de tuberculose ou papeira.
mRNA da História. Outra técnica comum é a injeção de com-
O processo através do qual as células ponentes do vírus, como na gripe ou na
humanas produzem proteínas tem estado, poliomielite, em que apenas são inoculadas
mais do que nunca, sob a luz dos holofotes. proteínas da superfície do vírus, suficientes
O protagonista de tal mecanismo é o mRNA, para gerar a criação de defesas no organismo.
Será a eficácia da
ou RNA mensageiro, um autêntico tradutor vacina à base de
Há exemplos destas metodologias de inves-
de informação genética em proteína. mRNA produzida tigação entre as mais de 200 vacinas contra
Como explica João Tavanez, investigador pela biotecnológica o SARS-CoV-2 em estudo.
do Instituto de Higiene e Medicina Tropical Moderna, de acordo Porém, é a possibilidade de serem aprova-
da Universidade Nova de Lisboa, apesar de o com os resultados das as primeiras vacinas à base de mRNA que
nosso material genético consistir em molé- preliminares dos está a causar sensação. Estas vacinas induzem
culas de ADN agrupadas em cromossomas, ensaios clínicos. Na o sistema imunitário a fabricar defesas, sem
“os verdadeiros elementos funcionais das semana passada, a ser necessário inocular o vírus, ainda que
nossas células são as proteínas”. Desta for- BioNTech também enfraquecido, nem as suas proteínas. Neste
ma, e porque o ADN não pode abandonar anunciou uma eficácia caso, será o próprio organismo a produzir
o núcleo das células, para que este material de 90 por cento proteínas específicas do vírus, que desen-

34 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


Uma forma inovadora de despertar a imunidade
O objetivo das vacinas à base de mRNA é ensinar as células
a produzirem as proteínas necessárias para desencadear a criação
de anticorpos contra a doença

COMO FUNCIONA UMA VACINA As vacinas à base de ADN


DE ÁCIDO RIBONUCLEICO e de RNA implicam
(RNA, NA SIGLA INGLESA) a replicação de matéria
genética do vírus, mas não
do genoma completo

1
O mRNA é criado
laboratorialmente,
a partir do ADN
do vírus...
2 7
SARS-CoV-2 ... e transporta a codificação Os LINFÓCITOS T
de antigénios (proteínas) auxiliares usam
do SARS-CoV-2... esses fragmentos
para reconhecer
6 o vírus e
desencadeiam
A APC identifica a próxima linha
3 fragmentos de de defesa
... o mRNA é injetado antigénio e ativa
no corpo humano e uma resposta
entra numa célula imunitária
hospedeira ...
cadeiam uma reação imunitária. “É como se
estivéssemos a pôr um software de prote- 4
ção no corpo humano, sem ser necessário ... dentro dessa
provocar doença”, ilustra o investigador do célula, o mRNA cria
departamento de Química da Universidade antigénios virais
(proteínas)
de Aveiro, Pedro Fontes Oliveira. Tal como se
o mRNA fosse a lista de ingredientes escrita
pelo ADN que, depois, é levada até às células
que os fabricam. Aqui, os ingredientes são Neste caso,
proteínas. a proteína LINFÓCITOS B LINFÓCITOS T
Nas vacinas contra o SARS-CoV-2, a spike do criam destroem
informação inserida laboratorialmente em SARS-CoV-2 anticorpos as células
moléculas de mRNA contém o código para que impedem infetadas
ensinar o organismo a produzir uma das 5 o vírus de
infetar as
proteínas do vírus, a proteína spike, que com- O antigénio células
põe os espigões que servem de chave para o sai da célula
coronavírus entrar nas células do corpo hu- hospedeira e é
mano. Individualmente, a proteína spike não detetado por
é prejudicial ao organismo, mas, devido à sua uma célula
NÚCLEO apresentadora
especificidade, é suficiente para ser detetada DA CÉLULA de antigénio
como intrusa. (APC)
Quando a vacina é administrada, o mRNA
precisa de estar envolvido numa cápsula lipí-
dica para conseguir entrar nas células. Depois
de entrar, essa membrana degrada-se e as
“fábricas de proteínas”, os ribossomas, leem o CÉLULA HOSPEDEIRA
(habitualmente no
que está escrito no mRNA e começam a pro- trato respiratório)
duzir a proteína spike. Quando ela é detetada
pelo organismo, são gerados anticorpos, que
alertam o sistema imunitário para eliminar a
ameaça. “Os anticorpos guardam na memória
a informação de que, quando aquelas proteí-
nas spike forem detetadas, isoladamente ou
agregadas a outras células, são para comba-
ter”, explica Pedro Fontes Oliveira. FONTE AFP, Nature, Pfizer INFOGRAFIA MT/VISÃO

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 35


Terapias avançadas
promissoras
A medicina de precisão que corta, cola,
edita e reprograma proteínas e genes
é um novo mundo de possibilidades

CRISPR/CAS9 num determinado


Esta ferramenta cancro, os cientistas
de edição genética desenvolvem um
valeu a Emmanuelle mRNA que a codifique.
Charpentier e a Uma vez nas células,
Jennifer Doudna irá produzir a proteína
o prémio Nobel da oncogénica em maior
Química, em 2020. quantidade, com o
O CRISPR permite intuito de estimular
aceder ao ADN de uma maior resposta
uma planta, de um do sistema imunitário.
animal ou até mesmo
de um ser humano a VACINAS CONTRA O
fim de remover ou de CANCRO
substituir uma porção As vacinas contra
do código genético. o cancro baseadas
em mRNA são vistas
RNA DE pelos especialistas
INTERFERÊNCIA como um exemplo de
Este mecanismo medicina de precisão
permite alterar personalizada.
a atividade do Analisando-se o
RNA mensageiro, historial genético de
silenciando-a, ou uma família, onde se
seja, pequenos RNA verifique determinado
de interferência irão cancro, será
bloquear o processo possível identificar
de tradução de RNA os neoantigénios
em proteína. Este específicos que
sistema é essencial normalmente o tumor
não só quando o produz, a fim de se
mRNA de uma desenhar vacinas Precisão “Revolucionárias.” A presidente do Institu-
célula está a traduzir personalizadas. As terapias baseadas to de Medicina Molecular (iMM), da Univer-
proteínas maléficas em vários tipos sidade de Lisboa, Carmo Fonseca, não poupa
para o organismo CÉLULAS CAR-T de RNA permitem nas palavras no momento de classificar as po-
como também São recolhidos estimular ou tencialidades das terapias baseadas em RNA.
para perceber, por os linfócitos T silenciar a produção “Estou convencida de que estamos a entrar
exclusão de partes, (glóbulos brancos) de proteínas numa nova era”, afirma a também presidente
a própria utilidade de de um doente com específicas, cujo da RNA Society, a sociedade científica inter-
determinados genes. cancro, que são excesso ou défice nacional que junta especialistas nesta área.
modificados através é o causador É a primeira vez que um cientista português
IMUNOTERAPIA EM da introdução de um da doença
CANCRO recetor quimérico
está à frente da organização. “Estão a chegar
Este processo é de antigénio (CAR, agora as primeiras terapias de RNA, mas vão
semelhante a uma na sigla inglesa). Ao chegar muitas mais”, acredita.
vacina de mRNA serem reintroduzidas A equipa coordenada pela investigadora
mas, em vez de no organismo do está focada nas doenças cardíacas que podem
estimular o sistema doente, estas células provocar morte súbita, habitualmente cau-
imunitário para identificam as sada por uma alteração genética que, agora,
prevenir a doença, células tumorais e o RNA poderá vir a corrigir. “Quase todas as
estimula-o para desencadeiam uma doenças genéticas derivam de informação
tratá-la. Identificando reação imunitária original danificada que passa do ADN para o
a proteína oncogénica que ataca as células RNA, mas agora é possível corrigir esses erros
mais relevante malignas e as destrói. ao nível do RNA, sem ser necessário alterar

36 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


a linha germinal do indivíduo”, ou seja, sem
alterar de forma permanente o ADN. Desta
forma, as modificações ficam circunscritas à
pessoa que recebeu o tratamento e não serão
herdadas pelos seus descendentes.

PRÓS E CONTRAS
A rapidez com que as vacinas de mRNA
podem ser desenvolvidas, uma vez que não
são utilizados organismos vivos nem são ne-
cessárias culturas de células geneticamente
modificadas, é uma das suas principais van-

O jackpot bolsista de uma cura


tagens. O RNA pode ser facilmente replicado
em laboratório e, por isso, há muito que estas
vacinas eram apontadas como possíveis so-
luções perante uma pandemia. A presidente
da RNA Society sublinha, ainda, “que, se Os resultados animadores das vacinas da BioNTech/Pfizer e da Moderna
houver uma mutação do vírus, será muito fizeram disparar os ganhos dos laboratórios e das farmacêuticas.
fácil adaptar a vacina” e voltar a garantir uma Até os setores mais fustigados pela pandemia reanimaram
imunização eficaz. Além disso, “o sistema
imunitário responde de forma mais forte
quando é injetado RNA do que quando são Desde o início da de que se está mais da Alemanha. Já
administradas proteínas do vírus”, compara pandemia da Covid-19 perto de uma solução a capitalização da
Carmo Fonseca, o que pode resultar numa que há analistas a para resgatar a Moderna sextuplicou
maior eficácia. defender que, mais economia. Nos EUA, no mesmo período – a
Uma pergunta ainda sem resposta é qual do que decisões as bolsas bateram empresa valorizou
será a duração da imunidade garantida pela de bancos centrais máximos históricos. mais de 30 mil
vacina. “Ainda não passou tempo suficiente ou de programas A dose de otimismo milhões de dólares.
para sabermos”, admite Maria João Amorim, de relançamento aumentou quando a A Pfizer entrou mais
virologista e investigadora do Instituto Gul- económico, a Moderna garantiu, tarde na corrida
descoberta de esta segunda-feira, pela vacina. Após
benkian de Ciência. Os estudos científicos
uma vacina eficaz 16, uma eficácia de quedas significativas
mais recentes indicam que os anticorpos
seria a chave para quase 95% da sua nas suas ações no
produzidos após a infeção permanecem no terminar com a vacina, que deverá início deste ano,
organismo entre seis a sete meses, mas não crise económica exigir uma logística a farmacêutica
se sabe quanto tempo perdura a imunidade que abala o mundo. menos dispendiosa anunciou, em
celular. As vacinas da Pfizer e da Moderna im- A possibilidade de e pesada do que a da meados de março,
plicam ambas a administração de duas doses, se estar mais perto Pfizer. “As últimas que iria unir esforços
separadas por cerca de quatro semanas, para de alcançar uma notícias foram um com a BioNTech.
reforçar a resposta imunitária. Quando será arma eficaz para bem-vindo impulso E, desde então,
necessário repetir a inoculação permanece extinguir a pandemia para a esperança de ganhou imunidade
uma incógnita. “Vamos ter de esperar para injetou otimismo nos que 2021 possa ser às descidas,
ver, mas estou convicta de que nos vamos mercados financeiros um ano muito melhor acumulando ganhos
adaptar. A vacina da gripe também tem de e reforçou o valor do que 2020 para a superiores a 30 mil
ser administrada todos os anos”, nota Car- das empresas que economia”, referiram milhões de dólares
mo Fonseca. mostraram ensaios os economistas do em bolsa e superando
O transporte das vacinas é outro dos de- clínicos promissores. banco ING, num a fasquia de 200 mil
safios. A instabilidade do RNA obriga à sua Na Europa, as bolsas relatório. milhões de dólares
conservação a temperaturas muito baixas. A subiram 5% na Com o fim da de valor de mercado.
vacina da Pfizer, por exemplo, exige uns gé- semana que se seguiu pandemia em jogo, A subida das ações
lidos -70 ºC, enquanto à da Moderna bastam ao anúncio da Pfizer não é de estranhar permitiu ao CEO
e da BioNTech, feito que as pioneiras da empresa, Albert
-20 ºC, mas temperaturas tão frias podem
a 9 de novembro, de da vacina ganhem Bourla, encaixar 5,6
complicar a sua distribuição, sobretudo nos
que os resultados fortunas em bolsa. milhões de dólares
países em desenvolvimento. No entanto, am- O valor de mercado com um plano de
preliminares da sua
bas as farmacêuticas estão a avaliar se será vacina mostravam da BioNTech quase venda de ações
possível garantir a eficácia das vacinas, du- uma eficácia acima triplicou, para cerca definido em agosto,
rante duas semanas ou até um mês, se forem de 90 por cento. As de 22 mil milhões mas executado
conservadas entre 2 ºC e 8 ºC. ações das empresas de dólares (18,5 mil após os fortes
A Moderna conta produzir 20 milhões mais fustigadas pela milhões de euros) ganhos das ações,
de doses até ao final do ano e a Pfizer, 50 crise, como a aviação, desde o início do no dia em que os
milhões. Se os processos de aprovação em turismo, petrolíferas ano, catapultando mercados financeiros
curso decorrerem sem sobressaltos – uma e banca, tiveram os seus fundadores começaram a
dezena de vacinas está na última fase dos en- ganhos significativos para a lista dos vislumbrar uma luz
saios clínicos –, é expectável que a vacinação com a esperança maiores milionários ao fundo do túnel.

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 37


O casal por detrás da vacina
Aquela que poderá vir a ser a primeira vacina do mundo contra
o SARS-CoV-2 foi desenvolvida por um casal de cientistas alemães
de origem turca. Milionários discretos, que nem automóvel têm

“Pode ser o início do O CEO da Pfizer é trabalhadores, de mais


fim da era Covid-19”, de origem grega. Já de 60 países (cerca de
afirmou, esperançoso, Ugur Sahin nasceu na metade são mulheres),
o médico especialista cidade de Iskenderun, e tem escritórios em
em Imunoterapia na Turquia, há 55 anos. várias cidades alemãs,
Ugur Sahin. O otimis- Aos 4, mudou-se com incluindo Berlim, e
mo surgiu depois de a mãe para Colónia, também em Cambrid-
anunciados os resul- na Alemanha, onde ge, nos EUA. Depois de
tados preliminares o pai trabalhava na as ações dispararem
da vacina que está a fabricante de auto- 23,4% na semana
ser desenvolvida pela móveis Ford. Desde passada, está avaliada
BioNTech, a empresa criança que sonhava em 21,9 mil milhões
biotecnológica que ser médico, tal como de dólares (18,5 mil
cofundou juntamente a sua mulher, Özlem milhões de euros),
com a mulher, Özlem Türeci, 53 anos, filha tornando o casal num
Türeci. Apesar de a úl- de um cirurgião turco, dos 100 mais ricos da
tima fase dos ensaios imigrante de Istam- Alemanha, mesmo
clínicos continuar a bul. Nascida na Baixa sem nunca terem lan-
decorrer, revelaram na Saxónia, a responsável çado nenhum medica-
semana passada que pelo departamento mento no mercado. comece no primeiro trimestre de 2021. Será
a vacina poderá ter médico da BioNTech A família vive num dada prioridade aos grupos de risco.
uma eficácia de 90% conheceu o marido, e apartamento próximo
na imunização contra atual CEO da empresa, da sede da empresa, ARMA CONTRA VÁRIAS DOENÇAS
o SARS-CoV-2. na Universidade do na cidade de Mainz, Conhecer a principal molécula responsável
Quando leu um artigo Sarre, em Homburg. situada numa rua pela tradução de genoma em proteína tem
sobre um misterioso Fundaram a BioNTe- com um nome assaz representado também, para investigadores de
vírus que se dissemi- ch em 2008, tendo premonitório: An der todo o mundo, a oportunidade de desenvolver
nava na China, Ugur como prioridade o Goldgrube, qualquer estudos que procuram terapias, ou mesmo
Sahin não teve dúvidas desenvolvimento coisa como “mina vacinas, para cancros, doenças infecciosas,
de que se avizinha- de tratamentos de de ouro”. Vão para o cardiovasculares, hereditárias e genéticas, nas
va uma pandemia. imunoterapia contra trabalho de bicicleta e quais existe um défice ou excesso de produ-
Estávamos em janeiro o cancro, incluindo nem sequer têm auto- ção de determinadas proteínas.
deste ano. Mobilizou através da utilização móvel. Ugur Sahin não Apesar de estarem ainda limitadas ao es-
imediatamente 500 do mRNA. Hoje, a deixou de dar aulas tudo em laboratório e em animais, as vacinas
cientistas da BioNTech empresa soma 1 800 sobre Oncologia Ex-
e imunoterapias para o cancro, baseadas em
com o objetivo de de- perimental na Univer-
mRNA, afiguram-se promissoras. “A ideia
senvolver uma vacina sidade de Mainz, onde
em tempo recorde. A Integração Özlem Türeci também
é, após identificar um determinado cancro,
fabricante de medica- A comunidade ensina. Quando sou- conseguir perceber qual é a proteína oncogé-
mentos chinesa Fosun turca da Alemanha beram os resultados nica [maligna] mais relevante para esse tipo
e a farmacêutica celebrou o facto de promissores da vacina de cancro em concreto e usar essa informa-
norte-americana Pfi- a vacina ter sido que desenvolveram, ção sob a forma de mRNA, a fim de pôr as
zer tornaram-se suas criada por um casal celebraram bebendo células a produzir essa mesma proteína em
parceiras em março. filho de imigrantes chá turco em casa. maior quantidade, estimulando o sistema
Desde 2018 que a imunitário”, explica Arsénio Fialho, professor
BioNTech e a Pfizer de Bioquímica e Biologia Molecular no Ins-
tentam criar uma tituto Superior Técnico. O especialista refere
vacina da gripe à base que, nesta terapia, os anticorpos produzidos
de mRNA, a mesma não seriam preventivos – atuariam, sim, na
técnica agora usada doença já existente.
contra o coronavírus, João Tavanez sublinha que “este tipo de
mas a aproximação medicina de precisão permitirá desenhar
entre as duas empre- terapias específicas para cada pessoa, um
sas também se deveu tratamento adequado a cada tumor”.
ao facto de ambos os Em fase de ensaios clínicos estão também
seus líderes serem
terapias que fazem exatamente o oposto, ou
filhos de imigrantes.
seja, através da utilização de oligonucleotídeos
UMA PERGUNTA
AINDA SEM
RESPOSTA É QUAL
SERÁ A DURAÇÃO
DA IMUNIDADE
GARANTIDA PELA
VACINA
mRNA que codifica para a ataxina-3 mutada.
Também em Portugal, os investigadores
Pedro Fontes Oliveira, da Universidade de
Aveiro, e Marco Alves, do Instituto de Ciên-
cias Biomédicas Abel Salazar, da Universida-
de do Porto, estão a estudar a aplicabilidade
do mRNA em tratamentos de reprodução
medicamente assistida. De acordo com uma
investigação que realizaram, a presença de
mRNA nos espermatozoides, com a codifi-
cação para a produção da proteína GPR30,
estará associada a uma maior taxa de su-
de RNA antisense ou de pequenos RNA de in- Cura Existem várias cesso nos tratamentos de fertilidade. Esta
terferência (siRNA), tentam interferir na ativi- vacinas contra descoberta poderá levar a que passem a ser
dade do mRNA das células e inibir a expressão o cancro, baseadas selecionados os espermatozoides com maior
de certas proteínas no nosso organismo, que em mRNA, em fase conteúdo nesse mRNA e, no futuro, poderá
não funcionam corretamente. Como explica experimental. ser possível adicioná-lo no laboratório.
João Tavanez, num cancro, “temos uma célu- Os resultados Luís Pereira de Almeida refere ainda “avan-
la que está a crescer de forma desmesurada, em doentes com ços espantosos” no tratamento da atrofia
expressando proteínas novas e encontrando melanoma são muito muscular espinhal, uma doença genética
formas para que o sistema imunitário não promissores que causa fraqueza e atrofia dos músculos,
as reconheça nem defenda o organismo”. O devido a uma mutação no gene responsável
investigador afirma que, introduzindo nas pela produção da proteína de sobrevivência
células cancerígenas oligonucleotídeos de RNA do neurónio motor (SMN1) e para a qual exis-
antisense ou siRNA, especificamente desenha- tem dois medicamentos baseados em mRNA

200 000
dos para se ligarem ao mRNA da célula can- aprovados. “São vários os bebés portugueses
cerígena, é possível levar à degradação desse que já receberam esta terapia e que, graças a
mRNA e impedir que este passe a proteína. “Se ela, continuam vivos”, sublinha Carmo Fon-
a célula estava doente porque produzia dema- seca. A investigadora destaca, igualmente,
siada proteína, então pode deixar de estar, se o sucesso do tratamento da paramiloidose,

MILHÕES
conseguirmos reduzir os níveis de expressão vulgarmente conhecida como doença dos
da mesma”, conclui. pezinhos, através de uma técnica que per-
Tanto os oligonucleotídeos de RNA anti- mite destruir o RNA da proteína que causa
sense como os siRNA têm sido também muito esta patologia.
utilizados “nas doenças em que mutações nos Mas se as terapias aprovadas demonstra-
genes levam a que as proteínas não só não ram um enorme sucesso em algumas doenças,
sejam funcionais como comecem a agregar É o valor de mercado, noutras, nem tanto. É o caso da hipercoles-
dentro das células, provocando lesões nas em dólares, da Pfizer. terolemia familiar, uma doença rara na qual
pessoas”, explica Ana Coroadinha. É o caso Desde que anunciou as pessoas têm elevados níveis de colesterol.
das doenças de Huntington e de Machado- a parceria com a O Mipomersen, um oligonucleotídeo de RNA
-Joseph. “Os tratamentos para estas doenças biotecnológica alemã antisense utilizado para o seu tratamento,
têm vindo a ser experimentados essencial- BioNTech para a foi retirado do mercado porque conduzia
mente em animais, mas já há ensaios clínicos produção de uma vacina a grandes danos hepáticos. “Estas terapias
promissores”, revela Luís Pereira de Almeida, contra a Covid-19, a são tão recentes que não sabemos bem que
presidente do Centro de Neurociência e Bio- farmacêutica norte- tipo de efeitos secundários vamos ter a longo
logia Celular da Universidade de Coimbra, americana acumulou prazo”, justifica João Tavanez. Apesar disso,
onde, entre outros, investiga um tratamento ganhos superiores a 30 o especialista assegura: “A questão não é se
para a doença de Machado-Joseph, que tem mil milhões de dólares as terapias de RNA vão ser o futuro, mas sim
como objetivo promover a degradação do em bolsa quando é que serão.” visao@visao.pt

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 39


Temos
razões
para estar
otimistas:
a Ciência
vai trazer
as soluções.
O problema
colocar-se-á
ao nível político
O pessimismo só acentua o declínio, alerta o
neurocientista. É por isso que, perante os atuais desafios
da Humanidade, devemos acreditar que os factos, a razão
e o bem comum vão prevalecer. No momento em que
se prepara para lançar um novo livro, Sentir & Saber,
António Damásio fala à VISÃO sobre a pandemia,
a emergência climática, as lideranças políticas,
o triunfo tecnológico e os movimentos negacionistas
40 SVAI SRÃAO B
1 9E N
L OOV ELMUBÍ RSO 2 0 2 0L U Í S BARRA
E
Eram seis da tarde em Lisboa, dez da
manhã em Los Angeles quando iniciámos
esta entrevista via FaceTime. António
Damásio queixava-se de, a essa hora, já
ter tido uma reunião por Zoom. São dias
de trabalho remoto, de relações mais
distanciadas, tempos de angústia, alerta
o neurocientista português. E a natureza
humana, acrescenta o também fundador
do Instituto do Cérebro e da Criatividade,
na Universidade da Califórnia do Sul, não
tem parado de nos espantar. Aos 76 anos,
lança Sentir & Saber – A Caminho da
Consciência (Temas e Debates, 296 págs.,
€21,90), que amanhã estará disponível
nas livrarias portuguesas. Um livro
escrito, em grande parte, sob o signo da
pandemia – e que nos pode iluminar
num futuro pós-Covid-19.

Logo nas primeiras páginas de


Sentir & Saber, escreve que os vírus
“continuam a ser uma das principais
fontes de humilhação na medicina
e na ciência”. Isto diz mais sobre
os vírus ou sobre nós?
Claro que a ideia da humilhação é
uma ideia humana. Estou a referir-
me a um sentimento que só criaturas
extremamente complicadas como nós,
com uma vida social e psicológica muito
complexa, têm. Portanto, estou a projetar
sobre os vírus a nossa personalidade.
Está a emprestar-lhes aspetos da
nossa personalidade, tal como nós lhes
emprestamos a vida?
Sim, somos nós que emprestamos a
vida aos vírus, emprestamos-lhes a
nossa vida. E, geralmente, fazemo-lo
de forma destruidora – daí a minha
ideia de humilhação. Os vírus estão,
evidentemente, muito longe do que nós
somos, naquela fronteira entre o vivo e
o não vivo, e isso é que é complicado:
os vírus não estão vivos, mas nós
temos de os tratar como criaturas
vivas porque, quando estão dentro de
nós, quando penetram na célula, eles
têm a possibilidade de destruir e de se
multiplicar.
A linguagem bélica tem sido usada:
tal como numa guerra, temos de nos
defender do inimigo?
Quando os vírus são relativamente
benignos, quando não matam nem
destroem, é possível defendermo-
nos. Mas, infelizmente, não é isso que
acontece no caso do novo coronavírus
e da Covid-19. A não ser, claro, com a
existência de uma vacina, coisa que não
só é extremamente complicada como
demora tempo. A boa notícia que tivemos

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 41


nos últimos dias é a confirmação
de que podem vir a existir várias
Começou por ser um livro de vacinas com bastante eficácia.
reflexão sobre trabalhos que Podemos estar certos de que,
mais do que um medicamento,
já tinha feito e acabou por ser vamos ter uma vacina eficaz
um livro de descoberta. Como contra a Covid-19?
A resposta é extremamente simples:
é que qualquer coisa de físico vamos ter vacina. E não vamos
como o nosso cérebro consegue ter apenas uma vacina, vamos ter
várias vacinas. E isso são ótimas
produzir uma coisa que é notícias. Os únicos problemas que
mental, que é espírito, podemos vir a ter, relacionados com
as vacinas, dizem respeito a dois
no sentido clássico do termo? aspetos. Por um lado, a sua eficácia.
E, neste momento, esta parece ser
extraordinariamente alta, mais alta
até do que se esperava. Por outro
lado, temos também a questão de
saber se será possível distribuir
vacinas com a rapidez suficiente,
de maneira que todo o mundo
seja vacinado. Se não houver uma
proporção extraordinariamente alta
de pessoas vacinadas, não vamos
conseguir bloquear os contágios.
Receia que haja problemas
de produção e de distribuição?
Sim, estamos a falar de produzir
e de distribuir, não milhões, mas
milhares de milhões de vacinas. E
também vão existir os problemas de
decisão: quem é que vai ter a vacina?
Tratar-se-á de uma vacina apenas
para os ricos? Claro que não... Quem
paga? Quem recebe? E, dentro
daqueles que vão ser vacinados,
quais serão os prioritários? As
pessoas de maior risco – os idosos,
os que têm outras doenças, doenças
pulmonares, doenças de coração,
imunodeficiências várias… – devem
ser as primeiras a ser vacinadas.
Mas, depois, quase ao mesmo
tempo e muito rapidamente, vai
ser necessário vacinar o resto da
população, começando de cima
para baixo, consoante a idade e a
gravidade de doenças associadas.
Não tenho quaisquer dúvidas –
temos muitas razões para estar
otimistas: a Ciência vai trazer as
soluções. O problema colocar-se-á
ao nível político.
Se os líderes políticos tomam
decisões em nome do bem
comum?
Sim, mas também aí não tenho
grandes dúvidas de que as coisas
vão correr bem. Olho para a
União Europeia e verifico que há
belíssimas pessoas, pessoas bem-
intencionadas. Vai correr bem.

42 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


Acaba o seu novo livro com duas As razões da minha preocupação Mas também me parece evidente
palavras que são fundamentais prendem-se, antes, com aquilo que, numa situação como a de
nos tempos que correm: que temos de fazer do ponto de uma pandemia, as pessoas têm de
esperança e otimismo. No futuro, vista da organização social, que ser suficientemente inteligentes e
teremos ainda mais confiança na evidentemente está ligada a regimes informadas para tomarem decisões
Ciência? políticos e a soluções económicas. justas e sensatas. Grande parte do
Esse final do livro tem uma história Estamos perante um enorme que está a acontecer tem que ver
engraçada [risos]. problema sociopolítico. E, agora, com o facto de alguns não seguirem
Alterou-o? enfrentamos essa situação não só os melhores caminhos para travar o
Alterei-o, de facto. A primeira em países onde há tradicionalmente contágio.
versão tinha um remate muito grandes problemas como também Nessa perspetiva, o que pode
menos otimista. Quando a dei a em zonas do mundo onde, por significar a derrota de Trump e
ler a alguns amigos e colegas, eles norma, tem imperado a razão, a a eleição um novo Presidente,
acharam-na demasiado pessimista. inteligência e a boa vontade na com uma forma mais racional de
Esse pessimismo pode ser resolução dos problemas. Neste encarar a pandemia, tendo em
justificado pelo momento momento, temos a sensação de que vista o bem comum?
em que escreveu uma boa parte estamos como que paralisados ou É isso que se espera. Neste
do livro, durante o confinamento – pior ainda – de que caminhamos momento, estamos num impasse,
da primeira vaga? para uma perda. Ao mesmo tempo num momento de pausa infeliz, mas
Pode, sim, é verdade. Costumo ser que digo isto, também digo: é óbvio que é isso que se espera: que
mais otimista, mas estávamos no aqui, uma vez mais, é preciso prevaleçam a sensatez e um olhar
pico da Covid-19 (agora estamos ter otimismo. Se aceitamos que racional num problema que exige
noutro pico, enfim…) e, do ponto as coisas vão correr mal, se não disciplina e inteligência para ser
de vista social e político, tudo contrariamos essa tendência, resolvido.
parecia desestruturado em todo estamos perdidos. A vitória de Joe Biden também
o lado. Então, ouvi as opiniões Muitos têm observado que, pode ter impacto no modo como
desses amigos e colegas, conversei nos países ditatoriais ou nas os países ocidentais estão a
com eles e, depois, refletindo um democracias iliberais, tem sido enfrentar a pandemia?
pouco mais, acabei por concordar. mais fácil conter a progressão O que é preciso é que prevaleçam
O que concluo desse processo é do vírus. os factos, é preciso não inventar
que devemos resistir aos momentos Claro que é mais fácil. Pela factos, é essencial não ignorar os
negativos. E uma das razões pelas simples razão de que, em regimes factos. Por exemplo, grande parte
quais devemos resistir a esses ditatoriais, é possível dizer a todas dos indivíduos que ignoram os
momentos tem que ver com o facto as pessoas que tenham determinado problemas relacionados com o
de que, ao sermos pessimistas, comportamento. Nas democracias clima e as suas consequências para
estamos a contribuir para o fim ocidentais, damos aos cidadãos os seres vivos e para a Natureza
das coisas. Ao sermos pessimistas, uma enorme latitude de resposta. são indivíduos que estão a ignorar
estamos a ajudar à perda. No meu
entender, o otimismo é mesmo uma
forma de contrariar aquilo que está
em declínio. Temos de nos manter
otimistas, temos de nos manter
esperançosos, porque esse otimismo
e essa esperança podem, eles
mesmos, gerar condições para haver
uma melhoria significativa.
Na sua opinião, a própria Ciência
precisa desse otimismo e dessa
esperança para evoluir?
Absolutamente. Claro que, em
relação à Ciência, nunca deixei Precisamos de saber se vai ser
de ter esse otimismo. No que
diz respeito à Ciência, não tenho
possível distribuir vacinas
qualquer descrença. Sempre com a rapidez suficiente,
acreditei na Ciência. A verdade é
que, nos últimos anos, houve uma
de maneira que todo o
enorme aceleração dos métodos mundo seja vacinado. Se
científicos, das possibilidades de
encontrar aquilo que é o universo
não houver uma proporção
à nossa volta, de o descrever e de o extraordinariamente alta de
manipular.
Qual é, então, o motivo da sua
pessoas vacinadas, não vamos
preocupação? conseguir travar os contágios
19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 43
Estamos perante um claramente do que o habitual, é o
facto de tudo isto ter que ver com a
problema sociopolítico regulação da vida. Se me perguntar:
extraordinário. E, agora, o que é o mais importante? O mais
importante é a vida. Temos um ponto
enfrentamos essa situação de nascimento, um percurso durante
não só em países onde há um determinado período de tempo
e, no fim, um declínio, a morte.
tradicionalmente enormes Aquilo que tanto o sentimento
problemas como também como a consciência fazem é ajudar
em zonas do mundo onde, o processo de homeostasia ou,
utilizando palavras mais simples,
por norma, tem imperado o processo de regulação da vida.
a razão, a inteligência É por isso que existe consciência:
temos consciência, não para saber o
e a boa vontade que se passa lá fora, mas para saber
o que se passa cá dentro. Temos
de saber o que se passa dentro do
nosso corpo para, depois, podermos
tomar as decisões corretas para nos
mantermos vivos. O sentimento
factos. Pode dizer-se que se trata É o chamado hard problem of é o primeiro informador: diz-nos
de uma atitude política, mas do consciousness [traduzindo à letra, quando temos bem-estar ou, pelo
que verdadeiramente se trata é de o problema difícil da consciência]. contrário, quando as coisas não estão
pessoas que têm os factos e que, Como é que qualquer coisa de a correr bem, quando temos doença.
em vez de acreditarem na Ciência físico como o nosso cérebro Não sendo os sentimentos
produzida por esses factos e nos consegue produzir uma coisa que puramente mentais, que impacto
argumentos que aí se desenvolvem, é mental, que é espírito, no sentido pode ter o distanciamento que
ignoram e põem de parte, pura e clássico do termo? Tanto ao nível esta pandemia nos exige? Isto é,
simplesmente. Podem fazê-lo em filosófico como ao nível científico, precisamos da proximidade física
relação à emergência climática e isto tem sido o maior bloqueio na para expressar os sentimentos?
também podem fazê-lo em relação investigação. A grande solução, Tem um impacto extremamente
ao vírus, dizendo, por exemplo, que a meu ver, passará pelo facto de negativo, embora nem tudo seja
se trata apenas de uma gripe. não ser o cérebro sozinho a fazer negativo… O que é mais negativo
Já disse que terminou de escrever a consciência e o sentimento, mas é o facto de nós, como seres
o livro durante o confinamento uma parceria entre o cérebro e o vivos complexos e seres sociais,
da primavera. Como correu corpo. precisarmos de sociabilidade. Claro
essa experiência? Ajudou-o a Chama-lhe um híbrido. que, mesmo no confinamento,
concentrar-se? É um híbrido e é uma interação. podemos manter a sociabilidade
Em grande parte, este livro foi Há muito tempo que tenho vindo dentro da família. A nossa
escrito sob o signo da pandemia, a insistir: aquilo que existe é não sociabilidade, porém, tem que ver
o que, ao mesmo tempo, é bom e só um cérebro mas também um com muitas outras pessoas, com
mau. corpo dentro desse cérebro. Aquilo os nossos amigos, com os nossos
Comecemos pelo lado mau. que hoje verifico é que a mente, colegas ou até com indivíduos
É um livro angustiado? a consciência e o sentimento não que nem sequer conhecemos
Era impossível, de facto, não ter estão a vir, digamos, de forma pessoalmente e que nos chegam
a angústia como pano de fundo. separada do cérebro, mas dessa através dos média. É evidente que
Ao mesmo tempo, porém, aquilo colisão e dessa confluência entre as máscaras são absolutamente
que começou por ser um livro de cérebro e corpo. E não é apenas essenciais para nos protegerem,
reflexão sobre trabalhos que eu cérebro, é também sistema nervoso: a nós e aos outros, mas até as
já tinha feito acabou por ser um há ligações através de neurónios máscaras eliminam muitos aspetos
livro de descoberta de aspetos e de nervos periféricos que vão a da nossa comunicação, do jogo
que já tinha encontrado, apesar todas as partes do corpo. E, depois, fisionómico da boca, por exemplo.
de não ter deles uma noção muito esses mesmos nervos, e outros Agora, estamos a viver num
perfeita. Nada disso está muito nervos também, fazem o caminho território mais estreito do que o da
vincado no livro; deixo apenas de retorno do corpo para o sistema nossa vida diária. E isso constitui
para as pessoas descobrirem, mas nervoso. uma perda grave.
tem que ver com a fisiologia do E o que são, então, E, no seu entender, o que pode
sentimento. Há descobertas de os sentimentos? vir a revelar-se positivo neste
que falo de forma muito discreta, Os sentimentos são, no fundo, o distanciamento físico?
mas que são absolutamente reflexo mental do que se passa no Com um bocadinho de inteligência e
essenciais para compreender o corpo a cada momento. O outro com boa educação, seremos capazes
desenvolvimento da consciência. aspeto que o livro aponta, mais de usar o nosso tempo de forma

44 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


mais proveitosa. Há mais tempo
para ler, não nos esqueçamos dessa
possibilidade extraordinária que é
estar sozinho com a página de um
livro, a pensar. Estes confinamentos
até podem, por isso, trazer-nos algo
de bom, a hipótese de fazermos uma
pausa na vida tão disparatadamente
acelerada que, por vezes, levamos.
Tenho muito gosto em falar com
a VISÃO, porque se trata de uma
revista que as pessoas podem ler
em papel [risos]. É preciso travar as
batalhas para as ganhar. As pessoas
passam demasiado tempo agarradas
a dispositivos, lidam com o mundo
através de meios cada vez mais
rápidos, diretos e energéticos, sem
darem importância à palavra escrita.
Tem esperança de que, desta
experiência, possa surgir uma
espécie de “homem novo”, mais
atento, como escreve no livro, à
“inteligência, fenomenal e ainda
incompreendida, da natureza”?
Não tenho qualquer dúvida. Vejo
uma enorme mudança de atitudes.
No espaço sociopolítico em que
vivemos, existe a noção de que
a Natureza está a ser agredida,
temos plena consciência de que
as alterações climáticas podem vir
a comprometer o nosso futuro.
Claro que há outros lugares onde as
pessoas negam a existência dessas
alterações climáticas, mas, quando
se olha para os grandes números,
para as principais sociedades, não
tenho dúvidas de que a maioria da
população acredita que estamos
perante uma emergência climática.
Quanto mais respeitarmos a vida
noutros seres que não sejam apenas
seres humanos, melhor estaremos
no futuro. Mas, atenção: respeitar Grande parte das pessoas
a Natureza não é respeitar os
passarinhos, os cães e os gatos. De que ignoram os problemas
um modo geral, isso são espécies relacionados com o clima
que as pessoas respeitam porque as
consideram facilmente interligáveis
está a ignorar factos. Pode
com os seres humanos. O que é dizer-se que se trata de uma
preciso é respeitar todas as outras
espécies, até mesmo aquelas que
atitude política, mas do que
não vemos claramente que nos dão verdadeiramente se trata é
vida, como as bactérias.
Negacionistas, terraplanistas,
de pessoas que têm os factos
movimentos antivacinas… Como e que, em vez de acreditarem
é possível, num momento da
História com tamanha evolução
na Ciência produzida por
científica e tecnológica, tudo isto esses factos e nos argumentos
estar a acontecer?
Temos de pensar que a natureza
que aí se desenvolvem, pura e
humana é muito complexa. Mesmo simplesmente, põem de parte
19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 45
quando, na História, existem
períodos com uma clareza sobre
certos factos e uma filosofia
capaz de dar uma boa perspetiva
sobre esses mesmos factos, a
natureza humana é de tal maneira
variada que existe sempre a
possibilidade de aparecerem
pessoas a contrariar esses factos. E
a cometerem ações extremamente
bem-sucedidas, capazes de
atrair o louvor de outros e até
de se tornarem populares. Por
esta razão, é possível que certas
atitudes retrógradas e certos factos
falsos dominem em determinados
momentos da História. Se
pensarmos, por exemplo, no que
aconteceu entre os anos 30 e 40
do século XX, podemos pensar que
tudo é possível. Tudo parece estar
a correr bem e, de repente…
Essas teorias alimentam-se
das profundas desigualdades
sociais e económicas?
Das desigualdades, de muitas
coisas que fazem parte da natureza
humana e também de certos
aspetos que são, eles próprios,
triunfos da nossa tecnologia.
Pensemos, por exemplo, no modo
como distribuímos informação,
em tecnologias como o Facebook,
o Twitter e outras redes sociais.
Trata-se de um desenvolvimento
extraordinário, dão-nos excelentes
capacidades de atuação. Ao mesmo
tempo, porém, contribuem para
que as pessoas vejam os factos de
forma isolada, sem um contexto
profundo. Além disso, como
alertou John Gray, um dos grandes
pensadores do nosso tempo, as
redes sociais fazem com que as
pessoas possam isolar-se, meter-
-se num silo, relacionando-se
apenas com os que são mais
Quanto mais respeitarmos a parecidos consigo. E, aí, ficam
vida noutros seres que não sejam muito confortáveis, sem que
ninguém os contrarie. É isto que
apenas seres humanos, melhor é a vida. E é, justamente, por isto
estaremos no futuro. Mas, que precisamos dos sentimentos:
permitem-nos ter consciência do
atenção: respeitar a Natureza não que são as coisas.
é respeitar os passarinhos, os cães Também temos obrigação
de tentar compreender…
e os gatos. De um modo geral, Claro, temos de tentar
isso são espécies que as pessoas compreender. Temos de ter
a modéstia e a humildade de
respeitam porque as consideram reconhecer que, só porque somos
facilmente interligáveis com os espertos e bem-educados, não
significa que tenhamos sempre
seres humanos razão. sbluis@visao.pt

46 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


PRÉMIO MELHOR PRÉMIO MELHOR
QUEIJO 2019 QUEIJO 2019
CABRA CURA PROLONGADA MISTURA CURA NORMAL
CONCURSO QUEIJOS DE PORTUGAL CONCURSO QUEIJOS DE PORTUGAL
OBAMA
EXCLUSIVO

ABRE
O LIVRO
O lançamento do primeiro
volume das memórias do
antigo Presidente norte-
-americano promete ser
um dos acontecimentos do
ano. Editado em Portugal
pela Objectiva, Uma Terra
Prometida, de que a VISÃO
aqui publica o primeiro
capítulo, começa com o
despertar da consciência
política e estende-se
até à morte de Bin Laden
POR BARACK OBAMA
FOTOGRAFIAS DE PETE SOUZA

48 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


Cúmplices
O Presidente Barack Obama
e o Vice-Presidente Joe Biden
seguem juntos num carro
para1 um
9 N Oevento,
V E M B R O em
2 0 22010
0 VISÃO 49
O
O meu interesse pelos livros explica
provavelmente por que razão não só
sobrevivi à escola secundária como
cheguei ao Occidental College, em 1979,
com um conhecimento esparso, mas
aceitável, de questões políticas e um
conjunto de opiniões meio assimiladas
que eu arremessava em tertúlias tardias
no dormitório.
Retrospetivamente, é embaraçoso
reconhecer o grau em que a minha
curiosidade intelectual nesses primei-
ros dois anos de universidade refletia
os interesses de diversas mulheres que
eu estava interessado em conhecer.
Marx e Marcuse para poder ter algu-
ma coisa a dizer à socialista de longas
pernas que vivia no meu dormitório;
Fanon e Gwendolyn Brooks para a es-
tudante de Sociologia de pele sedosa
que nem olhou uma segunda vez para
mim; Foucault e Woolf para a bissexual
etérea que se vestia quase sempre de
preto. Como estratégia para engatar
raparigas, o meu pseudointelectualis-
mo revelou-se infrutífero: dei comigo
numa sucessão de amizades afetuosas,
mas castas. Ainda assim, estas tentativas
desastradas serviram um propósito:
algo que se parecia com uma mun- cruéis, as banalidades e o venderem-
dividência adquiriu forma na minha -se na televisão ao mesmo tempo que,
mente. Fui ajudado nesse processo por nos bastidores, procuravam cair nas
uns quantos professores que toleraram boas graças das grandes empresas e
os meus hábitos incertos de estudo e as de outros interesses financeiros. Eram
minhas pretensões juvenis. Fui ajudado participantes num jogo viciado e eu
ainda mais por outros estudantes, na decidi que não queria fazer parte disso.
sua maioria mais velhos: miúdos negros O que conquistou a minha atenção
da Baixa da cidade, miúdos brancos foi algo menos convencional e de maior
que se tinham esfolado para chegar à alcance: não as campanhas políticas,
universidade vindos de cidadezinhas, mas os movimentos sociais, em que
latino-americanos de primeira gera- as pessoas comuns se juntavam para
ção, estudantes do Paquistão, da Índia promover a mudança. Tornei-me es-
ou de países de África que vacilavam
à beira do caos. Eles sabiam o que era
tudioso das sufragistas e dos primeiros
organizadores sindicais; de Gandhi, de “Oh, como eu
importante para si e, quando falavam Lech Watesa e do Congresso Nacional era sério nessa
nas aulas, percebia-se que as suas opi-
niões estavam ancoradas em comuni-
Africano. Acima de tudo, sentia-me
inspirado pelos jovens líderes do mo- altura, tão feroz
dades reais e lutas reais: “Vejam o que vimento dos direitos civis – não apenas e desprovido de
significam esses cortes orçamentais no
meu bairro”; “Deixem-me falar-vos da
Martin Luther King mas também John
Lewis e Bob Moses, Fannie Lou Hamer
sentido de humor!
minha escola, antes de se queixarem da e Diane Nash. Nos esforços heroicos Quando revisito as
discriminação positiva”; “A Primeira
Emenda é ótima, mas por que razão
deles – as cruzadas porta a porta para
registar eleitores, a ocupação de lugares
minhas entradas
o governo dos EUA não diz nada a aos balcões para almoçar e as marchas dos diários dessa
respeito dos prisioneiros políticos no
meu país?” Os dois anos que passei no
ao som dos cânticos de liberdade –, vi
a possibilidade de praticar os valores
época, sinto uma
Occidental representaram o início do que a minha mãe me ensinara. Como enorme afeição
meu despertar político. Isso, porém,
não significava que eu acreditasse na
poderia adquirir-se poder sem repri-
mir os outros, mas elevando-os. Esta
pelo jovem que eu
política. Com poucas exceções, tudo era a verdadeira democracia em ação: era, ansioso por
o que eu observava relativamente aos
políticos parecia-me dúbio: os pentea-
democracia não como uma concessão
vinda de cima, ou uma partilha de es-
deixar uma marca
dos modelados a secador, os esgares pólio entre grupos de interesse, mas no mundo”
50 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020
razão. Fosse o que fosse que eu esti-
vesse a incubar nessas horas que passei
sozinho, fosse qual fosse a visão de um
mundo melhor que eu deixasse florir
na estufa da minha mente juvenil, di-
ficilmente conseguiria sequer resistir a
uma simples prova oral. À luz cinzenta
de um inverno em Manhattan e tendo
como fundo o cinismo dominante dos
tempos, as minhas ideias, pronunciadas
em voz alta numa sala de aula ou num
café com os amigos, mostravam-se
fantasistas e rebuscadas. E eu sabia-o.
A hora H Para muitos
Na verdade, essa é uma das coisas que
foi um dos momentos
me poderá ter salvado de me tornar
mais marcantes (para
o bem e para o mal)
um perfeito excêntrico antes de chegar
da sua presidência, aos 22 anos. A um certo nível básico,
o qual ficou registado eu percebia o absurdo da minha visão,
numa imagem histórica: como era amplo o fosso entre as mi-
Obama com a sua nhas ambições exaltadas e qualquer
equipa de segurança coisa que estivesse de facto a fazer na
nacional no situation minha vida. Eu era como um jovem
room da Casa Branca, Walter Mitty, um Dom Quixote sem
a acompanhar em direto Sancho Pança.
o abate de Osama bin Também isto pode ser encontrado
Laden. Hillary Clinton e nas entradas do meu diário dessa épo-
Joe Biden faziam parte ca, uma crónica bastante rigorosa de
dos seus mais próximos todas as minhas insuficiências. A minha
preferência por ficar a contemplar o
democracia adquirida, como obra do tão feroz e desprovido de sentido de umbigo em vez de agir. Uma certa re-
coletivo. O resultado não era apenas humor! Quando revisito as minhas serva, até mesmo timidez, que talvez
uma mudança nas condições materiais entradas dos diários dessa época, sinto decorresse da minha criação havaiana
mas uma consciência de dignidade nas uma enorme afeição pelo jovem que eu e indonésia, mas também resultante
pessoas e nas comunidades, um vínculo era, ansioso por deixar uma marca no de uma profunda consciência de mim
entre aqueles que antes tinham pareci- mundo, querendo fazer parte de algo mesmo. Uma sensibilidade excessiva à
do muito distanciados. grandioso e idealista que, segundo as possibilidade da rejeição ou de parecer
Decidi que isto era um ideal a que evidências, parecia não existir. Afinal, estúpido. Talvez até uma indolência
valia a pena dedicar-me. Tinha so- estava-se na América do princípio fundamental. Propus-me erradicar
mente de concentrar-me. Depois do dos anos 80. Os movimentos sociais essa debilidade com um regime de
meu segundo ano, transferi-me para a da década anterior tinham perdido a autoaperfeiçoamento que nunca aban-
Universidade de Columbia, imaginando vitalidade. Ganhava força um novo con- donei completamente. (Michelle e as
que isso seria um recomeço. Ao longo servadorismo. Ronald Reagan acabara raparigas observam que, ainda hoje,
de três anos em Nova Iorque, metido de ser eleito Presidente, a economia não consigo entrar numa piscina ou
numa sucessão de apartamentos de- estava a deslizar para a recessão e a no oceano sem me sentir de imediato
teriorados, em grande medida des- Guerra Fria seguia em pleno. obrigado a cumprir um mínimo de
provido de velhos amigos e de maus Se eu viajasse no tempo, talvez exor- braçadas. “Porque é que não te limitas a
hábitos, vivi como um monge, a ler, a tasse o jovem que fui a pôr os livros de chapinhar?”, dizem com um riso escar-
escrever, a encher diários, raramente lado por um minuto e a abrir a janela ninho. “É divertido. Olha... é assim.”) Fiz
me preocupando em ir a convívios para deixar entrar algum ar puro (o meu listas. Comecei a exercitar-me, fazendo
académicos ou até em comer refeições hábito de fumar estava nessa altura corridas em torno do reservatório de
quentes. Perdi-me no meu espírito, no ponto culminante). Dir-lhe-ia que Central Park, ou na margem do rio East,
preocupado com interrogações que se descontraísse, que fosse conhecer e a comer atum de conserva e ovos
pareciam acumular-se continuamen- pessoas e desfrutasse dos prazeres que cozidos como carburante. Desfiz-me
te. O que levava alguns movimentos a a vida reserva aos que têm 20 anos. do excesso de pertences – quem é que
terem êxito onde outros fracassavam? Os poucos amigos que tinha em Nova precisa de mais do que cinco camisas?
Seria sinal de sucesso, quando partes Iorque tentaram dar-me conselhos Mas para que grande prova estava
de uma causa eram absorvidas pela parecidos: “Tens de te descontrair, Ba- eu a preparar-me? Fosse ela qual fosse,
política convencional, ou seria sinal de rack”; “Tens de te meter na cama com sabia que não estava pronto. Essa incer-
que a causa fora sequestrada? Quando alguém”; “És tão idealista! Isso é ótimo, teza e essa insegurança impediam-me
seria o compromisso aceitável e quando mas não sei se o que andas a dizer é de me decidir depressa demais por
seria uma traição, e como se distinguia mesmo possível.” respostas fáceis. Adquiri o hábito de
uma coisa da outra? Resisti a essas vozes. Resisti preci- questionar as minhas próprias supo-
Oh, como eu era sério nessa altura, samente porque receei que tivessem sições e penso que isso acabou por ser

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 51


Na Casa Branca
Barack Obama
deixou-se
fotografar em
família, onde Bo,
o célebre cão-
d’água português,
foi também um
dos protagonistas

útil, não só porque me impediu de me em todo o mundo. Eu tinha vivi- os homens são criados iguais”: esta era
tornar insuportável, mas porque me do no além-mar, sabia demasiado. a minha América. A América acerca da
imunizou contra as fórmulas revolu- Que os Estados Unidos da América qual escreveu Tocqueville, o campo
cionárias adotadas por muita gente à estavam eternamente aquém dos de Whitman e de Thoreau, ninguém
esquerda, na alvorada da era de Reagan. seus ideais era algo que eu admitia ser inferior ou superior a ninguém; a
Isto era certamente verdade no que prontamente. A versão da História América dos pioneiros a caminho do
tocava a questões de raça. Experimentei norte-americana ensinada nas esco- Oeste em busca de uma vida melhor
o meu quinhão de desrespeito racial e las, aludindo levemente à escravatura ou dos imigrantes a desembarcar em
pude testemunhar claramente o legado e quase omitindo o massacre dos Ellis Island, impulsionados pelo desejo
persistente da escravatura e da era Jim nativos americanos, era algo que eu de liberdade.
Crow sempre que passei por Harlem ou não engolia. O exercício irrefletido Era a América de Thomas Edison e
por zonas de Bronx. Contudo, graças à do poder militar, a rapacidade das dos irmãos Wright, fazendo descolar os
minha história de vida, aprendi a não multinacionais... sim, sim, eu per- sonhos, e de Jackie Robinson a brilhar
me fazer demasiado prontamente de cebia tudo isso. Porém, a ideia de no basebol. Era Chuck Berry e Bob
vítima e resisti à noção, defendida por América, a promessa da América: a Dylan, Billie Holiday no Village Van-
alguns dos negros que conhecia, de isso eu agarrava-me com uma obsti- guard e Johnny Cash na penitenciária
que os brancos eram incorrigivelmente nação que até a mim me surpreendia. de Folsom – todos esses inadaptados
racistas. A convicção de que o racismo “Consideramos estas verdades como que pegaram nos fragmentos que ou-
não era inevitável poderá explicar tam- evidentes em si mesmas, que todos tros ignoraram ou rejeitaram e criaram
bém o meu voluntarismo na defesa da beleza nunca vista.
ideia norte-americana: aquilo que o Era a América de Lincoln, em Get-
país era e aquilo que poderia tornar-se. tysburg, e Jane Addams a labutar numa
A minha mãe e os meus avós nunca casa-abrigo em Chicago, soldados ex-
haviam sido ruidosos no seu patriotis- tenuados na Normandia e o dr. King na
mo. Recitar o Juramento de Lealdade “Adquiri o hábito Alameda Nacional, a chamar a coragem
na escola e acenar com bandeirinhas
no 4 de Julho eram considerados ri- de questionar as a si e aos outros.
Era a Constituição e a Declaração
tuais agradáveis, não deveres sagrados minhas próprias dos Direitos, concebidas por pensado-
(as atitudes deles para com a Páscoa
e o Natal eram muito idênticas). Até suposições e isso res brilhantes, ainda que com os seus
defeitos, que chegaram pela razão a
mesmo a participação do avô na II acabou por ser um sistema simultaneamente robusto
Guerra Mundial era subestimada: ele
falou-me mais das rações de combate
útil, não só porque e passível de ser mudado.
Uma América que podia expli-
– “Terríveis!” – do que alguma vez me me impediu car-me.
falou da glória de marchar no exército
de Patton. E, todavia, o orgulho de ser
de me tornar “Continua a sonhar, Barack”, era
como terminavam habitualmente es-
norte-americano, a ideia de que os Es- insuportável sas discussões com os meus amigos da
tados Unidos da América eram o maior
país do mundo... isso era sempre um
mas porque me universidade, enquanto algum idiota
presunçoso punha um jornal à minha
dado adquirido. imunizou contra frente, com as manchetes a proclamar
Quando era novo, irritavam-me os
livros que rejeitavam a ideia do exce-
as fórmulas a invasão norte-americana de Granada,
os cortes no programa de alimentação
cionalismo norte-americano; envolvia- revolucionárias escolar ou qualquer outra notícia de-
-me em discussões prolongadas com
amigos que insistiam que a hegemonia
adotadas por muita sencorajante.
“Lamento, mas essa é a tua Amé-
norte-americana era a raiz da opressão gente à esquerda” rica.” visao@visao.pt

52 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


OS DESAFIOS
DO MEU
AMIGO
JOE
As crises na América são
assustadoras para qualquer
Presidente eleito, mas
a História – e, em particular,
a de Franklin Roosevelt – poderá
ajudar o sucessor de Donald
Trump a ultrapassá-las

54 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


POR JON MEACHAM
Escritor e historiador, premiado
com um Pulitzer em 2009 pela
biografia American Lion: Andrew
Jackson in the White House, é autor

C
de vários livros sobre política
e políticos na América, o mais
recente dos quais é Destiny and
Power: The American Odyssey of
George Herbert Walker Bush

Como o fim se aproximava (teria menos


de três meses de vida), Franklin Delano
Roosevelt (FDR) voltou ao princípio. Ao
discursar na sua quarta investidura, a
20 de janeiro de 1945, FDR evocou o
diretor da sua antiga escola primária,
Endicott Peabody, que frequentemente
afirmava: “As coisas nem sempre nos
correm bem na vida. Às vezes, subimos
aos céus – mas, depois, tudo se inverte
e começamos a descer. Do que devemos
lembrar-nos é que a tendência da civi-
lização será sempre ascendente.” Esta
era, pelo menos, a esperança de FDR e
de gerações de americanos.
Um desses americanos com uma
visão de futuro é agora o Presidente
eleito dos Estados Unidos. A missão
que aguarda Joe Biden em Washington
é incomensurável: ninguém duvida de
que, antes dele, só FDR, quando tomou
posse pela primeira vez, em 1933, en-
frentou tantas crises.
Biden terá de dar resposta a uma
pandemia, aos danos económicos e
culturais causados pela Covid-19, às
tensões raciais persistentes, às altera-
ções climáticas, a um eleitorado dividi-
do e à descrença nas instituições. Será
ele capaz de unir os americanos para
resolver, pelo menos, alguns destes
problemas num ambiente de partida-
rismo tóxico?

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 55


ATÉ QUANDO
RESISTE TRUMP?
Aqui a História pode ajudar. Nos Es- Presente e futuro do ainda Talvez não seja o suficiente para fazer
tados Unidos da América, a divisão é, de Presidente, sempre a tentar atrasar aprovar legislação [se, em janeiro, os
facto, mais regra do que exceção: Norte a transição de poder republicanos mantiverem o controlo
versus Sul; industrial versus agrário; do Senado] ou para acalmar as tem-
isolacionista versus internacionalista; pestades partidárias, mas o Presidente
religioso versus secular – a América é FALSAS ACUSAÇÕES DE FRAUDE eleito não precisa de ser perfeito para
um país grande, complicado e confli- ELEITORAL fazer o bem. E isso é, igualmente, uma
tuoso. E eleições renhidas são comuns. Desde a noite das eleições que repete lição de História.
Joe Biden chega à presidência com o mesmo: “Estão a tentar roubar-nos.” Os grandes presidentes também er-
uma percentagem de voto popular A narrativa de descredibilização do raram muito – mas também acertaram
muito maior do que as de Harry Tru- processo eleitoral mantém-se no seu o suficiente para que os recordemos
man, John F. Kennedy, Richard Nixon Twitter. com respeito. A tarefa para os tempos
em 1968, Jimmy Carter, Bill Clinton, de Biden será então esta: não um re-
George W. Bush em 2000 e Donald J. gresso nostálgico a uma narrativa em
Trump. A sua margem está em linha PROCESSOS EM TRIBUNAL tons sépia de glórias passadas, mas
com a de Ronald Reagan em 1980, a de As suas equipas de advogados fazer com que o povo volte a respeitar a
George W. Bush em 2004 e a de Barack apresentaram ações de contestação presidência e que o Presidente respeite
Obama em 2012. em todos os Estados onde Biden o povo. Terá de ser uma recuperação
O êxito de Biden está, pois, em con- ganhou por pouco. No entanto, a mútua do respeito, pela razão e não
sonância com outras vitórias presiden- maior parte das queixas foi rejeitada. pela paixão.
ciais na era pós-II Guerra Mundial. A O exemplo de FDR é esclarecedor.
diferença é que, além de ter perante si Infetado com o vírus da poliomielite
uma nação muito dividida, o seu prede- PANDEMIA A CRESCER em 1921, Franklin Roosevelt forçou-se,
cessor mostra-se determinado a retirar O adiamento da transição e a falta de corajosamente, a voltar à arena. Quando
legitimidade à própria eleição. Daí que cooperação adiam a implementação se candidatou à presidência em 1932,
o temperamento, que é sempre vital, de uma estratégia de combate à tudo o que era familiar em relação à
talvez seja o mais importante para o Covid-19 pela Administração Biden. América estava em perigo.
sucesso da presidência que se avizinha. Em 1930, ao depor perante o Con-
O que penso do Presidente eleito gresso, o padre Charles E. Coughlin
Joe Biden não é segredo para nin- FUTURO NOS MÉDIA? [um populista católico cujos programas
guém. Sou amigo dele; ele e eu sempre Perante a zanga com a Fox News e a radiofónicos atraíam milhões de ouvin-
conversámos sobre História e sobre o necessidade de se manter relevante tes e que, por exprimir simpatias nazis
que o passado da América pode di- na política, Trump poderá apostar e antissemitas, esteve na mira do FBI]
zer-nos acerca do futuro da América. na criação de um programa de avisou: “Creio que, até 1933, a não ser
Em março, apoiei publicamente a sua comentário em que será a estrela que se faça algo, vamos assistir a uma
candidatura à Casa Branca, e este ano principal. Ou até, quem sabe, lançar revolução neste país.”
discursei na Convenção Nacional do um novo canal de TV. O historiador William Manchester
Partido Democrata. Como historiador [um dos biógrafos de Winston Chur-
e professor, dei o meu contributo para chill], ao escrever, por seu turno, sobre
alguns dos seus grandes discursos so- as pessoas que, naquela época, haviam
bre “a alma da América” – o título de perdido os seus empregos, declarou:
um livro que publiquei em 2018. Na “Embora milhões sejam prisioneiros
minha opinião, o facto de estudarmos de uma grande tragédia para a qual
e de comentarmos a História e acon- não há, de modo algum, qualquer res-
tecimentos históricos não significa que ponsabilidade individual, assistentes
tenhamos de nos excluir deles. sociais observam repetidamente que os
Do que conheço de Joe Biden posso desempregados sofrem de sentimentos
dizer-vos isto: pela sua experiência e de culpa. ‘Não tenho um trabalho está-
pelo seu temperamento, o Presidente vel há mais de dois anos’, lamentou-se
eleito não é uma figura polarizadora. um homem prestes a ser despejado da
Décadas no Senado [foi reeleito seis sua casa, em declarações a um repórter
vezes desde 1972] e oito anos como do Daily News, de Nova Iorque, em
vice-presidente de Barack Obama de- fevereiro de 1932. ‘Às vezes sinto-me
ram-lhe as virtudes políticas da empatia como um assassino. O que há de errado
(perceber como se sente o outro lado) comigo, que não consigo proteger os
e do pragmatismo (tentar dar ao outro meus filhos?’”
lado uma maneira de salvar a face, para FDR levou para a Casa Branca a
conseguir um compromisso). sua empatia e a sua resiliência, assim
como uma sensibilidade política que
RECUPERAR O RESPEITO MÚTUO muitos bem descreveram como ágil.
Esse pragmatismo empático – ou, Ele definia-se como “um malabarista”,
se quiserem, essa empatia pragmáti- nunca permitindo que a sua mão es-
ca – poderá ser o maior atributo que querda soubesse o que a direita fazia.
Joe Biden levará para a Casa Branca. Entretanto, foi articulando uma visão

56 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


UM HOMEM
FORTALECIDO PELA
PERDA ESTÁ BESM impaciente. As tragédias pessoais do mundo são um bairro, não um deserto
EQUIPADO PARA Presidente eleito são bem conhecidas:
perdeu a primeira mulher e a filha
devastado pela guerra. Muito do destino
dos próximos quatro anos depende tan-
LIDERAR UMA NAÇÃO [num acidente de viação] em 1972; os
seus aneurismas cerebrais; a morte [de
to de Biden como de nós, americanos. A
ordem constitucional depende do carác-
QUE ENFRENTA UMA cancro no cérebro] do seu filho mais
velho, Beau, em 2015.
ter de quem lidera e de quem é liderado.
Depende também de acreditarmos se,
DOR GENERALIZADA Um homem fortalecido pela perda
está bem equipado para liderar – e tal-
com toda a liberdade, estamos dispostos
a sacrificar alguns dos nossos interesses
de governo que muito se recomenda: vez até para sarar as feridas de – uma para manter uma arena em que todos os
“Digamos que a civilização é uma nação que enfrenta uma dor generali- nossos interesses possam lutar por um
árvore, a qual, à medida que cresce, vai zada. Se conseguir isso, Biden poderá domínio temporário.
continuamente produzindo madeira dar novamente razão ao adágio de Os nossos melhores presidentes – e
podre e morta. Emerson [filósofo e poeta americano as nossas melhores épocas – não fo-
O conservador aconselha: ‘Não to- Ralph Waldo] de que “na verdade, não ram mais perfeitos do que nós somos.
quem nela!’ O liberal assume um com- existe História; apenas biografia”. Apesar das reivindicações divergen-
promisso: ‘Vamos podá-la, para que É claro que as ameaças abundam. A tes, eles deram uma oportunidade ao
não se percam nem o tronco velho nem diminuição das oportunidades econó- bom senso e à razão. Eles sabiam que
os ramos novos.’” micas, as contínuas injustiças raciais e o a História os julgaria duramente se
fluxo-refluxo do nativismo e do isola- traíssem as instituições que herdaram.
ENTRE A ESQUERDA E A DIREITA cionismo serão desafios para o próximo Eles preocupavam-se com o que nós
A campanha de FDR visava ensinar Presidente, dia após dia. No entanto, pensaríamos – preocupavam-se com
o país a caminhar em direção a uma a experiência de vida de Biden dá-lhe o que diríamos deles.
determinada meta, uma trajetória de vocação especial para desempenhar um Eu acredito que Joe Biden também
mudança, numa marcha ordeira, evi- papel de generosidade e calma no meio se preocupa com isso. O que é uma boa
tando a revolução do radicalismo e a das tempestades. notícia para todos nós.
revolução do conservadorismo. Graças ao seu ethos católico romano,
Este poderá ser também o percurso Joe Biden encara a vida como um pacto,
de Joe Biden, à medida que o 46º Pre- e ele vai tentar pregar e incorporar a
© 2020, TI­­ME Inc. To­­dos os di­­rei­­tos re­­ser­­va­­dos.
sidente dos EUA manobra entre uma ideia – tal como fez o cristão episco- Tra­­du­­zi­­do da TI­­ME Ma­­ga­­zi­­ne
direita entrincheirada e uma esquerda paliano FDR – de que a América e o e pu­­bli­­ca­­do com au­­to­­ri­­za­­ção da TI­­ME Inc.

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C O N T E Ú D O PAT R O C I N A D O

O ensino de saúde deve ser


universalizado. Não pode
ter fronteiras
Com uma trajetória de quase 40 anos, a CESPU afirma-se como uma instituição de
referência na área do ensino da saúde em Portugal. A especialização, o pioneirismo
e a internacionalização fazem parte do ADN do grupo, assim como um modelo de
ensino assente em ambiente real de trabalho. Uma aposta clara que os estudantes
procuram, e o mercado valoriza e reconhece, num mundo global

“A saúde não tem fronteiras”, afirma António de Ensino Superior Politécnico e Universitário, foi a primeira instituição
Almeida Dias, Presidente do Conselho de em Portugal a ter cursos universitários de saúde fora do setor público.
Administração da CESPU. No contexto de Começou com o curso de Medicina Dentária, apadrinhado pela Université
pandemia em que, estas palavras têm ainda Lille II, de França, e hoje oferece uma panóplia de cursos na área das
mais significado. Porque não são apenas os vírus ciências e tecnologias da saúde, muito procurados por estudantes
que se espalham, mas, felizmente, também portugueses, mas também por estrangeiros, que hoje constituem 55%
o conhecimento, a investigação, o ensino e o dos alunos nos cursos de ensino universitário da CESPU e cerca de 30%
exercício das profissões ligadas à saúde. nos cursos politécnicos da instituição. “A internacionalização está na
Fundada em 1982, a CESPU – Cooperativa nossa génese”, salienta Almeida Dias, e o futuro também passa por aí.

58 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


Formação contínua
Num mundo em constante atualização, a formação permanente é
outro dos fatores decisivos para a sucesso na vida profissional e para
a competitividade das empresas. No caso particular das profissões de
saúde, a tecnologia e o conhecimento evoluem muito rapidamente.
“Desde muito cedo percebemos que era necessário dar às pessoas
a oportunidade de, ao longo da vida, irem fazendo atualizações,
especializações. Para esse fim criámos, em 2001, a CESPU Formação,
empresa que se dedica exclusivamente à formação contínua e
especializada dos profissionais de saúde”.

Planeta Saúde
O lado positivo das crises é que também geram oportunidades, e a situação
atual permite olhar para a saúde com mais ambição: “Na era pré-COVID já
se dizia que até meados do século XXI, o mundo ocidental, necessita de mais
de 12,5 milhões de profissionais de saúde para garantir os cuidados que se
entendem necessários. Ora, por conta da atual pandemia, as dificuldades
agitaram-se pondo a descoberto a fragilidades dos seus sistemas de saúde.
Claro que que não podemos estar em permanência com um sistema
estruturado para pandemias, porque isso não em sentido. Penso que o
sistema tem de funcionar como um harmónio.” diz o Professor. “Mais do
que democratizado, o ensino de saúde deve ser universalizado. Isto é, não
pode ter fronteiras. O profissional de saúde tem de estar preparado para
trabalhar em qualquer condição, a linguagem deve ser a mesma, e aquilo
que um enfermeiro faz em Portugal deve ser a mesma coisa que faz nos
Estados Unidos, em África, onde for.”
A CESPU tem estado sempre na primeira linha, com um papel ativo, no
processo das reformas no âmbito do ensino da saúde em Portugal. “No
nosso caso, começamos com a Medicina Dentária, em 2020 iniciamos a
Medicina Veterinária, e de facto, ao nível das ciências médicas é fácil de
perceber que só falta uma, que é aquela que nós, desde 2004, tentamos
que seja aprovada: a Medicina. Esta é uma questão política, que envolve
muitos fatores, mas do ponto de vista prático, material, de recursos
humanos, de projeto, estamos preparadíssimos. Podemos começar o curso
mal seja possível”.

Valores seguros Investigação e comunidade


Mas antes, um olhar sobre o passado que ajude Em todas as áreas do saber, e de uma forma muito particular na saúde,
a compreender os valores na base da CESPU, a investigação e a inovação são determinantes para orientar e garantir
que em 2020 ficou na 8ª posição do ranking a evolução das instituições de ensino superior, pelo que a CESPU tem
da Scimago no domínio da “Investigação, realizado um grande esforço neste sentido.
Inovação e Impacto Social” entre as instituições É neste contexto que investigadores da TargeTalent, uma spin-off da
portuguesas avaliadas. “O facto de nos CESPU que desenvolve dispositivos de diagnóstico, estão a patentear
termos mantido fiéis ao objetivo que esteve novo meio de transporte viral que permite a congelação de amostras
na origem do projeto, a criação de cursos na do exsudado da nasofaringe e da saliva, o que constitui uma importante
área das ciências e tecnologias da saúde, foi inovação para agilizar a identificação do SARS-CoV-2.
determinante”, explica o Professor Almeida Ainda no âmbito da atual pandemia, a CESPU, utilizando o seu Laboratório
Dias. “Isto é, acabámos por nos especializar na de Biologia Molecular sediado em Gandra, tem-se dedicado ao diagnóstico
formação de recursos humanos nas diferentes do coronavírus, com realização de análises PCR em tempo real.
profissões de saúde, abrangendo, atualmente, Atualmente, a CESPU está a colaborar com o Instituto de Segurança Social
a quase totalidade das áreas. assegurando a realização de 8000 análises mensais para os colaboradores
Tendo e conta a experiência que adquirimos, de IPSS nos distritos do Porto e de Braga, dando um contributo
aventuramo-nos a replicar o nosso modelo considerado muito relevante para o diagnóstico dos casos de COVID-19.
além fronteiras, nomeadamente em Angola,
Brasil, Marrocos, sempre assente num Que futuro
conhecimento profundo das ciências básicas A CESPU tem atualmente em funcionamento todas as áreas científicas
da saúde e na aquisição de competências da saúde pertencentes ao ensino superior universitário, com a exceção
profissionais, através do ensino em ambiente da medicina, cujo projeto submetido para acreditação aguarda decisão
real de trabalho. final. Trata-se de uma proposta inovadora com mais mil horas de
“Aquilo que hoje faz com que muitos jovens formação do que os cursos tradicionais,
venham estudar para a CESPU é saberem que, garantindo uma forte componente de
quando saem para o mercado de trabalho, aprendizagem em ambientes de simulação
estão preparados para “fazer””. e ambiente real de trabalho.

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 59


A JOGADA DO
HIDROGÉNIO
Documentos a que a VISÃO teve acesso mostram como
o Governo se apropriou do projeto de um holandês sobre
o hidrogénio verde e o concretizou com a EDP, a Galp
e a REN. O pai da ideia acabou afastado
do negócio de milhares de milhões
S Í LV I A CA N E C O

60 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


PEDRO
FURTADO
REN RUI
OLIVEIRA
NEVES
GALP

CARLOS
MARTINS
JOÃO MARTIFER
CONCEIÇÃO
REN

JOÃO PEDRO
MATOS
FERNANDES
MINISTRO
DO AMBIENTE
PEDRO
SIZA VIEIRA
MINISTRO
DA ECONOMIA

JOÃO
GALAMBA
SECRETARIO
DE ESTADO
DA ENERGIA

JOÃO
MANSO
NETO
EDP
N
No verão de 2019, um empresário holandês
começou um périplo para vender ao Governo
português uma parceria estratégica com os
Países Baixos, através de um plano de produ-
ção e exportação de hidrogénio verde a partir
de Sines. Tendo percebido a oportunidade de
negócio, o holandês muniu-se de apresentações
do projeto e desdobrou-se em contactos. A
porta de entrada para o Governo fez-se atra-
vés do gabinete de João Galamba, com quem
se reuniu pela primeira vez a 2 de julho desse
ano. Exatamente um mês depois, a Secretaria João Galamba dar a iniciativa a que deram o nome H2Scale.
de Estado da Energia reunia-se pela primeira O secretário de Depois, a 9 de janeiro de 2020, o CEO do Re-
vez com a Embaixada da Holanda para deba- Estado Adjunto e da silient Group reuniu-se pela primeira vez com
ter a ideia de produzir hidrogénio limpo em Energia tem dito que membros do Governo e com a EDP, a Galp, a
Portugal e exportá-lo para o Norte da Europa. quer fazer de Sines REN e a Vestas (maior produtora mundial de
Durante praticamente um ano, este holandês “o maior projeto turbinas de energia eólica). O encontro decorreu
chamado Marc Rechter, presidente executivo industrial em Portugal na Rua d’O Século, em Lisboa, na presença do
da Enercoutim e do Resilient Group, esteve na desde o 25 de Abril”. secretário de Estado da Energia, João Galamba,
dianteira deste plano de transformar Portugal Nega favorecimentos e de um assessor do ministro da Economia. Só
às grandes empresas
numa indústria de hidrogénio verde e acompa- que entre uma reunião e outra, a 20 de dezem-
nhou o Governo português em reuniões com bro de 2019, a EDP, a Galp e a REN estiveram
representantes do Governo holandês. Mas, reunidas com João Galamba, com o ministro

9MILHÕES
000
no final, acabou excluído da primeira fase do da Economia, Siza Vieira, e com o ministro do
concurso. Dos 74 projetos que manifestaram Ambiente, João Pedro Matos Fernandes. Ape-
interesse em investir no plano do hidrogénio, sar de o tema ser o mesmo – Reunião Projeto
o de Rechter foi um dos rejeitados. Ironica- Hidrogénio – , o Resilient Group não consta
mente, o homem que tinha apresentado a ideia dos presentes nessa segunda reunião. A VISÃO
não podia candidatar o seu projeto aos fundos quis esclarecer se o empresário não pôde estar
comunitários do IPCEI (Projeto Importante de presente naquele dia. Rechter garante não ter
Interesse Europeu Comum). sido convidado e que nem sequer estava a par
Uma parte desta história está contada nas daquele encontro.
escutas telefónicas que o Departamento Central As datas das reuniões são importantes
de Investigação e Ação Penal (DCIAP) montou porque no esclarecimento do gabinete do se-
nas suas instalações para investigar suspeitas O Projeto Nacional cretário de Estado Adjunto e da Energia, a 7 de
do Hidrogénio Verde
de favorecimento a empresas como a EDP, a novembro passado, na sequência da notícia de
prevê um investimento
Galp e a REN. A outra parte conta-se através que corria um processo-crime contra membros
de sete a nove mil
de datas e de atas de reuniões, emails, memo- milhões de euros. Uma
do Governo por causa do projeto nacional do
randos e outros documentos aos quais a VISÃO parte, entre 400 e 450 hidrogénio verde, o gabinete de João Galam-
teve acesso – e que indiciam que as grandes milhões de euros, será ba negou qualquer favorecimento às grandes
empresas nacionais chegaram às reuniões com financiada por fundos empresas privadas. E alegou que “o projeto
o Governo convidadas pelo Ministério do Am- europeus, que devem inicialmente apresentado pelo Resilient Group”
biente ou pelo Ministério da Economia. chegar até 2030. O já tinha esta “modelação e estes intervenientes”
A 10 de dezembro de 2019, Rechter, em re- Governo prevê um valor e já envolvia “EDP, Galp e REN”.
presentação do Resilient Group, reuniu-se com acrescentado de 92 a Só que as datas das reuniões não mostram
representantes do Ministério da Economia e 740 milhões de euros isso. E também não é isso que mostra a ata do
da Secretaria de Estado da Energia para abor- por ano. encontro de 9 de janeiro, a que a VISÃO ace-

62 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


o potencial do hidrogénio verde para o País”.
Precisamente no mês em que ocorreu, no dia
20, a reunião naquele ministério entre três
governantes e representantes da Galp, da EDP

Matos e da REN, mas sem a presença de qualquer


elemento do Resilient Group. A Galp admite ter
Fernandes tido contactos com a empresa de Marc Rechter
durante o ano de 2019, mas “em relação a outros
projetos de hidrogénio”, que nunca avançaram.
Foi o ministro do Confrontadas com as mesmas questões, a
Ambiente e da Ação REN disse não ter “qualquer comentário a fa-
Climática quem assinou zer” e a EDP não quis esclarecer os contactos
a 23 de setembro um
institucionais, dizendo que estes já tinham sido
acordo estratégico com
“devidamente confirmados e esclarecidos” na
os Países Baixos para
produção e exportação
nota oficial do Governo. A empresa de energia
de hidrogénio verde. A alega que começou a avaliar a viabilidade de de-
aliança selou-se depois senvolver uma oferta na área do hidrogénio “há
de vários encontros dois anos”, quando iniciou “projetos pioneiros
entre representantes e de investigação com parceiros estratégicos
dos governos português nacionais e internacionais”. Também a Galp
e holandês, entre adianta que começou em 2017 uma “avaliação
2019 e 2020. Era do potencial do hidrogénio enquanto energia
necessária uma alternativa para a transição energética”.
LUÍS BARRA

aliança de dois países Ao que a VISÃO apurou, os convites para a


para que pudessem reunião de 9 de janeiro foram feitos pelo Mi-
formalizar uma nistério do Ambiente, mas a ata foi distribuída
candidatura a fundos via Ministério da Economia. Do lado da EDP,
deu. Nesse dia, os representantes das grandes europeus através do estiveram presentes João Manso Neto, André
empresas não disseram que estas já estavam Projeto Importante Pina e Carlos Mata. A Galp fez-se representar
dentro do projeto, apenas que poderiam estar de Interesse Europeu por Rui Oliveira Neves, Pedro Dias e Jorge Mi-
interessadas. A Galp, por exemplo, solicitou à Comum (IPCEI). Em guel Fernandes. Já a REN esteve representada
empresa de Marc Rechter “mais informação dezembro de 2019, por João Conceição, Pedro Furtado e Rodrigo
quando o Governo
sobre volumes, preço e condições de comer- Costa. Os dois primeiros – Conceição e Furta-
estava à procura de
cialização do hidrogénio”. E, no final, ficou do – são arguidos no processo que investiga as
empresas privadas
expresso em ata que só numa “nova reunião para investirem no
chamadas rendas excessivas da EDP (CMEC),
dos participantes” seria definida “a estrutura de hidrogénio, Matos o mesmo que levou em julho ao afastamento
governance” de um possível consórcio. Nesta Fernandes esteve de funções de António Mexia e de João Manso
altura, estava apenas a ser debatido que empre- num encontro com a Neto, também arguidos nesse inquérito.
sas queriam investir e de que forma. A ata oficial EDP, a GALP e a REN, Já do lado da Martifer não esteve ninguém.
do Governo mostra que Galamba terá dito aos juntamente com Siza Isto apesar de a empresa ter integrado o con-
presentes que o Estado podia prestar-lhes os Vieira e João Galamba. sórcio com a EDP, a Galp, a REN e a Vestas, em
apoios necessários “a uma candidatura a fundos A Galp confirma que julho de 2020. Carlos Martins, atual chairman
disponíveis para a inovação e indústria na ob- o convite para essa da empresa, diz à VISÃO que a Martifer só en-
tenção ao estatuto de IPCEI”, mas não se falava reunião foi endereçado trou na história em março deste ano. Convidada
ainda dos montantes envolvidos. pelo Ministério do por quem? Fazendo-se convidada: “Contactou
Ambiente. a Galp, a EDP e a REN mostrando interesse em
CONVITES DO MINISTÉRIO DO AMBIENTE integrar o consórcio, uma vez que dispunha de
Depois deste encontro, existiram mais três competência industrial para produzir alguns
reuniões do Governo com aquele agrupamento dos equipamentos necessários.”
de empresas, a 11 de fevereiro, a 6 de março e João Galamba nunca escondeu que queria
a 15 de maio. O Ministério do Ambiente e da fazer do hidrogénio verde uma das grandes
Ação Climática não quis fornecer as atas desses bandeiras deste Governo. Em entrevistas, aliás,
encontros de dezembro a maio, nem esclarecer referiu-se ao projeto de Sines como “o maior
quem tinha feito os convites às empresas nem projeto industrial em Portugal desde o 25 de
responder a nenhuma das 12 perguntas feitas. Abril”. Mas será preciso um investimento de
“Nada mais temos a acrescentar ao esclareci- sete mil a nove mil milhões de euros e só uma
mento que divulgámos”, disse o gabinete de parte será financiada por fundos europeus.
Matos Fernandes. Neste contexto, como o seu gabinete viria a es-
Já a Galp admitiu à VISÃO que, “à semelhan- clarecer a 7 de novembro, a EDP, a Galp e a REN
ça de outras empresas nacionais e internacio- “desempenhavam um papel crucial”: a REN
nais”, foi, sim, “contactada pelo Ministério do como operadora da rede de gás, a Galp como
Ambiente e da Ação Climática em dezembro de potencial grande consumidora na refinaria de
2019, para avaliar do seu interesse em analisar Sines e a EDP porque o projeto iria desenvol-

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 63


MARC RECHTER D.R.

Durante meses, este homem foi a cara de um


projeto que queria implementar, em Sines,
uma indústria de produção e exportação de
hidrogénio verde. O empresário holandês com
residência em Portugal tinha encontrado uma
oportunidade de negócio e apresentou-a a João
Galamba, no verão de 2019. Os Países Baixos
queriam substituir o hidrogénio cinzento usado
na sua indústria e, como Portugal tinha baixos
custos de produção de energia solar, os dois
países ganhavam em concorrer juntos a um
programa de fundos europeus. A sinergia entre
os dois países foi formalizada, mas o pai da
ideia, que também queria investir, foi afastado.

D.R.
ver-se na Central Termoelétrica de Sines, que João Conceição gal e a Holanda. Estava concretizada a parceria
iria em breve ser desativada. O administrador estratégica que o holandês tentara vender mais
da REN foi uma
As três empresas chegaram unidas à fase de de um ano antes.
das pessoas que
apresentação das manifestações de interesse, Tudo isto foi sendo acompanhado por dois
discutiram com o
no verão de 2020, embora o consórcio se tenha Governo um possível
procuradores do DCIAP à medida que ia acon-
rachado pouco antes disso. Marc Rechter aban- investimento da tecendo. É naquele departamento do Ministério
donou o projeto e candidatou-se com outras empresa no projeto Público que têm estado concentradas todas as
três empresas, todas elas internacionais, num do hidrogénio verde. diligências do processo divulgado pela Sábado,
consórcio a que daria o nome Green Flamingo É arguido no processo incluindo as escutas telefónicas. Ao contrário do
– o tal que teria um parecer desfavorável do da EDP e ex-assessor que foi avançado, a Polícia Judiciária não está a
Comité de Admissão de Projetos, composto de Manuel Pinho coinvestigar este processo. E o telefone de Siza
por vários elementos do Governo, da Econo- Vieira nunca esteve sob escuta – o ministro da
mia ao Ambiente, passando pela Tecnologia e Economia foi, sim, apanhado em conversas
pelos Negócios Estrangeiros. Rechter não quis telefónicas com João Galamba, que era um dos

37
explicar o que levou à rutura com as empresas alvos dessas escutas. O mesmo aconteceu com
nacionais mas, ao que a VISÃO averiguou, as outros governantes que falavam com o secretá-
divergências acentuaram-se quando começou a rio de Estado da Energia ao telefone.
ser desenhado o memorando de entendimento Neste caso, ao contrário do que é habitual,
do consórcio. O holandês não terá gostado que as diligências instrutórias do inquérito também
o documento ignorasse que tinha sido o prin- não passaram pelos famosos juízes do Tribunal
cipal promotor do projeto, como se a iniciativa Central de Instrução Criminal, mas pelos juízos
tivesse partido do Governo. de instrução criminal. Manobras que visavam
Tentou por outras vias, com um novo con- esconder a existência da investigação, que estava
sórcio, mas não teve êxito. Numa sexta-feira, Em julho deste ano,
ainda numa fase muito embrionária. Operações
24 de julho, foi convidado a participar num o Governo recebeu de busca ou a audição de testemunhas levariam
infoday sobre o hidrogénio, na Secretaria de 74 manifestações de inevitavelmente a que alguns dos alvos perce-
Estado da Energia. No sábado, 25, recebeu “uma interesse de empresas bessem que estavam a ser investigados. E, por
notificação de suspensão” e, na segunda, 27, re- portuguesas e mais promissoras que algumas escutas pare-
cebeu um “parecer desfavorável” à proposta que europeias que queriam cessem, os procuradores precisavam de esperar
apresentara. “Reagimos com surpresa. Não por investir no hidrogénio, pelo “flagrante”. Isto é, que efetivamente algum
termos sido o promotor do projeto mas porque mas só 37 passaram projeto ou financiamento fosse adjudicado à
consideramos que a candidatura reunia as con- à fase seguinte. Uma EDP, à Galp ou à REN, para que as suspeitas
dições técnicas, económicas e financeiras.” A 17 delas é a do consórcio de favorecimento – e eventuais crimes asso-
de agosto, era assinado em Lisboa e em Haya entre a EDP, a Galp, a ciados – se consumassem. Nada disso tinha
um memorando de entendimento entre Portu- REN e a Martifer. ainda acontecido. scaneco@visao.pt

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O último
procurador
dos Julgamentos
de Nuremberga
Benjamin Ferencz percorreu os campos de
concentração nazis a recolher as provas que
permitiram acusar os cabecilhas alemães nos maiores

C
julgamentos da História. Ajudou a fundar o Tribunal
de Nuremberga e, com apenas 27 anos, foi nomeado
procurador principal. Aos 100, deixa lúcidas lições de
vida que fazem hoje mais sentido do que nunca
M A FA L D A A N J O S

Corria o ano de 1920, nas montanhas nome, impõe-se um contexto. Ferencz, Medalha da Liberdade de Harvard, em
dos Cárpatos da Transilvânia, um ter- americano e ex-combatente na Segunda 2014 – o homenageado anterior tinha
ritório que passou da Hungria para a Guerra Mundial, onde testemunhou sido Nelson Mandela. Teve um do-
Roménia, quando Benjamin Ferencz o horror da libertação dos campos de cumentário sobre si feito pela Netflix
veio ao mundo. A sua viagem começou concentração, foi nomeado procurador chamado Prosecuting Evil. E, como se
na pobreza absoluta de uma família principal de um dos famosos Julga- não bastasse, chegou aos 100 anos com
judia num território antissemita, que mentos de Nuremberga. Coube-lhe a uma lucidez e uma capacidade de análise
se viu obrigada a fugir e a fazer a tra- ele reunir as provas e desenhar, aos 26 e de retrospetiva invejáveis, como bem
vessia para tentar a sua sorte na Terra anos, toda a estratégia da acusação de se nota na entrevista que concedeu à
das Oportunidades. Ao chegarem a 22 dos cabecilhas nazis no Holocausto, VISÃO, por escrito a partir da Flórida,
Nova Iorque, o pai, um sapateiro só que vitimou seis milhões de judeus. Com onde vive e se mostra crítico de Trump
com um olho e praticamente analfa- o trabalho fundamental de Ferencz, os e dos populismos, sublinhando que
beto, conseguiu apenas um emprego Julgamentos de Nuremberga, cujo ar- ideais pelos quais lutou e que damos
como porteiro numa cave imunda de ranque faz neste mês de novembro 75 por garantidos estão em risco.
Hell’s Kitchen. Começou aqui, entre anos, mudaram para sempre os con-
alcoólicos, vagabundos e criminosos, a ceitos de crime de guerra e atentado UMA HISTÓRIA DE VIDA NOTÁVEL
história de vida de um homem admi- contra a Humanidade. Liderou tam- Voltemos pois às ruas enlameadas de
rável que atravessou o último século e bém os esforços de negociação de in- Hell’s Kitchen, onde Ferencz medrou,
se transformou num vulto da Justiça e demnizações entre Israel e a Alemanha à procura de sarilhos entre filhos de
num herói para todos os humanistas Ocidental, foi um dos pais do Tribunal imigrantes italianos e irlandeses, num
e estudiosos de Direito Internacional. Penal Internacional e recebeu os mais bairro onde o crime era considerado o
Para quem nunca se cruzou com este variados galardões, entre os quais a modo de vida normal. Como conta no

66 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 67
livro Palavras que Tocam a Alma (edi-
tora Lua de Papel), com as suas lições
de vida recolhidas por Nadia Khoma-
mi, jornalista do The Guardian, a sua
infância e a sua juventude ensinaram-
-lhe muito cedo lições de sobrevivên-
cia. Passou uma adolescência bastante
solitária. “É difícil e injusto ter de lutar
contra ideias feitas quando o meio em
que crescemos está contra nós, mas
não é impossível”, recorda. Acabou por
dar nas vistas na escola graças às capa-
cidades acima da média, e foi colocado
com uma bolsa especial em Townsend
Harris, um liceu para sobredotados,
que lhe concedeu entrada automática
no City College da Universidade de
Nova Iorque.
Tinha apenas 1,50 m e foi vítima de
bullying ao longo da sua vida. Algo que
o convenceu de que, para fazer frente a
isso, teria de ser melhor do que os ou-
tros. “Os vossos pontos fracos podem
tornar-se pontos fortes se souberem
usá-los como incentivo. Não se queixem
das adversidades, isso não resolve nada.
Além do mais, aprendemos mais com as
adversidades do que com um caminho
sem entraves”, afirma.
“O Benny ou vai ser um bom vigaris-
ta ou um bom advogado”, vaticinou-lhe
o tio. Como sabia que não queria ser
vigarista, só lhe restava a outra alterna-
tiva. Disseram-lhe que Harvard seria a
melhor, candidatou-se e ganhou uma Na linha da frente
bolsa até ao final do curso. Para ganhar Desembarcou na Normandia no
alguns trocos, ofereceu-se para traba- dia D e combateu em batalhas
lhar para Sheldon Glueck, um professor decisivas, até chegar a Berlim
de Criminologia que estava a escrever
um livro sobre a agressão e as atroci-
dades da Alemanha na Primeira Guerra
Mundial. Coube a Ben, que acabou por Finalmente, chegava o Dia D, quando
Aquilo fica
ser nomeado assistente, ler e resumir
todos os livros da biblioteca de Harvard
Ferencz desembarcou na Normandia,
a 6 junho de 1944, depois de atraves-
connosco
sobre crimes de guerra. Pouco depois,
Hitler já tinha conquistado grande parte
sar o canal em ziguezague para evitar
os submarinos alemães. Da lancha de
para o resto
da Europa e declarado guerra aos EUA.
Quando Ferencz ouviu a notícia na rá-
desembarque, saltou para a água: à
maioria dos outros dava-lhes pelos
da vida.
dio de que o Japão tinha lançado um joelhos, a ele chegava-lhe ao peito. Um Foram cenas
de horror
ataque contra os EUA em Pearl Har- soldado britânico deu-lhe uma palma-
bour, mal sabia que, pouco depois, o da nas costas e disse: “Boa sorte, Berlim

indescritível.
Exército pediria ajuda a Glueck, consul- é para aquele lado!”, recorda nas suas
tor do Pentágono, para reunir as provas memórias. Acabou por fintar as balas,

Era como
de crimes de guerra. Seria o professor ou passar por baixo delas, ultrapassar
a indicar o seu nome para a tarefa que as muralhas de Maginot e Siegfried

se tivesse
foi uma missão de vida. (“o Presidente Trump devia perceber o
Ben alistou-se no Exército, e acabou valor dos muros; eu passei por ambas

entrado no
por ser colocado como soldado na sem ser morto”, sublinha), atravessar o
artilharia antiaérea, da qual não sabia Reno e o Remagen e participar na Bata-
nada. Depois de uma formação e de um
início desastrosos, viu-se num batalhão
estacionado na ponta sul de Inglater-
lha de Bulge, em Bastogne. Destemido,
ganhou a alcunha de “Fierce Ferencz”.
Quando estava a chegar à Alemanha,
Inferno
ra, à espera de ordens para avançar. já começavam a circular as notícias

68 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


das atrocidades cometidas pelos na-
zis, e Roosevelt, Churchill e Estaline BE N JA MIN FE R EN C Z À V ISÃO
divulgaram declarações conjuntas
prometendo a responsabilização pelos “Tudo o que é preciso para
crimes de guerra. Foi com surpresa
que Ferencz seria transferido para o que o Mal vença é que pessoas
quartel-general de George S. Patton,
que liderou forças norte-americanas boas não façam nada”
na Europa durante a Segunda Guerra
Mundial e conduziu as operações após Qual é a maior lição que a sua experiência de vida lhe ensinou?
a invasão da Normandia. Nunca desistir de trabalhar para tornar o mundo melhor para todos.
Complacência não está longe de ser cumplicidade. Temos de estar cientes de
TESTEMUNHA PRIVILEGIADA DO que tudo o que é preciso para que o Mal vença no mundo é que pessoas boas não
HORROR façam nada.
A primeira missão foi lúgubre, como
seriam todas as outras a partir daí, Depois de tudo o que viu e passou, ainda tem esperança
enquanto percorreu a Europa atrás na Humanidade. Acredita na natureza humana?
do rasto de destruição e horror nazi. Se pensarmos na natureza humana como a capacidade de a Humanidade se
Tinha de ir, com um jipe onde escre- sair melhor no futuro do que no passado, então a resposta é sim, eu acredito na
veu as palavras “immer allein” (sempre Humanidade. Os humanos, no entanto, por natureza, têm-se mostrado um saco
sozinho), tentar remover os cadáveres misturado. Precisamos de ter leis eficazes e aplicáveis ​​para protegermos os
dos aviadores aliados sistematicamente fracos dos poderosos e também para protegermos os poderosos de si próprios.
abatidos a tiro no solo, em violação das Infelizmente, ainda temos um longo caminho a percorrer nessa matéria.
leis e das práticas de guerra. Tudo o que
tinha para se defender era uma pistola Como vê o atual crescimento dos movimentos de extrema-direita
de calibre 45. Pouco depois, em janeiro e fascistas pelo mundo? A derrota de Donald Trump nesta eleição
é um sinal de esperança para as democracias?
de 1945, começaram a chegar relatos de
que tinham sido encontradas pessoas Movimentos fascistas e movimentos de extrema-direita nascem do medo e do
nas estradas, famintas e magras como ressentimento do “outro” – quem quer que seja esse “outro” numa determinada
cadáveres, que pareciam saídas do que sociedade. Esses movimentos prosperam na demonização de algum outro
grupo – normalmente durante tempos de crise económica ou de outros traumas
seriam campos de trabalho. Foi assim
ou dificuldades que a sociedade enfrenta. Culpar os outros é muito mais fácil
que Ferencz recebeu a sua nova tarefa,
do que culpar-se, não é? O facto de tantas pessoas ainda terem votado em
que viria as ser crucial: percorrer os Donald Trump é uma prova clara de que o que ele representa não foi realmente
campos de concentração e ir reco- derrotado, apesar de ter perdido a eleição. Deve-se reconhecer que dezenas
lher toda a informação que estava nos de milhões de pessoas se reuniram em torno dele e dos temas niilistas que
gabinetes de registos nazis. Foi a dez ele defende. E porquê? Porque ele despertou o máximo de medo que pôde
campos, entre os quais Buchenwald, ao demonizar os imigrantes, a liberdade de Imprensa e o Estado de direito
Mauthausen, Flossenbürg e Ebensee. internacional, entre outras coisas. Muitos chamam-no “concubina de Putin”,
“As cenas de morte e de desuma- porque, ao enfraquecer a posição dos Estados Unidos da América perante os
nidade eram idênticas em todos eles. nossos aliados da NATO e outras partes do mundo, está beneficiar Putin e
Recordo tudo isto de uma forma muito todos os interesses dos que ganham ao ver uma América com uma posição
vívida, mas ainda hoje tenho dificulda- enfraquecida no mundo.
de em descrever o que vi. Aquilo fica
connosco para o resto da vida. O caos
absoluto. Corpos espalhados por todos
os lados, alguns mortos, outros feridos,
a suplicarem, fracos, a implorarem
com o olhar. Vi montes de pele e ossos
empilhados como lenha, esqueletos
indefesos com diarreia, disenteria, tifo,
tuberculose e pneumonia. Vi pessoas a
vasculhar o lixo como ratos. Vi o cre-
matório a funcionar com os corpos lá
metidos. Foram cenas de horror indes-
critível. Era como se tivesse entrado no
Inferno”, recorda no livro.
À VISÃO, explicou a estratégia que
usou para lidar com tudo isto: manter
o foco na sua missão de recolher provas
contra os criminosos. “A memória mais
vívida de entrar num campo de concen-
tração pela primeira vez foi de espanto
e de repulsa com as condições terríveis

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 69


tanto dos mortos como dos vivos, e com
o facto de seres humanos poderem ser
intencionalmente submetidos a tais
condições. Ainda assim, eu estava lá
para fazer o trabalho de encontrar pro-
vas de crimes, e mantive o foco no que
precisava de fazer. Focar-me na tarefa
era, suponho, parte do meu próprio
mecanismo psicológico para não me
permitir ser dominado pela emoção. O
que vi e vivi ali alimentou o desejo de
toda a vida de fazer o que puder para
garantir que estas coisas não aconteçam
novamente.” O maior processo
Faz o trabalho, escreve os relatórios,
reúne as provas e passa para o próximo
da História
campo, reportando quem eram os che- Os Julgamentos de Nuremberga
fes responsáveis para se emitirem man- foram uma série de processos
dados de captura: foi esta a sua forma em tribunais militares, que
de não enlouquecer. Muitas vezes lhe decorreram entre 20 de novembro
disseram para dar um tiro aos agentes de 1945 e outubro de 1946, onde
das SS que sabia que eram culpados. foram julgados e condenados
Recusou sempre. E sempre afastou a 24 líderes da Alemanha Nazi,
ideia de vingança com todos os seus entre os quais Göring e Hess.
Os processos sem precedentes, e
poros. “É humano desejar vingança,
por isso também polémicos, foram
mas temos de lutar contra isso. Não se
organizados pelos Aliados num
transformem naquilo que odeiam – se o “ato de justiça dos vencedores”,
fizerem, tornam-se o inimigo de alguém em que foi introduzido o conceito
e o ciclo repete-se indefinidamente.” de crime contra a Humanidade.
Quando acabou a guerra e regressou Posteriormente, entre 1946 e tendo em vista o seu lugar na hierarquia
aos Estados Unidos, tentou encontrar 1949, seguiram-se os Processos e o seu grau académico – decidiu que
um trabalho como advogado nas gran- Subsequentes de Nuremberga, 12 nenhuma baixa patente ou pessoa com
des firmas. Mas não se revelou fácil: julgamentos mais abrangentes que poucos estudos seria acusada.
“Os únicos clientes que conhecia eram levaram ao banco dos réus 183 Na sua declaração de abertura em
pessoas que traziam uma tatuagem outras figuras, além de militares Nuremberga, pouco mais tarde, su-
no braço.” Certo dia, recebe um tele- e ministros também médicos e blinhou: “A vingança não é o nosso
fonema do Pentágono, que procurava diplomatas e outros membros da objetivo.” “Eu sabia o que a vingança
quem pudesse ajudar nos julgamentos sociedade civil alemã. fazia; tinha-a visto em ação”, explica. E
de crimes de guerra. Foi assim que co- porque não quis que o facto de ser ju-
nheceu Telford Taylor, nomeado pelo deu pudesse transformar o julgamento
Presidente Truman para se encarregar numa vingança dos judeus, entregou a
dos 12 julgamentos adicionais a serem viética. Ferencz conta a história no livro um amigo o interrogatório em tribunal
efetuados pelo Governo americano Palavras que Tocam a Alma. Tentou do principal arguido, Otto Ohlendorf,
em Nuremberga. Avançariam assim convencer o general Taylor a organizar que matou 90 mil pessoas. Todos se
que acabassem os julgamentos mili- outro julgamento, mas este disse que declararam inocentes e não mostraram
tares internacionais, e iriam abranger os advogados já não conseguiam rece- quaisquer remorsos, todos foram con-
um espectro mais largo da sociedade ber mais processos entre mãos e que o denados à morte por enforcamento ou
alemã, os quais ficariam conhecidos orçamento estava limitado. Ao que Ben a prisão perpétua.
como os Julgamentos Subsequentes respondeu: “Não podemos deixar esca- Aqui reside a superioridade moral
de Nuremberga. par os assassinos!” Se não houvesse mais de Ferencz. “De cada vez que ouvia a
Ferencz foi encarregado de reunir ninguém disponível, ele mesmo faria o sentença, era como um golpe de martelo
as provas para os 12 julgamentos, que trabalho! Assim foi: com apenas 27 anos, que me sacudia o cérebro. Nunca pedi a
incluíram médicos, advogados, em- Benjamin, um advogado sem qualquer pena de morte, porque sentia que po-
presários, diplomatas e militares. Mu- experiência de barra do tribunal, foi deria trivializar a magnitude dos crimes
dou-se para Berlim e estabeleceu lá o nomeado um dos procuradores-chefes ao sugerir que as contas poderiam ser
seu quartel-general com 50 auxiliares. do maior julgamento da História. Entre saldadas com a execução de um punha-
Pelo caminho, na primavera de 1947, já os 3 000 membros do Einsatzgruppen, do de pessoas”, conta. Recusou assistir
decorriam a todo o vapor as audições, optou por colocar no banco dos réus 22 aos enforcamentos. Quando um dos
encontrou mais provas cabais: relatórios – todos suspeitos com fortes provas de julgamentos chegava ao fim, era habitual
diários minuciosos do Einsatzgruppen, terem participado diretamente ou em o procurador-chefe convidar a equipa
um esquadrão de extermínio das SS colaboração no assassinato de mais de para sua casa para festejar. “Penso que
organizado por Göring com o objetivo um milhão de pessoas. Escolheu-os fui o único a pedir para ser dispensado
de matar todos os judeus da União So- por estarem sob custódia dos Aliados, e da sua própria festa”, diz.

70 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


Memórias Não julgar um livro
pela capa e pelo título [Parting
Words, no original]: aqui dentro
encontra-se uma história de vida
impressionante

seria parte importante desta luta do


povo judeu, representando todas as
principais organizações judaicas do
mundo e conseguindo indemnizações
para os sobreviventes das perseguições
nazis. Desde então, dedicou-se com
empenho à causa da Justiça interna-
LUCIDEZ E PERSPETIVA cional. E, anos mais tarde, seria ele a
Um homem com o seu percurso não fazer a declaração inaugural na Con-
resiste a colocar as coisas em pers- ferência da Assembleia Geral das Na-
petiva. E ele fá-lo com propriedade ções Unidas para a criação do Tribunal
de causa. “As pessoas não pensam Penal Internacional, em 1998, cujos
que o que aconteceu na Alemanha de estatutos fundadores foram ratifica-
Hitler pode acontecer de novo, espe- dos em 2002, por 70 países, entre os
cialmente no seu país. Mas aconteceu quais não constavam, “infelizmente”,
na Alemanha há menos de um século os Estados Unidos.
e também nessa altura ninguém pen- Várias vezes se pronunciou fron-
sava que pudesse acontecer. As defe- talmente – e anticorrente – contra
É humano sas usadas pelos que levei a tribunal
em Nuremberga são usadas hoje. Por
decisões internacionais do seu país.
Em 2011, quando Osama Bin Laden
desejar todo o mundo, crimes continuam a
ser cometidos. A verdade é um bem
foi abatido, publicou uma carta no
New York Times em que alegou que
vingança, precioso. Seja qual for a vossa, não
partam do princípio de que os outros
se tratava de “uma execução ilegal e
sem mandato”. Recentemente, quando
mas temos de a conhecem, a recordam ou a ouvem.”
Depois dos Julgamentos de Nu-
os EUA anunciaram a eliminação de
Qassem Soleiman, “um líder militar
lutar contra remberga, voltou a Nova Iorque e foi
mais uma vez difícil encontrar traba-
de um país com o qual os EUA não
estavam em guerra”, escreveu que “foi
isso. Não se lho. “As grandes firmas de advogados
diziam: ‘Excelente, se alguma vez
um ato imoral e uma violação clara da
lei nacional e internacional”.
transformem tivermos de enforcar um nazi, te-
lefonamos-lhe’”, conta com humor.
Nunca vai às celebrações nacionais
do 4 de Julho. Detesta o aparato bélico,
naquilo que Começou a defender pequenos casos,
alguns desesperados. Até que Konrad
o brilho dos mísseis, das bombas, e
as pessoas a darem vivas. “Os líderes
odeiam Adenauer, que tinha chegado ao poder
na Alemanha em 1949, fez um discurso
e os seus povos que dizem que o seu
país é o maior, ou que querem que o
em que reconheceu que tinham sido seu país seja o maior, são pessoas de
cometidos crimes terríveis contra os vistas curtas.” Sobre o futuro, o seu
judeus e que havia uma obrigação conselho é simples: “Alerta e mãos no
moral por parte da Alemanha de com- volante.” E não dar nada por garantido.
pensar o mal que havia feito. Benjamin manjos@visao.pt

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 71


FOCAR D E B AT E

“Toda a nova
Direita por linhas tortas
O entendimento do PSD com o Chega, nos Açores,
e o manifesto contra o populismo, assinado por
fé começa personalidades da direita democrática, vieram relançar as
dúvidas existenciais daquela área política. E Sá Carneiro,
com uma heresia” teria ele feito o acordo com André Ventura?
Raymond Aron F I L I P E L U Í S E R I TA R AT O N U N E S
Sociólogo
e filósofo francês
(1905-1983)

72 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


Rui Rio, Francisco Rodrigues
dos Santos e Cotrim de Figueiredo
A sombra de André Ventura paira sobre

S
o PSD, o CDS e a Iniciativa Liberal?

e há algo que Rui Rio tem em


comum com André Ventura
é a reclamação da herança
de Francisco de Sá Car-
neiro. E, de facto, ambos
apresentam características
de personalidade e razões
de tática política similares
às do fundador do PPD/
PSD: o gosto pelo conflito,
o desafio do risco, a disrup-
ção no discurso, a alergia
ao consenso. Sá Carneiro, vendo-se
rejeitado pelo PS de Mário Soares para
a participação numa solução governa-
tiva conjunta (e António Costa repetiu
a História...), virou-se para a direita e
procurou combater os socialistas com
um projeto de poder que incluía um
governo, uma maioria e um candidato
a Presidente, Soares Carneiro, rotulado
de “fascista”. Estará o antigo líder a re-
volver-se na tumba ou, pelo contrário,
teria ele, em circunstâncias análogas,
assinado um acordo com o Chega?
Mais do que a análise política, é a His-
tória que pode dar-nos a resposta. Autor
de investigações sobre a revolução e a
pós-revolução de 1974 (Mário Soares e a
Revolução, D. Quixote, Eanes e a Demo-
cracia, Objectiva) e um dos maiores espe-
cialistas no estudo desse período histórico,
David Castaño é perentório: “A resposta
é não.” E justifica: “A grande rutura de Sá
Carneiro foi com o antigo regime, com
a direita autoritária, e, depois do 25 de
Abril, a sua ação foi guiada pelo objetivo
de conter essa direita (autoritária, radical
ou de extrema-direita). A sua estratégia
confrontativa com o PS, com Eanes e
com o Conselho da Revolução passava por
aqui: pela necessidade de se afirmar como
líder de uma direita democrática que ele
ajudou a construir. Para isso, Sá Carneiro
teve de liquidar politicamente essa outra
direita, pelo que não avalizaria qualquer
jogada que, de certa forma, a reabilitasse.”
O historiador defende que a direita mais
dura e antidemocrática nunca esteve no
poder, depois do 25 de Abril, “em parte,
dada a ação e o legado de Sá Carneiro”.
Mas, recorda, essa direita existiu, ao nível
partidário: “O PDC e o MIRN procuraram
afirmar-se no final da década de 70 do
século passado, e parte dessa afirmação
passava pela busca de entendimentos
com os partidos da direita democrática (o
PSD e o CDS). Aliás, estes partidos pro-
curaram, sem sucesso, integrar a Aliança
Democrática. A recusa da direita demo-
crática esteve na origem de uma nova

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 73


D E B AT E

formação de extrema-direita, a Frente


Nacional, que curiosamente tinha como
presidente da Comissão Política um dos
atuais vice-presidentes do Chega [Diogo
Pacheco de Amorim] e levou à formação
de uma aliança das direitas, a coligação
PDC-MIRN/PDP-FN, que não chegou a
obter 0,5% dos votos, em 1980...” Ora, con-
clui, “os antepassados políticos do Chega
estão aqui, não no PSD de Sá Carneiro”.

FISSURAS À DIREITA E NO PSD


Exatamente um ano antes da assinatura
do acordo entre o PSD/Açores e o Che-
ga, um extenso volume de 400 páginas,
Linhas Direitas – Cultura e Política à
Direita, publicado pela D. Quixote e
coordenado pelo ex-deputado do PSD Aliança Democrática Em 1979, Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Ribeiro Telles
Miguel Morgado e pelo historiador Rui recusaram integrar na AD o partido de um dos atuais vice-presidentes do Chega...
Ramos, procurava explicar o que são,
hoje, as bandeiras e as reflexões desta
área política. No livro, uma cuidada de Pedro Passos Coelho, a referência de esquerdas, também existem diferentes
edição de capa dura, em azul e prata, os um certo PSD que não pode deixar de direitas”. A esse propósito, Jaime Noguei-
autores dos textos, mais de 80 perso- aprovar, maioritariamente, a geringonça ra Pinto, intelectual da direita radical e
nalidades, refletem as inquietações, as açoriana, como fica claro de uma rápida compagnon de route do Chega, é bastante
ansiedades, as referências, as ideias e consulta ao que as suas bases dizem, assertivo: “A direita esteve domesticada,
as soluções da direita portuguesa. Entre nas redes sociais. E, já que falamos de nas últimas quatro décadas, por ter medo
eles, vários, como Miguel Poiares Ma- Miguel Pinto Luz, saliente-se que o seu de que lhe chamassem fascista. O Chega
duro, Adolfo Mesquita Nunes ou Carlos “chefe” na CMC, Carlos Carreiras, já foi vem reequilibrar as coisas.” Mas Pedro
Guimarães Pinto, assinam a carta dada à dizendo, em entrevista à VISÃO (progra- Mexia (advertindo que o manifesto foi
estampa, na semana passada, no Público, ma Irrevogável ), que mantém a posição feito a pensar nas eleições norte-ame-
intitulada “A Clareza que Defendemos”, de que “quem ganha [o PS, nos Açores] ricanas...) separa o trigo do joio: “Os
em que se rejeita o caminho do extre- devia governar”. Como se vê, as divisões valores representados por uma série de
mismo. Outros, como João Miguel Tava- internas, embora genericamente abafa- movimentos emergentes, na Europa, na
res ou Rui Ramos, aceitam, justificam ou das, vão provocando algumas fissuras... América, no Brasil, não têm nada que ver
aplaudem o acordo do PSD com o Chega com a direita conservadora, liberal ou de-
e, claro, não assinam o documento. A “DEMAGOGIA FUTEBOLÍSTICA” mocrata-cristã.” O poeta e crítico literário
A divisão é transversal: na semana em Será que a polarização verificada em paí- vai ao busílis da questão açoriana: “Outra
que um antigo líder da JSD, e ex-mi- ses como os EUA começa a ter réplicas em coisa são as questões de contabilidade
nistro de Pedro Passos Coelho, Jorge Portugal? O eleitorado moderado está em eleitoral ou o chamado pragmatismo.”
Moreira da Silva, manifesta indignação erosão? A direita e a esquerda moderadas O acordo assinado entre o PSD, CDS,
pela associação açoriana ao partido de tendem a radicalizar-se? Signatário da PPM com o apoio da Iniciativa Liberal e
André Ventura e exige a convocação de carta do Público e dado, por “colegas” do Chega para governar os Açores trouxe,
um congresso extraordinário que, an- seus, como principal redator do docu- assim, à tona questões existenciais sobre a
tes das autárquicas, defina a política de mento, Pedro Mexia, assessor de Cultura direita portuguesa, ou as “várias direitas”,
alianças do PSD, Rui Rio, confundindo do Presidente da República, diz à VISÃO como diz Mexia e como prefere o cien-
velhas referências ideológicas com as que, “assim como há várias correntes nas tista político António Costa Pinto. Para o
novas tendências do populismo, per- politólogo, “o Chega pode vir a constituir
gunta, no Twitter, “como vai o avanço um desafio para o PSD e, sobretudo, para
do fascismo nos Açores”. Embora o gesto o CDS”, por o segundo ter menor expres-
de Moreira da Silva não passe de um são e por até aqui agrupar votos da direita
“pronunciamento” – ele nada fará para O ABAIXO-ASSINADO mais radical. Mas acrescenta que ainda é
recolher as assinaturas necessárias à rea- cedo para falar em fazer sombra ou criar
lização desse conclave e a proposta foi CONTRA O EXTREMISMO divisões internas nos grandes; Costa Pinto
recebida, no PSD, com um ensurdecedor
silêncio, se excetuarmos as declarações FOI REDIGIDO A PENSAR não acredita que esta ascensão de outras
forças “tenha grande impacto dentro do
do vice-presidente da Câmara Munici-
pal de Cascais (CMC) e ex-candidato à
EM TRUMP, MAS SERVIU PSD”. E quanto ao diálogo iniciado entre
o PSD e Chega, este pode ser “mais uma
liderança, Miguel Pinto Luz, que a rejeita
e que defende este acordo –, há que ter
COMO UMA LUVA À dinâmica de ignorância” de Rui Rio do
que propriamente o início de uma aliança,
em conta que se trata de um ex-ministro “CIMEIRA DOS AÇORES” que não interessa nem ao PSD, “enquanto

74 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


OPINIÃO

A força e a fragilidade
partido alternativa de governação”, nem
ao Chega “que, neste momento, é visto
da decência
como um partido de protesto”.
POR PEDRO NORTON
José Adelino Maltez – professor cate-

Q
drático do Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas da Universidade de Lis-
boa – vai mais longe: “André Ventura não uando Donald Trump foi continuam de pé. Mas a democra-
é um excêntrico, como uns que aparecem eleito, em 2016, muitos se cia liberal é muito mais do que isso.
de vez em quando. Ele não se satisfaz com perguntaram se o edifí- Arrisco mesmo a dizer que os seus
a hipótese de poder ser uma ovelha tres- cio demoliberal americano pilares fundamentais são mesmo os
malhada do sistema e insiste em fazer um resistiria a quatro anos de seus pilares imateriais. A urbanidade, a
movimento que acabou de ter a sua con- ataques e tentativas de sub- decência, a moderação mínima, o res-
sagração nos Açores.” O cientista político versão por parte do próprio peito pela ideia da verdade, o respeito
não se lembra de ver nenhum trabalho Presidente. Estive sempre pelas regras não escritas (por exem-
doutrinário ou ideológico de Ventura. “É do lado dos que acreditaram que plo, da transição pacífica de poderes)
um homem do discurso, que soube per- assim seria. Escrevi então que “a estão longe de ser pormenores. São o
feitamente aprender como é que se faz democracia americana é adul- cimento cultural e social que mantém
televisão sensacionalista, ligado à dema- ta e institucionalizada. Edificada de pé o grande edifício demoliberal e
gogia futebolística. E isto de ser populista no século XVIII para reinventar a são os grandes garantes da sua susten-
depende dos votos do povo.” Os dois cien- experiência ateniense sob forma tabilidade. Ora, é difícil sustentar que
tistas políticos estão de acordo num ponto: representativa, nasceu fortemen- não se criaram fissuras brutais nestes
os acordos parlamentares à esquerda nas te influenciada pelo pensamento fundamentos imateriais da democra-
legislativas de 2015, que vulgarizaram a político liberal, consagrou direitos cia. A verdade é que se normalizou
expressão “geringonça”, deram origem à fundamentais e fez da separação o insulto, a grosseria, o desrespeito
coligação que se formou nos Açores. de poderes a sua trincheira contra institucional, a desvalorização dos
No livro Linhas Direitas, Luciano a tirania. Tem – já o provou várias factos, do respeito pelos rituais e pelos
Amaral escreve que “os velhos insultos vezes – instituições e cultura po- costumes democráticos mais básicos
dirigidos à direita, ‘neoliberal’ ou ‘fascista’, lítica suficientemente sólidas para (vale a pena ouvir o discurso de der-
passaram agora a ‘populista’, querendo lidar com situações rota de John McCain,
dizer a mesma coisa, isto é, pessoa ou extremas. Inclusiva- assim como vale a pena
grupo sem o certificado de qualidade da mente com a desti- É difícil ouvir o elogio fúnebre
esquerda”. Esta simplificação, que ignora tuição de presiden- sustentar que que lhe dirigiu Bara-
não só os populismos de esquerda como
as pulsões racistas, xenófobas ou intole-
tes que ameacem o
funcionamento do
não se criaram ck Obama para que se
perceba a dimensão do
rantes – e, portanto, muito longe do que edifício demoliberal”. fissuras abismo que se abriu).
um liberal, mesmo sem o “certificado de Quatro anos passa- brutais nos E a verdade é que não
qualidade da esquerda”, poderá defender, dos, apesar do esfor- fundamentos será fácil reconstruir
é, no mesmo livro, contrariada por Mi- ço de colonização do este legado secular.
guel Morgado que identifica o populismo, Supremo com juízes imateriais da Precisamente porque
adversário da ordem constitucional e da conservadores, apesar democracia não está cristalizado
separação de poderes, como portador da instrumentalização em códigos, porque não
de um traço despótico. Este debate, que do Departamento de depende de decretos ou
prossegue entre os teóricos, à esquerda e Justiça, apesar da transformação do de emendas constitucionais. Foi-se
à direita, pode ser dinamitado quando se Senado e do Partido Republicano sedimentando ao longo de gerações,
encontra um líder pragmático como Rui em caixas-de-ressonância do (ain- sem um guião fixo ou predeterminado.
Rio: conforme comentam observadores da) Presidente, apesar dos esforços A par da humildade e da capaci-
ligados ao PSD, o presidente social-de- para desacreditar os média (que la- dade de escutar os anseios (muitos
mocrata tem um congresso a seguir às mentavelmente cederam à tentação deles legítimos) dos quase 70 milhões
autárquicas – e “não pode lá aparecer de entrar no jogo político), dir-se-ia de americanos que ainda escolheram
tendo rejeitado a oportunidade única de que, no essencial, tive razão. Trump votar em Donald Trump, este será um
varrer os socialistas do poder, nos Açores, foi derrotado em eleições democrá- dos maiores desafios de Joe Biden.
vingando, ao mesmo tempo, a ‘afronta’ ticas e livres e, com mais ou menos Posso estar, uma vez mais, enganado.
da Geringonça de 2015 que impediu de espernear, acabará apeado do poder. Mas estou otimista. Não descuro a
governar um PSD vencedor de eleições”. Infelizmente, julgo que o veredito enormidade da tarefa, mas julgo que
Em maio de 2019, após as Europeias, não é assim tão linear. Errei, pelo me- o Presidente eleito será uma agradável
Marcelo Rebelo de Sousa antevia uma longa nos parcialmente, na minha análise. E surpresa. Mais do que carisma, mais
crise à direita e José Adelino Maltez acre- errei porque pensei então sobretudo do que excelência retórica, mais do
dita que, nos próximos tempos, a melhor nas instituições formais e no edifício que o ímpeto da juventude, a tarefa
hipótese que a direita vai ter para chegar constitucional que, repito, no es- reclama uma liderança decente, sen-
ao poder é mesmo a Presidência. “É uma sencial e apesar de todos os ataques, sata e empática. visao@visao.pt
compensação anímica.” visao@visao.pt

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 75


Lourenço, o Magnífico Autor
L AT I M com obra própria, tem sido um
incansável defensor e tradutor
da cultura latina clássica

Sapere aude
Isto é: “Ouse saber.” Um mandamento que o poeta e tradutor Frederico
Lourenço viu cumprir-se, durante a pandemia, ao ganhar milhares de
alunos para as suas aulas de Latim via Facebook. Agora, apresenta um
novo desafio: o livro Latim do Zero a Vergílio em 50 Lições

A
S Í LV I A S O U TO C U N H A

febre do latim foi, segu- associada aos territórios do conheci- fielmente, Latim do Zero a Vergílio
ramente, um dos efeitos mento científico, da crença cristã, do em 50 Lições (Quetzal, 528 páginas),
secundários mais inespe- edifício jurídico. Um fenómeno que, última demanda literária de Frederico
rados da atual pandemia. note-se, repercute uma curva mundial Lourenço, poeta, ficcionista, ensaísta,
Milhares de portugueses ascendente e que hesitamos em rotular Prémio Pessoa 2016, tradutor exce-
descobriram subitamente como “moda”, palavra demasiado de- lentíssimo de clássicos fundamentais,
a devoção por uma língua sajeitada para um gosto tão distinto. como a Odisseia e a Ilíada de Home-
milenar, raiz dos idiomas Mirabile dictu, portanto, algo admi- ro (a partir do grego) ou a Bíblia (com
latinos falados nos países rável de dizer-se. A história conta-se quatro volumes já lançados). Em março
mediterrânicos, e não só, no prefácio de Latim do Zero ou, mais deste ano, perante o confinamento de

76 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


COMUNS E IMORTAIS
Frases em latim que fizeram
uma longa viagem até chegarem,
plenas de sentido, aos nossos
dias. Cinco exemplos
entre muitos
alunos e a transfiguração das aulas em fascismo português, as línguas clássicas
ensino online, este classicista pensou eram inassaltáveis), era preciso deitar
numa forma de manter o programa
previsto para os 19 inscritos na sua tur- Errare fora o elemento que estava a impedir
os cursos de Línguas e Literaturas Mo-
ma de Poesia Latina, na Universidade
de Coimbra: nasceu, nas redes sociais, humanum dernas de serem modernos: era preciso
deitar fora o latim como elemento obri-
a página Vergílio em Coimbra. “De-
pressa compreendi que, no Facebook,
o número de interessados era muito
est Errar é humano
gatório de uma formação em línguas
românicas. E se o grego morresse por
arrasto, tudo bem.” Terminava com um
maior. Comecei a perceber que havia juramento de fé: “Bom, mas enquanto
muitas pessoas em Portugal e no Brasil eu tiver vida e saúde vou continuar a
interessadas em saborear as nuances
sublimes da poesia vergiliana – só que In vino dizer bem alto que o latim e o grego
NÃO podem morrer.” Uma das suas
lhes faltava, para tal, saberem latim.”
veritas
No vinho está a verdade
estratégias incluiu o lançamento da
Nova Gramática do Latim (Quetzal,
REDESCOBRIR A NOSSA LÍNGUA 2019), mais de 500 páginas destinadas a
Passados poucos dias, Frederico Lou- quem necessitava ou desejava aprender.
renço criava outra página: Latim do Afinal, este poeta acredita que a finali-
Zero. Na manhã seguinte, esta somava
já quatro mil interessados. E, em menos Carpe dade de se aprender latim é sobretudo...
conseguir ler em latim.
de uma semana, saltava para os dez mil;
atualmente tem quase 15 mil seguido-
res. Gente que não se assustou com a
diem
Aproveita o dia
COMO A CAPELA SISTINA
E será realmente possível passar a ler
exigência nem, por outro lado, com a Vergílio no original depois de 50 lições?
linguagem informal com que, por vezes, “É possível... Representam 50 degraus

Vox populi
o académico tempera as lições, usando que é preciso ir subindo até chegar ao
expressões como “ta-ta-ta-Tão”, dizen- Parnaso [a montanha sobre a antiga
do que Eneias estava “com a corda toda” cidade de Delfos, morada do deus Apo-
ou falando do problema duma “eventual Voz do povo lo e das nove musas]. Cada um desses
flatulência” dos soldados escondidos no degraus tem de estar bem assimilado,
cavalo de Troia... O classicista defende antes de se avançar. Mas o método está
o latim como “a língua mais bela, mais
Mens sana in pensado de maneira que, ao fim das 50

corpore sano
expressiva e mais apaixonante” que lições, se tenha os instrumentos para
conheceu, reconhecendo-lhe “uma se conseguir ler os extraordinários
solenidade, uma beleza, uma chama cantos I e IV da Eneida.” Escrito pelo
viva interior”. Mas refuta que esta ex- Uma mente sã em corpo são poeta romano Públio Vergílio Maro (70
periência pedagógica seja uma demanda a.C.-19 a.C) no século I a.C., este poema
heroica em prol de uma língua extinta: épico narra a conquista de Troia pelos
“Eu não vejo o latim como língua morta. gregos, a fuga dos sobreviventes e a sua
Basta consultar a internet e o YouTube saga marítima em direção a Itália, a sua
e vemos centenas de pessoas no mundo luta para aí criar uma pátria, o império
inteiro que falam latim. Mas, sobretudo, romano que aí nasceria daí a 400 anos.
não é uma língua morta para nós, fa- Frederico Lourenço chama-lhe “a obra
lantes de português. O latim é a mãe do literária perfeita”. “AEneida tem esse
português, com irmãs que são o espa- dom extraordinário, como quando se
nhol, o italiano, o francês... Aquilo que contempla a Capela Sistina: como é
mais espanta quem começa a aprender que se chegou a este conseguimento
latim é o encantamento de redescobrir estético, artístico, espiritual?” Absorver
a sua própria língua, de compreender a essa epifania em latim, reconhecendo
origem latina de todas as palavras em os ecos da contemporaneidade, tam-
português.”
Poderá não ser uma demanda, mas é
DO FACEBOOK PARA O PAPEL bém deverá ter tido um papel na febre
do latim. O ensaísta aponta para uma
Edição cuidada, Latim do Zero a Vergílio
uma velha guerrilha. Numa crónica de em 50 Lições (Quetzal, 528 págs., possível leitura atual deste “poema de
2018, Frederico Lourenço insurgia-se €24,40) contém, na forma de pequenos, migração” com barcos de refugiados
contra o facto de se ter abandonado a minuciosos e apelativos textos, de diversas em pleno Mediterrâneo: “Estamos no
aprendizagem do latim no Ensino Se- proveniências e sem “bizantinices”, as século XII a.C., mas podíamos estar em
cundário e apontava um efeito colateral bases gramaticais necessárias para ler 2020 d.C...” Os milhares que aprende-
da Revolução dos Cravos: “Criou-se a os cantos I e IV da Eneida e o livro I das ram latim durante a pandemia poderão
ideia de que, para efetuar a libertação Odes de Horácio, incluídos em versão dizer ao mundo: Sapientiam autem
completa do passado pré-25 de Abril integral e bilingue. Trabalhos para casa, non vincit malitia, com a sabedoria, o
(isto porque, no sistema educativo do portanto, em tempo de confinamentos. mal não prevalece. scunha@visao.pt

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 77


I N I C I AT I VA

“A nossa expectativa é, ao identificar


os mecanismos que permitem a este mamífero
regenerar o sistema nervoso, ser capaz de os
recapitular noutros mamíferos que não regeneram,
como é o caso do Homem”
MÓNICA DE SOUSA COORDENADORA DA EQUIPA GALARDOADA, EM 2019, COM O PRÉMIO MELO E CASTRO

Mudar vidas com as neurociências


Três investigações que prometem melhorar a vida de pessoas com doença de
Parkison e com lesão vertebro-medular venceram, em 2019, os prémios da
Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, dos quais a VISÃO é parceira de média

U
SUSANA PINHEIRO

ma nova terapia que “poderá motoras e fisiológicas. É precisamente Porto, em colaboração com o Centro de
atenuar ou atrasar a progres- este problema que Mónica de Sousa, Investigação em Biomedicina da Univer-
são” da doença de Parkison e coordenadora da equipa galardoada, em sidade do Algarve, já fez, entretanto, uma
diminuir os tremores e a rigi- 2019, com um dos dois Prémios Santa descoberta que pode trazer alguma luz a
dez muscular destes doentes, Casa Neurociências – o Prémio Melo e estes doentes. “Verificou-se que o ratinho
uma outra investigação para Castro –, está a estudar em laboratório, espinhoso africano – Acomys – é capaz
otimizar o tratamento destas mas com ratinhos. A investigadora do de recuperar função sensitiva e motora,
pessoas, que têm alterações Instituto de Biologia Molecular e celular bem como o controlo da função urinária,
da marcha após cirurgia de - IBMC da Universidade do Porto crê que após lesão completa da medula espinal”,
estimulação cerebral pro- os resultados deste projeto poderão, no desvenda a investigadora. Se a equipa
funda, e ainda um estudo que pode vir futuro, “oferecer novas oportunidades te- conseguir identificar os mecanismos que
a criar novas terapias para regenerar o rapêuticas a doentes humanos com lesão permitem a este mamífero regenerar o
sistema nervoso de doentes com lesão medular”. A equipa da Universidade do sistema nervoso, pode, assim, “ser capaz
vertebro-medular. Estas investigações de os recapitular noutros mamíferos que
estão a ser desenvolvidas pelos vence- não regeneram, como é o caso do Ho-
dores dos três prémios da Santa Casa da mem”, descreve. O que pode ser a chave
Misericórdia de Lisboa (SCML) de 2019 para os doentes com lesão vertebro-me-
e representam um avanço na Ciência e dular verem reduzidas as suas limitações
na Medicina Clínica. motoras e fisiológicas.
Estas terapias inovadoras trazem es- Depois de perceberem porque este
perança de, no futuro, os doentes verem mamífero tem essa capacidade regenera-
atenuados o sofrimento e impacto que P R É M I O S S A N TA C A S A N A tiva do sistema nervoso e é capaz de andar
estas condições têm nas suas vidas. No ÁREA DAS NEUROCIÊNCIAS após lesão completa da medula espinal,
caso das lesões vertebro-medulares, São três: Prémios Mantero Belard e Prémio Melo os investigadores vão tentar “modificar
por exemplo, o sistema nervoso cen- e Castro, ambos criados em 2013, com um prémio o ratinho comum, de forma a que tam-
de 200 mil euros, e Prémio João Lobo Antunes,
tral – cérebro e medula espinal – não criado em 2017. No final do mês serão conhecidos bém seja capaz de recuperar após lesão
regenera após lesão e ficam limitações os vencedores de 2020 vertebro-medular”. Só depois é que se

78 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


“O objetivo principal deste projeto
de investigação é intervir na progressão
da doença de Parkinson, ou seja, procurar
modular ou atrasar a sua progressão”
FÁBIO TEIXEIRA COORDENADOR DO PROJETO GALARDOADO, EM 2019,
COM O PRÉMIO MANTERO BELARD

“Com o trabalho que estamos sentido de contribuir para uma melhor Parkison, mas com recurso a uma abor-
a desenvolver, esperamos qualidade de vida destas pessoas. dagem diferente. Está a avaliar o efeito
“Ao conjugar diferentes estratégias, da cirurgia de Estimulação Cerebral Pro-
otimizar o tratamento de procuraremos não só ter impacto na funda (DBS) na marcha dos utentes que
doentes com doença de componente motora e não motora mas são seguidos na consulta de Doenças do
Parkinson que apresentem também na própria progressão da doen- Movimento do Hospital de Santa Maria,
alterações da marcha, após ça, cujo objetivo é tentar atenuar e/ou em Lisboa, e que são candidatos ou que
cirurgia de estimulação atrasar a sua progressão”, resume o in- são sujeitos a DBS.
vestigador do Instituto de Investigação Segundo a médica, “nas fases avan-
cerebral profunda” em Ciências da Vida e Saúde (ICVS) da çadas da doença, a resposta a medicação
ANA RAQUEL BARBOSA NEUROLOGISTA, Escola de Medicina da Universidade do oral é, muitas vezes, insuficiente” e, por
VENCEDORA DO PRÉMIO JOÃO LOBO ANTUNES 2019 Minho, que conta com a colaboração da isso, alguns doentes são submetidos a
NeuroSpin, em Paris. Mais, realça: “Se DBS para obterem um melhor contro-
pode pensar em aplicar a metodologia formos bem-sucedidos, no final de 2022, lo dos seus sintomas e complicações
em doentes com lesão vertebro-medular, esta abordagem permitirá, por exemplo, motoras. A maioria dos sintomas, como
adverte a investigadora, ressalvando que reajustar doses terapêuticas – que, em rigidez, lentidão e tremores, melhoram.
“estes estudos são sempre muito longos, alguns casos, já chegam a ser muito altas Ainda assim, lamenta, “sabe-se que,
qualquer nova terapia demora vários anos – e com isso atenuar o aparecimento de num subgrupo de doentes, os sintomas
até poder ser aplicada em humanos”. efeitos secundários.” axiais – marcha, equilíbrio – podem não
Esta abordagem “representa uma mu- apresentar uma melhoria tão significati-
NOVA ESPERANÇA dança de paradigma face às terapêuticas va, podendo ainda, em casos mais raros,
PARA OS DOENTES DE PARKISON convencionais”, pois “a maioria dos tra- piorar”. Com maior risco de quedas e a
Também Fábio Teixeira, coordenador tamentos ou das estratégias terapêuticas uma diminuição da qualidade de vida. É a
do projeto galardoado, em 2019, com disponíveis apenas se têm focado na me- pensar nestas pessoas que a neurologista
o Prémio Mantero Belard, no âmbito lhoria das debilidades motoras”, explica. quer perceber porque ocorrem estas alte-
dos Prémios Santa Casa Neurociências, Os investigadores pretendem combinar rações após a cirurgia e “tentar encontrar
considera ser “ainda prematuro antever dois fármacos já usados na prática clínica um novo paradigma de estimulação que
quando a estratégia terapêutica”, que e que são potenciais modificadores da consiga otimizar a marcha”.
a sua equipa está a desenvolver desde doença, com o secretoma de células es- Neste momento, está a “tentar identi-
janeiro deste ano, pode ficar disponível taminais (um “cocktail” de fatores tróficos ficar fatores pré-operatórios que possam
para os doentes de Parkison. “Falamos segregados por estas células, com resul- estar associados ou predizer um risco
da segunda doença neurodegenerativa tados promissores) e a ultrassonografia acrescido do desenvolvimento desta
mais prevalente em todo o mundo que guiada por ressonância magnética. perturbação”. A neurologista também vai
se caracteriza por complicações motoras usar “sensores inerciais, que são peque-
graves, causadas pela degeneração pro- OTIMIZAR A MARCHA nos sensores de movimento colocados
gressiva dos neurónios dopaminérgicos.” PARA EVITAR RISCOS no corpo do doente e que permitem ca-
Com esta abordagem terapêutica Também a neurologista Ana Raquel Bar- raterizar, com parâmetros biomecânicos
“inovadora”, que combina farmacologia, bosa, vencedora do Prémio João Lobo e de cinemática, a sua marcha”.
medicina regenerativa e (bio)tecnologia, Antunes 2019, quer contribuir para uma Este ano são esperados três novos
“a expectativa é dar mais um passo” no melhor qualidade de vida dos doentes de vencedores nestas categorias. visao@visao.pt

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 79


VAGA R

“Não existe
grandeza
onde não há
simplicidade”

Quando a RUA
Lev Tolstói
Escritor
(1828-1910)
MÚSICA

é o PALCO
MESMO EM TEMPO DE PANDEMIA,
AS CIDADES CONTINUAM A SER CENÁRIOS
DE CONCERTOS. DA ÓPERA AO ROCK, HÁ MUITA
MÚSICA NO AR, INTERPRETADA POR ARTISTAS
CADA VEZ MAIS PROFISSIONALIZADOS. QUEM
FAZ OUVIDOS MOUCOS NÃO SONHA
O QUE ELES ANDARAM PARA ALI CHEGAR
ROSA RUELA

80 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


TIAGO BARBOSA
30 ANOS
Costuma dizer que apresenta
música do mundo, mas
também vai cantando originais
seus. Já andou pela Ribeira
do Porto, agora prefere parar
mais nos Clérigos. Está
a participar no The Voice
Portugal (SIC), em que chegou
à fase do tira-teimas

LUCÍLIA MONTEIRO

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 81


R
MÚSICA

Rini Luyks tem uma teoria maravilhosa.


Diz ele que um dos melhores cenários
para a sua música ser apreciada é uma
rua quase vazia. Espantados? Nós tam-
bém ficámos, mas o espanto só durou
dois minutos. Foi o tempo de vermos
uma mulher subir a Rua do Carmo,
abrandando à chegada aos Grandes
Armazéns do Chiado, para largar umas
moedas no saquinho que o músico
holandês acabara de abrir em cima da
grande mochila de cabedal em que
transporta o acordeão.
Passava pouco das sete da tarde de
uma quinta-feira, o céu estava muito
escuro e havia um vento frio. O Liber-
tango de Piazzolla ainda ecoava na rua
quando Rini agradeceu o donativo com
um aceno de cabeça e cruzámos olhares
num silencioso “aha”.
Escrevo isto em casa, ao som de uma
bela versão desse tema clássico do mú-
sico argentino que Rini Luyks gravou,
em 2011, com o pianista brasileiro João
Leopoldo. Os artistas de rua que entre-
vistámos têm músicas disponíveis no
YouTube. É um prazer ouvi-las e ajudam
a regressar aos momentos de reporta-
gem, como aquele em que uma teoria foi
comprovada logo aos primeiros minutos
da atuação.
“Se não houver confusão, o que eu
toco ouve-se de um lado e do outro
da rua, e as pessoas já vão decidindo o
que querem dar”, explicara o holandês,
enquanto ajustava as alças do acordeão
para arrancar com a música. “Por isso
é que não gosto que esteja muita gente
SHAMO E SARI calhambeque dos fados”, já contara, ao
telemóvel.
30 ANOS E 33 ANOS
a passar.”
Começar um artigo sobre músi- Juntos são os Coco Pilots, “ÓPERA DE RUA”
cos de rua com um deles a dizer que uma banda de reggae, world Talvez tenha ganho a licença por ser “um
prefere pouco movimento parece um music, cumbia e jazz. Ele toca veterano”, como costuma apresentar-se
contrassenso, mas acaba por ser uma trompete, ela toca guitarra do alto dos seus mais de 30 anos de mú-
coincidência feliz em novembro de e canta. Este ano, lançaram sico de rua. Seja como for, só pode tocar
2020. Claro que Rini não estava a falar um álbum e têm um concerto uns metros abaixo dos Grandes Arma-
de uma rua qualquer. A sua teoria faz marcado para o dia 30, no zéns do Chiado, apenas até às 20 horas
sentido numa rua como a do Carmo, Arroz Estúdios, em Lisboa e sem qualquer tipo de amplificação.
de características acústicas “perfeitas”, Uma sorte, mesmo assim, concluímos,
por ser estreita e ter prédios altos. Na ao saber de episódios de multas passadas
ausência, por causa da pandemia, do pela polícia municipal a vários músicos.
bruaá da multidão nos anos anteriores, “Enquanto noutras cidades da Europa
ela faz ainda mais sentido. pagam aos artistas de rua, em Lisboa
É ali que Marinus “Rini” Luyks, nasci- foram prometidas melhores condições
do em Bergen op Zoom, uma cidadezi- mas nada avançou”, lamenta Rini. “Nós
nha do sul dos Países Baixos, toca desde devíamos organizar-nos, nem sequer
1987. Em outubro de 2016, foi o único temos um sindicato.”
artista a quem a Junta de Freguesia de Uns dias antes de o conhecermos,
Santa Maria Maior concedeu uma licença tínhamos combinado assistir à atuação
para trabalhar na rua (renovável de seis dos cantores líricos Florencia Ribero e
em seis meses; 12 euros pela ocupação André Navarro, também na Rua do Car-
de um metro quadrado). “Estou eu e o mo. Num instante, vemos como basta

82 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


LUCÍLIA MONTEIRO

BRUNA COSTA acreditar Sari, com quem conversámos


num final de tarde, antes de Adam che-
20 ANOS
gar com o seu trompete a essa mesma
Só se estreou nas ruas esplanada onde costumam tocar reggae
do Porto no final de maio, (e world music, cumbia, jazz...). “Um
mas já tem anos de concertos. trombone, por exemplo, é legal e, no
Aos 15, foi ao The Voice entanto, faz muito mais ruído do que
Portugal (SIC). Canta covers a minha guitarra e a voz amplificadas.”
e originais, e tanto compõe em Para a vocalista dos Coco Pilots, não
português como em inglês se devia tratar de uma questão de am-
plificação, mas de decibéis. “Hoje temos
acesso a telefones com medidores, era
fácil orientarmo-nos”, nota. “Além de
DIANA TINOCO

que impedir a utilização de um ampli-


ficador é um pensamento retrógrado de
quem não percebe que a música está a
evoluir e que cada vez mais precisamos
de aparelhos eletrónicos para criar – pe-
um telemóvel e uma minicoluna para a alento para regressarem com a sua “ópe- dais de efeitos, loop stations, etc.”
soprano uruguaia e o tenor chileno vol- ra de rua” ao Chiado, onde hoje muita
tarem a pôr em prática o projeto Street gente os reconhece do concurso da RTP VIAGENS E BATALHAS
Opera, com que já ocupavam a melhor Got Talent Portugal. O assunto é central na vida dos músicos
parte dos seus dias antes da quarentena, A 18 de maio, voltaram, então, à Rua de rua e também mexe com quem habita
e como há quem se emocione a ouvi-los do Carmo, levando a tal minicoluna no centro das cidades mais turísticas.
interpretar a conhecida ária Un Bel dì debaixo do braço, mesmo sabendo que Em outubro do ano passado, em Lis-
Vedremo, de Puccini. é proibido usar amplificação. “Estamos boa, foi notícia o “esquema radical” a
Até meados de maio, os dois amigos sempre atentos para o caso de aparecer que recorreu um morador do Largo do
ficaram por casa, mas não resistiam a a polícia e termos de a esconder rapida- Carmo, cansado com a constante mú-
fazer diretos no Instagram. “Num des- mente”, admite André. Não se esquecem sica “aos berros, até altas horas” na rua:
ses lives, como estava calor, acabámos de que polícia municipal já lhes apreen- colocou uma coluna de som na varanda
a improvisar à varanda, de telemóvel na deu uma coluna grande, multando-os do seu prédio, ligada a um computador
mão”, recorda Florencia. Os aplausos da em 150 euros. pronto para passar uma compilação de
vizinhança foram tantos que assumiram O mesmo ia acontecendo há uns salsa. Citado pelo Público, o diplomata
aqueles Concertos na Varanda, e um meses aos Coco Pilots, a banda da por- Fernando Tavares de Carvalho confessa-
vizinho convenceu-os a colocarem no tuguesa Sara “Sari” Serôdio e do francês va-se indignado com a “passividade das
passeio uma caixa para donativos, atada Adam “Shamo” Bertin, quando estavam autoridades” perante o que considerava
a seis metros de corda. a tocar junto à esplanada do Miradouro ser ruído excessivo.
A experiência levou-os a pensarem da Graça. Não era a primeira vez que um A história é-nos recordada pelo mú-
propor na Junta de Freguesia da Penha polícia interrompia uma atuação, mas sico português Mário Nobre que nunca
de França cortar a rua de vez em quando nesse dia quis também confiscar-lhes o assistiu a uma dessas batalhas de som
para se montar um palco no meio, per- equipamento, entretanto posto a salvo mas quase dá razão ao morador. Tínha-
mitindo assim que os vizinhos assistam por moradores do bairro. mos começado a ouvi-lo no jardim do
a concertos nas janelas. E isto deu-lhes “É ignorância de quem legisla”, quer Príncipe Real, três ou quatro músicas

19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 83


MÚSICA

acompanhadas à guitarra, em acústico,


moedas recolhidas num copo montado FLORENCIA E ANDRÉ
num stick extensível para selfies e ala 31 ANOS E 33 ANOS
que se faz tarde. Sete anos a cantar na Trouxeram o projeto Street
rua, entre o Brasil e Portugal, ensina- Opera de Buenos Aires, onde
ram-lhe a evitar aborrecer quem está se conheceram. Ao fim de um
numa esplanada. ano e três meses em Lisboa,
“Isto era um estrilho... Às vezes, as a soprano uruguaia e o tenor
pessoas abusavam e o Carmo saturou-se, chileno continuam a acreditar
foi queimado”, lamenta, olhando o lar- que a rua é um bom palco
go em volta. “E não era só aqui. Estavas também para a ópera
num sítio e já havia uma fila para tocar
a seguir a ti. Ficou uma selva, insupor-
tável. É um pouco chato dizer isto, mas
o corona veio suavizar.”
A primeira vez em que Mário cantou
na rua foi no Brasil, em Florianópolis,
onde ainda hoje passa metade do ano.
Tinha 32 anos, um curso de Turismo
e outro do Chapitô, e recomeçara a
compor música nos intervalos de fazer
os pastéis de nata que vendia na praia
e à porta das cantinas da Universidade
Federal de Santa Catarina. Uns músicos
incentivaram-no a arriscar e, logo na
estreia, ele e um amigo ganharam em
reais o equivalente a 25 euros.
Em Lisboa, experimentou em 2015,
à porta do Mosteiro dos Jerónimos,
e correu-lhe logo bem. Agora que há
mais portugueses do que estrangeiros a
assistir às suas atuações, dá graças a ter
participado no concurso The Voice Por-
tugal, no final do ano passado, em que
chegou à terceira fase, a do tira-teimas.
“As pessoas reconhecem-me e dão-me
notas de cinco”, ainda se espanta.
Nesse programa da SIC, Mário Nobre
contou como se apaixonou pela música
aos 14 anos e aos 17 já tinha uma banda
de indie rock, os Acid Flowers, com a
qual deu o seu primeiro concerto, no
Johnny Guitar. Conta-nos que, por
ser preguiçoso, desatou a compor mal
DIANA TINOCO

começou a ter aulas de guitarra. “Não


conseguia aprender as músicas”, ri-se.
O curso de Turismo surgiu na sua
vida porque queria muito viajar, e a ver-
dade é que seria uma viagem a mudar-
-lhe o rumo. Foi no Brasil que se casou
e decidiu voltar à música, montando o
MÁRIO NOBRE “O MENOR E O MAIOR
PALCO DO MUNDO”
40 ANOS
projeto M.A.S.U. que junta autores inde- No Porto, Bruna Costa também é muitas
pendentes; foi também de lá que partiu Divide o ano entre Portugal vezes reconhecida como “a miúda do
estrada fora, com mais quatro músicos, e o Brasil. Quando não The Voice”, embora já tenha participado
enfiados num velho Fusca de 1972, em está a cantar pelas ruas de no concurso há cinco anos. Mas no dia
direção à Argentina e ao Uruguai. Ima- Lisboa, onde o reconhecem em que a ouvimos, ao pé do shopping
ginamos o êxito que ainda hoje faz nos do The Voice, faz vídeos para Via Catarina, tentam meter-nos uma
“Brasis” o seu chapéu de campino (com- o REC’n’play, um canal do cunha inesperada e desnecessária: “A
prado pelo pai, o historiador Eduardo Brasil, com outros artistas menina que é jornalista tem de falar
Nobre, que escrevia as letras de Dina, portugueses e brasileiros com o Júlio Isidro. Ele vai fazer dela
nos anos 80). um espanto!”

84 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


de guitarra às costas fica logo seu amigo.
Ainda não calhou, mas um dia destes
vamos vê-la ao lado de Tiago Barbosa,
que se mudou da Póvoa do Lanhoso para
o Porto porque queria cantar na rua. Era
uma maneira de se profissionalizar sem
ter de atuar em bares nem depender de
eventuais concertos, explica o gigante
ruivo que Portugal agora acompanha
no The Voice. “Fiz uma planilha com o
mínimo de horas que tenho de traba-
lhar por dia. E entretanto já consegui
comprar uma scooter para transportar
tudo – microfone, tripé, guitarra, am-
plificador e pedais de efeitos.”
Tiago tem 30 anos, quer comprar uma
casa, ter um estudiozinho, ser pai. Há
de escrever as suas próprias letras, mas
só quando sentir que tem uma palavra
justificada, um pensamento construído.
“Não devemos falar barato”, diz, num

DIANA TINOCO
intervalo de mais um dos seus concertos
nos Clérigos.
Aos 19, ainda na Póvoa do Lanhoso,
cantava numa banda de covers e tra-
Bruna não precisa de cunhas de nin- Fechada, como todos, em casa, Bruna balhava na fábrica de pedra dos pais.
guém. Filha de um músico, tinha 15 anos lembrou-se, então, de criar um projeto Depois, mais a sério, pertenceu a uma
quando criou um canal de YouTube e de home busking, no Facebook e no Ins- banda de baile, a Orquestra Flash Show,
começou a cantar num restaurante, por tagram. Se um busker é um performer de e começou a ter aulas com uma cantora
sugestão do seu professor de teatro mu- rua, ela ia ser uma “performer caseira”, lírica. “Há sempre espaço para evoluir,
sical. Foi também ele quem lhe falou no porque não? Os concertos correram tão e a verdade é que eu cantava quase a
programa da SIC. A passagem pelo The bem que recebeu donativos por MB Way berrar, era muito rocker”, confessa, com
Voice, “curtinha, mas boa”, deu-lhe mais e PayPal. E quando, no final de maio, de mais uma das suas gargalhadas.
certezas de que queria seguir música. volta ao Bolhão e às ruas, o músico bra- A primeira vez que Tiago atuou na rua
Decidiu estudar teatro, aprendeu sozi- sileiro Fabrício lhe estendeu a guitarra, foi no Jardim do Morro, em Vila Nova de
nha a tocar piano e ukelele, fundou uma já não hesitou. Gaia, e adorou a troca de energias. “As
banda com amigos do pai e começou a Hoje, “a miúda do The Voice” faz qua- pessoas se param é para te ver e ouvir. Só
compor os seus temas. se todos os dias o caminho entre a Maia param se quiserem. E, quando o fazem,
Em julho do ano passado, entrou no e o Porto para cantar na Ribeira e em sentes uma gratidão incrível”, analisa.
Teatro do Bolhão, mas sem conseguir Santa Catarina. Confessa ter saudades “Há um feedback instantâneo. Aquela
desistir da música. “Andava à procura do da banda, mas tornou-se uma espécie pessoa gostou, virou.”
meu percurso quando fui surpreendida de música residente num hostel e diz “Gostou, virou” é o mecanismo do
por esta coisa da Covid-19”, recorda. adorar a rua por ser “o menor e o maior programa de caça-talentos da SIC em
“Ainda por cima, estava finalmente a pôr a palco do mundo”. Na maioria das vezes, que está atualmente a participar e no
hipótese de ir tocar para a rua, já me sen- atua com o “padrinho” Fabrício, mas qual se apresentou como “artista de
tia crescida e com à vontade suficiente.” qualquer outro músico que lhe apareça rua”. Queria conhecer outros músicos,

* Não incluí despesas de igreja, serviço religioso, taxas de cemitério e documentação.

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MÚSICA

vir a gravar com uma editora, ganhar


exposição. “E já valeu a pena”, acredita.
Tivesse ele os anos de experiência que
tem Rini Luyks e chegaria à conclusão
de que a rua é boa para arranjar mais
trabalho. Um exemplo, entre muitos: em
2014, o músico holandês foi convidado
para tocar no Festival de Almada depois
de Rodrigo Francisco, o diretor artístico,
o ter ouvido no túnel da Rua Garrett. A
peça era A Tragédia Otimista, do dra-
maturgo soviético Vsevolod Vichnievski,
e por acaso o acordeonista até fala russo.
Rini dá prioridade aos teatros, mas
continua a adorar a rua por causa do
contacto muito direto. “Num palco, o
público é distante mas também, se não

DIANA TINOCO
estás em forma, se tocas mal, nota-se.
Isto aqui é mesmo honesto”, percebeu
cedo.
A sua estreia, em 1982, em Antuérpia,
para onde foi de bicicleta, teve uma fal-
sa partida, tanto era o medo. A história
mete uma noite passada no banco de
RINI LUYKS Europa, onde ainda hoje mantêm um
público fiel. E, antes de se fixarem em
66 ANOS
um parque e está bem contada por si Lisboa, viveram um ano em França,
no blogue Anacruses, que partilha com Há mais de 30 anos que este conta Sara, a mil, enquanto monta o
os compositores Fernando Mota e Rui holandês toca acordeão estaminé dos Coco Pilots – além do
Rebelo. na Rua do Carmo, em Lisboa, painel solar, há uma mala com CD,
Para trás ficava definitivamente uma onde é o único músico com postais, sacos de pano e uma máquina
carreira como investigador e professor licença passada pela junta. para fazer pagamentos. “Tenho uma
de Química. Já em Lisboa, voltou a dar Foi teclista dos Lucretia Divina visão de empreendedora para a música.
aulas, mas de acordeão, a outros músi- e já colaborou em várias peças Sou uma freak – o meu sonho de miss
cos, e de holandês a dentistas portugue- de teatro é ir tocar à Lua –, mas com consciên-
ses que no tempo da Troika emigraram cia”, ironiza.
para os Países Baixos. Agora, tem sau- Foi ela a grande impulsionadora da
dades dos anos em que colaborou com página de Patreon que criaram durante
a Fundação do Gil – se, entre 2004 e a quarentena para conseguirem traba-
2011, o vimos menos na Rua do Carmo lhar em casa. “Em cada crise há uma
foi porque andou deliciado a tocar para oportunidade”, acredita. E, em casa,
crianças, em hospitais. encheu um quadro com post-its em que
Se ganhar dinheiro é bom, “fazer a aponta as datas dos concertos em bares,
diferença” é melhor, também sabem Flo- e ambos atuaram em salas de espetá- os videoclipes que querem realizar ou
rencia e André que estão cada vez mais culos emblemáticas antes de decidirem as publicações no Instagram. Sara tra-
decididos a tirar a ópera dos teatros, ir para a Europa, já com o projeto da balhou em Arquitetura durante quatro
onde os bilhetes são caros, e a pô-la em Street Opera. anos, depois de se licenciar em Berlim,
palcos abertos. “A cidade já é um cená- Os Coco Pilots também nasceram e vai fazendo um projeto por ano, para
rio”, nota a soprano uruguaia, avançando fora de Portugal, no Camboja, quando não perder a mão. Ficou-lhe o gosto
duas hipóteses exequíveis: “La Bohème Sara e Adam se encontraram num mini- pelo planeamento – “e pela liberdade”,
com as casas de Lisboa como fundo ou festival de rua, no Natal de 2017, e deci- sublinha.
a Madame Butterfly junto ao Tejo.” diram atuar juntos. Na Ásia, o francês era Como é que uma menina da Foz e
Enquanto isso não acontece, vale a conhecido como o Trumpet Guy, tinha que estudou no Colégio Alemão “vai
pena ir ao Chiado ouvi-los ou ver no uma banda de reggae e dava concertos. A parar à rua”? Ela ri-se. No Porto, onde
YouTube o episódio 10 da série People portuguesa já cantava nas ruas de Berlim a família Serôdio é conhecida q.b., sente
of Lisbon, do irlandês Stephen O’Regan. depois de se estrear, numas férias, em que existe um preconceito. “As pessoas
Em poucos minutos, ficamos com um Itália. “Da primeira vez, tinha 20 anos e pensam: ’Só toca na rua porque não
lamiré do percurso destes dois cantores sabia tocar quatro músicas na guitarra”, tem outras possibilidades...’ Quando eu
que se conheceram em Buenos Aires recorda. “Estava à frente do Panteão de escolho fazer música, e desta maneira,
antes de se mudarem para Portugal, Roma e pensei: ‘Ai que figura’, mas veio é a minha paixão.”
em agosto de 2019. Ambos estudaram um turista e deixou 5 euros.” Quem vê os músicos na rua não lhes
canto lírico e se licenciaram em Música, Da Ásia, os dois seguiram para a adivinha as vidas. rruela@visao.pt

86 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


CONFERÊNCIA

PORTUGAL
EM EXAME

DATA
23 A 27
DE NOVEMBRO
11H30
Discutir o País, neste momento tão desafiante LOCAL
para a economia portuguesa SITE E FACEBOOK
DA EXAME
Pensar Portugal
Francisco Assis – Presidente do Conselho
Económico e Social
António Bagão Félix – Economista

Reshaping the future


Sérgio do Monte Lee – Partner da Deloitte

O financiamento na retoma
Luís Castro e Almeida – CEO do BBVA Portugal

Os caminhos da recuperação
Susana Peralta – Professora de Economia
na Nova SBE

Grande Entrevista
Pedro Siza Vieira – Ministro de Estado,
da Economia e da Transição Digital

Organização Patrocinador Knowledge Partner


TENDÊNCIAS

Os nossos
bichos tech
O mundo das aplicações e dos gadgets para animais
de estimação está cada vez mais avançado.
Com a ajuda de especialistas, selecionámos alguns
destes “brinquedos” que levam muito a sério
a saúde dos nossos amigos de quatro patas

H
B E AT R I Z C AVA C A

oje em dia, através borboleta automática, exercitando-o. E o


do uso de aparelhos objeto Atira Bolas, outro exemplo, pode
tecnológicos, é pos- ser programado para atirar bolas e dar
sível tornar a vida recompensas mesmo quando o tutor não
dos nossos animais está em casa. Este gadget é comandado
de estimação mais através de controlo remoto.
divertida e também A higiene é também uma preocu-
facilitar o trabalho pação, destacando-se o caixote Litter
aos donos, mesmo quando estes não Locker, que usa uma tecnologia inova-
estão perto dos seus bichos. dora para guardar, sem qualquer tipo de
Recorremos aos conselhos de espe- cheiros, os dejetos de gatos provenientes
cialistas que nos recomendaram apli- das caixas de areia. O caixote acomoda
cações e gadgets, sendo a seleção que esses resíduos num saco biodegradável
aqui apresentamos resultado das dicas que fica totalmente isolado dentro de um
das clínicas Vet Planet e das lojas Fish pequeno contentor. Quando é necessário
Planet, Petoutlet, Ruff Dog e Pet Online. substituir o saco, basta retirá-lo, lacrá-lo
No mundo das aplicações já existem e deitá-lo fora no lixo orgânico.
inúmeras alternativas que podemos usar Para os dias mais quentes, destaca-
para controlar a saúde e o exercício dos -se ainda outro gadget – um tapete que
animais. Exemplo disso é a app PitPat, permite medir a temperatura do cão e
que opera com a ajuda de um pequeno refrescá-lo se disso houver necessidade.
aparelho colocado na coleira do cão,
podendo definir planos de alimentação ALIMENTAR À DISTÂNCIA
e exercício para melhorar a saúde deste. A tecnologia no ramo animal não se
Permite ainda averiguar se os animais desenvolve apenas em torno da saúde
estão a ter o tempo correto de passeio, física. Hoje em dia, existe também uma
tendo em conta a quantidade de comida preocupação com a saúde mental e com
que ingerem, o seu peso e a sua raça. A o potenciar das capacidades dos animais
aplicação revela-se especialmente útil ao longo da vida. Por esse motivo, os
em casos de cães com excesso de peso, especialistas consultados aconselham os
sendo possível ao tutor verificar a saúde puzzles Nina Ottosson que, através de
do seu amigo de quatro patas. diferentes modelos, procuram despertar
Ainda na área da saúde existem inú- a curiosidade dos animais e ensinar-lhes
meros gadgets que, com o uso da tec- a resolver problemas básicos a troco de
nologia mais atual, permitem potenciar recompensas, estimulando a atividade
as capacidades físicas de cães e gatos. física e intelectual. Além de cansarem
A Borboleta Interativa, por exemplo, fisicamente os animais, o objetivo destes
incentiva cada gato a perseguir uma puzzles para cães e gatos é ensinar-lhes

88 VISÃO 19 NOVEMBRO 2020


Cuidado e diversão Dos alimentadores
inteligentes controlados à distância aos
puzzles para estimular a mente, é a tecnologia
ao serviço dos animais de estimação

a procurar itens e a resolver enigmas.


E quando estamos longe? Como pode-
mos controlar os nossos animais? Através,
por exemplo, de um conjunto de objetos
que nos permitem alimentar e entreter os
nossos animais, mesmo quando não esta-
mos com eles. Veja-se o Pawbo Crunchy,
um alimentador inteligente, para o nosso
cão ou gato até dez quilos de peso, através
de um plano adequado a cada animal, de-
finido numa aplicação. Já o Pawbo Spring
é uma fonte de água inteligente, contro-
lada através de uma aplicação, que não só
disponibiliza água durante todo o dia mas
também dá informações sobre os consu-
mos de água de cada animal e tira foto-
grafias, às quais podemos aceder na app.
Estas tecnologias podem ser usadas por
mais do que um animal em simultâneo.
Para quem gosta de acompanhar o dia
a dia do seu animal de estimação, existe
ainda o Pawbo+, uma câmara interativa
para cães e gatos que permite ao tutor
ver os animais através de uma aplica-
ção, falar com eles e mesmo brincar. A
câmara vem equipada com um ponteiro
laser, controlável pela aplicação, para
brincar com os bichos, e ainda um dis-
pensador de guloseimas para podermos
recompensar os nossos animais mesmo
quando não estamos perto deles.
Já do ponto de vista da segurança,
existe também tecnologia inovadora,
como a PETXIP, que permite a qualquer
pessoa ajudar um animal perdido, no lo-
cal em que o encontra, sem necessidade
de ir ao veterinário para leitura do chip
interno. Com um smartphone, tablet ou
computador, podem ver-se os dados do
dono e do animal numa pequena medalha
com um QR Code agarrada à coleira. Caso
não tenha um dispositivo que permita ler
um QR Code ou acesso à internet, pode
ligar para número SOS que está na me-
dalha e receber os dados do tutor. Esta
medalha contém um sistema de geoloca-
lização por GPS. Assim, quando alguém
encontra um animal registado na base
de dados da PETXIP, o responsável pelo
bicho recebe de imediato as coordenadas
do local onde o animal se encontra.
De brinquedos a pilhas ou a bateria
até trelas e coleiras que usam a tecno-
logia para facilitar os passeios, passando
VEJA-SE A FONTE DE ÁGUA INTELIGENTE, CONTROLADA por aplicações que monitorizam cons-
ATRAVÉS DE UMA APLICAÇÃO, QUE NÃO SÓ DISPONIBILIZA tantemente diferentes aspetos da vida
dos nossos amigos de quatro patas, os
ÁGUA DURANTE TODO O DIA MAS TAMBÉM DÁ objetos tech estão cada vez mais desen-
volvidos. É um facto que a tecnologia
INFORMAÇÕES SOBRE OS CONSUMOS DE CADA ANIMAL deixou de ser algo exclusivamente hu-
mano e passou também a fazer parte do
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19 NOVEMBRO 2020 VISÃO 89


CRÓNICA

V
olta e meia dou por mim a pensar o que será
feito do guarda-chuva que alguém deixou
para trás, jazendo inerte e esquecido num dos
enormes bancos corridos da Igreja Matriz de
Ermesinde, na semana passada, quando até
lá me desloquei por ocasião de uma missa
de sétimo dia. O guarda-chuva era bom, de
P O R M I G U E L A R A Ú J O / Músico tecido preto e pega castanha, de um castanho
que dizia bem com o tom do banco corrido. A minha intuição
imediata foi fazê-lo corresponder a uma senhora, isto porquê?,

O guarda-
porque se tratava de um dos bancos da frente, mais próximos
do altar, e ali em Ermesinde são as senhoras que mais se
aproximam da palavra de Deus Nosso Senhor, como das pombas
de cúpula de catedral, as mais famintas, as que mais ousam na

-chuva imprudência primitiva de se abeirar de mão humana, a mão


que asperge as primeiras migalhas de pão, só que no caso das
senhoras velhinhas de Ermesinde não se trata de imprudência

do banco
nenhuma, trata-se de fome e sede, fome do corpo e fome do
sangue de Cristo, daí ocuparem quase sem exceção o banco da
frente. Contudo, porém tratava-se, à uma, de um guarda-chuva

da Igreja
de aparência masculina, até mais pela pega do que por outra
coisa qualquer, à outra, tratava-se de um esquecimento, e são os
homens tradicionalmente mais achacados a estas coisas do olvido

Matriz de
material. O que é certo é que se foi mulher, a esta hora o artigo
deixado para trás já terá recolhido a qualquer que seja o seu lar.
Já estará enfiado de nariz para baixo numa jarra de porcelana

Ermesinde
junto dos da sua igualha, por trás de alguma porta de entrada
com batente dourado em forma de pata de leão, nalguma moradia
geminada dali das imediações da Igreja Matriz. Conheço bem
essas casas, conheço bem essas jarras onde repousam os guarda-
-chuvas. Nasci numa dessas casas. A questão que aqui se levanta
é a de se dar o caso de ter sido um homem. Chegou a casa sem
guarda-chuva, foi devidamente admoestado por uma esposa das
que não se esquecem de coisas, grunhiu que sim, de olhos no
chão, que com certeza, volto lá amanhã para resgatar o objeto
esquecido, sabendo enquanto grunhia que o mais provável é que
isso não viesse a acontecer, acontecerá um dia mas onde estará
nessa altura o guarda-chuva, isto porque as igrejas, as catedrais,
as capelas, as matrizes, as sés, são templos que devem os seus
mais de dois mil anos de vida a senhoras que por eles zelam com
esmero de mãe, esmero de avó, que limpam, substituem velas,
contam moedas, passam batinas a ferro, fazem bolos de laranja
e peditórios, resgatam guarda-chuvas deixados para trás e os
soltam no circuito insondável dos caminhos das coisas perdidas.
O homem que o deixou pensa que era só deixá-lo estar quieto no
sítio, que ele o haveria de recuperar. Mas a senhora que o resgatou
pensa diferente, pensa assim: é melhor guardar isto senão ainda
se perde e é pena, o guarda-chuva é bom. Só que nesta vida em
que nada permanece, tudo é fluxo, tudo muda, tudo é transitório,
nem os guarda-chuvas esquecidos em bancos de igrejas a
Conheço bem essas essa lei escapam e eis que o animado artigo será avistado por
alguém que o decretará órfão de dono, vai para dar, dar a quem,
casas, conheço existem exércitos de humanos que nos últimos dois mil anos são
bem essas jarras responsáveis por ver que as igrejas não rebentam com excesso
de coisas deixadas para trás e as senhoras vão expurgando do
onde repousam interior das igrejas casacos, guarda-chuvas, despojos de dois
os guarda-chuvas. mil anos de vidas, e agora o guarda-chuva da pega castanha foi
Nasci numa dessas atirado para esta roda dentada voraz que é o mundo e com ele
girará até que se solte uma vareta, duas, e a cinzas tornará, como
casas diz e bem o pároco de Ermesinde. visao@visao.pt

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