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AGAZINE MAIS LIDA DO PAÍS WWW.VISAO.PT

AUGUSTO
N.º 1610 . 11/1 A 17/1/2024 . CONT. E ILHAS: €4. SEMANAL

SANTOS SILVA
VA CADERNO
“ALÉM DE VERDE
DESNECESSÁRIA,
DESNECESSSÁRIA, MONUMENTOS
AMEAÇADOS
Ç
DISSOLUÇÃO
A DISSOLUÇ
ÇÃO PELAS ALTERAÇÕES
Ç
FOI UMA CLIMÁTICAS
DECISÃO
PERIGOSA”

TIKTOK E OS JOVENS
A MÁQUINA DE FAZER
EXTREMISTAS
Como a direita radical domina, em Portugal, os conteúdos políticos
na rede social que mais cresce entre os jovens, com mensagens racistas,
anti-imigrantes e muita desinformação. De que forma isso pode
influenciar o voto nas próximas eleições
O ALGORITMO QUE PRIVILEGIA O ÓDIO E OS DISCURSOS INFLAMATÓRIOS
 NOVO E-2008
100% ELÉTRICO

LÍDER DE VENDAS MELHOR MARCA AUTOMÓVEL

EM PORTUGAL* PELO 11º ANO CONSECUTIVO

Autonomia elétrica até 568 km em ciclo urbano WLTP. Consumo

de energia combinado kWh/100 km: 14,2- 16,7 (WLTP). Emissões combinadas de CO₂ (g/km): 0.
As condições concretas de utilização e outros fatores poderão fazer variar os valores apresentados. Para mais
informações consulte peugeot.pt.
*
Dados ACAP. matrículas veículos de passageiros + comerciais ligeiros acumulado 2023.
NotíciasFlix

VISÃO
11 JANEIRO 2024 --- Nº 1610
ENTREVISTA
Manuel Dias ...................10

RADAR
A semana
em 7 pontos
O grande palco
do absurdo do SNS....... 14
Holofote
Rei Frederico X .............. 16
VISÃO SETE
Raio-X Marcas de desporto
Voltámos a voar ............. 17 portuguesas .................... 92

Periscópio Casa da Música:

Campanha, afinação A vez de Portugal .......... 99
de motores ....................... 19
Livros: Inesgotável
Próximos capítulos Harry Potter ................. 102

LUÍS BARRA
Morrer demais............... 20
TV: O regresso
Fotos com História de True Detective ....... 107
A morte precoce
Os sabores goeses
de Amílcar Cabral ........ 23
do Laranja Tigre.......... 108
O milagre de Nour na guerra de Gaza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 2
Transições
Menos de um ano depois de nascer, em Lisboa, Nour mergulhou nos
Franz Beckenbauer,
horrores da guerra. O conflito no Médio Oriente matou-lhe a mãe e os OPINIÃO
o “senhor futebol” ........ 24
dois irmãos. A VISÃO conta a história trágica da família Ashour e da Dulce Maria Cardoso
Na primeira pessoa criança luso-palestiniana, que se converteu em símbolo de esperança Como é que se diz? .........6
“Fui mãe aos 15 anos” .. 26
Rui Tavares Guedes
Imagens A máquina de fazer jovens extremistas . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 Uma lição de 2016 para
Gelo e fogo ...................... 28 A rede social TikTok, onde navega quase metade dos jovens portugueses uma campanha em 2024
entre os 18 e os 24 anos, está dominada por conteúdos da direita radical ..............................................8

FOCAR – ali, André Ventura e Rita Matias são os políticos que mais sobressaem Pedro Marques Lopes
Marcelo: Pedro Nuno Tiques estalinistas e uma
ou Montenegro, Taiwan, a ilha mais perigosa do mundo ................ 44 AD poucochinha............ 18
eis a questão ....................78 Será que as eleições gerais na ilha a que os portugueses chamaram Bernardo Pires
Costa prevaricou? Formosa podem dar origem à primeira grande crise geopolítica de 2024? de Lima
A Relação decide........... 82 Três meses em Gaza .... 22

Parpública: Quando os
Como o clima ameaça a História .............................. 60
Filipe Luís
Estados vão às compras As alterações climáticas estão a ameaçar destruir monumentos e edifícios Ventura torce por Pedro
............................................. 86 históricos, em todo o mundo, incluindo em Portugal. Há vários projetos Nuno? .............................. 90
para tentar adaptar o património a um clima mais extremo e que até
VISÃO da Liberdade
o usam para combater problemas atuais. Dossier VISÃO Verde
Susa Monteiro ...............114

Augusto Santos Silva: “Muito contido, fui eu!” .... 70

Interdita a reprodução,
Em entrevista, o presidente do Parlamento justifica a tensão com o grupo mesmo parcial, de textos,
parlamentar do Chega, explica a natureza das suas críticas à PGR e fala fotografias ou ilustrações
do livro que acaba de lançar com o balanço da legislatura interrompida sob quaisquer meios,
e para quaisquer fins,
inclusive comerciais.

w w w.visao.pt
ONLINE
Sérgio Dias Luís Delgado Bruno Batista
Últimos
OPINIÃO LINHAS DIREITAS OPINIÃO
artigos Cancro e diversidade: PS ou AD? Lisboa não é francesa
no site da evidência e importância
VISÃO

11 JANEIRO 2024 VISÃO 3

---------- L I N H A D I R E TA

– CORREIO D O LEI TOR

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ANTEVISÃO
VISÃO SETE
VISÃO PLUS Li com muito prazer
VISÃO VERDE o perfil do novo
secretário-geral do PS
– João Serra, Braga

FUTURO E TGV
Muito assertivo o editorial,
aliás, como sempre [O futuro
Nas bancas não pode esperar, 1609]. O
imediatismo quer resultados
Uma revista a curto prazo, e é de quem
não tem qualquer projeto de

para maiores de 60 futuro. Ainda quero destacar

o artigo de Paulo M. Santos

J
sobre o TGV [Linha ferroviária
á chegámos à idade da mantinha no sofá? Só em de alta velocidade]. Mais um
dias muito frios como estes de janeiro e, de prefe- adiamento à vista. Na minha
rência, em boa companhia. A revista VISÃO Saúde modesta opinião, a linha de
que o leitor encontra nas bancas é dedicada a um alta velocidade, entre Santa-
rém e Azambuja, deve atra-
quarto da população nacional.
MÁRIO SOARES vessar o rio Tejo, e só reentrar
Habitualmente invisíveis ou estereotipados, estes
Do Portugal amordaçado na margem norte através de
portugueses maduros estão em fases muito diferentes ao Portugal de Abril nova ponte (já prevista) no
da vida: 663 mil encontram-se entre os 65 e os 69 anos, Barreiro, até Chelas e Oriente.
quase um milhão nos setentas, 600 mil nos oitentas, 125 – José Gouveia
mil nos noventas e 2 940 com mais de 100.
São cerca de 2,5 milhões de pessoas, muitas delas a MAFALDA ANJOS
viver em pleno o século XXI. Sobretudo a geração co- É com imensa pena que vejo
nhecida como baby boomer, nascida entre 1945 e 1964, despedir-se como diretora a
parece longe dos dias pacatos. Muitas trabalham, parti- jornalista Mafalda Anjos. Gos-
cipam em todos os aspetos da vida política, cívica e so- tava muito de ler a sua análise
ciocultural do País, são intelectualmente ativas e muito dos factos porque revelavam
mais capazes do que tantas que vieram depois. profissionalismo, rigor, profun-
Falta saúde? Se a idade, a carga genética ou o género didade na análise e os textos
não são fatores modificáveis, o facto é que consegui- eram de leitura acessível,
mos evitar uma série de doenças e retardar muito do IDIOMAS agradável, que permitiam uma
desgaste dos anos com o nosso comportamento. Nesta De onde vêm as línguas visão do futuro isenta.
edição da VISÃO Saúde encontrará um dossier de mais que falamos? – Graça Santos, Real, Braga
de 50 páginas onde explicamos, entre muitas outras coi-
sas, como a possibilidade de atrasar o envelhecimento --------
depende, em 70%, dos hábitos de vida e do ambiente, a Contactos
chamada epigenética. Partindo das últimas descobertas visao@visao.pt
da Ciência da longevidade – e não obstante os grandes As cartas devem ter um máximo
avanços que têm sido feitos também a nível farmacoló- de 60 palavras e conter nome,
gico –, mostramos o muito que podemos fazer para ter morada e telefone. A revista
reserva-se o direito
uma vida mais proveitosa em todos os aspetos. de selecionar os trechos que
Além deste dossier, damos conta das novidades no considerar mais importantes.
tratamento das doenças da próstata, dizemos se os me-
dicamentos para a gripe funcionam mesmo e definimos Morada
ANTEVISÃO
o melhor plano de exercícios para começar o ano de O que vai acontecer
CORREIO: Av. Jacques Delors,
forma mais saudável. São apenas alguns exemplos do Edifício Inovação 3.1, Espaço
em 2024
melhor jornalismo na área da saúde que encontra na sua nº 511/512, 2740-122 Porto Salvo
revista. visao@visao.pt

4 VISÃO 11 JANEIRO 2024

 © JONAS KAKO
WORKSHOPS
Durante a exposição World Press Photo 2023, poderá participar
STX\TWPXMTUXIJKTYTLWF‫ܪ‬FXJXXघJXTWNJSYFIFXUTWKTYखLWFKTX
e fotojornalistas de renome.
Sábados, das 15h30 às 17h30
Auditório do Templo da Poesia – Inscrição gratuita

ESTA SEMANA PRÓXIMA SEMANA

06 13 20
JAN. JAN. JAN.

FOTOGRAFIA FOTOGRAFIA DE VIAGEM A MULHER

O
DE RETRATO AD
– ÁFRICA DE BICICLETA
T
NA FOTOGRAFIA
Arlindo Camacho
SGO
Daniel Rodrigues Lucília Monteiro
+TYखLWFKTJHTQFGTWFITW E
+TYखLWFKTUWJRNFIT 7JUखWYJWKTYTLWअ‫ܪ‬HF
da VISÃO e PRIMA na World Press Photo em 2013 da VISÃO

As portas para a participação no workshop

INSCREVA-SE ATRAVÉS abrem às 15h.
DO QR CODE Lugares limitados à capacidade da sala.

STRATEGIC PARTNERS

CULTURA
AUTOBIOGRAFIA
NÃO AUTORIZADA
Como é que se diz?
Dulce
Maria
Cardoso
I
nvariavelmente, os pais,
‒ O que é que se diz?
e as crianças, papagueantes,
‒ Obrigado.
Uma aprendizagem pré-escolar,
numa altura em que tudo é, decerto, ainda
informe, mecânico. E assustador também,
pelo menos imagino que sim, que a
imaginação também serve para inventarmos
o que vivemos sem a memória a consolidar-
nos. Depois do espalhafato generoso das
— Escritora
boas-vindas a este mundo, vem a cruel
revelação de que afinal nem tudo nos é
devido.
‒ O que é que se diz?
Parece mais um castigo do que um
ensinamento.
‒ O que é que se diz?
A insistência transforma o
agradecimento numa moeda barata.
‒ Obrigado.
‒ Obrigado.
Passa-se o mesmo com o perdão.
‒ O que é que se diz?
‒ Desculpa.
Se tivermos uma máquina de cunhar
moedas, podemos ter tantas quantas nos
apetecer. Por isso, andamos por aí com os
bolsos cheios de moedas, a tilintar. Por tudo
e por nada, perdões e agradecimentos.
‒ O que é que se diz?
Obrigado surge nas nossas vidas como
um particípio passado defeituoso antes de o
doloroso verbo nelas existir. Obrigar.
Obrigado ou Obrigada. A aprendizagem
do agradecimento é anterior à da gramática.
Lembro-me de ser quase adolescente
quando dei conta da necessidade da
concordância: tinha de dizer Obrigada. Às
vezes levamos uma vida inteira a repetir um
erro sem o sabermos.
‒ O que é que se diz?
Obrigada. Fico-te obrigada. É bonito
agradecer em português. As obrigações
A imaginação com que nos atafulham as vidas são-nos
também quase sempre impostas por outros, o mais
serve para das vezes fugimos delas a sete pés ou
resignamo-nos a cumpri-las. Raras são as
inventarmos obrigações que escolhemos ter.
o que vivemos Obrigada. Fico obrigada a quê? A feliz
narrativa em aberto que o agradecimento
sem a memória português permite oferece-me um delicioso
a consolidar-nos abismo, uma vontade de eternidade, de
6 VISÃO 11 JANEIRO 2024
ligação para sempre ao outro. Como
acontece com quem escreve. Num papel
que não se queime. Numa memória que não
se apague.
*
O meu corpo estava muito partido. Eu
tinha apenas quinze anos e nessa idade
pouco mais se é do que o corpo a acabar de
crescer e os assuntos desse corpo. Portanto,
eu – eu-toda e não apenas o meu corpo –
estava muito partida, no Hospital de São
José. Ossos das mãos partidos, ossos da
bacia partidos, maxilar superior partido,
muitos dentes partidos, a cara ferida.
Não me podia mexer, não podia falar, era
alimentada a soro, pouco mais conseguia
fazer do que respirar.
Fecho os olhos e ainda vejo a cara
da Nela debruçada sobre mim, na
desamparada enfermaria. Um rosto
oval, moreno, olhos grandes, uma trança
negra. A Nela humedecia-me os lábios em
carne viva para que eles não se colassem
durante a noite, para que não tornassem
a sangrar na manhã seguinte. Vigiava-
me a febre. Chamava a enfermeira de
turno quando eu piorava. Dizia-me
que eu ia ficar boa. Estávamos as duas
internadas. A Nela conseguia andar,
eu não. A Nela conseguia falar, eu não.
Noite após noite, dia após dia, cuidava de
mim. A Nela, um anjo que eu imaginava
vir das profundezas dos descomedidos
corredores do hospital.
Foi no verão de 80. Como o livro da
Marguerite Duras. No prefácio desse livro
ou numa entrevista a propósito dele, Duras
contou que a haviam convidado para
escrever uma crónica diária no Libération,
ao longo do ano de 1980. Ela recusou
os moldes do convite e contrapropôs:
escreveria durante os três indolentes meses
de verão, e só uma vez por semana. Receava
que a obrigação de escrever as crónicas
lhe cortasse os dias. Queria-os inteiros,
disponíveis. O verão de 80 reúne essas
ILUSTRAÇÃO DE SUSA MONTEIRO
crónicas.
No meu verão de 80, a Nela teve alta
antes de eu voltar a falar e andar. Nunca
mais a vi. Quando penso em agradecimento,
agradecimento em bruto, penso na Nela. A
quem não pude dizer:
Muito obrigada, Nela.
 A Mafalda e eu nunca nos havíamos
cruzado, quando ela me telefonou. Queria
dar-me conta de que gostava do meu
trabalho e que decidira convidar-me para
ser cronista da revista Visão. Devíamos ser
sempre assim, livres nas nossas escolhas,
mas é raro haver quem escape a uma
palavrinha aqui, a um favor devido ali, a
um rabo de palha acolá, a um pedido que
é preciso satisfazer. Fiquei tão contente
quanto amedrontada com o convite da
Mafalda. Tinha presente as maravilhosas
crónicas do António Lobo Antunes, meu
antecessor no espaço da revista que me
era proposto, e não queria fazer feio. Pedi
uns dias para pensar. Nesse entretanto,
escrevi umas quantas crónicas para saber
se seria capaz. Passados quase cinco
anos, mantenho as dúvidas. Já comecei
esta várias vezes e agora, que julgo tê-la
encontrado, sobram-me poucos carateres
para o meu propósito inicial: agradecer à
Mafalda. Talvez não haja mal nisso, talvez
o agradecimento deva ser um grito quase
mudo. Como o de uma rocha. Sólido.
Indestrutível.
É difícil elogiar quem está vivo. Os
mortos são quase todos fantásticos, mas
os vivos, ah os vivos… os vivos são nossos
concorrentes, meus caros. Venha de lá a
inveja, apontem-se os defeitos, acendam-se
Gostava
as fogueiras, queimem-se as reputações e o de a saber a
mais que houver. É difícil elogiar quem está lutar também
vivo e bem vivo.
Meses depois de ter sido publicada contra
a minha primeira crónica, a Mafalda moinhos
convidou-me para almoçar. Um dia bonito, de vento,
um restaurante à beira-rio e lá estava a
Mafalda: inteligente, culta, segura, bem- porque quem
sucedida, competente, mãe de quatro filhos, apenas luta
um casamento longo e feliz, amante de
jardinagem, fluente em alemão, bela. Que contra coisas
mulher! demasiado
Até agora, a cada crónica que escrevia,
gostava de saber a Mafalda a dar aos leitores
concretas
a sua visão do mundo e de eu ser parte nunca ganha
dessa visão. Gostava de a saber a lutar o futuro
também contra moinhos de vento, porque
quem apenas luta contra coisas demasiado
concretas nunca ganha o futuro. Gostava
de a saber independente, livre, ousada,
como quando decidiu contratar-me, uma
escritora sem experiência de cronista. Agora
a Mafalda demitiu-se e eu quero dizer-lhe
novamente, também neste lugar que ela me
deu:
Obrigada, Mafalda, muito obrigada.
visao@visao.pt
11 JANEIRO 2024 VISÃO 7
 E D I TO R I A L
Uma lição de 2016 para
uma campanha em 2024
Rui
O
Tavares que vai ser mais determinante
na campanha eleitoral que se
Guedes avizinha: a robustez das pro-
postas, o carisma dos candida-
tos, a agilidade nos debates, a
capacidade de criar laços de empatia com os
eleitores ou… os escândalos e “casos suspeitos”
que inevitavelmente vão surgir, conforme nos
aproximarmos do dia das eleições, destinados
a lançar novas vagas de desconfiança e criarem
dúvidas no momento de votar?
Em relação à maioria dos eleitores, não
haverá dúvidas. O carisma, as propostas, o
sentido de confiança ou a utilidade do voto se-
— Diretor-executivo
rão sempre os fatores decisivos. O problema é
que as eleições não se decidem apenas com os
votos dos fiéis e indefetíveis de cada partido.
No final do dia, com as contas feitas, a chave
da votação estará nas mãos daqueles que, a
dois meses do dia 10 de março, ainda engros-
sam o contingente dos chamados indecisos.
São os mesmos que, no último fim de semana,
não estiveram no congresso do PS, a aplaudir
a consagração de Pedro Nuno Santos, nem na
cerimónia de ressurreição da sigla AD ‒ com
os mesmos partidos de 1979, embora sem o
prestígio de figuras como Sá Carneiro, Freitas
do Amaral e Gonçalo Ribeiro Telles. Mas po-
dem ser os que vão fazer a diferença.
É entre os indecisos que a deflagração de
um qualquer “caso ou casinho”, envolvendo
a suspeita de crime ou acrescentando “reve-
lações” a um processo judicial adormecido,
terá maior impacto no momento da decisão.
E, num cenário de votação renhida, pode ser o
suficiente para garantir uma vitória ao sprint,
mesmo com a conversão de uma pequena
percentagem de votantes à última hora.
Tendo em Embora tenha ocorrido há menos de uma
década, a eleição surpreendente de Donald
conta o atual Trump, nas presidenciais dos EUA, em 2016,
ambiente tornou-se já um exemplo clássico deste fenó-
político, o mais meno. E deve, por isso, servir de lição de como
se pode perder uma eleição na reta final, de-
provável - ou vido a um “caso” que, embora depois se tenha
até inevitável... revelado falso e sem fundamento, foi aprovei-
tado pela máquina de campanha do opositor,
- é que ganhou um grande destaque na comunicação
surjam alguns social e acabou por permitir a vantagem de
escândalos Trump em meia dúzia de estados funda-
mentais, possibilitando assim a conquista do
e “casos” Colégio Eleitoral, mesmo sem ter a maioria do
escondidos até voto popular.
Esta reviravolta teve origem num aconteci-
à véspera das mento de grande impacto, ocorrido cerca de
eleições duas semanas antes de os norte-americanos
8 VISÃO 11 JANEIRO 2024
irem às urnas, quando o chefe do FBI, James
Comey, anunciou que, por causa de alegadas
novas provas, ia reabrir um processo que tinha
sido dado por encerrado um ano antes: apurar
se Hillary Clinton tinha cometido falhas gra-
ves de segurança nacional, por ter usado uma
conta pessoal de email, quando era secretária
de Estado na Administração de Barack Oba-
ma. O caso ganhou grande preponderância,
porque foi desencadeado pelo próprio líder
máximo do respeitado FBI ‒ apesar de se ter
sabido, mais tarde, que a sua agência estava
também a investigar, na época, a ingerência da
Rússia na campanha de Putin, que se demons-
trou ser verdadeira, mas que não teve, então,
direito a um anúncio semelhante.
O caso dos emails acabou por ser esclare-
cido, ainda por Comey, poucos dias depois,
considerando que Hillary Clinton não tinha
cometido qualquer crime. Só que, natural-
mente, o tema já tinha inquinado completa-
mente a campanha eleitoral. E Donald Trump,
que, numa primeira fase, tinha elogiado a pos-
tura do FBI pela “coragem”, depressa o passou
a criticar, alegando que Hillary estava “a ser
protegida por um sistema fraudulento”.
Todos sabemos o que aconteceu depois e
como este tipo de manobras é cada vez mais
usado em eleições, um pouco por todo o
mundo ‒ e Portugal, naturalmente, não será
exceção. Tendo em conta o atual ambiente po-
lítico e todos os acontecimentos que levaram
ao derrube de um governo com maioria par-
lamentar, o mais provável ‒ ou até inevitável...
‒ é que surjam alguns escândalos e “casos”
escondidos até à véspera das eleições.
Todas as campanhas políticas têm estraté-
gias para descredibilizar os oponentes e, dessa
forma, influenciar a opinião pública. Já não há
campanhas eleitorais sem escândalos, con-
trovérsias e, até, os inevitáveis boatos ‒ agora
ampliados pela tecnologia e as novas formas
de comunicação. Ora, é precisamente nesses
momentos que as instituições democráti-
cas precisam de estar mais cientes das suas
responsabilidades e conscientes dos valores
que representam. E, por obrigação, mante-
rem a sua independência, sem que isso seja
percebido como um abandono do dever de
escrutínio, que está na sua essência. À Justiça
pede-se que seja independente e que não se
deixe instrumentalizar. Ao jornalismo exige-se
um compromisso renovado com a busca da
verdade e uma cobertura proporcional à gra-
vidade dos factos, com total transparência.
rguedes@visao.pt
 A sua saúde merece
a melhor VISÃO
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NOVA
EDIÇÃO
D E Z 2 0 2 3 / J A N 2 0 2 4 | N Ú M E R O 33

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Manuel Dias Diretor Nacional de Tecnologia da Microsoft Portugal

Quando a calculadora
apareceu, pensávamos
que íamos desaprender
matemática. O que é facto
é que passámos a resolver
problemas mais complexos.
Com a inteligência artificial,
também vamos conseguir
fazer coisas muito mais
avançadas
— P O R G O N Ç A LO A L M E I D A T E X T O J O S É C A R LO S C A R VA L H O F O T O
H
Há 13 anos na Microsoft Portugal,
Manuel Dias – diretor nacional de
tecnologia da empresa – começou a
trabalhar com Inteligência Artifi-
cial (IA) muito antes de esta estar na
moda. A sua carreira teve início na
Efacec, depois veio a OutSystems
e desde 2011 que se dedica à forma
como a IA pode melhorar o desem-
penho das empresas portuguesas.
Olha com preocupação para o atraso
tecnológico de grande parte do teci-
do empresarial, mas avalia de forma
positiva o desempenho do Governo
de António Costa na digitalização
dos serviços públicos.
A que é que se deve a fama
repentina da IA?
A IA existe desde a década de 50,
mas eu diria que nos últimos dois
anos houve um aumento enorme
graças à IA generativa, um subcam-
po da IA, muito impulsionado pelo
ChatGPT, lançado em novembro
de 2022. Existe aqui uma mudança
de paradigma que junta duas coi-
sas. Por um lado, durante décadas
tentámos que a interface com os
computadores fosse o mais natural
possível: tivemos o teclado, depois
o rato, depois o touch e atualmen-
te estamos já a usar a linguagem
natural. A segunda coisa é que pela
primeira vez temos um motor de
raciocínio, que não se foca apenas
em perceber a intenção do humano
ou em ter só um guião predefinido,
mas também em fazer uma análise
semântica da informação. E quando
juntamos a interface humana com a
análise semântica, isso sim é revo-
lucionário. No início, costumo dizer
a brincar que todos nós estávamos
numa fila só para brincar e explorar
as falhas do ChatGPT, mas agora
estamos todos a olhar para a tec-
nologia como uma ferramenta útil.
Podemos olhar para Portugal e ver
casos interessantíssimos.
Quais?
Um foi no Ministério da Justiça,
em que criámos um chatbot
para responder a perguntas
sobre casamentos, divórcios...
Houve muito mais perguntas
sobre divórcios, só para vos dizer
[Risos]. Depois fizemos um com o
avatar para a AMA (Agência para
a Modernização Administrativa) e
que mostra mais uma vez como é
que eu posso ter estes modelos de
linguagem em cima de informação,
ao serviço do cidadão.
Nesse exemplo do Ministério da
Justiça, o que é que as pessoas
mais perguntavam?
Quando lançámos a primeira
versão, aquilo tinha uma base de
conhecimento com muita legislação.
Primeiro, foi preciso traduzir isso
para o cidadão comum, que é ótimo
porque é pegar na informação e
dizer: “Olha, responde na terceira
pessoa, de forma educada, de forma
simples, mas de forma factual.”
Depois, tivemos perguntas como:
“Posso casar com uma gata?” E ele
respondia: “Claro que sim.” Ele
tinha um entendimento da palavra
diferente e para ele era normal
isso. Houve muitas perguntas nessa
tentativa de quebrar o gelo.
Mas até que ponto é que as
empresas portuguesas estão
preparadas para adotar esta
tecnologia?
Sou um bocado crítico, devo
dizer. Acho que Portugal tem um
caminho a percorrer em termos
de capacitação das empresas. Há
efetivamente diferenças entre
grandes empresas e pequenas e
médias empresas (PME). Nós temos
grandes empresas que hoje tiram
partido de uma forma bastante
avançada, como a EDP, como a
Sonae, como os CTT. São tudo
empresas grandes.
Mas a maior parte do sistema
empresarial português é
composta por PME. Muitas delas,
se calhar, nem têm site ou redes
sociais...
Sim, depois temos esse universo
das PME, que são cerca de 90% das
empresas portuguesas, e que estão
muito atrás. E, portanto, está efeti-
vamente aqui a necessidade de fa-
zer um upskilling de competências,
mas também de tecnologia. Acho
que, antes de dizer “eu vou utilizar
IA só porque é um hype”, deve es-
tar o uso da tecnologia porque isso
tem benefícios para a produtivida-
de e a criatividade. Nós sabemos
que é um desafio.
E olhando também para o lado
académico, Portugal compara
bem com os melhores exemplos
lá fora?
De acordo com o DESI [inquérito
europeu sobre Índice de
Digitalidade da Economia e da
Sociedade] de 2023, somos dos
últimos Estados-membros ao nível
de licenciados em Tecnologias de
Informação. Estamos mesmo na
cauda. Esse é o primeiro indicador
preocupante. Não quer dizer
que as outras licenciaturas não
sejam relevantes, mas temos de
apostar muito mais em ter estas
competências tecnológicas. O
segundo ponto é: sim, somos bons
em competências digitais avançadas,
que é um dos indicadores do DESI
também. Estamos acima da média
europeia ao nível das competências
básicas digitais, mas há um trabalho
enorme a fazer na base da pirâmide.
Acho que a tecnologia, tal como a
saúde, a habitação ou a justiça, é um
pilar estratégico de competitividade.
Em 2020, a Microsoft assinou um
memorando de entendimento
com o Governo para a
digitalização. Nestes três anos,
sentiu algum avanço?
Senti muito. Estive na génese
desse memorando, que estava
alinhado com o ponto de transição
digital centrado em três vetores:
pessoas, empresas e Estado.
Tivemos diversas iniciativas em
cada um destes pontos. Nas sessões
de cibersegurança que fizemos,
certificámos duas em cada cinco
pessoas em vida ativa. Formámos
cerca de meio milhão de pessoas
nas plataformas Microsoft, isto
apenas para dar um exemplo. Na
área do setor público, apoiámos
mais de 1 000 associações sem
fins lucrativos, que é uma coisa
que me orgulha bastante. Temos
mais de 200 startups apoiadas pela
Microsoft em Portugal.
Nestes oito anos de Governo,
sentiu essa preocupação com
a digitalização? Como é que avalia
o Executivo neste campo?
Claramente. Avalio a atuação do
Governo muito positivamente.
Tenho publicado todos os anos
um artigo sobre as conclusões
do DESI, do Eurostat. O último
que publiquei nestes dias mostra
que Portugal melhorou em
muitos indicadores. Há três anos,
11 JANEIRO 2024 VISÃO 11
estávamos muito atrás em tudo.
Continuamos atrás em alguns, sem
dúvida alguma, mas melhorámos
em muitos deles. Acho que houve
aqui um trabalho meritório
durante estes oito anos, em olhar
para a digitalização do País, em
olhar para as competências, para
a digitalização do setor público.
Portugal está bem em termos de
serviços públicos digitais.
Voltando à IA: esta corrida que
temos vindo a assistir entre
Microsoft, Google e as outras
grandes tecnológicas é também
uma corrida geopolítica?
Muita desta tecnologia é
impulsionada por empresas
tecnológicas como a Microsoft,
que estão sediadas nos Estados
Unidos da América, mas acho
que é quase como a internet.
É uma tecnologia transversal a
todo o mundo. Se isso depois é
geopolítico ou não, vai depender
da forma como cada país aplica a
tecnologia. Embora a China tenha
feito um caminho enorme em
termos de patentes e em termos
de desenvolvimento de IA. Mas eu
acho que há aqui uma componente
não só de tecnologia, mas também
de investigação profunda associada
a isto e acho que os EUA aí, sim,
claramente estão à frente.
Nos EUA assistimos no ano
passado a despedimentos
em larga escala das grandes
tecnológicas, incluindo
a Microsoft. Já são efeitos do que
a IA pode trazer para o mercado
de trabalho?
Acho que nós do lado da Microsoft
estamos continuamente a olhar
e a redirecionar o nosso negócio
nas várias áreas. Continuamos
a contratar e vai depender um
pouco da estratégia. Quanto ao
impacto da IA, acho que, quase
como em todas as grandes
revoluções tecnológicas, vai haver
despedimentos. Vai haver algumas
tarefas que efetivamente vão ser
automatizadas de alguma forma.
Mas também vai haver sempre
criação de novas profissões.
Se olharmos para a História,
percebemos que nunca houve mais
despedimentos do que depois da
criação de empregos no longo
prazo.
Falava da criação de novas
profissões. Quais?
12 VISÃO 11 JANEIRO 2024
Não vamos ser
substituídos
por Inteligência
Artificial,
mas vamos
garantidamente
ser substituídos
por pessoas que
saibam tirar o
melhor partido
da Inteligência
Artificial
Acho que estamos claramente a
caminhar para isso, a olhar para
os engenheiros de prompt [que
treinam sistemas de IA], a olhar
para os novos padrões feitos com
IA generativa, para os testes dos
modelos. Acho que vai haver aqui
um conjunto de competências
que vai ser criado para lidar com
esta tecnologia, quase como se
houvesse uma revolução dentro do
próprio mercado de trabalho.
É possível que a IA seja a
maior revolução no mercado
de trabalho desde a revolução
industrial?
Não sei se vai ser a maior, mas vai
ser uma grande transformação, não
tenho dúvidas. Nós fazemos um
estudo anual sobre o mercado de
trabalho que evidencia o conceito
da dívida digital. Todos sentimos
que somos bombardeados com
informação que não conseguimos
absorver, nem interpretar, nem ler
a tempo. Mais de metade do nosso
tempo é feito só em comunicação e
trabalho administrativo. E só 43%
do tempo é que é para trabalho
realmente criativo. Se tivermos
uma tecnologia que, por um
lado, nos ajude a ser muito mais
produtivos, mas que nos ajude
também na área criativa…
A IA veio reforçar a importância
do lado criativo?
Sim, sim. A criatividade é a
nova produtividade. Porque
esta produtividade vai ser muito
alavancada por estas ferramentas
de IA. Depois a parte criativa
também pode ser e, portanto,
o mundo do trabalho vai ser
fortemente impactado, porque
nós vamos conseguir aumentar
bastante a produtividade, vamos
conseguir ser criativos e vamos
conseguir dar às pessoas as
ferramentas para isso. Acho que,
hoje em dia, saber fazer perguntas
ou interagir com estes modelos
de linguagem vai ser a nova
competência dentro das empresas.
Um artigo de opinião no
Financial Times dizia que se
queríamos ter uma profissão
que não fosse substituída por
IA, o melhor era tornarmo-nos
especialistas em vinhos…
[Risos.] Sim, o conceito que eu dou
nestes casos é: nós não vamos ser
substituídos por IA, mas vamos
garantidamente ser substituídos
por pessoas que sabem tirar o
melhor partido possível da IA. Seja
para vinhos, seja para escrever
um artigo, seja para criar uma
campanha de email, seja para
redigir um processo legislativo.
Contudo, acho que entra aqui
também o tema do pensamento
crítico. É a primeira competência
definida pelo Fórum Económico
Mundial como a competência
do futuro. Até há dois anos,
eram só competências técnicas.
Hoje, o pensamento crítico e o
pensamento analítico são as duas
primeiras competências, porque
nós vamos precisar muito disso.
Mas a IA não veio também
ameaçar esse sentido crítico?
É verdade. É muito fácil chegar a
uma resposta, mas estes modelos
têm muitas alucinações. Muitas
das vezes é preciso capacitar
as pessoas, explicar-lhes que
realmente há um poder enorme na
forma como eu gero informação,
mas essa informação pode ter
alguns riscos, alguns erros.
No início, falava-me no treino
que era preciso para estas
ferramentas como o ChatGPT.
Quem é que está por trás deste
treino? Somos todos nós,
utilizadores? São outras equipas
contratadas pelas empresas?
Pergunta difícil… No caso do Cha-
tGPT, aquilo que conheço e que é
público é que foi recolhida infor-

mação de várias fontes públicas.
Foram 45 terabytes de informação
usada para os modelos e, portanto,
foi treinado com informação pú-
blica, com tudo de bom e de mau
dessa informação. Nomeadamen-
te, os temas do enviesamento. O
segundo tema é a utilização desta
informação. Quando interajo com
o ChatGPT, convém deixar claro
que essa informação não é usada
para treinar os modelos. O Chat-
GPT demorou nove dias a treinar
e foram mais de 4,9 milhões de
dólares para treinar aquela infraes-
trutura, portanto não é um modelo
que se treine todos os dias. Por
isso é que quando nós lhe pergun-
tamos coisas ele responde com a
informação datada até setembro
de 2021.
Mas como é que essa recolha
de informação foi feita pela
OpenAI?
É um processo bastante complexo.
Eu diria que é um dos secret
sauces das empresas.
As ferramentas têm os mesmos
preconceitos dos humanos que
as treinam?
Exatamente. Acho que há aqui
duas formas de olhar para isso.
A primeira forma é perceber que
se eu treinar um algoritmo de IA
para reconhecer carros, e só lhe
der exemplos de carros, quando
lhe falar de aviões, ele não vai
perceber o que é um avião. Se eu
tenho enviesamentos enquanto
humano, e todos nós temos, alguns
deles vão refletir-se, por muito que
eu coloque filtros a posteriori. O
que acontece hoje é que existe um
conjunto de filtros de moderação,
que permite não responder a
conteúdo agressivo, ofensivo,
racista. Mas isto são tudo camadas
de mitigação que são colocadas.
Em que áreas é que acha que a IA
vai ser totalmente revolucionária
no futuro? Fala-se muito da
saúde, por exemplo.
Acho que vai transformar a maior
parte das indústrias. A saúde,
sem dúvida, é uma delas. Basta
pensar nos diagnósticos médicos,
no tratamento de imagem, na
quantidade de formalismos e
burocracias que hoje tem de ser
feita por um médico durante um
diagnóstico. Outra área é a da
educação. É uma área que está
feita para contar apenas a média
das notas, não está feita para
perceber que, se calhar, há alunos
que gostam de aprender muito
mais com imagens e outros com
fórmulas. Se calhar, vou poder
passar a ter um tutor remoto, que
pode ensinar-me ao meu ritmo.
Acho que tudo o que seja funções
de análise de informação ou
produção de informação vai sofrer
fortemente o impacto disto.
No próprio jornalismo?
Eu não ia falar, mas… [Risos.]
Está a ser criado um canal, o
Channel One, que será feito com
uma base de IA...
Eu não acredito que seja tudo
só feito com IA. Comparo isso
com o tema da calculadora.
Quando a calculadora apareceu,
nós pensávamos que íamos
desaprender matemática. O que é
facto é que conseguimos resolver
problemas muito mais complexos
com a calculadora científica. E eu
acho que nós vamos conseguir
fazer coisas muito mais avançadas,
num menor espaço de tempo e, se
calhar, com mais criatividade do
que fazemos agora.
Existe a ideia, talvez utópica, de
que se a tecnologia for parar às
mãos erradas pode acabar com a
Humanidade. É viável?
Não podemos dizer liminarmente
que não é um risco, mas acho
que no curto prazo é um bocado
utópica. Mas é preciso ter em
atenção que qualquer tecnologia
mais avançada que caia nas mãos
erradas tem esse risco. Nós
vimos isso com os drones, com
a informação falsa... Acho que
esses riscos existem. Mas eu acho
que a Europa está a tomar um
passo bastante interessante, que
é o regulamento da Inteligência
Artificial.
Uma das críticas a essa regulação
é que era bastante ambígua.
Concorda?
Acho que é um começo. É uma
abordagem orientada ao risco e
acho que nesse sentido está bem.
Mais do que ir à tecnologia em si, é
muito mais ir ao nível de risco dos
vários cenários. É um passo muito
importante dado pela Europa.
Como é que avalia tudo isto que
aconteceu no caso que envolveu
o Sam Altman da OpenAI,
cujo principal financiador
é a Microsoft?
Não sei qual é a resposta oficial
que posso dar-lhe [Risos]. De
alguma forma, despertou-
nos para a importância de ter
uma governance maior nestes
processos de inovação. Há que
perceber como é que isto escala
para o nível empresarial e essa
preocupação é legítima. Temos
de ter consciência de que
precisamos de mais mecanismos
que assegurem a estabilidade.
galmeida@exame.pt
11 JANEIRO 2024 VISÃO 13
 RR A DA R
7
O grande palco do absurdo do SNS
Quando o jornalista e crítico de teatro Martin
Esslin cunhou o termo, em 1962, não foram
só as peças de Samuel Beckett, Eugène Io-
PONTOS nesco ou Harold Pinter que se enquadraram
DA SEMANA numa classificação própria – toda uma parte
das nossas vidas ganhou um nome. Um ex-
celente nome: “teatro do absurdo”.
Da ridicularia em que tropeçamos por ve-
zes, salta um pormenor que diz tudo sobre
a mais completa falta de sentido e de refe-
rências a que chegámos. Nesta semana, a
Liga dos Bombeiros Portugueses está a ser
a dramaturga, escrevendo mais um capítu-
lo do Serviço Nacional de Saúde, que pode
funcionar como um abrir de olhos (quantos
são precisos?) e um pedido de socorro (a
mesma questão).
Os bombeiros decidiram começar a cobrar
aluguer pelas macas que os hospitais retêm,
com doentes nelas, nas urgências. São aque-
A L E X A N D R A C O R R E I A*
las imagens dos corredores cheios de macas,
que vemos nas televisões, e que se repetem
todos os anos, várias vezes por ano, aliás. São
50 euros nas primeiras duas horas, 100 euros
no segundo bloco de duas horas, e a partir
daí o preço fixa-se nos 150 euros.
“Os bombeiros estão saturados de subsidiar
o SNS”, afirmou António Nunes, presidente
da Liga. Subsidiamos todos individual-
mente, e a esperança é que não estejamos
maioritariamente saturados – basta entrar
numa urgência por estes dias e o sofrimen-
to é palpável: a gripe é forte, está com uma
mortalidade acima do normal, há infeções
respiratórias por todo o lado e ninguém
aguenta ficar dois ou três meses à espera da
consulta no centro de saúde.
Mas é difícil não estar frustrado. Paradoxal-
mente, o insistente discurso do ainda primei-
ro-ministro nos últimos anos, de que sem-
pre aumentou o orçamento da Saúde, não
ajudou a estabelecer uma maior relação de
*Editora-executiva confiança com o SNS. Se, antes, toda a gente
acorreia@visao.pt percebia que havia subfinanciamento, o que
se passa agora? “Não basta pôr mais dinheiro
14 VISÃO 11 JANEIRO 2024
JOSÉ CARLOS CARVALHO
em cima dos problemas. Com o Orçamento
do Estado para 2024, o orçamento do SNS
cresce 72% relativamente ao orçamento de
2015”, afirmou António Costa em outubro.
Os médicos, no entanto, ganham significati-
vamente menos, fazendo as contas à inflação.
As condições de conforto para a generalidade
dos doentes não melhoraram assim tanto. A
contratação de seguros de saúde privados
aumenta a ritmo acelerado – há um ano,
3,6 milhões de portugueses subscreviam
um. Mas também nos privados não é fácil
encontrar médicos, marcar consultas de
algumas especialidades atempadamente,
fazer determinados exames em tempo útil.
Há um desfasamento entre as necessidades
da população e o tempo da governação.
Quase sempre por razões financeiras, como a
não disponibilização de certos medicamen-
tos, por exemplo, ou serviços. Pedro Nuno
Santos, no encerramento do Congresso
do PS, focou mais um desses absurdos, ao
prometer, caso seja eleito primeiro-minis-
tro, a “criação de uma carreira de medicina
dentária no SNS”, para que “a saúde oral dos
portugueses passe a ser uma preocupação”.
O facto de ainda não ser está bem espelhado
na boca dos portugueses. Como se ter bons
dentes fosse um luxo. Por outro lado, com
tanta gente em macas nos corredores das
urgências, pareceu muito limitado o novo
líder do PS ter apenas uma palavra para a
saúde oral. E sujeitou-se às críticas da opo-
sição, da direita à esquerda.
A degradação do serviço de saúde públi-
co não é uma originalidade portuguesa;
outros países debatem-se atualmente
com o problema, como a Inglaterra, e o
diagnóstico está feito. Agora, é curar. Tal-
vez as palavras do mestre Samuel Beckett
possam servir de inspiração: “Ever tried.
Ever failed. No matter. Try again. Fail again.
Fail better.” (Nunca ter tentado. Nunca ter
falhado. Não importa. Tentar outra vez.
Falhar outra vez. Falhar melhor.)
 o
1,48 C
NÚMERO
Aumento da temperatura média global, em 2023,
comparando com a era pré-Revolução Industrial
O Copérnico, Programa de Observação da Terra, da União Europeia,
divulgou nesta semana que 2023 foi mesmo o ano mais quente
alguma vez registado, sendo provável que 2024 ultrapasse a marca
estabelecida no Acordo de Paris: não exceder 1,5 °C de aquecimento

GUERRA EM GAZA TGV

Os caminhos do Estado Alt velocidade

Alta
palestiniano vai avançar
Antony Blinken, o secretário de Estado norte-americano,
ano, O Gov
Governo pretende lançar,
chegou a Israel na terça-feira com uma mensagem clara:lara: nas próximas
p semanas,
há uma hipótese de ser aceite pelos vizinhos árabes o concurso
con público da
– e o caminho passa por ter um Estado palestiniano primeira fase da linha de Alta
prime
viável. Depois de dois dias de conversas com a Arábia a Velocidade Porto – Lisboa
Veloc
Saudita, Jordânia, Catar e Emirados Árabes Unidos, (troço Porto e Oiã), e o custo
Blinken encontrou-se com Netanyahu, insistindo na estimado é agora de 1 950
estim
“necessidade imperativa” de proteger os civis em Gaza za milhões de euros, quando em
milhõ
e no início da construção de um “caminho prático” setembro era de 1 650 milhões.
setem
que leve ao Estado palestiniano. “Temos aqui uma Apesar das críticas, o PSD
Apesa
oportunidade real”, acredita. A ofensiva israelita já votou a favor da proposta do
matou 23 mil palestinianos, “demasiados palestinianoss PS. Até
At porque, para aceder à
inocentes mortos”, reforçou Blinken. verba europeia de 729 milhões
de euros,
eu a candidatura terá
de ser
se apresentada até ao
deste mês.
final d

FRASE

“A supre-
macia
branca é FRANÇA

O novo
um veneno. “premier”
GLOBOS DE OURO Ao longo Gabriel Attal, 34 anos, é o
Três extraordinários atores
da História, mais jovem primeiro-ministro
da história recente da
Mesmo depois do cair do pano, quando os maiores
fãs já fizeram a despedida e o “luto” de terem de viver
sem a sua série de culto (terminou em maio de 2023),
tem destruí- França e também o primeiro
homossexual assumido. O até
agora ministro da Educação
eis que Succession volta a roubar a noite dos Globos
de Ouro. A sua última temporada foi a melhor série do
do a nossa foi nomeado por Emmanuel
Macron um dia depois da
ano, e estes três que vemos na foto foram premiados
com os globos de Melhor Ator (Kieran Culkin), Melhor
Atriz (Sarah Snook) e Melhor Ator Secundário (Matthew
nação” demissão de Élisabeth Borne,
que estava há menos de dois
anos no cargo. Attal tem a
Macfadyen). Um trio incrível numa série reconhecida JOE BIDEN difícil missão de recuperar
Presidente dos Estados
pelos seus diálogos desconcertantes – ora cómicos ora uma governação altamente
Unidos da América
terrivelmente trágicos. No cinema, o grande vencedor desgastada por medidas como
da noite foi o filme Oppenheimer, de Christopher a subida da idade da reforma
Nolan, que também premiou o seu ator principal, Cillian ou as novas leis da imigração,
Murphy, e o secundário, Robert Downey Jr. coladas à extrema-direita.

11 JANEIRO 2024 VISÃO 15

R ---------- H O LO FOT E

Rei Frederico X
Há festa no reino da Dinamarca
Destino Monarquia
pesado Foi um príncipe feliz
Filho mais O novo rei
velho da rainha rebelde, amante Frederico X,
Margarida II e do da boa vida, mas chefe de Estado
francês Henrique da Dinamarca,
de Laborde muito querido pelos mas também da

A última
de Monpezat, súbditos. Fred, como Festa real
Gronelândia e
Frederico passou das Ilhas Faroé,
rainha a ser príncipe é tratado por eles, A forte ligação ao assumirá a coroa
No domingo, 14, herdeiro da vai assumir, no desporto e o facto e o trono no
a Europa vai Dinamarca logo de fazer parte do próximo domingo.
perder a última aos 3 anos, domingo, o trono Comité Olímpico Ao contrário,
monarca que quando o seu avô, e a coroa que lhe Internacional fez porém, do que é
chegou ao o rei Frederico com estivesse à costume noutras
trono por via IX, morreu. O estavam destinados hora certa no sítio casas reais
de sucessão destino de vir a há 52 anos certo. Foi num europeias, não
e não por via ser rei sempre bar, em Sydney, haverá festas
do casamento. o perturbou. — POR MANUEL BARROS MOURA após a cerimónia nem cerimónias
Exatamente 52 Foi educado de abertura dos pomposas, apenas
anos após ter “por amas e Jogos Olímpicos um anúncio formal,
sucedido ao seu governantas”, de 2000, numa feito no Palácio de
pai, Frederico IX, sempre longe dos festa entre Christiansborg, em
a rainha Margarida pais, atarefados príncipes europeus Copenhaga, pela
II, que depois da pelos afazeres (além do seu irmão primeira-ministra,
morte de Isabel reais. Talvez por Joaquim, estavam Mette Frederiksen.
II se tornara a isso, e por recusar também Nicolau É, porventura,
monarca mais “viver fechado da Grécia e Marta esta recusa da
antiga do Velho numa fortaleza”, Luísa da Noruega), ostentação e do
Continente, vai Frederico foi que Felipe, atual cerimonial que
abdicar da coroa um rebelde. rei de Espanha, lhe faz da monarquia
da Dinamarca. Chamavam- apresentou Mary dinamarquesa
Com 83 anos lhe o “príncipe Donaldson, uma uma das mais
e uma saúde das festas” e plebeia australiana consensuais na
debilitada, a dedicou-se da Tasmânia, por Europa. E, muito
monarca anunciou, aos carros quem se apaixonou provavelmente, os
de surpresa, a desportivos, às de imediato, dinamarqueses
decisão no seu motos e aos com quem se vão continuar
último discurso mais radicais casou em 2004 a tratar o seu
de Ano Novo. Daí desportos de e que passará, monarca apenas
que, a partir do neve. Mas no domingo, a por Fred.
próximo fim de também se ser chamada
semana, o reino da empenhou rainha
Dinamarca passará nos Mary.
a ser regido estudos, Juntos
por Frederico tornando-se tiveram
André Henrique o primeiro quatro
Cristiano, de 55 monarca filhos:
anos, a quem os dinamarquês Christian, o novo
dinamarqueses a completar príncipe herdeiro,
tratam apenas o mestrado. de 18 anos,
por Fred, mas Neste caso, em Isabella, de 16, e os
que passará a Ciência Política, gémeos Vincent e
responder por rei em Harvard, nos Josephine, de 12.
Frederico X. EUA, onde se Todos educados
matriculou com o em escolas
apelido do pai. públicas, por
opção dos pais.

16 VISÃO 11 JANEIRO 2024

R ---------- R A I O -X

Voltámos a voar
O número de turistas e os lucros globais das companhias aéreas
aproximaram-se, em 2023, dos valores pré-pandemia
— POR MANUEL BARROS MOURA

Pouquíssimos setores da economia mundial foram poupados aos impactos da pandemia Covid-19,
mas muito menos terão sido tão atingidos quanto o turismo e a aviação. Foram necessários três anos
para haver lucros e para se registar um número de turistas internacionais próximo dos valores de 2019

Companhias aéreas Turismo internacional

dão novamente lucro está de volta
Valores em milhares de milhões de euros Valores em milhões de chegadas
2023 marca o regresso dos resultados líquidos O turismo global manteve o ritmo
do negócio global da aviação a valores de recuperação e atingiu, em 2023, quase 90%
positivos, e isto a um ritmo muito superior dos níveis de chegadas de turistas internacionais
ao que se estimava no início do ano, quando verificados em 2019, o melhor ano de sempre,
a IATA previa que os lucros não passariam ao qual se seguiu a pior fase da história
dos €4,3 mil milhões – foram quase cinco vezes do turismo. As previsões apontam para que,
mais e, para 2024, prevê-se que assim volte em 2024, o setor possa recuperar totalmente
a acontecer dos efeitos da pandemia
2023
24,12 21,29 23,48 +1 300
1 500 Crise financeira
2020 2021 2022 -37

2019 -3,47 2023* 2024** Epidemia SARS

1 000 -2
-37,46
500
Pandemia Covid-19
-1 100
* Estimativa preliminar 0
-125,81 ** Previsão 1990 2000 2010 2020 23

FONTES IATA (Associação Internacional de Transporte Aéreo), OMT (Organização Mundial do Turismo) e Statista RL/VISÃO

11 JANEIRO 2024 VISÃO 17

 Tiques estalinistas
POLITICAMENTE
CORRETO
e uma AD poucochinha
N
o vídeo de lançamento da nova
Aliança Democrática, Diogo Freitas
Pedro do Amaral é substituído por Ade-
Marques lino Amaro da Costa no trio que
liderava a AD de 1979.
Lopes Não espero grandes coisas das pessoas que
lideram esta espécie de projeto político, mas
tiques estalinistas em que se apagam pessoas da
fotografia é algo que está muito além do que eu
achava concebível. Adulterar a História e ofen-
der a memória de pessoas e de instituições é
imperdoável e, no limite, é o que está em causa.
Mas para lá do registo histórico, esta pouca-
-vergonha afeta também o presente, porque é
perfeitamente legítimo que as pessoas pensem
que quem aldraba tão descaradamente nisto
também poderá mentir em quase tudo. Espero
— Analista político
que por esta altura já tenha aparecido alguém a
pedir desculpa, mas o dano é difícil de reparar,
porque ninguém acredita que os líderes da AD
não tivessem visto o filme. Aliás, Hugo Soares
apareceu a confirmar aquela abstrusa mentira.
Mas tal como o vídeo, a própria aliança não
tem ponta por onde se lhe pegue. Não há como
negar a tendência para glorificar os líderes do
passado e apoucar os do presente, mas com-
parar a dimensão política, cívica e cultural de
Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Ribeiro Telles
com a de Montenegro e, principalmente, com
a de Nuno Melo e a de Câmara Pereira diz
tudo acerca da degradação da qualidade dos
protagonistas do centro-direita. Acrescente-se
que, enquanto os três primeiros eram pessoas
do mesmo calibre e a todos os níveis, o fosso
intelectual e político entre o líder do PSD e
os outros dois é gigantesco. Mas, para lá das
qualidades que tenham, há também gritan-
tes diferenças entre estes três líderes quanto
à implantação social e relevância eleitoral dos
respetivos partidos.
O CDS não representa nada nem ninguém
e nem é só por não ter um único deputado – o
CDS de 1979 trouxe 41... Existiu enquanto o gé-
nio de Paulo Portas conseguia colar tendências
Esta AD é um que não eram conciliáveis. Eurocético, euro-o-
erro crasso timista; liberal, conservador; no limite do po-
pulismo com umas aproximações aos discursos
e não faz antipolíticos e umas escorregadelas nas políti-
qualquer cas de imigração, mas sempre capaz de agregar
gente que só ele conseguia juntar. Os liberais
sentido. É má fugiram para a IL, os de extrema-direita para o
para o PSD Chega e a gente moderada, que inclui os bons
e reduz as quadros – que Paulo Portas tão bem fez crescer
–, para uma terra-de-ninguém, onde tantos
hipóteses de que se reconhecem de centro-direita agora
Montenegro estão. Percebo a vontade de Paulo Portas e de
António Lobo Xavier de ver o CDS dissolver-se
ser primeiro- no PSD, para que, com esses tais quadros, isso
-ministro o transforme ideologicamente ou, melhor, lhe
18 VISÃO 11 JANEIRO 2024
dê as ideias e a ideologia que o partido agora
manifestamente não tem – próximo ao que o
MES fez ao PS. O problema é que nem essas
pessoas vão ser aproveitadas pelo PSD nem
elas estão interessadas em estar no partido. Já
quanto ao PPM, trazê-lo para esta coligação é
um absurdo para lá da adjetivação. Aconselho
apenas que não deixem Câmara Pereira sequer
expelir um murmúrio. Além de representar
zero em votos, tem dito umas coisas que fazem
de André Ventura um moderado.
Para quem quer replicar a AD de 1979, falta
uma parte importante: os reformadores. Mas
quem faz aquele filme sofre também de um
problema de ignorância. Adão e Silva, António
Barreto, Godinho de Matos, Sousa Tavares ou
Medeiros Ferreira são certamente nomes des-
conhecidos para esta gente sem memória e sem
cultura política.
Seria por aqui que o PSD teria de ir para
as próximas eleições. Encontrar pessoas que
abrissem o espaço natural do partido, per-
sonalidades relevantes entre o PS e o PSD. A
tentativa foi feita, mas o resultado fica muito
aquém do desejável: ou são pessoas que sempre
foram próximas do PSD ou que estão ligadas
ao entretenimento. Pode não ter sido feito um
esforço importante ou então não se conseguiu
mesmo. A última hipótese é muito mais preo-
cupante e provável.
Esta AD é um erro crasso e não faz qualquer
sentido. É má para o PSD e reduz as hipóteses
de Montenegro ser primeiro-ministro. Estes
parceiros não trazem votos, nem influência so-
cial, nem abertura a outras áreas políticas. Pior:
dão sinais errados ao eleitorado. O PSD só pode
sair da camisa de forças que o comprime entre
si e a direita se conseguir ganhar espaço ao
centro. Só ganhando esse espaço é que se pode
apresentar como verdadeira alternativa ao PS.
Mais: retira naturalmente votos à sua direita, se
criar a perceção de que pode ganhar as eleições.
Aliás, do lado direito, a vontade de correr com
os socialistas do poder é muito maior do que a
capacidade de apresentar propostas. Ora, esse
projeto de constituição duma alternativa vence-
dora começa pelo centro. Ao começar por uns
grupúsculos à direita, perde-se a mensagem
centrista.
O PSD trocou a sua sigla que vale todos os
votos e que precisa de ser reforçada por uma
que não é a sua e que não acrescenta nada, bem
pelo contrário.
Um muito obrigado à Mafalda Anjos por
me ter trazido para a VISÃO e, sobretudo, por
ter sido uma excelente diretora da revista que
leio desde o primeiro número. Desejo-lhe toda
a sorte do mundo e espero que não desista do
jornalismo. Faria uma terrível falta. visao@visao.pt
R ---------- P E R I SCÓ P I O

Afinação de motores
Faltam dois meses para as legislativas, mas, pela troca de galhardetes
dos líderes do PS e do PSD, vai ser uma campanha animada. Vai, vai...

“Ao fim de mais de ano “O dr. António

e meio de liderança de Costa e o dr. Pedro
Luís Montenegro, temos Nuno Santos são os
o vazio: vazio de projeto, maiores caçadores
vazio de liderança, de gambozinos da
vazio de visão, vazio política portuguesa,
de credibilidade, vazio porque estão sempre à
de experiência e, como procura do diabo. E vão
todos já percebemos, continuar a procurar”
vazio de decisão” LUÍS MONTENEGRO
PEDRO NUNO SANTOS Presidente do PSD
Líder do PS

INDISCRETOS 15 MINUTOS DE FAMA

Augusto Santos Silva Desperdiçar conjunturas?

e o fator Mayan
O presidente da Assembleia da República,
Augusto Santos Silva, continua a declarar-
se disponível para se candidatar a
qualquer cargo, incluindo o de presidente
da junta. À VISÃO, nesta semana (ver
pág. 70 e ss.), confessa que o PS nunca
ganhou na sua junta de freguesia, na
União de Freguesias de Aldoar, Foz do
Douro e Nevogilde. Ora, Pedro Nuno
Santos anunciou que quer ganhar
todas as próximas eleições, incluindo
as autárquicas de 2025. Aqui tem o
candidato ideal para desalojar o atual
presidente naquela junta do Norte de País:
trata-se nada mais, nada menos do que
Tiago Mayan Gonçalves. Não será fácil: o
liberal já lhe leva a palma uma candidatura
a Belém, em 2021...
Marcelo e Malheiro ficaram
para a história… do PS
O Periscópio dava tudo para saber a
reação de Marcelo Rebelo de Sousa e de
Salvador Malheiro, ex-vice do PSD, quando
souberem que entraram num vídeo do PS,
com que o partido abriu o congresso, no
último fim de semana, em Lisboa, e no qual
destacou os maiores momentos da história
socialista. É uma imagem de segundos,
em que Marcelo e Malheiro aparecem ao
lado de Costa e de Temido, em tempo de
pandemia. É que nem as máscaras, que
usavam naquele momento, impediram de
ver de quem se tratava...
Com os socialistas a prepararem-se
para o arranque do congresso na FIL, na
quinta-feira passada, 04, a ministra da
Ciência e do Ensino Superior também
andava atarefada, mas num grande espaço
comercial na Margem Sul. Com o telemóvel
colado ao ouvido, Elvira Fortunato, que
entrou como independente no Governo,
repetia “pois é, pois é”, em direção a uma
conhecida marca de roupa espanhola.
O Periscópio acha que do outro lado
da chamada podia estar alguém a dizer
à governante que, se calhar, devia ir ao
congresso do PS e fazer como Marta
Temido, em 2021, que, numa reunião
magna, de ministra independente passou
a militante socialista e, agora, é líder da
concelhia do PS/Lisboa.
Olhar fulminante
Na apresentação da coligação AD, no
último domingo, 07, no Porto, Nuno
Melo, presidente do CDS, lançou um
olhar reprovador e um aperto de mão
abespinhado tais a Gonçalo da Câmara
Pereira, do PPM, que... Se não fosse o
social-democrata Luís Montenegro no
meio – e a levantar os braços do centrista
e do fadista, num sinal de apaziguamento
–, a coisa era capaz de não ficar bem na
fotografia, ali, na Alfândega do Porto. Mas
não era para menos, depois das cobras
e lagartos que o líder do PPM disse
de Montenegro e de Melo, antes de a
coligação incluir os monárquicos.
F.L. / N.M.R.
Craveiro quê?
Estava o congresso socialista
para lá de morno, no último
sábado, quando o candidato
do partido às regionais
açorianas, a 4 de fevereiro,
Vasco Cordeiro, acordou a
reunião magna, não com um,
mas com três salvas de “Viva
ao PS!”. Não se percebeu se
aquele era o tom normal de
Cordeiro – se for, talvez seja
melhor moderá-lo – ou se foi
o técnico de som que pregou
uma partida. A verdade é
que marcou a tarde. Quem
sabe, talvez tenha sido por
isso que, quando interveio,
Manuel Alegre desejou boa
sorte “ao camarada Craveiro,
nos Açores”. Será que o
histórico socialista estava a
pensar noutro Craveiro, feito
Presidente da República, na
ditadura, há mais de 70 anos?

11 JANEIRO 2024 VISÃO 19

 ---------- P R ÓX I M O S CA P Í T U LO S
Excesso
de mortalidade
Até o frio passar,
e com pouca gente
vacinada, vamos
continuar a morrer
demais
— PO R LU ÍS A O LI VEI R A
T
odos os invernos, a
gripe tem as costas
largas. E escreve-se
todos os anos, por-
que, excetuando o período
pandémico, claro, por estas
alturas se regista sempre
excesso de mortalidade no
País. É caso para questionar
se as estatísticas que de-
terminam quantas pessoas
se espera que morram em
determinada semana não
estarão desatualizadas, sem
que nelas se compreenda o
envelhecimento progressivo
da população.
Como não existe – ainda
– resposta para esta dúvida
existencial, é preciso enca-
rar a situação como sendo,
de facto, reveladora de
que algo vai mal na saúde,
embora se saiba de ante-
mão que se morre mais no
inverno e que o frio é um
indutor importante dessa
realidade.
Se são esperados 320 a
330 óbitos diários, nos dias
mais curtos esses valores
sobem para os 370. Só que,
desde o final de 2023, e se-
gundo o Sistema de Infor-
mação dos Certificados de
Óbito (SICO), os números
estão sempre acima dos 400,
chegando em alguns dias a
ultrapassar as 500 mortes
20 VISÃO 11 JANEIRO 2024
diárias – a 2 de janeiro, por
exemplo, registaram-se 548
óbitos em Portugal, muito
mais do que na mesma data
em qualquer ano da última
década (ver caixa).
“Desde a semana 51 de
2023, observa-se um exces-
so de mortalidade geral se-
manal, por todas as causas,
elevado em Portugal, com
maior expressão na popula-
ção com idade superior a 65
anos”, lê-se no relatório da
resposta sazonal em saúde,
vigilância e monitorização
da DGS.
Más notícias: continua-
mos em fase ascendente.
Enquanto a massa de frio
polar estiver por aí, desen-
ganem-se, os números pa-
recem não querer descer.
Há, pois, que esperar e
entender que, como explica
Miguel Castanho, investiga-
dor em bioquímica de vírus,
do Instituto de Medicina
Molecular da Faculdade de
Medicina de Lisboa, a des-
cida será igualmente ágil.
“Quanto mais crescem os
números de infeções, maior
será a velocidade a que
estas se propagam. Mas a
realidade também se altera
rapidamente, quando se
mudam os fatores humanos
ou ambientais.”
ÚNICO PAÍS EM EXCESSO
São estes números em exce-
dente que podem ser atribuí-
dos ao surto de gripe A, que
não passou despercebido a
ninguém na época das festas.
Como lembra o pneumo-
logista Filipe Froes, esta é
a altura de maior “ativida-
de gripal e de outros vírus
respiratórios, a que se juntou
Há que recordar um número elevado de pes-
que este é o soas reunidas em espaços
fechados”.
primeiro inverno Há que recordar que este
depois da é o primeiro inverno, depois
da pandemia, de regresso à
pandemia. normalidade e sem qualquer
As pessoas têm medida de restrição. As pes-
a imunidade soas têm por isso a imunida-
de menos desenvolvida para
menos os vírus que por aí andam.
desenvolvida No entanto, e segundo
o site EuroMOMO, que faz
para os vírus que a vigilância da mortalida-
por aí andam de, somos o único País, de
 Infeções Com uma taxa vacinal mais
baixa do que é expectável, esta
estirpe da gripe torna-se agressiva
para os mais vulneráveis, fazendo
com que os óbitos saiam da linha
entre mais de 20 na Europa,
com a classificação mais alta
no excesso de mortalida-
de (excesso muito elevado),
mesmo que outros territó-
rios também estejam a lidar
com surtos de gripe, a ponto
de, em Espanha, por exem-
plo, já se ter decretado o uso
obrigatório de máscara para
os profissionais dos hospitais
e centros de saúde, segundo
uma decisão do Ministério
da Saúde espanhol. A medida
deve-se exclusivamente ao
aumento de casos de infeções
respiratórias, como a gripe
e a Covid-19, tal como em
Portugal.
Miguel Castanho defende
que estas medidas deveriam
ser impostas também pela
DGS. Até agora, a Ordem dos
Médicos emitiu um comu-
nicado, a 29 de dezembro,
quando os números come-
H1N1, e para ele esta vacina,
que compreende quatro es-
tirpes, tem boa eficácia.”
Não se pense que agora é
tarde. Ainda se está muito a
tempo de tomar a única dose,
gratuita para pessoas com
mais de 60 anos ou, abaixo
dessa idade, com doenças
crónicas, e administrada nas
farmácias.
Perante os números de
mortalidade e o caos nas
urgências hospitalares, o
ministro da Saúde, Manuel
Pizarro, faz um apelo à po-
pulação mais vulnerável: “A
campanha de vacinação da
gripe e da Covid-19 ainda
não acabou, ainda estamos
em pleno inverno. Há vacinas
disponíveis. Todos aqueles
que têm mais de 60 anos e
que ainda não se vacinaram
devem vacinar-se.”
O facto de o Serviço
Nacional de Saúde estar no
tutano, que no osso estava
durante a pandemia, também
contribui para os números
aqui em análise. Quando
JOSÉ CARLOS CARVALHO
se trabalha na reserva, não
existem condições para se
responder a picos como este,
causados por uma estirpe
particularmente infeciosa,
como a H1N1.
çaram a disparar, recomen- “O atraso no diagnóstico
dando o uso de máscara em e na instituição da terapêu-
várias situações, incluindo tica adequada em infeções
nos transportes coletivos e do foro respiratório que se
nas unidades de saúde, como cruzam com sépsis tem in-
medida para se minimizar o fluência na mortalidade dos
impacto das infeções respira- doentes mais graves”, nota
tórias. A DGS também seguiu Filipe Froes.
o exemplo, mas, por enquan- Tendo em conta que a
to, nada é imposto. situação do SNS não tem
dado mostras de melhorar,
NUNCA É TARDE resta-nos esperar que este
PARA SE VACINAR
frio passe e que a chuva
O terceiro vértice des- abrande. Até lá, evitemos as
te problema multifatorial urgências, fazendo o rastreio
encontra-se na baixa taxa de através da Linha SNS24,
vacinação contra a gripe e a agasalhemo-nos e viremo-
Covid-19. Se em 2019, antes -nos para a proteção dos
da pandemia, se administra- mais frágeis. A lengalen-
ram 3,1 milhões de doses, até ga ainda deve ecoar por aí:
agora esse número ficou-se máscara em locais de gran-
pelos 2,3 milhões. “Há menos des aglomerados, distancia-
10% da população vacinada”, mento social e cumprimento
alerta Filipe Froes, lembran- da etiqueta respiratória.
do o seu efeito. “Neste inver- Com Sara Rodrigues
no, o vírus predominante é o loliveira@visao.pt
SOMOS
OS PIORES
DA EUROPA
Dos mais de 20 países
europeus analisados
pelo site EuroMOMO,
Portugal é o único que
apresenta um excesso
muito alto de mortalidade
Excesso extraordinário alto >15
Excesso muito elevado 10-15
Excesso elevado 7-10
Excesso moderado 4-7
Baixo excesso 2-4
Nenhum excesso 0-2
Sem dados
O DIA EM
QUE A MORTE
MAIS CHAMOU
Ainda o ano está
no adro e já temos
um recorde de óbitos
a registar, culpa de
uma conjugação de fatores.
No segundo dia de 2024,
morreram em Portugal 548
pessoas. Veja-se o que se
passou, na mesma data, na
última década (os últimos
três anos em situação de
pandemia, logo com medidas
de proteção acrescidas):
578
600
548
500
428
400
314
300
2014 2016 2018 2020 2022 2024
11 JANEIRO 2024 VISÃO 21
 P O N TO S
CA R D E A I S
Bernardo
Pires
de Lima
— Analista de política
internacional
NORTE
Depois de um mandato sofrí-
vel, Charles Michel anunciou a
candidatura ao Parlamento Eu-
ropeu pelos liberais belgas, an-
tecipando-se cinco meses às
eleições e abrindo um leque
desnecessário de hipóteses
para o Conselho Europeu.
SUL
Os ataques no mar Vermelho
pelos houthis desviaram 25%
da circulação marítima para
a costa sul-africana, encare-
cendo e atrasando entregas.
Mais uma prova do falhanço
da política ocidental para o
Irão, grande financiador dos
iemenitas.
ESTE
Foi num bunker em Kiev que
a ministra dos negócios es-
trangeiros do Japão anunciou
nova ajuda de 37 milhões de
dólares para um fundo da
NATO destinado ao sistema
antidrones ucraniano. Tóquio
tem sido um firme aliado.
OESTE
Depois de querer implodir
direitos laborais básicos, o
Presidente argentino prosse-
guiu com a desvalorização do
peso face ao dólar, fazendo
subir os preços, e nomeando
a irmã para conselheira, após
vociferar contra o nepotismo.
22 VISÃO 11 JANEIRO 2024
Três meses em Gaza
T
rês meses passaram desde o ter-
rível ataque terrorista do Hamas
em Israel. Três meses passa-
ram desde o início da retaliação
maciça de Israel a Gaza. Dois
acontecimentos marcados pelo horror
contra civis, pela violência dos meios em-
pregues, e pela distinta natureza do uso da
força. Pede-se a um Estado que a use como
último recurso, num quadro de legítima
defesa, proporção de meios e distinção de
alvos; não se pede a um grupo terrorista
que siga qualquer critério que, apesar de
tudo, regula a guerra e os seus inominá-
veis efeitos. Há, por isso, uma legítima
expectativa sobre as partes: que se pautem
por padrões diferentes, tendo em conta a
sua natureza, exigindo sempre muito mais
a um Estado, ainda para mais democráti-
co, do que a um grupo terrorista, por mais
força política que possa ter. É sobre este
plano que, na minha leitura, a evolução da
complexidade histórica e identitária deste
conflito específico também deve assentar.
Posto isto, que leituras podemos retirar
deste último trimestre. A primeira é que
a capacidade militar do Hamas e a resis-
tência da sua marca política, postas em
prática antes e depois do ataque de 7 de
outubro, são mais fortes do que se imagi-
nava. Foram apetrechadas do exterior, nos
últimos anos, pelo Irão e pelos circuitos
que alimentaram financeiramente o grupo,
beneficiando de autênticos salvos-con-
dutos à sua cúpula dirigente nos vários
países da região ou em praças financei-
ras ocidentais, alvos de sanções apres-
sadas nas últimas semanas, revelador da
total negligência com que se olhou para o
problema. E foram ainda protegidas pela
logística dos túneis, dando condições para
uma certa fabricação militar endógena,
que, mesmo tendo alguma monitorização
tecnológica israelita, tem funcionado como
defesa e operacionalização para ataques.
Se a capacidade militar do Hamas na
região norte de Gaza, de acordo com Te-
lavive, terá sido relativamente delapidada,
também abriu espaço a que o Hezbollah
explorasse esse vazio para reter a atenção
das tropas israelitas. Mas, com o êxodo
forçado de centenas de milhares de civis
palestinianos para sul, é provável que a
próxima etapa da guerra seja humanita-
riamente ainda mais devastadora do que
esta, o que em última análise pode gerar
um efeito de aproximação entre os pa-
lestinianos e o Hamas, tendo em conta a
destruição que se avizinha num beco onde
tantas vidas estão encurraladas. Por outras
palavras, sem um critério militar mais
apurado e uma ação política que finalmen-
te separe civis de terroristas, o governo de
Netanyahu vai acentuar o seu isolamento
no plano externo, alimentar o arco re-
gional de frentes de insegurança (Líbano,
Síria, Iémen, Iraque, Irão) e fazer cres-
cer a insurreição na Cisjordânia. Como
ninguém acredita que o governo inverta o
rumo, só a sua substituição poderá alterar
este quadro.
A segunda leitura é que a unidade na-
cional, forjada no tempo da comoção e
do luto pós-7 de outubro, já não acomoda
as opções do governo. As manifestações
de rua regressaram e o desespero com a
incapacidade de negociar a libertação dos
reféns na posse do Hamas tem-se alastra-
do para além das respetivas famílias, as
quais, entretanto, acionaram judicialmente
o governo por responsabilidade aquando
do ataque do Hamas. A insatisfação po-
pular voltou a níveis anteriores a outubro
e as sondagens expressam-na susten-
tadamente, precipitando uma oposição
profunda à estratégia política, diplomática
e militar de Netanyahu. Os custos desta
guerra, que o primeiro-ministro quer ver
alongar-se para politicamente se aguen-
tar, foram já alvos de alerta pelo gover-
nador do banco central, numa altura em
que o Supremo Tribunal travou a tentação
legislativa do executivo de esvaziá-lo, ao
tentar proteger o líder do governo com um
estatuto de arbitrariedade política ao nível
de uma autocracia, ou seja, a próxima fase
da guerra terá uma fortíssima dimensão
interna, centrada na evolução política is-
raelita, em termos que a etapa anterior não
revelou. Os níveis de tensão vão acelerar,
a oposição vai ser obrigada a alinhar-se,
e o chefe de Estado a uma leitura fina da
situação. Os efeitos que daqui resultarem
terão impacto na condução da guerra, da
negociação diplomática, da credibilidade
do direito humanitário e na evolução da
posição internacional de Israel.
Uma terceira leitura resulta da atuação
dos principais Estados do Médio Oriente,
dos EUA, Rússia e China, União Europeia
e Nações Unidas. Mas sobre isso falaremos
para a semana. visao@visao.pt
R ---------- FOTO S CO M H I STÓ R I A

BEN MARTIN/GETTY IMAGES

AMÍLCAR CABRAL

Duplo aniversário
O ano que agora começa marca o centenário do nascimento de Amílcar Cabral,
mas este mês de janeiro apresenta a coincidência de ser também aquele em
que se assinala o 51º aniversário da sua morte. O líder histórico do Partido
Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) nasceu a 12 de
setembro de 1924. Foi com ele que Agostinho Neto e Marcelino dos Santos,
líderes independentistas de Angola e Moçambique, respetivamente, mantiveram,
em 1970, uma audiência privada com o Papa Paulo VI, na tentativa de despertar
a atenção internacional para a necessidade de um processo de descolonização
portuguesa. A 20 de janeiro de 1973, Amílcar Cabral acabaria assassinado
na Guiné-Conacri, alegadamente traído por dois elementos do partido.

— POR MANUEL BARROS MOURA

11 JANEIRO 2024 VISÃO 23

 R ---------- T R A N S I ÇÕ ES

MORTES

Ruy Mingas
Foi ministro dos Desportos
e antigo embaixador de
Angola em Portugal. Foi
também um cantor e músico
da resistência angolana,
compositor da conhecida
canção Os Meninos de
Huambo, popularizada na
voz de Paulo de Carvalho.
Foi igualmente o coautor
da letra do Hino Hacional
de Angola, o Angola Avante!.
Nas décadas de 1950
e 1960, praticou atletismo,
tendo competido no salto
em altura e nos 110 metros
com barreiras, conquistando
um recorde nacional de
Portugal, em 1960. Morreu
nesta quinta-feira, 4, em
Lisboa, vítima de doença
prolongada, aos 84 anos.

Mário Zagallo
Foi o único a ter conseguido
sagrar-se campeão do
mundo de futebol por quatro
vezes, três como jogador
(1958, 1962 e 1970) e uma
como selecionador (1994).
Chamavam-lhe O Professor
ou Velho Lobo, e é uma
verdadeira lenda do futebol
brasileiro e mundial. Nascido
em 1931, no estado de
Alagoas, Zagallo começou
a jogar no America, do Rio
de Janeiro, antes de ingressar
no Flamengo, clube pelo qual
se sagrou três vezes campeão
carioca, antes de o fazer
também por duas ocasiões
ao serviço do Botafogo.
Como treinador, teve uma
longa carreira, repartida por
vários clubes brasileiros e das
arábias. Morreu na sexta-feira,
5, aos 92 anos.
Arnaldo Trindade
Empresário do Porto,
como fundador da editora
discográfica Orfeu, lançou
a maior parte da obra de
José Afonso. Esteve também
ligado a nomes como Fausto,
Adriano Correia de Oliveira,
Sérgio Godinho e José Cid,
entre muitos outros. Morreu
na segunda-feira, 8, no Porto.
Tinha 89 anos.
1945-2024
Franz Beckenbauer
O “Senhor Futebol”
O futebol perdeu uma das suas maiores
figuras de sempre. Chamavam-lhe Kaiser
e com razão, pois o alemão foi um im-
perador dentro e fora das quatro linhas.
Venceu tudo o que havia para vencer
como jogador, treinador e dirigente, seja
ao serviço de clubes, seja com a seleção
nacional. Juntamente com o francês Di-
dier Deschamps e o brasileiro Mário Za-
gallo – este último também falecido nesta
semana (ver coluna ao lado) –, é um dos
três únicos casos campeões do mundo
enquanto futebolista e selecionador.
Franz Anton Albert Beckenbauer nasceu a
11 de setembro de 1945, no bairro de Gie-
sing, sede do Munique 1860, clube do qual
foi adepto na infância. No entanto, foi no
Bayern, eterno rival da capital da Baviera,
que veio a tornar-se figura proeminente,
não apenas por estar associado à meteórica
transformação de um clube modesto em
potência mundial nas décadas de 1960 e
1970 do século passado, mas também pelo
papel que assumiu na seleção da República
Federal Alemã. Começou como avançado,
mas foi recuando no terreno até acabar no
centro da defesa, onde ganhou a braçadei-
ra de capitão e a alcunha que o imortali-
zou. Nas 13 épocas ao serviço do Bayern
Munique, venceu a Bundesliga em quatro
ocasiões, conquistou a Taça dos Campeões
Europeus em 1974, 1975 e 1976 e uma Taça
Intercontinental (1976), depois de já ter
ganho uma Taça das Taças em 1967. Foi
galardoado com a Bola de Ouro em 1972
e 1976, tendo ficado em segundo lugar
em 1974 e 1975. Disputou 103 jogos pela
seleção da Alemanha Ocidental. Marcou
14 golos e sagrou-se campeão europeu em
1972 e do mundo em 1974. Em 1977, rumou
aos Estados Unidos da América, regres-
sando três épocas e outros tantos títulos de
campeão depois à Alemanha, para vencer
mais um título nacional pelo Hamburgo.
Em 1984, iniciou a carreira de treinador
e logo ao serviço da seleção nacional, que
levaria até à final do Mundial de 1986, no
México, perdida para a Argentina de Ma-
radona. Quatro anos mais tarde, consegui-
ria a vingança, sagrando-se campeão do
mundo no Itália 90, precisamente contra
a mesma Argentina. Orientou, depois, o
Marselha, onde foi campeão de França, e
regressou ao Bayern Munique para voltar a
ser campeão, antes de assumir a presi-
dência do clube. Foi ainda vice-presidente
da Federação Alemã e figura de proa na
organização do Mundial de 2006.
Der Keiser morreu na segunda-feira, 8, na
sua Munique natal. Tinha 78 anos. — M.B.M.

24 VISÃO 11 JANEIRO 2024

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 ---------- N A P R I M E I R A P ES SOA

Uma família
disfuncional, um
namoro “tóxico”
e uma gravidez
inesperada
aos 15 anos.
Hoje, Madalena
alcançou a
estabilidade
emocional e já não
sente necessidade
de pisar o risco

T
enho 27 anos, mas às
vezes sinto que ainda
sou adolescente.
Noutras, penso: “Te-
nho quase 30.” É uma con-
fusão, uma vez que fui mãe
muito nova, aos 15 anos, há
certas partes da adolescência
saudável que não vivi.
Foi uma amiga que, fora
da escola, me apresentou
o pai do meu filho. Tinha
13 anos e ele mais três do
que eu. Gostei muito da sua
postura, era um rapaz reser-
vado, autoritário (eu estava
habituada a isso), também
tinha uma história familiar
muito pesada, em que teve de
crescer sozinho.
Ele teve exemplos de algu-
ma violência sobre a mulher e
LUÍS BARRA

eu também tive de me defen-

der, muitas vezes, na minha
própria casa. Era uma relação

Madalena Moreira tóxica, mas, ao mesmo tem-

po, uma salvação, porque
estávamos os dois sozinhos a

“Fui mãe aos 15 anos. lidar com o mundo.

Venho de uma família
com estudos e facilidade

Ao engravidar, acordei económica. Sou mais crítica

do que outras jovens, tive
mais oportunidades, como

para a vida, mas ler livros, por exemplo. Os

meus pais são os dois pro-
fessores efetivos e tenho dois

às vezes sinto que irmãos mais velhos. Sempre

desconfiámos de que o nosso
pai podia sofrer de algum

ainda sou adolescente” tipo de doença mental. Em

casa, havia muitas discussões
que pareciam uma paranoia.

26 VISÃO 11 JANEIRO 2024

A minha mãe, com receio de
se divorciar, não pedia ajuda,
nem à sua família. Pedir aju-
da era para ela uma fraqueza
e não um ato de coragem. Só
após uma situação de violên-
cia doméstica, em que a po-
lícia foi chamada, acabariam
por se divorciar.
Eu e os meus irmãos
também ficámos doentes.
Por volta dos 12, 13 anos, tive
uma depressão, tratada com
medicação. Entretanto, não
escolhi os melhores cami-
nhos. O que era fora do nor-
mal para mim era o normal.
Ao engravidar, acor-
dei para a vida. Descobri
com facilidade que estava
grávida, pois o meu cor-
po estava diferente, o peito
inchou logo. Chorei imen-
so, pensei no meu pai e em
como iria reagir. Antes de
ser professor, ele tinha sido
seminarista durante 18 anos,
e era por isso que em casa
certos assuntos eram um
tabu – como beijar, dar as
mãos e a própria sexualidade.
“Cuidado com os rapazes”,
dizia-me. Eu pensava que
engravidava só por dar um
beijo. Sabia que o preserva-
tivo ia ajudar, mas do resto
tinha medo. Cheguei a tomar
pílulas do dia seguinte com
frequência. Achava que se
marcasse uma consulta de
Planeamento Familiar o meu
pai ia saber. A falta de educa-
ção sexual era enorme.
“NO PARTO TAMBÉM SOFRI
NEGLIGÊNCIA MÉDICA”
Quando contei à minha mãe
[professora de Ciências] que
estava grávida, ela disse-
-me que já estava à espera.
Tinha-lhe pedido ajuda para
começar a tomar a pílula an-
ticoncecional, mas ela só me
disse para não fazer sexo.
“Não vai ser uma futura avó
a dizer para tu abortares.”
Até hoje, essa frase toca-
-me muito, pela positiva. Se
abortar já me fazia confu-
são – e esse foi o conselho
do meu pai –, ter o bebé e
entregá-lo para adoção seria
ainda mais agressivo.
O pai do meu filho ficou
muito feliz, acompanhou-me
durante a gravidez e o parto.
Fui para a frente com a gra-
videz, consciente de que era
menor de idade, sem os estu-
dos terminados e a viver uma
relação tóxica. Continuei a
estudar [curso de restaura-
ção] e contei à professora.
Só pensava em acabar os
estudos obrigatórios e sair de
casa. Os problemas em casa
eram os mesmos e, com um
bebé a caminho, era ainda
mais preocupante.
No parto também sofri
discriminação e negligência
médica, ao terem deixado
restos de placenta no útero.
Tinha muitas dores e só me
diziam: “É natural, és muito
nova.” Tive alta, fui para casa
com febre, não conseguia
andar, parecia que tinha uma
faca espetada dentro de mim.
Pedia ajuda às assisten-
tes sociais das Comissões
de Proteção de Crianças e
Jovens, que já tinham a mi-
nha família referenciada. Só
quando houve a situação de
violência doméstica, já depois
de o meu filho ter nascido, e
a polícia foi lá a casa, é que
apareceu a assistente social.
Não tinha muitas es-
peranças para nada. Nessa
altura, já estava separada
do pai do meu filho, porque
ele era violento e não queria
que o meu filho um dia as-
sistisse a qualquer situação.
Pensava: “Não vou ser igual
à minha mãe.”
A assistente social trou-
xe-me para a Casa de Santo
António. Tinha ideia de que
uma instituição era um sítio
com câmaras de vigilância,
seguranças e psicólogos
disponíveis 24 horas. Ainda
fiz uma entrevista com a
diretora, Mafalda Simões
Coelho, a única pessoa que
acreditou em mim, no meu
pedido de ajuda.
Ter tido um filho tão nova
é um entrave para fazer
planos, não vou romantizar
isso. Amo ser mãe, porque
foi o que me salvou, me
fez procurar ter uma vida
Eu chegava saudável e me fez deixar de
a pensar que pensar em suicídio.
Fiquei na Casa de Santo
engravidava só por António dos 16 aos 20 anos,
dar um beijo. Sabia onde tentei fazer o meu pró-
prio mundo e estar focada só
que o preservativo em mim e na criança. Não ti-
ia ajudar, mas nha esperança individual. Tor-
do resto tinha nei-me uma pessoa diferente.
Havia uma queixa de violên-
medo. Cheguei a cia doméstica e havia outro
tomar pílulas do caso em tribunal por causa da
guarda da criança.
dia seguinte com O pai do meu filho, com a sua
frequência. Achava família, quis tirar-me o meni-
que se marcasse no. Foram várias as lutas.
Andei a estabilizar a minha
uma consulta situação com a minha família.
de Planeamento Até o meu tio da América
me telefonava! Esses quatro
Familiar, o meu pai anos deram também para
ia saber. A falta de estudar Design de Moda e
educação sexual realizar um sonho. Estagiei no
atelier do estilista Dino Alves,
era enorme na ModaLisboa e no Teatro
Dona Maria II. Em todas essas
experiências, os meus olhos
brilhavam.
Sou administrativa num
call center, há cerca de seis
anos, estou efetiva na empre-
sa, a receber o salário mínimo
e com horário adequado para
cuidar do meu filho [diagnos-
ticado com défice de atenção e
hiperatividade].
Durante a pandemia, ainda
fiz o curso online de auxiliar
veterinária, já consegui tirar a
carta de condução e comprar
um carro.
Assim que saí da instituição
e tive a minha casa, perce-
bi que é possível viver bons
momentos. Só tinha medo dos
meus próprios pensamentos.
Tive de me concentrar em
mim e em ter saúde mental,
manter-me estável para mim
e para o meu filho. Agora já
sinto muito prazer em coisas
supersimples que antes me
aborreciam, como ver um
filme em silêncio ou entre-
ter-me com o meu coelho de
estimação. Hoje em dia, já não
sinto necessidade de me co-
locar em situações perigosas.
Pelo contrário, busco uma paz
constante. scalheiros@visao.pt
Depoimento recolhido por Sónia
Calheiros
11 JANEIRO 2024 VISÃO 27
R ---------- I M AG E N S

Gelo e fogo
Enquanto aqui pelo Hemisfério Norte a chegada
do inverno trouxe o frio e as habituais imagens
que ele proporciona, do outro lado do planeta
impera o calor e a determinação dos participantes
numa das mais loucas corridas do mundo

GETTYIMAGES

AL DUWADIMI ARÁBIA SAUDITA

O motociclista do Botswana, Ross Branch, do Hero Motosports
Team Rally, cruzava, no domingo, 7, as dunas do deserto arábico,
durante a segunda etapa do Rally Dakar 2024, entre Al Henakiyah
e Al Duwadimi, na Arábia Saudita.

RYPTSJERKSTERPOLDER
PAÍSES BAIXOS
Um homem patinava
em prados inundados
e congelados, em
Ryptsjerksterpolder, no Norte
dos Países Baixos, na última
terça-feira, 9. Devido ao frio,
com temperaturas próximas
de zero durante o dia e
geadas leves a moderadas
à noite, patinar é possível
em vários lugares do país.

28 VISÃO 11 JANEIRO 2024

HARBIN CHINA
Visitantes passeavam, na sexta-feira, 5, no Harbin Ice and Snow World, em Harbin,
na província de Heilongjiang, no Norte da China. Cobrindo mais de 750 quilómetros
quadrados e consumindo mais de 300 mil metros cúbicos de gelo e neve,
este festival é uma das atrações de inverno mais populares do mundo.

KALOFER BULGÁRIA
Os crentes búlgaros realizam
a tradicional dança horo,
no rio Tundzha, em Kalofer,
como parte das celebrações
do Dia da Epifania, no
sábado, 6. Como tradição,
um padre ortodoxo oriental
lança uma cruz ao rio
e acredita-se que quem
a recuperar terá saúde
durante todo o ano, assim
como todos aqueles que
dançam nas águas geladas
do rio.

11 JANEIRO 2024 VISÃO 29

 TIKTOK
A MÁQUINA
DE FAZER
JOVENS
EXTREMISTAS
Quase metade dos jovens portugueses entre os 18
e os 24 anos está no TikTok, onde cada vez mais
se informa. Mas, na área política, a rede social está
dominada pelos conteúdos da direita radical, que tem
uma presença muito mais consolidada e uma tração
incomparável – André Ventura e Rita Matias são os
políticos que mais sobressaem. Nas eleições de 2022,
já se registou uma maior propensão dos mais novos
para votar em forças políticas da direita
— P O R M A FA L D A A N J O S *
M
Matilde Trindade, de 19 anos, é uma
estudante universitária sem interesse
particular por política, e o uso que faz
do TikTok é igual ao de tantas raparigas
da sua idade: entretém-se sobretudo
com vídeos de receitas, moda e viagens.
Só há uma figura da política portugue-
sa que sobressai na plataforma quando
está por ali a navegar: Rita Matias, a
jovem deputada do Chega. “Relaciona-
da com política, é sempre ela que me
aparece nas sugestões, sejam vídeos
seus sejam os de outros a criticar, prin-
cipalmente quando há polémicas ou
escândalos”, diz. Convidamo-la a fazer
uma experiência: uma simples pesqui-
sa por “eleiçõesportugal2024”. Nunca
tinha feito uma busca por conteúdos
semelhantes. Bingo: são vídeos e mais
vídeos de André Ventura, do Chega, de
Rita Matias e de contas simpatizantes
do partido da direita radical. Só depois
de mais de 25 conteúdos é que surge
um conteúdo distinto, mais moderado.
Fizemos outro teste com a ajuda de
Marta Franca, de 18 anos, estudante
universitária. Estava na zona de To-
mar quando, à frente da VISÃO, abriu
uma conta no TikTok, uma vez que
ainda não tinha. Nesta estreia, saltou
as preferências, não seguiu ninguém
e esperou para ver o que a plataforma
lhe propunha, testando os seus gos-
tos. O quinto vídeo sugerido a esta
recém-chegada foi um conteúdo viral,
em que aparecem, no Martim Moniz,
pessoas identificáveis como indianas
e paquistanesas, uma crítica implícita
à presença de imigrantes em Portu-
gal. O 15º vídeo que apareceu vem na
32 VISÃO 11 JANEIRO 2024
mesma linha temática: André Ventura
a falar de imigração. Com o algoritmo
ainda “virgem”, depois de escassos
cinco minutos de utilização, Marta
pesquisou por “politicaportuguesa”.
Sem surpresa, surgiram de imediato
vídeos sobre o Chega, Ventura e crí-
ticos do Governo.
O que sucedeu com Marta e Ma-
tilde é apenas um espelho do que
acontece no TikTok: a app em forte
crescimento, uma das preferidas dos
jovens portugueses, está dominada,
na área política, pela direita radical,
que tem maior presença e muito
mais tração na plataforma, fenóme-
no documentado também em vários
países do mundo. Uma situação que
tem aumentado a preocupação sobre
o impacto da rede e do seu algoritmo
– que muitos consideram manipu-
lável e tendencioso – na formação
da consciência política e cívica dos
Nos anos 60, 70
e 80, ser rebelde
era ser de esquerda
– hoje, para muitos
jovens, ser rebelde
é ser contra
o sistema, é estar
alinhado com
a direita radical
jovens, incluindo menores de idade,
potencialmente mais permeáveis a
conteúdos doutrinários.
TIKTOK, A JANELA DOS JOVENS
PARA O MUNDO
O TikTok é uma plataforma em cres-
cimento acelerado, em todo o mundo,
que está também a ser descoberta pe-
los políticos. A empresa revela que tem
mais de mil milhões de utilizadores
mensais à escala global e 134 milhões
de destinatários ativos mensais. Por-
tugal não é exceção e, também por
cá, o TikTok tem conquistado popu-
laridade: cresceu consecutivamente
em Portugal desde 2020, registando
um aumento significativo tanto de
utilizadores como de consumidores
de notícias.
Segundo o Retrato Digital de Por-
tugal 2015- 2023, um estudo do Ob-
servatório da Comunicação (Ober-
Com), que analisou, para a VISÃO,
especificamente os dados sobre o
TikTok, este é utilizado por 26% dos
portugueses e constitui a terceira
rede social mais procurada, a seguir
ao Facebook, YouTube e Instagram
(se retirarmos as plataformas de co-
municação por mensagens, como o
WhatsApp e o Messenger), à frente
do LinkedIn e do Twitter.
Os utilizadores têm características
específicas: são muito jovens, têm me-
nores rendimentos e poucos estudos.
Pelo menos 46% dos utilizadores, com
idades entre os 18 e os 24 anos, usam
a plataforma, e esta é a rede onde os
utilizadores com menores rendimen-
tos são mais prevalecentes (26%) e
onde há uma maior percentagem de
utilizadores com escolaridade até ao
9º ano (49%), conclui o OberCom. É
também no TikTok que se encontram
mais utilizadores com incerteza ou
sem posicionamento político (26%)
e onde há menor percentagem de
indivíduos ao centro (39%).
Estes números pecam por defeito,
note-se. Muitos dos utilizadores – não
se sabe ao certo quantos, porque é in-
formação não relevada pela empresa
– são ainda menores e escapam aos
inquéritos que só incluem maiores
de idade. O poder de alcance e a in-
fluência do TikTok são, pois, bastante
maiores do que os inquéritos que
começam nos 18 anos conseguem
identificar.
“O TikTok é uma plataforma des-
tinada a utilizadores com 13 anos ou
mais. Além disso, tem uma classifica-
ção de 12+ na Apple App Store e está
listado como ‘Orientação parental
Uma rede desequilibrada recomendada’, na Play Store da Goo-
gle. Estas classificações significam
As figuras e as páginas associadas à direita radical e ao centro-direita que, se um pai ou um encarregado
têm muito mais seguidores e tração de educação não quiser que o filho
descarregue o TikTok, estes podem
impedi-lo, utilizando os controlos
N.º DE SEGUIDORES N.º DE SEGUIDORES parentais disponíveis”, diz à VISÃO o
E VARIAÇÃO EM CINCO MESES POR PARTIDO porta-voz do TikTok.

A “FALTA DE COMPARÊNCIA”
DOS MODERADOS E DA ESQUERDA
Chega.oficial Os vários quadrantes políticos por-
9,717 mil tugueses, já presentes no Facebook,
André Ventura Twitter ou Instagram, começaram
(Chega) timidamente a marcar presença no
177 mil Chega_portugal
TikTok, mas é muito notória a des-
proporção entre a esquerda e a direita.
+58%
31,9 mil Dos partidos políticos com assento
parlamentar, o Chega lidera, e é evi-
dente o investimento em conteúdos
Chega.portugal pensados para este tipo de plataformas.
Tem a página oficial com mais de nove
28,6 mil mil seguidores, mas existem várias pá-
ginas semelhantes denominadas Chega
(como Chega_Portugal, chega.portugal,
Partidochega.pt partidochega.pt), supostamente criadas
por “fãs” mas que somam 31,8 mil, 28
11,2 mil mil e 11 mil seguidores, respetivamen-
te, e replicam os vídeos do partido. A
seguir vem o Bloco de Esquerda, com
Rita Matias 23,8 mil seguidores. Todos os outros
(Chega)
– PSD, PS, IL, Livre, PAN – têm pouca
31,8 mil expressão, com menos de cinco mil, e
Bloco de Esquerda o PCP não sequer tem página. Entre
+14%
24 mil os políticos, André Ventura (177 mil
seguidores) e Rita Matias (quase 32
mil seguidores) destacam-se e seguem
bem à frente do pelotão, tendo regis-
IL tado um crescimento acentuado nos
Carlos Moedas
(PSD) 4 344 últimos seis meses – respetivamente,
12,9 mil mais 58% e mais 14%. A larga distância,
vêm Carlos Moedas (12,9 mil) e Joana
+4%
Mortágua (10,7 mil). Mariana Mortágua
Livre
não está presente. O secretário-geral
2 446 da Juventude Socialista, Miguel Costa
Joana Mortágua Matos, não chega a 600 seguidores, e
(BE) Pedro Nuno Santos só entrou agora –
10,7 mil PSD tem cerca de 550 seguidores.
Depois, há centenas de páginas
+1% 1 211 anónimas e de utilizadores comuns,
sem cargos políticos ou filiação as-
sumida, que propagam em Portugal
Alexandre Poço PS a mensagem dos partidos. É o caso
(PSD)
1 185 de páginas como Anidrido Carbónico
8 635 (29,7 mil seguidores), Decadência da
Democracia (23,3 mil), Istoeumpede-
+6%
monio (14 mil), que amplificam men-
PAN sagens antigoverno e antissistema,
256 alinhadas com a direita radical.
Miguel Costa Matos A VISÃO perguntou a todos os
(PS) partidos com assento parlamentar
543 qual era a sua estratégia para o Tik-
PCP
sem TikTok Tok. Todos concordam que é preciso
+20% estar nas várias redes e que o objetivo,
MT/VISÃO
nesta em particular, é chegar a um

11 JANEIRO 2024 VISÃO 33

TikTok, muito mais do que dancinhas
O OberCom recolhe, no estudo Retrato Digital de Portugal (2015-2023), a caracterização e as tendências
de utilização das redes sociais em Portugal

Idade dos Redes sociais em que os portugueses

utilizadores são utilizadores mensais ativos
do TikTok VALORES EM %, EM 2023

EM 2023

18-24 16,3%* 87,8

83,9
81,6

25-34 16,6% 71,6

35-44 20,4%

45-54 19,8% 46
38,1 36,2
55-64 21,1% 35,6
31

65+ 5,8%
16,8
*Os dados deste estudo apenas incluem
utilizadores com 18 ou mais anos. O TikTok
está disponível para jovens a partir dos 13,
logo esta informação peca por defeito WhatsApp Facebook Instagram Messenger TikTok Pinterest LinkedIn Twitter Telegram Snapchat

Fontes noticiosas mais Posicionamento político dos utilizadores do TikTok

consultadas no TikTok EM 2023

VALORES EM %, EM 2023
21,1% 39,1% 13,5% 26,3%

Esquerda Centro Direita Não sabe

Outras
48,2 pessoas
como eu

41,2 Celebridades
Utilização do TikTok Utilização do TikTok
para fins gerais, para consumo de
Marcas ou 2015 a 2023 notícias, 2015 a 2023
27,1 jornalistas
alternativos VALORES EM % VALORES EM %

Influenciadores TikTok TikTok TikTok TikTok TikTok TikTok

24,7 digitais (total) (18-24) (55+) (total) (18-24) (55+) 19,9%
50 45,7% 20
Marcas ou 45
21,2 jornalistas
tradicionais 40
15
35
Políticos
ou ativistas 30 25,9%
21,2 9,3%
políticos 25 10
20
8,2 Nenhuma 13,4 2,1
destas 15
5 0,8
10 16,5% 0,2
5 4,0
4,1%
0 1,3 0
2020 2021 2022 2023 2020 2021 2022 2023
FONTE RDNR 2015 A 2023, Obercom - Retrato Digital de Portugal MT, RL/VISÃO

34 VISÃO 11 JANEIRO 2024

público mais jovem. O PSD, a IL e o
PCP não responderam. “Tem sido uma
chegada gradual e sem precipitação.
Existe oportunidade nesse espaço, e
devemos ser flexíveis, mas a identida-
de de uma marca que é partidária, e
também de ação política e de gover-
nação, será necessariamente menos
mutável”, responde o PS, explicando
a postura mais conservadora com que
comunica nesta rede social.
“É necessário que outras forças
partidárias e correntes ideológicas
presentes nesta rede se tornem me-
lhores a comunicar as mensagens que
contrastam com a proliferação da ex-
trema-direita”, dizem os socialistas.
Ideia também veiculada nas entrevistas
com o PAN e com o Livre: o primeiro
sublinha a importância de se apostar
numa estratégia de “mensagens positi-
vas e informativas” e o segundo mostra
“preocupação para com o fenómeno”
dos conteúdos populistas.
“As redes sociais foram construídas
para pessoas e não para partidos ou
organizações, e por isso o que temos
assistido é a um afastamento das ideias
e a uma concentração na dimensão
pessoal. São um espaço natural para
se estabelecer relações diretas com os
adeptos, onde não interessa tanto a
dimensão factual mas a dimensão da
crença e de grupo”, enquadra Gusta-
vo Cardoso, professor de Ciências da
Comunicação no ISCTE e coordenador
do MediaLab ISCTE-IUL.
O especialista em comunicação
explica que o TikTok “começou por
ser parte da vida dos adolescentes, e
ninguém se preocupou muito por-
que era uma rede com conteúdos, à
partida, apolíticos”. Porém, sobretudo
a partir de 2020, ganhou escala; veio
a pandemia, e depois a guerra, e sur-
giram novas preocupações, por causa
dos temas geopolíticos e do facto de a
plataforma ser chinesa. “Nas próximas
eleições, o TikTok, e isto é novo, poderá
ser um player tão importante
mportante como o
Facebook ou o Twitter.ter. E isso acontece
porque os partidos perceberam que há
aí um votante especial:
ecial: os potenciais
eleitores mais novos”,
os”, afirma.
E porque sobressaisai a direita radical?
Gustavo Cardoso responde: “Quem
está no poder fazz sempre um uso
muito mais comedido:dido: normalmen-
te não é apelativo nem chamativo, é
mais formal, a não ser que seja alguém
que tenha um interesseesse pessoal em se
promover. Há aqui uma dimensão de
performance, e ela ou existe e é natural
ou não é e não resulta
lta bem”. Além dis-
so, há destaque nas mensagens críticas,
que passam melhor. “Quando se olha
para o Chega, percebe-se que há uma
política concertada de redes sociais;
eles sabem usar aquelas ferramentas. E
quem está na oposição tem, à partida,
um melhor ponto inicial para construir
uma relação, e então os que optarem
por um discurso populista, mais ainda,
o que põe de parte alguns partidos.
Em cima disto, têm de existir figuras
capazes de comunicar desta forma”,
explica o professor.
Para Patrícia Silva, investigadora
na unidade de Governance, Compe-
titividade e Políticas Públicas da Uni-
versidade de Aveiro, vai ao encontro
da mesma linha e explica que há três
fatores que podem ser notados como
motores de expansão da mensagem
dos partidos da direita radical nas re-
des sociais: “1) a utilização de discur-
sos populistas, simples, que apelam às
A definição
política na
adolescência faz-
se normalmente
por oposição a
algo ou a alguém;
é sempre contra
e raramente ‘a
favor de’. Um
discurso que
coloca as coisas
contra algo
é muito mais
apelativo
GUSTAVO CARDOSO
Sociólogo, professor no ISCTE
emoções; 2) a potencial controvérsia
de alguns dos temas abordados, por
forma a gerar conteúdos virais; e 3) o
potencial de os eleitores, mesmo os
mais afastados ideologicamente, po-
derem funcionar (ainda que o façam
sem essa intenção) como amplifica-
dores da mensagem destes partidos”.
A influência sobre os mais jovens
que procuram informação tenden-
cialmente nas redes sociais é ainda
amplificada pelas características das
redes sociais. “Há claros riscos na ativi-
dade política online e nas redes sociais,
nomeadamente no que diz respeito à
informação a que cada um é exposto e
ao reforço dos efeitos ‘bolha’, algumas
causas e lutas”, afirma a especialista.
OS NOVOS “INFLUENCERS”
POLÍTICOS
Rui Lopo é um dos influencers nativos
digitais que mais têm sobressaído,
nos últimos tempos, por causa de
conteúdos políticos virais. O jovem
de 22 anos vive na Margem Sul de
Lisboa e publica vídeos em que fala de
temas como a “governação miserável”,
as medidas para os jovens e a “areia
que nos atiram para os olhos” ou “a
criminalidade e a mentira nacional”.
Começou antes do verão e, em
quatro meses, conseguiu duplicar os
seguidores – conta já com mais de 53
mil. O seu tom é contundente e mui-
to crítico. “Acho que ajudo a formar
opinião política”, diz à VISÃO. Embora
afirme que não tem ligação a nenhum
partido político, assume-se como
“um jovem de direita” e, em muitas
tomadas de posição, está alinhado
com o discurso do Chega, além de
ser fã confesso de Rita Matias. “Ela
comunica muito bem. É um grande
animal político, consegue falar para
os jovens e de temas que os políticos
hesitam em tocar; ela não tem medo.
Identifico-me e consigo concordar
com praticamente tudo”, conta. Entre
“ler
ler notícias
notícias, pensar e editar”, porque
tenta “dar ccontexto e ser didático”,
investe cerc
cerca de uma hora por dia.
Rui confi
confirma a ideia que sobressai
quando se chchega à rede social dos mais
jovens: “Não há ninguém da esquerda
que sobressa
sobressaia”, afirma. “Por um lado,
por falta de conteúdo. É uma chatice
estar a ouvir uma pessoa a falar e a dar
palmadinhas nas costas do Governo –
o tema acab
acabou ali. Por outro, o PCP e
pessoas mais velhas, que não
BE têm pess
estão na rede
red social, ou pessoas que
são novas mas
m têm uma drive política
diferente: mais
m depressa vão a uma
manif sobr
sobre o clima do que fazem
11 JANEIRO 2024 VISÃO 35
Radicais e virais à solta no TikTok
Quem pesquisar por conteúdos políticos é impactado, na esmagadora maioria, por vídeos alinhados
com o Chega, conteúdos anti-imigração e muita desinformação. Contraditório, não há
VENTURA
Todos os deputados do partido, e
ainda alguns assessores, entraram
no ritmo da música anti-Lula e
fizeram a coreografia com o L. Foi
um sucesso: o vídeo teve milhões
de visualizações, 26 mil partilhas e
mais de 7 700 comentários
vídeos para o TikTok. É um espaço
que não aproveitam! Mas isso é com
eles”, comenta.
Vê riscos nesta presença. “Pode
haver uma ridicularização da classe
política, uma suavização de assuntos
que são mais sérios. Há políticos que
falham miseravelmente – os mais no-
vos acham ridículo, e os mais velhos
não querem vê-los a fazer dancinhas”,
nota o tiktoker.
Já no centro-direita, destaca-se
Gaspar Macedo, de 23 anos e mili-
tante do PSD, que recolhe já 95 mil
seguidores. “Falo de política desde os
13 anos, porque me entrou pela casa
adentro – a minha família foi muito
prejudicada com a crise e o resgate da
Troika. Comecei por chatear colegas
e familiares com a minha opinião;
depois percebi que tinha outras pla-
taformas e formas de dizer as coisas”,
conta à VISÃO.
Gaspar Macedo, que se considera
um “social-liberal”, fala com preocu-
pação do “vazio muito grande dos dois
principais partidos” nesta plataforma
dominante e em que estão tantos jo-
vens. “Há um vácuo que os partidos
36 VISÃO 11 JANEIRO 2024
XENOFOBIA SALAZAR
Entre os conteúdos mais Há inúmeros vídeos em que o
frequentes com que todos os tempo do ditador português
utilizadores deparam estão os é relativizado ou mesmo
vídeos com imigrantes, sobretudo glorificado. Abordagens
indianos e paquistaneses. A ultraconservadoras,
mensagem racista e de anti- nacionalistas, homofóbicas e
imigração é muitas vezes subliminar machistas são comuns
mais extremistas estão a ocupar. De-
vido à ausência dos moderados, o es-
paço é dominado por partidos como
o Chega. E depois há as contas falsas,
em que as pessoas fingem que são
comuns cidadãos e fazem partilhas
orgânicas”, explica. Nota claramente
um “esforço planeado para se difundir
o medo”. “Não interessa, por exemplo,
Muita coisa se o crime está a diminuir ou a aumen-
tar, o que importa é incutir o medo e
escapa ao crivo passar a imagem de que esses crimes
são praticados por imigrantes ou por
dos moderadores, pessoas de cor negra. Cria-se esta bo-
sobretudo quando lha de que algo está horrivelmente mal
em Portugal, e a ideia e as mensagens
são conteúdos antipolíticas, de antissistema e antigo-
verno vão passando”, sublinha.
subliminares, Certo é que é aqui que muitos
em que a mensagem jovens se informam. Segundo o es-
tudo da OberCom já citado, para os
não é explícita, mas utilizadores entre os 18 e os 24 anos,
o TikTok é uma plataforma popular
fica subentendida, para o consumo de notícias: 19,9%
de jovens deste grupo utilizaram-na
como nos conteúdos para esse fim, em 2023 – um aumento
xenófobos considerável face aos 2,1% de 2020.
“Sabemos que há uma tendência
ou racistas para que os jovens entre os 15 e os 24
 “FAKE NEWS”
São muito frequentes os
conteúdos com notícias
falsas, informação distorcida
ou descontextualizada. Nesta
rede não há, praticamente,
contraditório nem páginas de
verificação de factos
anos recorram menos à televisão e à
rádio como fontes de informação po-
lítica. Em contrapartida, notamos uma
maior tendência de utilização das redes
sociais para a obtenção de informações
sobre política, com o grupo dos jovens
a apresentar maior tendência de uti-
lização das redes sociais”, sublinha a
investigadora Patrícia Silva.
COMO VOTAM OS JOVENS
EM PORTUGAL?
Há uma ideia errada de que os jovens
não se interessam por política. Inte-
ressam, mas informam-se e expres-
sam-no de formas distintas das ma-
nifestadas pelas gerações anteriores.
“O eleitorado mais jovem tende a
ser politicamente ativo, interessado
em temas políticos. Está, contudo,
afastado da política convencional,
aquela que depende dos partidos
políticos. Os dados mais recentes
sobre estes eleitores sugerem que,
em 2020, os mais jovens (15-24 anos)
tendem a participar mais na dimensão
cívica”, diz Patrícia Silva. Mas há um
dado que parece distinguir os mais
jovens – e, sobretudo, os mais jovens
ANTISSISTEMA
Nos temas políticos, o
“sistema”, o Governo e os
partidos de poder são os alvos
prediletos. O Presidente da
República também é muitas
vezes criticado em vídeos
contundentes
em Portugal, nota: “Os mais jovens
(18-34 anos) encontram-se compa-
rativamente alheados, seja em com-
paração aos concidadãos mais velhos
seja em comparação internacional no
que toca ao voto.”
Isto acontece porque “os partidos
são instituições mal-amadas, institui-
ções políticas em que os portugueses
tendem a confiar muito pouco”, en-
tende Patrícia Silva. “E o eleitorado
jovem perspetiva, ainda, os partidos
de uma forma crítica, na medida em
que sentem o afastamento em relação
aos mais jovens, e uma ausência de
políticas e de propostas direcionadas
para esta faixa etária e para as suas
preocupações específicas”. O facto
de os partidos direcionarem as suas
propostas para um eleitorado espe-
cífico – o “grey vote” – não estimula
a aproximação entre os jovens e a
política convencional.
“Todos os meus amigos vão votar
no Chega”, diz João Maria, de 17 anos,
aluno dos Salesianos do Estoril, que
pede para não ser identificado. Conta
que, na sua bolha, entre as elites de
Cascais e de Lisboa, este é, de longe, o
MANIPULAÇÃO
Conteúdos que põem em
causa os media tradicionais
e tentam manipular a opinião
pública são muito frequentes.
É o caso deste, que mostra
uma sondagem falsa que
beneficia o Chega
partido favorito dos miúdos, tanto dos
que ainda não podem votar como dos
que já têm idade para o fazer. A razão
é simples: é o Chega que mais os im-
pacta, via redes sociais, e que tem um
discurso contra tudo e contra todos,
que passa melhor nesta idade da rebel-
dia. Nos anos 60, 70 e 80, ser rebelde
era ser de esquerda – hoje, para muitos
jovens, ser rebelde é estar alinhado com
a direita radical e ser contra o sistema,
representado pelos partidos do centro.
Uma coisa parece certa: os jovens
preferem mesmo os partidos mais
recentes e não os do círculo do poder.
Os politólogos João Cancela e Pedro
Magalhães analisaram as bases sociais
do voto, nas últimas legislativas de
2022, partindo de sondagens à boca
das urnas fornecidas pela Pitagórica, e
concluíram que os partidos mais novos
– Chega, PAN, Livre e (especialmente)
IL – foram desproporcionalmente mais
apoiados pelos votantes mais jovens, e,
entre os menores de 25 anos, os par-
tidos de direita ou de centro-direita
receberam 50% dos votos, enquanto
entre os maiores de 54 anos, apenas
37%. A grande diferença aqui é a cau-
11 JANEIRO 2024 VISÃO 37
João Cancela
Professor de Ciência Política na NOVA FCSH, investigador no IPRI e atualmente
professor convidado na Universidade de Georgetown, em Washington
“Em 2022, houve uma maior
propensão dos mais jovens para
votar em forças políticas de direita”
O coautor, com Pedro
Magalhães, dos estudos As
Bases Sociais dos Partidos
Portugueses (2020) e
Bases Sociais do Voto nas
Legislativas de 2022 (2022)
explica à VISÃO as dinâmicas
do voto jovem.
O que influencia os jovens
quando começam a votar?
Há duas componentes na
decisão de voto: a primeira é
se vota ou não; a segunda é,
em caso afirmativo, em quem
vota. Os modelos explicativos
do voto indicam que o
principal fator por detrás da
decisão de um jovem votar
(ou não) se prende com a
intensidade da socialização
política no quadro familiar.
Mas há outros fatores,
como o grau de interesse
da própria eleição: alguma
investigação demonstra, de
resto, que, caso as primeiras
eleições em que o jovem
eleitor pode votar sejam para
o Parlamento Europeu, há
uma menor propensão para o
voto em eleições futuras.
E há diferenças entre os
jovens dos 18 aos 24 e os
jovens entre os 25 e os 30
anos?
Segundo os dados das várias
edições (2002 a 2022) do
Estudo Eleitoral Português,
há diferenças, ainda que
pequenas, na propensão
de voto, com os mais novos
desse grupo a serem
ligeiramente mais propensos
ao abstencionismo do que
os que têm entre 25 e 30
anos. Mas a grande diferença
está no grupo dos sub 30,
como um todo, em relação
aos mais velhos. No que toca
38 VISÃO 11 JANEIRO 2024
aos partidos, tanto quanto
sei, não julgo que se possam
estabelecer diferenças
estatisticamente significativas.
Os jovens tendem a ser “do
contra” na hora de votar? Ou
seja, penalizam os partidos
do poder e privilegiam outras
alternativas?
Em Portugal, mas também
noutros países, os jovens
tendem sobretudo a dispersar
mais o voto por outros
partidos, além dos “principais”
competidores. Isso tem-se
acentuado especialmente ao
longo do tempo.
É possível identificar um
alinhamento maior com a
esquerda ou com a direita? E
essa tendência tem evoluído?
Tipicamente não se notam
grandes diferenças, em
Portugal, no que toca à
distribuição de votos em
partidos de esquerda e de
direita por parte de eleitores
jovens e mais velhos. Ainda
Quantos jovens podem votar?
GRUPOS ETÁRIOS DENTRO DO ELEITORADO DE CADA PARTIDO
% 18-34
100
40
44
48
50
40
37
37
19 20
15
0
PS CDU CDS-PP
FONTE Bases sociais do voto nas legislativas de 2022
assim, 2022 ofereceu algo
diferente do que é habitual:
houve uma maior propensão
dos mais jovens, face aos mais
velhos, para votar em forças
políticas de direita.
Esse comportamento pode
estar relacionado com a
maior presença e tração em
redes sociais, como o TikTok,
onde os jovens passam
grande parte do tempo?
Pode haver vários fatores –
esse, mas também uma maior
precariedade e exposição à
vulnerabilidade económica,
por exemplo –, no entanto não
consigo estimar o peso relativo
de cada um.
Há diferenças entre o
comportamento eleitoral dos
jovens portugueses face ao
que acontece na Europa?
Há um traço que é interessante
destacar. É verdade que, na
generalidade dos países e
não só em Portugal, os mais
35-54
17 14
30 28
39
36
35
38
47
41
48 50
32
26
21
PSD BE Chega Livre PAN
novos são menos propensos
a participar na vida política.
Porém, num plano comparado
e em relação aos mais velhos,
os jovens portugueses são
dos menos propensos a
participar eleitoralmente,
ou seja: a desigualdade de
participação com base na
idade é especialmente intensa
em Portugal.
O vosso estudo mostra
que os jovens têm um peso
maior nos novos partidos.
Conseguiram encontrar
uma explicação para essa
realidade?
Não procurámos chegar a
uma explicação única, mas
é possível lançar algumas
hipóteses. Por um lado, os
jovens têm um sentimento
de identificação partidária
menos intenso do que as
gerações mais velhas, o que
lhes dá mais margem de
recetividade à mensagem e
ao apelo dos novos partidos;
por outro lado, estes partidos
podem veicular valores ditos
“pós-materialistas”, que têm
expressão em questões
concretas, relacionadas com
54+
a sexualidade, a proteção do
ambiente e dos direitos dos
12
animais, a despenalização do
consumo de drogas ou da
eutanásia. No espectro oposto,
39 o nosso estudo mostrou
também que, à semelhança
de outros partidos de direita
radical na Europa, o Chega
tem alguma capacidade de
penetração em setores do
49 eleitorado algo marginalizados,
nomeadamente entre homens
de zonas periféricas do País e
sem Ensino Superior, que, não
IL sendo jovens, também não são
MT/VISÃO ainda velhos.
sada pela IL, que é por uma confortável
margem o terceiro partido mais votado
entre os eleitores mais jovens. Dentro
do eleitorado de cada partido, os jovens
entre os 18 e os 34 anos representam
50% no PAN, 49% na IL, 48% no Livre,
32% no Bloco de Esquerda e 26% no
Chega. No último lugar do ranking está
o PS, em que esta faixa etária representa
apenas 15% do eleitorado.
O partido menos escolhido pelos
mais novos é mesmo o PS. Em 2022,
entre os votantes com mais de 54 anos
– mais de um terço do total dos votan-
tes no continente em 2022 –, o PS reco-
lheu 51% dos votos, contra apenas 27%
nos eleitores com menos de 25 anos.
“Tipicamente, não se costuma notar
grandes diferenças em Portugal no
que toca à distribuição de votos em
partidos de esquerda e de direita por
Alinhados Os jovens e o TikTok foram o motor eleitoral de Javier
parte de eleitores jovens e mais velhos. Milei. Bolsonaro e Salvini também são estrelas na plataforma
Ainda assim, 2022 ofereceu algo di-
ferente do que é habitual: houve uma
maior propensão dos mais jovens, face Queremos combater o enviesamento Como é privilegiado e mostrado um
aos mais velhos, para votar em forças e o sequestro ideológico a que foram conteúdo em relação a outro que fica
políticas de direita”, diz João Cancela sujeitas estas instituições”, responde escondido? Que normas estão con-
(ver entrevista na pág. 38). o partido. templadas nessa triagem? E com que
Gustavo Cardoso traz, para o debate, intuitos, além de “viciar” o utilizador?
considerações interessantes. “Há uma SÃO OS ALGORITMOS, ESTÚPIDO! Ninguém sabe. Mas com o escândalo
diferença substancial na mensagem Todas as redes sociais assentam em da Cambridge Analytica, denunciado
e nos conteúdos. A extrema-direita poderosos algoritmos, que filtram os em 2018, que mostrou que, em vários
diz que está tudo sempre mal e que a milhões de conteúdos disponíveis e países, dados pessoais foram reco-
verdade está connosco, e esta é uma escolhem o que mostrar a cada utili- lhidos e utilizados para influenciar a
mensagem muito mais cativante da zador, consoante o perfil e hábitos de opinião de eleitores em campanhas
insatisfação”, afirma. Uma atração que consumo, popularidade e interesses politicas, ficou-se a perceber o alcance
é normal nos mais novos, porque tem da comunidade local e das pessoas das redes e o impacto que estas podem
que ver também com a forma como seguidas, além de outros critérios ter na psicologia dos cidadãos e na
se relacionam com a autoridade. “Os desconhecidos, provavelmente com forma como estes votam. No livro Os
jovens e os adolescentes opõem-se, centenas de variáveis. O problema, Engenheiros do Caos, de Giuliano da
normalmente, a todas as formas de tanto no TikTok como no Facebook Empoli, explica-se bem os bastidores
poder – sejam as de poder parental, ou no Twitter, está na forma como do movimento populista global e como
em casa, sejam as de outros poderes. estes algoritmos funcionam, que é este tira partido das redes sociais.
E a definição política na adolescência tudo menos transparente. No TikTok, as coisas são um pouco
faz-se normalmente por oposição a distintas. Há menos interação entre
algo ou a alguém; é sempre contra e utilizadores e mais consumo das su-
raramente ‘a favor de’. Um discurso gestões fornecidas “aleatoriamente”
que coloca as coisas contra algo é muito Os jovens preferem pela plataforma. E como são sugeri-
mais apelativo para os adolescentes do das? Perguntámos ao próprio TikTok.
que um discurso que é a favor de algo”, os partidos mais Pretende ser “um farol de inspiração”,
acrescenta.
Tendo isto como certo, partidos
recentes. Entre respondem. “A própria essência dá
prioridade ao fascínio do conteúdo, em
como o Chega fazem uma aposta forte os menores detrimento da popularidade ou afilia-
na comunicação com os mais novos. ção dos criadores. Aqui, não se trata de
Por isso, além das redes, adotaram, de 25 anos, quem se conhece, mas do que se cria.
a partir do ano passado, uma estra-
tégia de comunicação direta com os os partidos de direita Cada indivíduo, independentemente
da contagem de seguidores, tem um
alunos universitários. “Os deputados
do Chega visitaram várias universi-
ou de centro-direita palco para brilhar”, diz o porta-voz do
TikTok para Portugal.
dades, no distrito de Lisboa, Faro, receberam 50% O mesmo acontece, claro, com con-
Beja, Évora, Leiria, Coimbra, Aveiro e teúdos políticos ou sociais, sobretudo
Porto, com o objetivo de defenderem dos votos; entre se forem polarizadores – que geram
um Ensino Superior despolitizado e
aberto a alunos de todas as cores po-
os maiores de sempre mais engajamento. Mesmo
com zero seguidores, uma peça criativa
líticas, nomeadamente as de direita. 54 anos, apenas 37% ou apelativa pode aparecer na página

11 JANEIRO 2024 VISÃO 39

Para Si. E, se tiver eco e cativar, tem
o potencial de se espalhar, atingindo
um público de milhares ou mesmo
milhões, num instante.
Mas à pergunta “como se justifica
que os conteúdos de direita tenham
mais força na rede social do que os
conteúdos de centro ou de esquerda,
tal como vários estudos o confir-
mam?”, o porta-voz do TikTok não
responde.
“Tudo leva a crer que o TikTok pri-
vilegia os conteúdos de forma diferen-
te de outras redes, como o Facebook
ou o Twitter: não faz obrigatoriamente
a difusão dos que têm mais seguidores.
Pode-se ter poucas pessoas a seguir,
mas os conteúdos serem altamente
promovidos. A lógica disso pode ter
que ver com o facto de a rede ser, na
origem, uma rede musical – e a di-
mensão da música é apresentar canto-
res desconhecidos e descobrir talentos.
Aqui privilegia-se a novidade”, explica
Gustavo Cardoso.
O problema é que um utilizador
que depare com conteúdos mais extre-
mistas e se detenha neles começa a ser
mais e mais impactado por conteúdos
do género. “Um dos grandes proble-
mas destes espaços é esse mesmo: ao

sermos apanhados na rede do dis-
curso de ódio, o algoritmo acaba por
nos direcionar para mais conteúdos
semelhantes. Além disso, a falta de
uma robusta literacia para os media
não facilita processos de capacitação e
de conhecimento sobre a forma como
funcionam estas plataformas e outras
semelhantes e sobre como escapar às
suas armadilhas”, sublinha Maria José
Brites, professora associada da Uni-
versidade Lusófona e vice-presidente
do CICANT – Centro de Investigação
em Comunicação Aplicada, Cultura e
Novas Tecnologias.
“No projeto Jovens, Notícias e Ci-
dadania Digital – YouNDigital, esta-
mos agora a trabalhar nos resultados
das entrevistas que realizámos em
Portugal com 42 jovens, dos 15 aos 24
anos. As análises preliminares revelam
algumas representações sobre os algo-
ritmos e as bolhas nas redes, às quais
precisamos de estar atentos, muito
em especial em períodos eleitorais.
Um número considerável de jovens
assumiu não compreender facilmente
o que são e que implicações têm os
algoritmos”, revela a investigadora.
A esquerda parlamentar acusa a
plataforma de promover diferenças
na distribuição das mensagens. “O
algoritmo não é neutro. As redes so-
ciais não existem no vácuo. Querem-
GASPAR MACEDO
23 ANOS
“Há um vácuo que os
partidos mais extremistas
estão a ocupar. Devido à
ausência dos moderados,
o espaço é dominado por
partidos como o Chega”, diz
o tiktoker e militante do PSD
-se lucrativas, e sabemos que os pro-
prietários destas redes têm opiniões
políticas, e, muitas vezes, privilegiam
conteúdos de extrema-direita. Vimos
isso a acontecer com Trump e com
Bolsonaro”, sugere Fabian Figueire-
do, sociólogo e deputado do BE, que
acusa ainda os partidos extremistas
de “recorrerem a contas falsas e a
bots, que operam em zonas cinzentas
da lei,” para conquistarem eleitores
mais jovens.
MODERAÇÃO, MAS POUCA
Quando comparado com outras pla-
taformas, como o Twitter ou o Face-
book, há a ideia de que o TikTok tem
menos conteúdos violentos ou mesmo
LUCÍLIA MONTEIRO
de teor político. Mas a verdade é que
estes continuam a existir.
Há um esforço de moderação e de
exclusão de vídeos de ódio, racistas,
xenófobos ou agressivos. “A nossa
prioridade é manter um ambiente
seguro e positivo, para que todos os
utilizadores se sintam livres para ex-
pressar a sua criatividade. Temos mais
de 40 mil profissionais de segurança
em todo o mundo, que trabalham para
identificar e tomar medidas contra
conteúdos que violem as nossas re-
gras”, diz à VISÃO o TikTok. A mesma
fonte explica que a publicidade política
é proibida, tanto os anúncios pagos na
plataforma como os criadores pagos
diretamente para criarem conteúdo
de marca.
No entanto, muita coisa escapa ao
crivo dos moderadores, sobretudo
quando são conteúdos subliminares,
em que a mensagem não é explíci-
ta mas fica subentendida, como nos
vídeos de conteúdos xenófobos ou
racistas que são muito frequentes, em
que se mostram pessoas racializadas
supostamente a cometer crimes ou a
“invadir” zonas das cidades.

40 VISÃO 11 JANEIRO 2024

MARCOS BORGA
“O principal objetivo das empresas de
tecnologia, como o de todas as corpora-
ções, é obter lucro. Ora, sabemos que o
ódio, o extremismo de extrema-direita
e outros conteúdos controversos ou
obscenos aumentam os cliques e geram
mais receitas publicitárias. Embora os
algoritmos possam não promover ex-
plícita ou deliberadamente material de
extrema-direita, é esse o resultado. As
empresas tecnológicas sabem o que de-
vem fazer para proteger os utilizadores,
mas deixaram claro que se preocupam
mais com o lucro do que com a propa-
gação do ódio e das mentiras da extre-
ma-direita e de conteúdos que minam e
ameaçam as democracias”, critica Wendy
Via, cofundadora do GPAHE, um projeto
global contra o ódio e o extremismo (ver
entrevista pág. 42).
Os socialistas – que também consi-
deram que “as mensagens que tendem
a funcionar melhor nesta plataforma
são geralmente as mais polarizadoras”
e que, “na política, em particular, isso
tem acelerado o crescimento de contas
com posições mais agressivas ou de-
liberadamente hostis” – dizem que é
necessário apostar na regulação. “Seria
importante que a atividade nesta rede
fosse monitorizada com maior atenção
e celeridade de resposta, sobretudo
quando falamos de conteúdos e de
contas que vivem da desinformação,
da calúnia e da difamação”, sugere o PS.
“Há muitas crianças e jovens que
consomem esse conteúdo sem filtros
e sem contraditório. Esta rede, à se-
melhança de outras, tem sido inun-
RUI LOPO
22 ANOS
“Não há ninguém da esquerda
que sobressaia”, diz o tiktoker
e fã de Rita Matias, que
começou a fazer conteúdos
políticos e “disparou” em
número de seguidores
dada de conteúdos com dados falsos
e invenções da extrema-direita, algo
que é importante combater”, assume
o deputado único, Rui Tavares.
UM FENÓMENO POLÍTICO GLOBAL
Desde a eleição de Obama, em 2008,
que, durante a campanha, as redes
sociais são usadas como meio de co-
municação fundamental para se che-
gar a certos grupos e amplificar as
“Todos os meus
amigos vão votar
no Chega”, diz João
Maria. Na sua bolha,
entre as elites de
Cascais e de Lisboa,
este é, de longe,
o partido favorito
dos miúdos
mensagens políticas desejadas. Com
a diversificação das redes sociais e as
diferentes linguagens utilizadas em
cada uma, o nível de exigência passou
a ser maior. No TikTok, o objetivo é
comunicar com o target mais jovem.
E se muitos especialistas em comu-
nicação política continuam a olhar de
lado para esta plataforma (uma vez que
é detida pela chinesa ByteDance, em-
presa na qual se espera que o Partido
Comunista Chinês tenha uma influên-
cia permanente), a verdade é que mui-
tos políticos já se renderam ao poder
de amplificação desta app junto de pú-
blicos específicos, sobretudo à direita.
No Brasil, onde muitos políticos têm
TikTok, é evidente a tendência global: a
presença e a tração pendem para o lado
direito do espectro. Bolsonaro tem 5,5
milhões de seguidores, publica muito e
todo o tipo de conteúdos, desde men-
sagens mais sérias a momentos do dia
a dia – a cortar o cabelo, a brincar com
o cão, a dar mergulhos na praia ou a
jogar uma “peladinha”.
O Laboratório de Pesquisa em Co-
municação, Culturas Políticas e Econo-
mia da Colaboração brasileiro analisou,
durante mais de três anos, mais de 23
mil vídeos de 264 políticos brasileiros
ativos e chegou a conclusões impres-
sionantes, reunidas no estudo TikTok
e Polarização Política no Brasil. Desde
logo, é evidente, naquela plataforma,
uma presença muito maior de políticos
de direita do que de esquerda – quase
duas vezes mais. E sabem usar a rede
de forma mais eficiente: fazem uso
11 JANEIRO 2024 VISÃO 41
Wendy Via
Cofundadora do GPAHE (Global Project Against Hate and Extremism)
“Conteúdos extremos ou inflamatórios
têm maior probabilidade de ter likes,
partilhas e seguidores, e os algoritmos
começam logo a recomendá-los”
O GPAHE – Projeto Global
contra o Ódio e o Extremismo
–, lançado em 2020,
fundado para combater
o ódio transnacional e os
movimentos de extremismo
de extrema-direita além-
fronteiras, está alarmado com
o que encontra nas redes
Redes sociais como o
TikTok são politicamente
neutras?
Estas plataformas pretendem
ser politicamente corretas,
mas não conseguem
que os politicamente
poderosos, bem como os
anúncios políticos, no caso
das plataformas que os
permitem, cumpram as regras
que elas estabeleceram.
Embora tenham políticas e
regras em vigor, para tornar
supostamente os seus
espaços online seguros
para os utilizadores, nem
sempre estas redes sociais
seguem as próprias regras
ou então criam brechas que
permitem práticas violadoras,
muitas vezes de extrema-
direita, em que o discurso
político não é controlado,
e este é um dos principais
problemas das redes sociais.
As razões são simples:
estas empresas não querem
mergulhar no pesadelo da
desinformação política que
criaram e preocupam-se
mais com o lucro do que com
a garantia de segurança dos
utilizadores.
42 VISÃO 11 JANEIRO 2024
Com que tipo de conteúdo
político é que um jovem
que chega ao TikTok tem
maior probabilidade de se
confrontar?
Estudos mostraram que
o algoritmo do TikTok
pode conduzir utilizadores
de todas as idades até
conteúdos de extrema-
direita. Por exemplo: se um
jovem está interessado em
pesquisar algo relacionado
com LGBTQ+, o algoritmo
do TikTok dá-lhe logo
recomendações extremas,
como conteúdo antitrans
ou até mesmo conteúdo
neonazi. As nossas pesquisas
mostraram a rapidez com
que o conteúdo neonazi se
pode espalhar no TikTok por
meio do uso de uma hashtag
explicitamente neonazi. Em
abril de 2023, vídeos com
a hashtag #AryanClassic
tiveram surpreendentes 20,5
milhões de visualizações e
foram compartilhados tanto
por perfis mais extremistas
como por utilizadores
convencionais.
Existem tendências globais
na forma como os partidos
de extrema-direita e de
extrema-esquerda utilizam
as redes sociais?
No GPAHE, fizemos uma
extensa investigação sobre
o tema e publicámos um
relatório, Democracies under
Threat (ou Democracias
Ameaçadas), no qual se
dão exemplos de políticos
e de partidos políticos
de extrema-direita ou de
tendência autoritária em
todo o mundo, que, nas
suas campanhas, usaram as
redes sociais para espalhar
desinformação e ódio em
relação a comunidades
marginalizadas. A solução
para acabar com este
problema sério passa por
as empresas de redes
sociais acabarem com as
exceções políticas e fazerem
verificação dos anúncios
políticos. Os partidos
de extrema-direita são
adeptos da maximização
das ferramentas das redes
sociais, explorando o facto
de as empresas pouco
fazerem para os impedir.
Em Portugal, os políticos de
direita têm mais seguidores
e engagement. Quão de outros mais Isso influencia-os real- mais frequente de uma linguagem apo-
comum é isto também moderados? mente e fará diferença lítica e com referências ao universo do
noutros países? O principal objetivo das quando eles votarem? entretenimento e do humor, cavalgando
Embora políticos de empresas de tecnologia, A exposição a conteúdos as trends (as tendências) da plataforma.
todas as orientações como o de todas as radicais influencia Pelo contrário, os políticos de esquerda
utilizem as redes sociais corporações, é obter certamente a visão do tendem a ter um número inferior de
para construir as suas lucro. Ora, sabemos que mundo dos jovens, e seguidores, de visualizações e baixos
campanhas e conectar- o ódio, o extremismo de é por isso que tantos índices de engajamento.
se com os apoiantes, extrema-direita e outros grupos de extrema- Também nas recentes eleições ar-
os nossos estudos e conteúdos controversos direita conseguem gentinas, muitos foram os analistas
outras investigações ou obscenos radicalizar e recrutar que destacaram a força que Javier Milei
deixam bem claro que aumentam os cliques jovens online. conquistou junto da Geração Z nas redes
os políticos de extrema- e geram mais receitas sociais, em especial no TikTok, platafor-
direita utilizaram as publicitárias. Embora os Um estudo do GPAHE ma que alimentou ao longo da campanha
lacunas das redes sociais algoritmos possam não descobriu diversos con- com vídeos polémicos, que rapidamente
em seu benefício, para promover explícita ou teúdos nazis divulgados se tornaram virais. A BBC chamou-lhe “o
se ligarem diretamente deliberadamente material no TikTok. Quão preju- motor” de Milei e escreveu que os jovens
aos seguidores com de extrema-direita, é diciais eram? foram “fundamentais na vitória de novo
conteúdos controversos. esse o resultado. As Este conteúdo é Presidente argentino”.
Pesquisas anteriores empresas tecnológicas extremamente prejudicial Em Itália, nas eleições de 2022, o
mostraram que sabem o que devem e, como outros materiais TikTok também foi usado em força na
conteúdos extremos fazer para proteger de ódio, faz parte da toca corrida, e de forma surpreendente: até
ou inflamatórios têm os utilizadores, mas do coelho que leva os Silvio Berlusconi, aos 85 anos, deu o ar
maior probabilidade deixaram claro que se utilizadores a ainda mais da sua graça. “Nesta plataforma, vocês
de ter likes, partilhas preocupam mais com desinformação, racismo e são mais de cinco milhões e 60% de
e seguidores, e os o lucro do que com a intolerância. É um perigo, vocês têm menos de 30 anos. Estou
algoritmos começam propagação do ódio e porque esses memes com um pouco de inveja. Mas vamos
logo a recomendar mais das mentiras da extrema- não ficam em áreas conversar sobre o futuro”, dizia num
esse conteúdo, o que direita e de conteúdos periféricas do TikTok e, dos vídeos. Matteo Salvini, do parti-
resulta num crescimento que minam e ameaçam às vezes, são usados do de extrema-direita Liga, marca aí
desproporcional. as democracias. involuntariamente por presença há anos e tem hoje quase um
utilizadores comuns. No milhão de seguidores.
Mas a extrema-direita A exposição a conteú- TikTok, o uso malicioso Emmanuel Macron foi um dos que
é mais eficaz e profis- dos radicais influencia de hashtags pelos nazis abriram conta em 2020, e desde então
sional na forma como o processo de formação permitiu que estes se procura comunicar por lá com a comu-
utiliza as redes sociais? de opinião dos jovens? infiltrassem nas secções nidade mais jovem – e não só. Tem já
Provavelmente não é de comentários das 4,1 milhões de seguidores na platafor-
correto dizer que ela contas, onde as pessoas ma. Nos EUA, a Casa Branca tem uma
é mais eficaz no uso simplesmente navegavam conta oficial, mas The New York Times
das redes sociais, mas, pela página Para Você. dava conta, há cerca de um mês, de que
sim, que os resultados Embora a plataforma poucos políticos norte-americanos,
são mais significativos “Os políticos tenha retirado parte do incluindo os principais candidatos à
presidência, estão na aplicação de ví-
devido ao conteúdo,
aos algoritmos e à
de extrema- conteúdo sinalizado pelo
GPAHE, este é apenas deo que é extremamente popular. Os
exploração dos recursos direita um pequeno exemplo analistas dizem que 2024 será o ano
da “eleição TikTok”, por causa do poder
das empresas que
se recusam moderar
utilizaram de conteúdo de ódio
presente no TikTok e crescente e da influência desta app. “O
adequadamente estes as lacunas em outras plataformas TikTok pode ter ficado conhecido pe-
las danças virais em 2020, mas tem-se
conteúdos. Se se
preocupam com o
das redes de media social. A
resposta para a remoção tornado cada vez mais uma fonte de
futuro da democracia, as sociais em de conteúdos de ódio notícias para as gerações Y e Z, que se-
rão uma parte poderosa do eleitorado”,
empresas tecnológicas
devem pôr fim à
seu benefício, não é exigir que grupos
da sociedade civil os escreve o jornal. E, para os consultores
possibilidade de os para se indiquem e peçam que políticos ouvidos para este artigo, a au-
sência dos políticos norte-americanos
políticos espalharem
ódio e mentiras nas suas
ligarem sejam removidos. As
empresas tecnológicas no TikTok parece hoje insustentável.
plataformas. diretamente é que devem mudar os Em Portugal, com eleições em fe-

Acredita que os
aos seguidores seus algoritmos, investir
numa melhor moderação
vereiro nos Açores, em março para a
Assembleia da República e em junho
algoritmos promovem com de conteúdos e parar de para o Parlamento Europeu, o TikTok
deliberadamente esse
tipo de conteúdo
conteúdos permitir que os políticos
espalhem ódio e mentiras.
vai assumir uma importância acresci-
da. Com que resultados eleitorais? É
radical em detrimento controversos” – MAFALDA ANJOS esperar para ver. manjos@visao.pt
*Com Rita Rato Nunes

11 JANEIRO 2024 VISÃO 43

ALVO Imagem de satélite
da Formosa e do estreito
de Taiwan, uma das regiões
de maior fricção do globo,
devido à rivalidade entre
os EUA e a China
 TAIWAN
A ILHA MAIS
PERIGOSA
DO MUNDO
Será que as eleições gerais na ilha a que os
portugueses chamaram Formosa podem dar origem
à primeira grande crise geopolítica de 2024? Será
que a República Popular da China vai atacar a
“província rebelde” e envolver o Ocidente em mais
um conflito de consequências imprevisíveis?
— POR FILIPE FIALHO
M
Muitos de nós sempre ouvimos dizer
que os relatos de Fernão Mendes Pinto
não são de fiar. No entanto, o famoso
marinheiro quinhentista, pirata, jesuí-
ta e autor de Peregrinação – crónica
das suas viagens publicada a título
póstumo, em 1616 – sentiu na pele o
que é navegar nas águas revoltas do
estreito a que hoje chamamos Taiwan:
“Os poucos que escapámos deste
miserável naufrágio, que não foram
mais do que vinte e quatro, afora al-
gumas mulheres, (...) e ajuntando-nos
todos assim feridos como estávamos
de muitas cutiladas das ostras e das
pedras que havia na restinga, enco-
mendámo-nos a Nosso Senhor com
muitas lágrimas.”
Nos dias que correm, nas duas
margens do estreito, separadas por
menos de duas centenas de quiló-
metros, já poucos recorrem a preces
divinas em nome da salvação. Na ilha
a que os portugueses chamaram For-
mosa, realizam-se neste sábado, 13,
eleições gerais, e delas pode depender
o futuro do planeta. Exagero? Com
395 quilómetros de comprimento e
145 de largura, trata-se de um ter-
ritório simbólico e estratégico para com a RPC é uma “inevitabilidade
a República Popular da China (RPC), histórica”. Ou seja, terá de acontecer
que a classifica como uma “província quanto antes, de forma pacífica ou A maior empresa
rebelde” há 74 anos (ver cronologia) e
da qual não abdica para o seu próprio
através do “uso da força” – Xi dixit, no
XX congresso do Partido Comunista
de Taiwan, a TSMC,
“rejuvenescimento nacional”.
Por que raio pretende o governo
Chinês (PCC), em outubro de 2022.
POTÊNCIA INDISPENSÁVEL
pode paralisar a
de Pequim, que já controla a segunda Desde o fim da II Guerra Mundial economia global,
maior economia do mundo e tutela 1
400 milhões de pessoas, apoderar-se
que os Estados Unidos da América
têm uma influência capital no Extre- se suspender a
de um pedaço de terra que representa
uns meros 0,4% da superfície conti-
mo Oriente e, além do Japão, Taiwan
tem funcionado como uma fortaleza
laboração dos
nental chinesa e onde vivem apenas natural, um “porta-aviões insubmer- chips para mísseis,
23 milhões de almas? No seu discurso
de fim de ano, a 31 de dezembro, o
sível” (expressão do Pentágono), ao
serviço dos interesses hegemónicos satélites, carros
Presidente Xi Jinping voltou a afirmar
que a reunificação de Taiwan – cujo
de Washington D.C. na região. Um
cenário que a emergente e ambiciosa
ou telemóveis
nome oficial é República da China – RPC não pode continuar a tolerar. topo de gama
46 VISÃO 11 JANEIRO 2024

cidades mais cosmopolitas
da Ásia e a maioria dos
seus habitantes não admite
submeter-se a Pequim
FOTOS: GETTYIMAGES
Atualmente, a velha Formosa é um
Estado soberano de facto, onde vigora
uma democracia liberal há três déca-
das, e uma superpotência tecnológica
incontornável – maior produtora
mundial de chips, em particular os
mais sofisticados e indispensáveis às
indústrias bélicas, espaciais, de tele-
comunicações e do setor automóvel.
A sua maior empresa, a TSMC (Taiwan
Semiconductor Manufacturing Com-
pany), um conglomerado com perto
de 75 mil funcionários e fábricas que
vão de Nanjing (na RPC) a Berlim (Ale-
manha), passando por Clark County
(EUA), tem a capacidade de paralisar
ou de virar do avesso a economia glo-
bal, caso suspendesse a laboração de
Autonomia Taipé é uma das
placas eletrónicas ou os chips de 5, 3
e 2 nanómetros que equipam mísseis,
satélites ou telemóveis topo de gama. TRIO
Eric Schmidt, antigo administrador À PRESIDÊNCIA
da Google, admitiu isso mesmo há Quem são os candidatos
três anos, ao afirmar que a TSMC é à sucessão de Tsai Ing-wen,
um dos segredos do Ocidente para a mulher que governa
controlar o “sistema nervoso” das Taiwan desde 2016
sociedades contemporâneas. E, como
se não bastasse, há um outro dado,
geográfico, a reter: perto de 50% do
comércio mundial passa pelo estreito
que separa as duas Chinas.
É por todas estas estatísticas que a
ida às urnas e os votos dos 19 milhões
de eleitores de Taiwan, neste sábado,
podem provocar mais uma grande
crise geopolítica, a primeira de 2024, Lai Ching-te
a somar àquelas que testemunhamos O atual vice-presidente e
na Ucrânia, em Gaza ou no Sahel. A candidato do Partido Democrata
possibilidade de tal acontecer é um Progressista é apontado como
segredo de polichinelo, e há muito que o grande favorito à vitória.
a ilha luxuriante, coberta de monta- Pequim acusa-o de ser um
nhas cujos picos excedem os três mil “separatista” e um “desordeiro”.
metros de altura, inspira todo o tipo Médico reconvertido à política,
de jogos militares. Aliás, as autorida- tem 64 anos.
des de Pequim andam há meses a di-
zer que este sufrágio se resume a uma
questão de “prosperidade e declínio,
paz ou guerra”.
CORRIDA ÀS ARMAS
Para os EUA, que apoiam militar-
mente a ilha desde o fim da guerra
civil chinesa – em 1954, assinaram
um tratado de defesa mútua e o Pre- Hou Yu-ih
sidente Dwight Eisenhower visitou O antigo diretor da polícia
Taipé seis anos depois –, o importante nacional é o cabeça de lista do
é continuar a conter a RPC, evitando histórico Kuomintang. Defensor
que a esfera de influência de Pequim da lei e da ordem, opõe-se à
alastre a todo o Pacífico. Nem que, abolição da pena de morte e
para isso, tenham de manter a postu- promete reatar o diálogo político
ra de “ambiguidade estratégica”, que e económico com Pequim.
passa por não ter relações diplomá- Tem 66 anos.
ticas formais com Taipé e reconhecer
“uma só China”.
Há 11 meses, na capital norte-a-
mericana, Roger Wicker, senador
republicano pelo Mississípi, apelou
à Administração de Biden para que
envie mais armas para o território
onde o seu país chegou a colocar
ogivas atómicas e, de forma antoló-
gica, descreveu os desafios com que Ko Wen-je
a Casa Branca tem de lidar, na região O cirurgião que entrou para
que concentra 60% da população do a política há uma década e
planeta: “Se nós não defendermos cumpriu dois mandatos como
Taiwan, a nossa posição no Indo-Pací- presidente da câmara de Taipé
fico ficará comprometida para sempre. fundou, em 2019, o Partido
Porá em causa a nossa credibilidade Popular de Taiwan e assume-se
e a nossa capacidade de defendermos como o candidato da Terceira
os nossos parceiros e aliados, como o Via. Tem 64 anos.
Japão, as Filipinas, a Coreia do Sul, a
11 JANEIRO 2024 VISÃO 47
 PERFIL

ILHA “SUI
GENERIS”
Alguns números que definem
o Estado que se chama
oficialmente República
da China

36 197
Superfície total de Taiwan,
em quilómetros quadrados,
o que não chega a um terço
do território português.

23,3
População do arquipélago,
a maioria chineses do
continente – e respetivos
descendentes –, que se
refugiaram na ilha após 1949

830
Mil milhões de dólares. Valor
do PIB de Taiwan, o 21.º mais
elevado do mundo e que
triplica o português.
Austrália e a Tailândia. (...) Se a mari-
nha chinesa ficar com livre acesso ao
oceano Pacífico, Tóquio, Seul e outros
vão, sem dúvida, adquirir armas nu-
cleares.” No seu livro Condenação - A
política da Catástrofe (edição Temas
e Debates), o historiador escocês Niall
mara dos Representantes dos EUA:
dezenas de exercícios aeronavais,
muitas vezes com fogo real, simula-
ções de operações anfíbias e de de-
sembarque em larga escala num dos
eixos marítimos mais frequentados
do planeta, ou o envio sistemático de

24,1
Dívida pública de Taiwan,
em percentagem do PIB. A
portuguesa é de 106,3%.
Ferguson já aborda esta questão e a
possibilidade de haver um “erro de
cálculo” que conduza a um conflito
brutal devido a Taiwan. Até porque
o pedido de Roger Wicker produziu
efeitos bem visíveis: em julho, os EUA
anunciaram a disponibilização de 345
caças e de bombardeiros que violam
o espaço aéreo de Taiwan, também
ele área de sobrevoo de milhares
de aviões civis dos cinco cantos do
mundo.
Numa entrevista concedida recen-
temente ao Le Monde, Joseph Wu,

63
Percentagem, ao nível
mundial, dos semicondutores
produzidos em Taiwan. Parte
destes chips vai para a
República Popular da China,
pois 56% das exportações da
ilha têm o mesmo destino.
44,3
Percentagem da população de
Taiwan que pretende manter
o atual estatuto político do
arquipélago. Outros 35,8%
consideram que a ilha deve
rumar à independência.
48 VISÃO 11 JANEIRO 2024
milhões em “assistência militar” para ministro dos Negócios Estrangeiros
legítima defesa da ilha, valor que pode de Taiwan, acusou o regime comu-
atingir os 20 mil milhões até 2027. nista de recorrer a expedientes cada
vez “mais sofisticados” para perturbar
AMEAÇAS E CONSPIRAÇÕES
Na terça-feira, 9, o favorito à eleição
presidencial deste sábado, Lai Chin-
g-te, candidato do Partido Democrata
Em julho, os EUA
Progressista (PDP), formação que go-
verna desde 2016 e à qual pertence a
anunciaram a
atual chefe de Estado (Tsai Ing-wen, disponibilização
impedida de cumprir um terceiro
mandato), foi muito claro: “[A RPC]
tem em curso uma campanha de
de 345 milhões
em “assistência
ameaças militares, de coerção econó-
mica, de desinformação e de guerra militar” a Taiwan,
cognitiva.” Pequim nega, embora as
suas interferências estejam sobeja- valor que pode
mente documentadas, sobretudo após
a visita à ilha, em agosto de 2022, de
atingir os 20 mil
Nancy Pelosi, a ex-presidente da Câ- milhões até 2027
 Oposição Os militantes
do centenário Kuomintang
acreditam no regresso ao
poder e na conquista da
presidência

O ETERNO “IMPÉRIO DO MEIO”

Civilização milenar, a China contemporânea, presidida
por Xi jinping, quer voltar a estar no centro do mundo
– e recuperar Taiwan, a “província rebelde”, quanto antes

"China pura": coração do território

chinês em que a população han
seria historicamente maioritária
Limites dos sucessivos impérios Sacalina
Sibéria
Sucessivas capitais
Atuais fronteiras
da República
Popular da China Lago
Baikal
Dinastia Qing Manchúria
1644-1911 Vladivostok
Dinastia Ming
1368-1644
Japão
Mongólia
Península
Lago da Coreia
Balkhash Xinjiang
Pequim

a Luyang
Rota da Sed Mar da
Dinastia Tang Nanquim China
618-907
Chang’an (Xi’an)
Dinastia Han
Planalto tibetano 206 a.C.- 220 d.C.
Oceano
Pacífico
o statu quo e a estabilidade do terri- Hi
ma
tório a que Xi Jinping também chama lai
as
“sagrado”. Exemplos: “A China tenta
fazer passar a ideia de que estas elei- Taiwan, integrada
Hainan pelo império
ções são uma escolha entre a guerra Índia Qing em 1683
e o abrandamento económico [caso
vença o PDP] ou entre a paz e a pros- Mar da
Oceano China
peridade [se o Kuomintang, principal 1 000 km Índico
partido da oposição, vencer]. (...) Neste
momento, eles utilizam a guerra na FONTES: “MONDES EN GUERRE”, VOLUME 2, PASSÉS COMPOSÉS, 2019 ; “L’HISTOIRE”; COURRIER INTERNACIONAL

Ucrânia para dizer aos taiwaneses que

os EUA não estão a ser sérios na aju-
da que prestam à Ucrânia, da mesma
maneira que não pretendem ser sérios
no apoio a Taiwan. Mas os factos são
simples. A China ameaça Taiwan e os
aportam à ilha a que chamaram
EUA apoiam-nos.”
Escusado será dizer que o governo
de Taipé faz o que lhe compete para
tentar contrariar a guerra híbrida de
Pequim, nomeadamente a ofensiva
propagandística das últimas sema-
nas, para condicionar os resultados
eleitorais para a presidência, a vice-
-presidência e o Parlamento. Após
a prisão, em dezembro, de quatro
dezenas de indivíduos, acusados de
espalhar mentiras e perturbar a ordem
pública, a 6 de janeiro, uma candidata
independente pelo círculo de Taoyuan,
a sul de Taipé, foi detida por alegado
financiamento do PCC, no valor de
32 mil dólares, na sequência de uma
viagem que realizou à RPC, em abril.
Um dos objetivos seria contribuir para
Taiwan, da “descoberta” portuguesa à potência tecnológica
1544
Marinheiros portugueses
“Formosa” e que era habitada
há séculos por vários povos
nativos de origem malaio-
-polinésia
1624
Início da colonização
europeia, com os holandeses a
instalarem-se no Sul de Taiwan
e os espanhóis, na parte norte
1683
China apodera-se da ilha que
passaria a designar como
Taiwan, o “terraço da baía”
1895
A ilha é cedida ao Japão, após
dois séculos de administração
da China, através da etnia
manchu
1945
Após a derrota japonesa na
II Guerra Mundial, Taiwan é
devolvida à República da China
CRONOLOGIA
(governada pelos nacionalistas do
Kuomintang de Chiang Kai-shek)
1949
Os comunistas liderados
por Mao Tsé-Tung ganham a
guerra civil, proclamam a Repú-
blica Popular da China,
e dois milhões de nacionalistas
do Kuomintang refugiam-se
em Taiwan
1954
Taiwan celebra um tratado
de defesa com os EUA,
para dissuadir Pequim de
invadir a ilha
1971
Taiwan perde o seu lugar
de membro permanente do
Conselho de Segurança da
ONU, cedendo o lugar à China
maoísta. EUA continuam a
apoiar militarmente a ilha
1987
É eliminada a lei marcial
que vigorou durante quase
quatro décadas. A abertura
política atrai novos
investimentos externos e
a economia cresce a um
ritmo de dois dígitos
1991
Taiwan reconhece a República
Popular, mas não abdica da
sua soberania. As relações
comerciais informais e o
investimento da ilha na China
multiplicam-se
2010
Pequim e Taipé (já líder
mundial na produção de chips)
assinam o seu primeiro acordo
de cooperação económica
2016
A vitória da Presidente
Tsai Ing-wen, do Partido
Democrata Progressista
(pró-independência), volta
a agravar as relações com
Pequim. Desde então, amiúde,
o regime comunista assedia
militarmente Taiwan

11 JANEIRO 2024 VISÃO 49

 Defesa A Presidente de
Taiwan conseguiu resistir às
investidas de Pequim, graças
ao apoio dos EUA

FORMOSAS E VULNERÁVEIS
Além da ilha principal, onde se concentram 23 milhões de habitantes,
o território de Taiwan inclui ainda quatro outros arquipélagos e vários
recifes e ilhotas. Em caso de invasão, Kinmen e Matsu serão alvos
preferenciais, dada a sua proximidade à China continental

JIANGXI Matsu
Fuzhu
Mar
FUJIAN da China

CH I NA
Xiamen
GUANGDONG
CHINA COREIA
DO SUL
Fronteira
marítima
disputada
Oceano
Pacífico
Ilhas Senkaku
TAIWAN
a derrota do antigo médico e provável
vencedor do escrutínio deste sábado
(Lai Ching-te), envolto na suspeita de
que possui várias amantes e alvo de
todo o tipo de rumores no TikTok e
demais redes sociais. Aparentemente,
há fake news para todos os gostos:
a situação económica de Taiwan vai
de mal a pior porque o PDP está a
desviar fundos para a Ucrânia (con-
tra os russos) e para Israel (contra o
Hamas); Biden deu luz verde a um
plano secreto para os EUA destruírem
por completo a ilha, impedindo assim
que ela caia nas mãos dos comunistas;
esquemas ilícitos no desenvolvimento
da vacina anti-Covid desenvolvida em
Taiwan (a Medigen); envenenamento
deliberado de crianças por professores
sem escrúpulos; açambarcamento e
esquemas clandestinos para faltarem
ovos no mercado; a reforma educativa,
adotada no mês passado, tem apenas
“propósitos secessionistas” para con-
verter os alunos em “anões morais
e idiotas históricos”; e ainda outras
histórias conspirativas e de espiona-
gem, como a de um tenente-coronel
que terá tentado desertar para a China
50 VISÃO 11 JANEIRO 2024
Taipé
Taoyuan
Wuchiu
Hsinchu
Estreito
Kinmen de Taiwan Taichung
TAI WAN
JAPÃO
Penghu Tainan OCEANO
(Pescadores) PACÍFICO
Kaohsiung
100 km
com um helicóptero CH-47F, de fa-
brico norte-americano, a troco de 15
milhões de dólares. Este último relato
pode até ser real porque o governo
taiwanês admite que Pequim tenha
enviado ou recrutado mais de cinco
mil agentes no arquipélago.
APOSTAS E ESPECULAÇÕES
Tal como muitos outros analistas,
Clément Lacombe escreveu na re-
vista L’Obs que as ambições de Xi
Jinping sobre Taiwan não são apenas
económicas e comerciais, são sobre-
tudo políticas e civilizacionais: “Não
aceitar a supremacia da democracia
ocidental, não ceder aos supostos
valores do Ocidente.” Daí as apostas
para quando irá ocorrer a suposta
e inevitável invasão que os chineses
preparam há longos anos e cujos
ensaios incluem ações de guerrilha
urbana, em Taipé, e a tomada do pa-
lácio presidencial, com uma réplica
que foi erguida na maior base militar
da RPC, em Zhurihe, na Mongólia
Interior. Os serviços de informações
norte-americanos, como seria de
esperar, estão a par destes planos e
vários think tanks de Washington,
caso do prestigiado CSIS, já lhes dedi-
caram relatórios específicos. A grande
questão é adivinhar a data em que
Xi Jinping dará luz verde ao maior
exército do mundo para atravessar o
estreito. O mais conhecido mercenário
dos EUA, Erik Prince, comandante
da famigerada Blackwater no Iraque
e no Afeganistão, assevera que é já
nesta primavera. O general e atual
ministro da Defesa de Taiwan, Chiu
Kuo-cheng, bem como o almirante
John Aquilino, comandante das forças
norte-americanas no Pacífico, dizem
que isso só deverá acontecer lá para
2025. E o diretor da CIA, William Bur-
ns, numa entrevista televisiva à CBS,
afirmou que o mais provável é que seja
em 2027. Num assumido e descara-
do exercício de futurologia, a equipa
redatorial do Financial Times, entre
outros temas de atualidade, decidiu
Um tenente-
coronel taiwanês
terá tentado
desertar para a
China com um
helicóptero CH-
47F, de fabrico
norte-americano, a
troco de 15 milhões
de dólares

responder à seguinte questão: “Uma
mudança de Presidente em Taiwan vai
desencadear um ataque chinês?” Eis o
que Kathrin Hille, prestigiada jorna-
lista do diário de cor salmão, escreveu
para a posteridade: “Não. Por causa
das extensas manobras militares da
China, muitas pessoas, dentro e fora
de Taiwan, estão mais preocupadas
com uma possível guerra. O favorito
nas eleições presidenciais, Lai Ching-
-te (...) deixou claro que manteria uma
política cautelosa, de modo a não dar
pretextos a Pequim para um ataque. O
Presidente Xi Jinping também parece
acreditar que ainda é possível alcançar
a reunificação sem luta – intensifican-
do a intimidação militar, a infiltração
política, a cooperação económica e o
isolamento internacional.”
Não é por acaso que muitos di-
plomatas e analistas concordam com
Kathrin Hille e consideram muito
mais provável e perigoso um erro de
cálculo no mar do Sul do China ou nas
imediações da península coreana. Xi
Jinping sabe perfeitamente o eleva-
do custo de uma invasão anfíbia sem
precedentes desde o desembarque
dos aliados na Normandia, em junho
de 1946: meio milhão de vidas, pelo
menos, só do lado chinês. Muito antes
de atingirem a Formosa, os soldados
do Exército Popular de Libertação
enfrentariam uma resistência brutal
nas ilhas Matsu, Kinmen e Pescado-
res (Penghu), que alegadamente têm
a maior rede de túneis do mundo. Tal
como aconteceu com Fernão Mendes
Pinto há quase meio milénio, Xi e os
seus homens não querem encomendar
a alma ao Senhor. ffialho@visao.pt
PREPARATIVOS BÉLICOS
A NOVA BATALHA DO PACÍFICO
O estreito de Taiwan e a zona do Indo-Pacífico
são um gigantesco barril de pólvora devido à crescente rivalidade
entre os EUA e a China, que implica outros atores
(a cinzento, nº de efetivos das forças armadas)
TAIWAN
O governo de Taipé já gasta
quase 2% do PIB em defesa,
e é de prever que esse
valor continue a crescer
proporcionalmente às ameaças
de reunificação – pela força – da
República Popular da China.
170
MIL SOLDADOS
Para se defender, a ilha
aposta no apoio dos EUA e no
desenvolvimento das suas próprias
capacidades para uma guerra
assimétrica.
CHINA
Com dois porta-aviões (um
terceiro já em fase de testes),
54 submarinos, 45 fragatas e outros
1 300 navios de guerra, a Marinha
chinesa é já a maior do mundo.
2,1
MILHÕES DE SOLDADOS
Na última década, Pequim
reduziu a sua inferioridade militar
face aos EUA, e os gastos com
as forças armadas já representam
quase 1,5% do PIB – mesmo assim,
ainda é quatro vezes menos do
que a despesa bélica
de Washington.
JAPÃO
O governo nipónico pretende
duplicar as despesas militares
até 2027 e reforçar a sua aliança
com os EUA.
248
MIL SOLDADOS
Washington mantém quase
50 mil soldados no arquipélago
(sobretudo em Okinawa).
FILIPINAS
Com os incidentes
e as escaramuças militares
a sucederem-se entre Pequim e
Manila, no mar da China Meridional,
os EUA estão a reforçar a sua
presença no país de Bongbong
Marcos (nove bases).
150
MIL SOLDADOS
Em maio de 2023,
na Casa Branca, Joe Biden
prometeu um “apoio incondicional”
ao seu homólogo filipino.
COREIA DO SUL
O regime de Seul tem um dos
maiores orçamentos militares da
Ásia (2,5% do PIB), e tudo indica
que essa tendência irá manter-se
por muitos e bons anos.
O país tem 22 mil soldados dos
EUA no seu território.
555
MIL SOLDADOS
O Presidente Yoon Suk-yeol
promete neutralizar, nos próximos
seis meses, as ameaças nucleares
do seu homólogo norte-coreano.
Terá ainda de explicar como.
COREIA DO NORTE
O Presidente Kim Jong-un acabou
2023 a dizer que as Coreias são
“dois Estados inimigos” e abriu
o ano com novos disparos
de mísseis e manobras militares
no mar Amarelo.
1,3
MILHÕES DE SOLDADOS
Convicto das suas alianças com
a Rússia e a China, a 8 de janeiro,
Kim cumpriu o seu 40.º aniversário.
11 JANEIRO 2024 VISÃO 51
 O MILAGRE
DE NOUR NA
GUERRA DE GAZA
Menos de um ano depois de nascer, em Lisboa, Nour
mergulhou nos horrores da guerra. O conflito no Médio
Oriente matou-lhe a mãe e os dois irmãos. A VISÃO
conta a história trágica da família Ashour e da criança
luso-palestiniana que se converteu em símbolo
de esperança após sobreviver por entre
os escombros da Faixa de Gaza
— Te x t o J O Ã O A M A R A L S A N TO S F OTO S L U Í S B A R R A

52 VISÃO 11 JANEIRO 2024

Luz Nour significa “luz”
em português. A criança luso-
-palestiniana foi resgatada
dos escombros da guerra que
se prolonga na Faixa de Gaza

11 JANEIRO 2024 VISÃO 53

A
Sobreviventes Ahmed e Nour tentam
reconstruir a vida, em Lisboa, depois
da tragédia que lhes matou a família.
Ainda alimentam a esperança de rever
os familiares presos em Gaza

Ahmed aperta a filha bebé com força

contra o peito. A criança tem pouco
mais de 1 ano e agita-se num choro
abafado, antes de se deixar vencer
pelo sono, aconchegada no conforto
e na segurança do colo paterno. Nour
– palavra árabe que significa “luz” – é
o que restou de futuro a esta família
portuguesa – herdeira, como o nome
indica, da vasta diáspora palestiniana
pelo globo. As pequenas cicatrizes que
lhe marcam o rosto são incapazes de
descrever a enormidade da tragédia
por que passou esta criança, conver-
tida na única sobrevivente dos três
bombardeamentos do exército de
Israel que, em novembro de 2023, no
espaço de apenas uma semana, lhe
mataram a mãe, os irmãos, avós, tios
e primos. Os Ashour já terão perdido
mais de duas dezenas de membros
na Faixa de Gaza, desde que a guerra repousa, alheada ao que se passa lá pete-se há mais de sete décadas, nas
israelo-palestiniana se reacendeu, fora – o seu rosto emana tranquili- experiências de milhões de filhos da
após o ataque terrorista do Hamas, a dade e esperança. Palestina espalhados pelos quatro
7 de outubro. Agora, Ahmed e Nour cantos do mundo.
limitam-se a aguardar que o presente A HISTÓRIA DOS ASHOUR O pai Ahmed nasceu em Riade,
passe depressa. Estão em silêncio, de Nour nasceu em outubro de 2022, no Arábia Saudita, em 1983, filho de
olhos fechados, abraçados no chão Hospital de Santa Maria, em Lisboa, emigrantes palestinianos a viverem
de madeira de um apartamento an- como terceira filha do casal luso-pa- naquele país há mais de 30 anos, em
tigo, no Bairro do Rego, em Lisboa. lestiniano Ahmed e Doaa, e irmã de fuga da guerra. A mãe Doaa nasceu no
Ao mesmo tempo, familiares e ami- Jenan e do pequeno e frágil Ismail (o Dubai, Emirados Árabes Unidos, cinco
gos continuam prisioneiros naquele primeiro da família a nascer em ter- anos depois – as razões da sua família,
inferno, lutando diariamente para ritório nacional). A criança chegou ao também palestiniana, eram em tudo
sobreviver. Ahmed alimenta-se do mundo “perfeita” e “de boa saúde”, re- idênticas. Em 1994, a família de Ah-
sonho de rever, ainda nesta vida, corda o pai, recebida como a semente med ainda experimentou regressar
irmãos e sobrinhos que resistem. que faltava plantar no solo fértil (e a “casa”, na cidade de Gaza, movida
Mas os desesperados e insistentes multicultural) da capital portuguesa. pela vaga de otimismo na comunidade
pedidos de ajuda, que apresentou às Guiados por um desejo de segu- que surgiu com a assinatura, no ano
autoridades portuguesas, continuam rança, os Ashour evitaram, durante anterior, dos acordos de Oslo, por
a esbarrar num muro de silêncio e décadas, a Faixa de Gaza, terra an- Yasser Arafat e Yitzhak Rabin, que
indiferença. De Belém e São Bento, cestral dos dois ramos. Portugal foi o prometiam viabilizar, finalmente, uma
nunca ninguém lhe telefonou para destino escolhido, depois de infâncias solução de dois Estados. Ahmed apro-
apresentar condolências. “O futuro passadas de “mala às costas” pelo Mé- veitou para se licenciar em Engenharia
a Deus pertence”, sussurra Ahmed dio Oriente. A história desta família Civil pela Universidade Islâmica de
com um encolher de ombros. Nour não podia, aliás, ser mais trivial. Re- Gaza, mas demorou menos de uma

54 VISÃO 11 JANEIRO 2024

 O martírio
dos Ashour
Ismail Samira
É como se a morte se tivesse
ocupado pessoalmente da família Morreu Morreu
de Nour. Mais de 20 dos Ashour a 18 de a 18 de
já perderam a vida na guerra novembro novembro
da Faixa de Gaza

Doaa Ahmed Omar Hla Mohammed Redwan

Morreu Vive em Morreu Morreu Tem Tem
a 15 de Lisboa a 18 de a 18 de ferimentos ferimentos
novembro novembro novembro graves ligeiros

Ramy Nadia
Abrigado Abrigada
Jenan Nour Ismail na Faixa na Faixa
Morreu Vive em Morreu de Gaza de Gaza
a 15 de Lisboa a 15 de
novembro novembro

década até compreender que a paz
prometida não passava de uma ilusão
alimentada pelo povo.
Como os pais tinham feito 40 anos
antes, Ahmed resolveu emigrar. Em
2004, foi viver para o Dubai. Seis anos
depois, conheceria ali aquela que seria
a sua futura mulher. Ahmed e Doaa
acumulavam projetos.
A primeira filha do casal, Jenan,
nasceu em 2011. Ahmed estudava e
trabalhava para sustentar a família.
Por essa altura, completou o mestrado
em Gestão de Projetos, na Universi-
dade Americana do Chipre, situada
na zona conhecida como Nicósia do
Norte, principal cidade do território
de maioria turca daquela ilha, onde
passou uma temporada.
Os Ashour Apostado em formar-se e em al-
cançar o passaporte para uma vida
tornaram-se melhor, Ahmed embarcou naquela
que, até então, seria a sua maior aven-
portugueses tura, rumando ao ponto mais ociden-
em 2021, sete anos tal da Europa continental. Chegou a
Portugal em 2014, primeiro sozinho,
depois de terem com uma bagagem recheada de con-
fiança. Foi morar para Guimarães. O
chegado ao País. plano era trabalhar e fazer o douto-
Nour e o irmão ramento na Universidade do Minho,
para, depois, mandar chamar a família.
Ismail já nasceram “Sempre gostei de viver em Portu-
gal, mas, no início, não foi fácil. Tive
em Lisboa dificuldades de adaptação, a língua
era muito difícil... Mas esforcei-me,
trabalhei, e não demorei muito até
conseguir trazer mulher e filhos para
Portugal”, descreve. O reencontro
aconteceu logo no ano seguinte. E,
em 2016, a família resolveu mudar-se
para Lisboa.
Logo no primeiro ano na capital,
nasceu Ismail. A chegada de uma nova
criança prometia inaugurar uma fase
auspiciosa, mas as primeiras notícias
dos médicos do Hospital Amadora-
-Sintra revelavam novas provações.
“O meu filho nasceu com muitos
problemas. Tinha um atraso global
do desenvolvimento, por motivos
desconhecidos. Andámos, durante
os cinco anos seguintes, em clínicas
e hospitais, fizemos exames, testes e
terapias… Tudo muito cansativo”, ad-
mite Ahmed. Um dia, Doaa falou ao
marido de “outro tipo de ajuda” para
cuidar do menino. A solução passava
por regressar a “casa”, em Gaza, onde
viviam muitos familiares, como os
avós paternos, dispostos a apoiá-lo.
“Será apenas por uns tempos”, diziam,
conformados.
A Terra, entretanto, girava: toda
a família Ashour obteve, em 2021, a
nacionalidade portuguesa. Ahmed
preparava-se para retomar o projeto
de concluir o doutoramento, agora no
Instituto Superior Técnico. Também

11 JANEIRO 2024 VISÃO 55


a conta-gotas, surgiam-lhe alguns
serviços de tradução de árabe para
inglês e português. A primogénita,
Jenan, frequentava a Escola Básica
Marquesa de Alorna, em Campolide.
E Doaa estava novamente grávida.
Foi apenas quando Nour nasceu que
a família avançou para a decisão de
se separar novamente.
“Partimos para a Palestina em
dezembro de 2022”, conta Ahmed,
o único da família que regressaria
a Portugal antes do reacender da
guerra. O primeiro ano de Nour foi
ingénuo e feliz. Vivia agora em Gaza,
com a mãe e os dois irmãos, numa
casa sempre lotada por familiares
paternos, tanto que nem um adulto
conseguiria decorar todos os nomes.
“Parecia ser o mais acertado a fazer”,
lastima Ahmed. “Era pelas crianças.”
Doaa “dava-se bem com todas as
pessoas”, confidencia Ahmed. Jenan
era “inteligente e divertida”, como em
Portugal. Frequentava o 6º ano em
Gaza, “e gostava muito de brincar”.
“Éramos muito amigos”, recorda. A
Ismail, “a pessoa mais inocente do
mundo”, era dedicada toda a atenção
necessária. Os avós paternos estavam
sempre por perto. “A família sentia-
-se realmente melhor ali. Era feliz.”
Ahmed, por sua vez, permanecia
em Lisboa a trabalhar e a estudar. A
saudade era combatida com visitas
regulares à Faixa de Gaza, via Egito.
Ao longo de 2023, ele fez esta viagem
uma porção de vezes. A última das
56 VISÃO 11 JANEIRO 2024
Paz As feridas no rosto de Nour
recordam a guerra que se trava a quatro
mil quilómetros de distância de Lisboa.
Pai e filha contam com o apoio
de instituições, de amigos e de anónimos
quais em setembro. No dia 27 desse
mês, Ahmed despediu-se da mulher
e dos filhos com um beijo, antes de
seguir para o Cairo e apanhar um
avião de regresso a casa. “Até breve”,
prometeu-lhes.
A MORTE BATEU À PORTA
Por volta das 6h30 (hora local) de
7 de outubro, grupos palestinianos
atacaram Israel, por ar e por terra.
Enquanto tudo acontecia, os Ashour
ainda dormiam, num apartamento no
centro da cidade de Gaza, próximo do
Hospital Al-Shifa. Nour permanecia
deitada no seu berço. Em Portugal,
era ainda noite cerrada. As notícias
sobre a Operação Tempestade Al-
-Aqsa rapidamente se espalharam;
as imagens que chegavam de Israel
chocavam o mundo. A mãe de todas
as guerras no Médio Oriente voltava
a fazer mortos e reféns.
Nas horas seguintes, os pais de
Nour falaram ao telemóvel, como
A luso-palestiniana
habitualmente, sem nunca pressen-
tirem a aproximação do perigo. “Não
Nour sobreviveu
podíamos saber”, diz Ahmed. “Sempre a três raides
tivemos ataques, guerras… Mas nunca
vivemos nada assim. Ninguém imagi- israelitas, no
nava que ‘isto’ fosse possível”. “Isto”,
que Ahmed refere, foi a resposta ar-
espaço de apenas
mada de Israel – a Operação Espadas uma semana,
de Ferro revelar-se-ia implacável.
Ainda nesse dia, as bombas co- que lhe mataram
meçaram a chover dos céus de Gaza.
Os Ashour trocavam palavras de
a mãe, os irmãos,
tranquilidade. Afinal, moravam há avós, tios e primos

mais de nove meses no bairro onde
se situava o principal complexo mé-
dico daquele território palestiniano,
e não eram militares nem terroristas.
À noite, a mãe e os irmãos de Nour
esforçavam-se por lhe arrancar gar-
galhadas, mas o fragor da guerra,
aproximando-se a cada instante, já
só fazia a criança chorar. Os adultos
sentiam arrepios.
“Percebi rapidamente que a situa-
ção era muito perigosa para a minha
família. Contactei, de imediato, o
Gabinete de Emergência Consular
do Ministério dos Negócios Estran-
geiros. Insisti, durante mais de um
mês… Fiz telefonemas, enviei emails...
Eram quatro portugueses que esta-
vam ali, numa situação de vida ou
de morte. Do outro lado, diziam-me
sempre que ‘já tinham toda a infor-
mação e que, de momento, não po-
diam fazer mais nada’. Pessoalmente,
acho que o Governo português devia
e podia ter feito muito mais”, afirma
Ahmed.
Entretanto, o exército israelita
ordenara que a população civil da
Faixa de Gaza rumasse para o Sul.
Os Ashour ainda hesitaram. A terra
continuava a estremecer de dia e
de noite. “Quando se percebeu que
aquela zona não ia ser poupada, a
minha família mudou-se para casa da
minha irmã, fora do centro de Gaza.”
Mas a morte não largou os Ashour
durante toda a semana.
O prédio onde se abrigavam os
Ashour acabaria atingido pela arti-
lharia israelita. Apesar de o edifício
se ter transformado num monte de
entulho inabitável, a família salvou-
-se com pequenas escoriações. Este
primeiro episódio permitiu com-
preender que Gaza já não era segura,
o que levou a família a abandonar a
cidade, juntamente com outras cen-
tenas de milhares de palestinianos,
percorrendo às cegas, em direção
ao Sul, um país com estradas e tetos
destruídos. Os Ashour alcançaram
Khan Yunis, a apenas dez quilóme-
O calvário de Nour
A pequena Nour sobreviveu a três
bombardeamentos israelitas, antes
de regressar a Lisboa, cidade onde
nasceu em outubro de 2022
LÍBANO
1 Beit
Cidade de Gaza Hanoum
Deir al-Balah
2 SÍRIA
Khan Younis
3
Rafah
CISJORDÂNIA
JORDÂNIA
FAIXA
DE GAZA
ISRAEL
EGITO
1
Nour chegou a Gaza em dezembro de
2022, com apenas 2 meses de vida.
Ficou alojada em casa de familiares
de Ahmed, seu pai. A partir de 7
de outubro, os bombardeamentos
começaram. Os Ashour ainda tentaram
abrigar-se numa zona distante
do centro da cidade, mas seriam
atingidos. Todos escaparam ilesos.
2
Nour rumou ao Sul com a família,
seguindo as indicações dadas por
Israel, que alertara para as operações
militares que decorriam no Norte de
Gaza. Em Khan Yunis, a tragédia atingiu
os Ashour. No dia 15 de novembro,
Nour perdeu a mãe e os dois irmãos.
No dia 18, morreram-lhe os avós. Nour
sobreviveu miraculosamente.
3
Depois de tratada e de identificada
como cidadã portuguesa, Nour foi
levada pela Cruz Vermelha para Rafah.
Assim que teve autorização para
entrar no Egito, foi colocada num avião
de regresso a Portugal. No dia 22
de novembro, voltou para os braços
do seu pai. Em Lisboa, o som das
explosões finalmente cessou.
11 JANEIRO 2024 VISÃO 57
“Ajudem-nos, estamos a morrer!”
Ahmed adormece a sua filha bebé, mas não se deita. Prefere andar às voltas com
as insónias, desgastando de lá para cá o chão de madeira do apartamento onde
vive. O luso-palestiniano já pediu ajuda à Presidência e ao Governo para receber os
familiares que lutam para sobreviver na Faixa de Gaza, mas nunca obteve respostas
“Os portugueses são
todos iguais? Têm todos
os mesmos direitos e os
mesmos deveres?” As
perguntas são feitas por
Ahmed e antecedem
um prolongado silêncio.
O luso-palestiniano
não compreende a
falta de respostas
da Presidência e do
Governo portugueses
para o seu problema.
Os pensamentos
circulam em roda-viva
na sua cabeça. “Estou
desanimado”, confessa.
O eco dos gritos dos
familiares que lhe
pedem socorro não o
deixa descansar. Uma
revolta que cresce e
se faz sentir em cada
palavra. “Perdi a minha
mulher e dois filhos,
todos portugueses!
Ninguém fez nada para
os ajudar. Hoje, sou só
eu e a Nour… Quero
apenas salvar a família
que me resta. Não quero
ficar ainda mais sozinho”,
implora Ahmed.
Mais de 20 membros
dos Ashour já perderam
a vida nesta guerra.
Do núcleo central (ver
árvore genealógica
na pág. 55), tendo
como referência os
luso-palestinianos que
moram em Portugal,
58 VISÃO 11 JANEIRO 2024
sete já morreram. com alguém… Não
Restam apenas quatro, compreendem como
e os sobreviventes das é que o mundo pode
respetivas famílias. estar a assistir a isto sem
Ahmed é o mais novo de fazer nada pelo povo
sete irmãos. Dois deles – palestiniano… Eu próprio
Omar e Hla – morreram não compreendo. E
no conflito no dia 18 de começo a perder a
novembro. Seis dos seus esperança.”
filhos também partiram Ahmed sublinha que
no mesmo ataque. os seus familiares “não
A lutar pela desejam fixar-se em
sobrevivência, estão Portugal para sempre”,
agora três homens mas apenas “até que a
(Mohammed, Redwan guerra termine”. “Sou
e Ramy) e uma mulher português, e estou a tros da fronteira, onde se instalaram
(Nadia), irmãos de pedir que salvem os em casa de um primo.
Ahmed, tios de Nour. meus irmãos, cunhados, A sensação de alívio foi curta. O
Mohammed é o caso sobrinhos que vivem destino já estava traçado.
mais urgente. Perdeu com o risco de, a A 15 de novembro, um bombar-
dois filhos num qualquer minuto, serem deamento atingiu a casa onde Doaa
bombardeamento atingidos por uma e os seus três filhos dormiam. A mãe
israelita, e ele próprio bomba e morrerem. Eles de Nour e os irmãos Jenan e Ismail
ficou gravemente ferido, só querem um abrigo morreram. As crianças tinham 12 e 6
em perigo de vida. “Ele para poderem sobreviver. anos. Uma tia e quatro primos também
precisa de cuidados Depois, pegam nas suas perderam a vida. Apenas Nour, um tio
médicos imediatos”, que coisas e regressam para (irmão de Ahmed) e um primo sobre-
há muito já não existem, as suas casas, para as viveram ao ataque. O grupo procurou
no sítio que este ramo suas vidas.” novo refúgio em casa de uma tia, mas
dos Ashour encontrou Ahmed passa os dias
a 18 de novembro um terceiro raide is-
para se aninhar. aguardando o inevitável;
raelita dizimou o local, matando, desta
O telemóvel de Ahmed Nour ainda não tem
volta a tocar. “É de lá”, idade para compreender
vez, os avós paternos de Nour, a dona
afirma. Se as notícias as contradições dos da casa e ainda o tio e o primo que, três
são boas ou más, “nunca adultos – talvez nunca dias antes, tinham escapado à morte.
se sabe”. “A minha ninguém terá. Do outro Nour seria retirada dos escombros,
família sabe que estou lado da linha, as notícias já de madrugada, pelas mãos de des-
em Portugal, longe da “são boas”, mesmo que conhecidos. As imagens do salvamento
guerra. Sempre que sejam trazidas por uma tornaram-se virais. O retrato impres-
conseguem, ligam- voz desesperada que, sionava. Nour mantinha-se calma, sem
me, pedem-me que em árabe, grita: “Ajudem- chorar, olhando ao seu redor, com
faça algo, que fale nos, estamos a morrer!” olhos curiosos. As feridas no rosto e
 Futuro Depois de ter vivido, durante
39 dias, sob intensos bombardeamentos,
Nour está de regresso ao país onde
nasceu – brinca e ri com a naturalidade
da infância
na cabeça não pareciam motivo para
grandes preocupações. Os homens à
sua volta clamavam repetidamente
“Deus é grande”. Os Ashour lutaram
39 dias pela sobrevivência, mas so-
mente a mais nova da família teve
direito a um milagre.
A quatro mil quilómetros de dis-
tância, chegou a notícia. Eram 4h da
manhã, em Lisboa. Do outro lado da
linha, um familiar enrolava as pa-
lavras num choro convulsivo, mas
Ahmed compreendeu tudo instinti-
vamente. “Tantas décadas de conflito,
tantos mortos, pensando sempre na
sorte que tinha por não ter vivido
tragédias na família... Isso era algo
que acontecia sempre aos outros. E,
agora, aconteceu-me a mim.”
“Tive esperança até ao fim, mas
não foi possível”, lamenta, antes de
cair num longo momento de silêncio.
“Na nossa religião, acreditamos que os
mártires vão para um sítio melhor do
que este. Tenho fé de que foi isso que
aconteceu à minha família.”
OS NÚMEROS
DA TRAGÉDIA
+ 22 mil
MORTOS PALESTINIANOS
Desde o início da ofensiva israelita, em
resposta ao 7 de outubro, segundo as
autoridades de Gaza
1 139
MORTOS NO 7 DE OUTUBRO
De acordo com o governo de
Benjamin Netanyahu. Israel anunciou
que 136 reféns permanecem em Gaza
187
BAIXAS ISRAELITAS
Desde que começou a Operação
Espadas de Ferro, na Faixa de Gaza,
segundo as Forças Armadas israelitas
O MILAGRE DE GAZA
O calvário de Nour (ver caixa, pág. 57)
teve mais etapas. A criança foi tratada
e, depois de identificada – como cida-
dã portuguesa –, prontamente levada
pela Cruz Vermelha para junto da
fronteira com o Egito, que atravessou
nas horas seguintes.
Chegou a Portugal no dia 22 de
novembro. Depois de uma temporada
no Hospital de Santa Maria, regres-
sou a casa, na companhia do pai, em
meados de dezembro. A história de
Ahmed e Nour comoveu o País. Che-
garam ofertas solidárias de trabalho,
de eletrodomésticos, de roupa e até de
habitações. A Comunidade Islâmica de
Lisboa mantém-se próxima da família.
A vida permanece agora “congelada”.
Os pensamentos de Ahmed estão pre-
sos nos que precisam de ser salvos (ver
caixa, pág. 58). Ao telefone, conforta
diariamente quem “implora por ajuda”.
O luso-palestiniano não consegue sor-
rir, talvez nunca mais se permita fazê-lo.
Os seus olhos contêm o desgosto pelos
que morreram, e nem forças tem para
alimentar a raiva. Recorda a mulher e
os filhos que não voltará a ver. E de-
nota culpa por poder viver em paz no
país de adoção, ao mesmo tempo que
quase dois milhões de palestinianos não
sabem se, amanhã, terão oportunidade
de ver o sol nascer.
O silêncio na casa dos Ashour só é
quebrado por Nour. Uma criança só
sabe ser criança, mesmo que tenha ido
à guerra. Aos 15 meses, Nour ignora
as maldades dos adultos. Vive visivel-
mente feliz com o pai, que reencontrou
em Lisboa. Brinca e ri. Foge, a gatinhar
pelo chão, convidando os presentes na
sala a participarem no jogo. “Acho que
ela está bem...”, suspira Ahmed. “Te-
mos passado o dia juntos… Ela brinca
muito, não parece estar triste. À noite,
é diferente. Acorda a chorar. Talvez
sinta falta da mãe, dos irmãos… Não
sei. Esquecê-los, não vai esquecê-los,
até porque vou fazer tudo o que esti-
ver ao meu alcance para que isso não
aconteça… A dor há de passar com o
tempo”, diz, falando consigo próprio.
No rosto de Nour, ainda estão de-
senhadas as marcas do passado re-
cente. São apenas feridas superficiais
que o tempo se encarregará de apagar.
De sorriso aberto, estica a mão para
agarrar num cachorro de peluche.
Nour, luso-palestiniana, sobreviveu à
guerra sem guardar ódio no coração.
Ao vê-la a brincar, é mais fácil acre-
ditar no futuro. jsantos@visao.pt
11 JANEIRO 2024 VISÃO 59
 ALTERAÇÕES
CLIMÁTICAS
HISTÓRIA
SOB AMEAÇA
60 VISÃO 11 JANEIRO 2024
 Salvar Almada
Os 14 painéis de Almada Negreiros das Gares Marítimas da Rocha
do Conde de Óbidos e de Alcântara integram um programa de
reabilitação de património em risco devido às alterações climáticas

As alterações climáticas estão a pôr em causa

a integridade de monumentos e edifícios históricos em
todo o mundo, incluindo em Portugal. Tempestades
violentas, subida do nível do mar e variações mais
amplas de temperatura encabeçam as principais causas
diretas de risco. Há vários projetos para tentar adaptar o
património histórico e cultural a um clima mais extremo
e até usá-lo para combater problemas atuais, como
a falta de água. Mas é uma corrida contra o tempo
— PO R LU ÍS RI BEI RO
LUÍS BARRA

11 JANEIRO 2024 VISÃO 61

 A
A monumentalidade e a beleza colorida
do traço de Almada naqueles seis pai-
néis da década de 1940, que dominam
o átrio da Gare Marítima da Rocha do
Conde de Óbidos, são absolutamente
arrebatadoras. Demoramos uns longos
segundos a desviar-nos do geral para
atentar nos pormenores, confirmando
em todas e cada uma das pinturas a
rebeldia do artista, a roçar a subversão,
dados os tempos que se viviam de di-
tadura salazarista, que as encomendou
como instrumentos de propaganda das
aventuras ultramarinas de Portugal: a
ansiedade na expressão dos que partem
para as Américas, as varinas negras em
pose de poder e desafio, os emigrantes
pobres a espreitar, amedrontados, do
convés inferior, a apatia da audiência
dos saltimbancos. Vive aqui, nestes
frescos de mais de sete metros de altura
por quase quatro de largura, a alma ar- Neste caso, como em muitos outros,
tística amotinada do autor, confirmada a ameaça vem de infiltrações crescen-
pelo próprio numa entrevista ao Diário tes, uma pressão associada à maior ins-
de Lisboa, em 1953: “Creio não haver SUDÃO tabilidade do clima, que tende a trazer
antes cumprido melhor, nem feito obra episódios de precipitação extrema. “As
que fosse mais minha.” Nuri infraestruturas haviam sido prepara-
Diz-se que a arte é eterna, mas pode das para um certo caudal. Agora, têm
também ser efémera. Aproveitando os O necrotério real de Nuri,
andaimes montados numa das enormes no vale do Nilo, com as
paredes do átrio, aproximamo-nos suas pirâmides milenares
destas pérolas modernistas, com claros e outros monumentos A UNESCO estima
laivos cubistas, e vemos essa efemeri-
dade a despontar, na forma de tinta
funerários
(o mais antigo tem quase
que um em cada
carcomida, e a parede a esfarelar-se.
“A água é, muitas vezes, a origem dos
três mil anos), está a ser
fortemente impactado pelo
seis sítios de
problemas nos monumentos”, explica aumento da precipitação, valor cultural
Teresa Veiga de Macedo, diretora-exe- que tem engordado os
cutiva em Portugal do World Monu- lençóis freáticos. Várias e histórico está
ments Fund (WMF, uma organização
americana sem fins lucrativos, que se
câmaras funerárias já foram
inundadas, deixando o em risco devido
dedica à preservação de património em
todo o mundo, aliando-se a parceiros
local, que integra
a lista de Património
aos impactos
locais, e que conta, entre os seus cura-
dores, com personalidades como Aga
Mundial da UNESCO
desde 2003,
das alterações
Khan e Christian Louboutin). climáticas
62 VISÃO 11 JANEIRO 2024
 de ser preparadas para outro.” Esta
componente climática não estava tão
claramente identificada antigamente,
acrescenta, mas há 30 anos, na rea-
bilitação da Torre de Belém (primeiro
projeto do WMF em Portugal), já foi
levada em conta.
Os 14 painéis de Almada Negreiros
das Gares Marítimas da Rocha do Con-
de de Óbidos e de Alcântara, em Lisboa,
integram um programa de reabilitação
do WMF de monumentos ou obras de
arte em risco de destruição devido aos
efeitos das alterações climáticas. Neste
caso, o projeto tem uma dupla finali-
dade “climática”: assegurar a proteção
dos frescos contra intempéries e tor-
nar as duas gares marítimas polos de
atração de turismo, ajudando a aliviar
a pressão atual sobre monumentos
como a Torre de Belém e o Mosteiro
dos Jerónimos, eles próprios seria-
mente afetados pelas mudanças no
clima, segundo um estudo indepen-
dente tornado público há dois meses.
“IMPACTOS CATASTRÓFICOS”
Para a UNESCO, as alterações climáticas
são “uma das ameaças mais significati-
vas aos bens do Património Mundial”,
com impactos “no seu valor universal
excecional, incluindo a sua integridade
e autenticidade, e o seu potencial para
GETTY IMAGES
o desenvolvimento económico e social
ao nível local”. O organismo estima que
um em cada seis sítios de valor cultural
GETTY IMAGES
e histórico está em risco por causa dos
impactos do clima.
As ameaças dividem-se em duas
categorias: diretas e indiretas. As dire-
tas incluem variações de temperatura
e de humidade (que podem alterar a
atividade biológica e a concentração
de sal, acelerando a deterioração dos
materiais), fenómenos extremos (episó-
PERU
Chan Chan
A antiga capital do Reino de
Chimú chegou a ser uma das
maiores cidades da América
pré-colombiana, antes de
ser capturada pelos incas e
saqueada pelos espanhóis.
As ruínas da velha metrópole
são hoje uma imensa zona
arqueológica, que revela muito
sobre a antiga cultura da região,
mas as chuvas cada vez mais
intensas (exponenciadas em
parte pelo El Niño) têm feito
aumentar desde o início do
século a quantidade de água
subterrânea, pondo em causa
as fundações dos edifícios.
11 JANEIRO 2024 VISÃO 63

ESCÓCIA
Edimburgo
Vários edifícios das cidades
Velha e Nova de Edimburgo
encontram-se em sério
risco de inundação, na
sequência de um aumento da
precipitação, crescentemente
notório, e das tempestades
intensas. A Edinburgh World
Heritage (entidade que gere
o Património Mundial da
UNESCO de Edimburgo) criou
uma Estratégia de Emergência
Climática para estudar e
tentar resolver os problemas
colocados pelas alterações
climáticas. O programa inclui
ainda uma subvenção de
emergência climática para
financiar projetos de adaptação
e de mitigação, com ênfase na
eficiência energética.
dios de precipitação intensa que causam
inundações) e subida do nível do mar
(e a consequente erosão costeira). As
indiretas passam por conflitos bélicos e
fenómenos de migração exponenciados
por mudanças no clima e pressões agrí-
colas causadas por condições climáticas
mais adversas para a atividade.
Uma revisão da literatura científica
sobre os impactos das alterações climá-
ticas no património cultural, publicada
na revista WIREs Climate Change,
64 VISÃO 11 JANEIRO 2024
ILHA DE PÁSCOA
(CHILE)
Moai
A subida do nível do mar,
aliada a tempestades
mais intensas, está a fazer
aumentar as inundações na
ilha, deixando as estátuas
monumentais de cabeças
(esculpidas e erguidas há mais
de 500 anos) cada vez mais
GETTY IMAGES
expostas à erosão. A solução
pode passar por construir
muralhas de proteção
(já há uma em teste) ou, em
concluiu que, na Europa, a água “é o casos extremos, relocalizar
principal agente de degradação dos as estátuas. Os monumentos,
materiais”. “Um aumento na precipi- Património Mundial da
tação e outras variáveis relacionadas UNESCO desde 1995, são
com a água, tais como ciclos e períodos uma das principais fontes
de humidade, quando juntamente com de receita deste território
temperaturas mais altas, podem causar especial do Chile.
ou aumentar diferentes mecanismos de
decomposição.”
O agravamento do vento é outro im-
portante fator de desgaste, ao transpor-
tar areia, sal e poluentes atmosféricos,
podendo levar “à abrasão superficial,
aumento da penetração de água, danos
estruturais e, potencialmente, ao co-
lapso de estruturas”. Além disso, “uma
temperatura mais quente pode resultar
num crescimento do número de ciclos
de congelamento-descongelamento e/
ou num aumento das faixas de tempe-
“A água é, muitas
vezes, a origem
dos problemas
nos monumentos.
As infraestruturas
estavam preparadas
para um certo
caudal. Agora, têm
de ser preparadas
para outro”
TERESA VEIGA DE MACEDO,
WORLD MONUMENTS FUND
ratura diurnas que afetam a ocorrência
de termoclastismo [desagregação da
rocha através da dilatação e contração
dos minerais, por efeito das oscilações
térmicas], intensificando “o desgaste fí-
sico da pedra e dos materiais cerâmicos”.
O estudo refere ainda a subida do
nível do mar, o aquecimento das águas
e o degelo do permafrost como fatores
que acarretam mudanças na ocorrência
de inundações, secas e deslizamentos de
terras, “com impactos diretos, por vezes
catastróficos, nos bens patrimoniais”.

USAR O PASSADO PARA

RESOLVER O PRESENTE
O WMF trabalha na reabilitação e sal-
vaguarda de património desde 1965
(tem atualmente 51 projetos ativos em
34 países), mas esta nova ameaça fez
reformular a abordagem da organiza-
ção em grande parte dos seus projetos.
“Todos os locais históricos estão a ser
impactados pelas alterações climáticas,
uns menos, outros mais”, garante Jo-
nathan Bell, vice-presidente do WMF,
GETTY IMAGES

com o pelouro dos programas, a par-

tir do escritório em Nova Iorque. “Os
profissionais no terreno veem isso, mas

INGLATERRA

Castelo de Hurst
A fortificação, construída em
1544 pelo rei Henrique VIII,
era um dos pontos fulcrais de
defesa do Sul de Inglaterra.
Foi constantemente melhorada
e adaptada a cada novo
conflito, desde as Guerras
Napoleónicas até à II Guerra
Mundial, embora nunca tenha
sido diretamente atacada.
Agora, vê-se a braços com um
inimigo bem mais poderoso e
paciente: a subida do nível do
mar, associada a tempestades
violentas. Em fevereiro
de 2022, uma secção da
muralha colapsou. Encontra-
se na lista mais recente do
World Monuments Watch
(25 patrimónios históricos
ou culturais particularmente
importantes que precisam
de atenção imediata),
GETTY IMAGES

um programa do World
Monuments Fund.

11 JANEIRO 2024 VISÃO 65


TANZÂNIA
Kilwa Kisiwani
e Songo Mnara
As antigas cidades nestas
duas ilhas da Tanzânia foram
importantes polos comerciais
do oceano Índico, sobretudo
Kilwa Kisiwani, que chegou a
ser incendiada e conquistada
pelos portugueses, no início
do século XVI. Segundo um
estudo publicado em 2022, o
impacto potencial nas ruínas é
moderado no caso da subida
do nível do mar, alto em eventos
de precipitação intensa e
extremo na erosão costeira. A
zona do Forte de Gereza, que
se pensa ter raízes portuguesas,
é das que têm registado uma
maior erosão.
só agora começamos a ter linguagem
para o descrever. Do que mais preci-
samos, neste momento, é de informa-
ção científica, saber a percentagem de
património vulnerável hoje e daqui a
cinco ou dez anos. Para já, a amostra
é muito pequena.” Esse é um dos pro-
blemas indicados na meta-análise da
WIREs Climate Change: com a exce-
ção da Europa, ainda há muito pouco
conhecimento sobre os efeitos das
66 VISÃO 11 JANEIRO 2024
GETTY IMAGES
mudanças do clima nos monumentos.
Contudo, há sinais de que as altera-
ções climáticas são cada vez mais ubí-
quas. Nas mais recentes listas do World
Monuments Watch – um programa que
o WMF lançou em 1996 para identificar,
a cada dois anos, 25 locais que neces-
sitam de proteção urgente –, a ameaça
do clima encontra-se mais presente nas
justificações dadas por quem os nomeia.
O foco, no entanto, vai muito para lá
de tornar o património mais resiliente
às alterações climáticas. Em alguns ca-
sos, o passado dá-nos soluções para as
dificuldades do presente. Em 2023, o
WMF fez um levantamento na Índia de
sistemas ancestrais de armazenamento
e abastecimento de água, que caíram
em desuso, para fazer face aos graves
problemas de carestia com que o país
se debate. Foram identificados cinco
sítios com poços e cisternas, que serão
reabilitados de modo que a água possa
ser usada pelas comunidades, sobre-
Sistemas ancestrais
de abastecimento
de água estão a
ser reabilitados na
Índia, no Nepal e
no Peru, para suprir
as necessidades
atuais
tudo para lavagens e rituais religiosos.
A instituição tem mais dois projetos
do mesmo teor, um no Nepal, com a
reativação das hitis (fontes tradicionais
esculpidas em pedra, algumas com
quase 1 500 anos, no vale de Katman-
du, onde 20% da população não tem
acesso a água canalizada), e outro no
Peru (um sistema tradicional integrado
na Paisagem Cultural de Yanacancha-
-Huaquis, anterior aos incas e parcial-
mente destruído pelos conquistadores
espanhóis). O propósito é sempre o
mesmo: aproveitar infraestruturas
antigas para suprir as necessidades do
dia a dia das populações.
Em Portugal, há um caso semelhante,
que chegou a integrar uma lista do Wor-
ld Monuments Watch: o Aqueduto da
Água da Prata, em Évora, construído no
século XVI, apresentava perdas de água
que estavam a provocar danos estru-
turais no monumento. “Na nomeação,
foi destacada a possível reativação do
aqueduto para utilizar a água na rega dos
jardins do centro histórico da cidade, re-
solvendo ao mesmo tempo as perdas de
água e os problemas na estrutura”, conta
Teresa Veiga de Macedo. O projeto, po-
rém, não avançou por falta de fundos.
ADAPTAR E MITIGAR
Além da revitalização de sistemas his-
tóricos de água, o WMF tem apostado
em mais três áreas de atuação no âmbito
das alterações climáticas. Uma envolve
estratégias de conservação de jardins e
parques históricos, de forma a encontrar
as melhores respostas para combater o
efeito “ilha de calor” das cidades (onde
 BANGLADESH

Bagerhat
Construída no século XV,
durante o Sultanato de Bengala,
a cidade-mesquita de Bagerhat
tem sido afetada pelas cheias
do delta do Ganges nas
últimas décadas, o que levou
a UNESCO a apoiar medidas
especiais de conservação, nos
anos 70 e 80 (como a proteção
das bases das muralhas com
camadas anti-humidade).
Mais difícil de combater é a
maior frequência de ciclones
na região e, acima de tudo, a
subida do nível do mar, que faz
aumentar a salinidade das águas
subterrâneas, o que está a

GETTY IMAGES
acelerar a corrosão dos edifícios.

a temperatura é mais alta devido ao ci-
mento e ao alcatrão) e, em simultâneo,
potenciar o sequestro e armazenamento
de carbono, dando-lhes um maior papel
na mitigação das alterações climáticas;
o Potager du Roi, em Versalhes, está a
servir de projeto-piloto.
Outra é a criação de uma rede global
para estudar e partilhar conhecimento
sobre os desafios nas zonas costeiras
(o Castelo de Hurst, em Inglaterra,
cuja muralha foi recentemente dani-
ficada por uma tempestade, serve de
caso-modelo). Finalmente, estão a ser
desenvolvidas soluções de eficiência
energética na Palm House dos Jardins
Botânicos Reais, em Londres (uma gi-
gantesca estufa de meados do século
XIX, Património Mundial da UNESCO),
que depois podem ser adaptadas a ou-
tras estruturas do mesmo tipo em todo
o mundo, e igualmente ineficientes,
com o objetivo de reduzir a sua enorme
pegada carbónica.
Claro que a prioridade é sempre
salvar o património, antes que seja
demasiado tarde. É o caso dos pai-
néis de Almada nas gares marítimas
de Alcântara e da Rocha do Conde de
Óbidos, sendo que estes últimos, de
tão subversivos, estiveram quase a ser
destruídos por ordem do governo do
Estado Novo. Só uma carta do então
diretor do Museu Nacional de Arte
Antiga, a atestar a sua qualidade e a
implorar que fossem poupados, salvou
a obra. Mas as alterações climáticas
não se compadecem com a mesma
facilidade. lribeiro@visao.pt

MALDIVAS

Koagannu
O Cemitério de Koagannu,
a maior e mais antiga necrópole
das Maldivas (tem origem na
mesquita do século XII), é
constituído por cerca de
1 500 lápides, a que se
somam mausoléus e pequenas
mesquitas, tudo construído
com recurso a corais recolhidos
nas águas que rodeiam a ilha-
nação. A subida do nível do
mar, associada a tempestades
violentas, é a grande ameaça
ao local: a praia, a apenas 50
WORLD MONUMENTS FUND

metros de distância, tem sofrido

uma erosão permanente,
deixando o cemitério exposto
à lenta mas inexorável
aproximação das águas.

11 JANEIRO 2024 VISÃO 67

 POLUIÇÃO
NÚMERO

43%
Garrafas de plástico
libertam mais
partículas do que
se julgava
Aumento
da energia solar Um estudo publicado na revista científica
PNAS concluiu que cada litro de água
De 2022 para 2023, proveniente de garrafas de plástico
a produção de eletricidade contém uma média de 240 mil partículas
de fonte fotovoltaica deu (nanoplásticos), 100 vezes mais do que
um salto de 43%, ajudando estimativas anteriores. O nylon, presente
o setor das renováveis a ter nos filtros de purificação, é o plástico
o melhor ano de sempre mais comum, seguido do PET, o material
(a que não foi alheio o facto de que são feitas as garrafas.
de 2023 ter sido muito mais
chuvoso do que o 2022),
com 70,7% da produção
a ter origem em fontes mais
limpas. De acordo com
a APREN, a associação
que representa o setor,
o solar representou 8,2%
do total; as fontes eólicas
asseguraram 29% da
produção, as hídricas,
27%, e a biomassa, 6,6%.

GUERRA

O impacto
climático
do conflito
em Gaza
GETTY IMAGES
As emissões de gases com
efeito de estufa dos primei-
ros meses de guerra Israel-
EMISSÕES
-Hamas são superiores às

O ano mais limpo na eletricidade

emissões anuais de 20 dos
países mais vulneráveis
às alterações climáticas.
A análise (publicada pela
Social Science Research
Network, mas ainda não
revista pelos pares) conclui
que a resposta israelita ao
massacre de 7 de outubro
emitiu o equivalente à quei-
ma de 130 mil toneladas
de carvão só nos primeiros
dois meses de bombardea-
mentos de Gaza, devido
sobretudo ao uso de aviões
e outros veículos, além do
fabrico e da explosão de
mísseis e artilharia.
dos últimos (pelo menos) 34 anos
Nunca Portugal emitiu tão pouca quantidade de gases com efeito de estufa para
produzir energia elétrica, desde que o País começou a contabilizar e reportar as
suas emissões de gases com efeito de estufa, em 1990. A conclusão é da Zero, que
estimou as emissões de 2023, no setor, em 3,7 milhões de toneladas de dióxido de
carbono equivalente, correspondendo a uma descida de 40% face ao ano anterior
(6,1 milhões de toneladas). A associação ambientalista sublinha que 2023 concentra,
assim, três recordes na área da energia: “Maior produção de eletricidade renová-
vel [61%, segundo a REN], seis dias seguidos do consumo do País assegurados por
eletricidade exclusivamente renovável (entre 31 de outubro e 6 de novembro) e as
menores emissões de dióxido de carbono de sempre na produção de eletricidade.”
Com estes números, o setor da eletricidade deixou de ser o maior emissor de gases
com efeito de estufa em Portugal, sendo ultrapassado pelo transporte rodoviário.

68 VISÃO 11 JANEIRO 2024

CIMEIRAS DO CLIMA ALTERAÇÕES
CLIMÁTICAS
Anfitrião
da COP29 2023 foi
vai acelerar mesmo
produção de gás o mais
quente,
O Azerbaijão, que vai
organizar a próxima
e de longe
cimeira do clima da ONU, No ano passado,
vai aumentar a produção com a influência do
de combustíveis fósseis El Niño, o planeta
(essencialmente gás) em ficou muitíssimo
32,4% até 2033, dos atuais perto de atingir a
37 mil milhões para 49 mil marca de 1,5ºC acima
milhões de metros cúbicos da temperatura
por ano. A queima dos 411 mil média global antes
milhões de metros cúbicos da industrialização
de gás que o país vai extrair – o limite com
entre 2024 e 2033 emitirá que os países se
781 milhões de toneladas de comprometeram a
gases com efeito de estufa, tentar não ultrapassar
14 vezes mais do que até ao fim deste
Portugal emitiu em 2023. século, quando
Prevê-se mais uma cimeira assinaram o Acordo
polémica, depois da de 2023 de Paris, em 2015.
nos Emirados Árabes Unidos, Segundo o Serviço de
um dos maiores produtores Alterações Climáticas
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de petróleo do mundo. do programa

Copérnico, da União
Europeia, em 2023,
a temperatura média
ANÁLISE
“Passar os 1,5°C é um da atmosfera foi 1,48ºC
acima da do século XIX.
Crise climática Este valor ultrapassa

e desigualdades: marco significativo, o recorde anterior,

estabelecido em 2016,
a mesma luta porque mostra que por uns espantosos
(em termos climáticos)

a história contada
Um relatório publicado na 0,17ºC. Este foi também
Nature Climate Change o primeiro ano em que
concluiu que só combatendo todos os dias foram,
as desigualdades é
possível caminhar em pela ONU, com pelo menos, 1º C mais
quentes do que o

a aquiescência do
direção à neutralidade período pré-industrial,
carbónica. O argumento sendo que dois dias
dos investigadores é que ficaram 2ºC acima.
os parcos rendimentos
limitam a adoção de seu órgão consultivo
comportamentos mais
ecológicos. “A desigualdade
socioeconómica pode
científico, o IPCC,
restringir o acesso a
alternativas de baixo
é uma treta”
carbono. Argumentamos JAMES HANSEN, climatologista, garantiu, nesta semana,
que o combate a estas ao Guardian que, para todos os efeitos, a temperatura média
desigualdades é urgente global vai ultrapassar o aumento de 1,5ºC do Acordo de Paris,
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para uma mudança de calculando que, de maio de 2023 a maio de 2024, atingirá
comportamento impactante 1,7ºC. Hansen ficou conhecido por alertar o Congresso
e equitativa”, escrevem. dos EUA, em 1988, para o perigo das alterações climáticas

11 JANEIRO 2024 VISÃO 69

 AUGUSTO SANTOS SILVA
“Se há algo de que eu poderia
ser criticado por um observador
imparcial seria de algum excesso
de contenção”, diz Augusto
Santos Silva, em resposta aos
que o criticam de ser demasiado
duro com o Chega. O presidente
da Assembleia também diz que
a defesa dos direitos, liberdades
e garantias, que compete
ao Parlamento, justificam
perfeitamente as suas críticas
(não confundir com pressões) ao
Ministério Público. E continua a
estar disponível… para qualquer
cargo, no futuro

Muito
contido
fui eu!
— P O R FI LI P E LU Í S T E X TO LU Í S BARR A FOTOS

70 VISÃO 11 JANEIRO 2024

A
Augusto Santos Silva, 67 anos, li-
cenciado em História e doutorado
em Sociologia, professor catedráti-
co, ex-ministro em vários governos
socialistas, presidente da Assembleia
da República e, portanto, segunda
figura do Estado, deixa o Parlamento
(agora dissolvido pelo Presidente da
República) lançando, hoje mesmo,
quinta-feira, 11, o livro Singular
Plural (numa edição da própria As-
sembleia), em que, além de reunir os
seus discursos e intervenções mais
marcantes, inclui um texto inédi-
to no qual explica o que é, para que
serve e como funciona o Parlamen-
to, oferecendo também uma visão
fundamentada mas, necessariamen-
te, pessoal, sobre a forma como se
deve conduzir o respetivo presidente.
No documento, não é difícil detetar
as razões que levaram a uma tensão
permanente entre o presidente da AR
e o grupo parlamentar do Chega. “E,
se há alguma coisa de que possa ser
acusado, nessa matéria, é de excesso
de contenção...”, afirma Santos Silva.
Esta conversa com a VISÃO decorreu
no próprio dia em que se inicia-
va o 24.º Congresso do PS e, nela,
Augusto Santos Silva não desmente
a eventualidade de uma candidatura
presidencial.
Como chegou a este título para
o seu livro? Singular Plural,
porquê?
Por um lado, a pluralidade: o Parla-
mento representa o País (tal como o
Presidente da República). Mas o PR
representa o País na sua unidade,
enquanto o Parlamento o representa
na sua diversidade. E representa três
diversidades: a diversidade do terri-
tório, através dos círculos eleitorais,
a diversidade de género e a diver-
sidade mais importante, que é a da
72 VISÃO 11 JANEIRO 2024
pluralidade das correntes políticas.
Assim, o que faz a singularidade do
Parlamento é a sua pluralidade!
Afinal, hoje, o regime é
semipresidencialista ou
parlamentar?
Eu diria que o regime constitucional
português, muito inspirado na tradi-
ção francesa, começa por ser semi-
presidencialista, mas isso vigora, na
prática, até à revisão constitucional
de 1982. A partir daí, a responsabili-
dade política do governo faz-se pe-
rante o Parlamento. E essa natureza
parlamentar do regime acentua-se.
Mas há constitucionalistas a defender
que, não obstante, o regime continua
a ser semipresidencialista. Porque
o PR, além de legitimado pelo voto
popular, mantém poderes muito im-
portantes. E a decisão de dissolução
do Parlamento depende do juízo po-
lítico do Presidente. Tem uma função
muito importante, nomeadamente
em momentos de crise. Por isso se
diz que o PR é um fusível…
E, por vezes, o fusível do regime
rebenta e falha a luz… E o senhor
não esconde a crítica que faz a
personalidade não eleita, como
Santana Lopes, em 2004?
este Presidente pelo facto de ter Mas eu em nenhum momento
decidido dissolver a Assembleia sustentei, ou sustento, que a decisão
da República, após a demissão de do Presidente Marcelo tenha sido
António Costa… Do ponto de vista ilegítima. Pode é ser legítima, mas
político, e face ao que se passou, o criticável. E, agora, veremos se a
PR tinha mesmo outra opção? solução que sai de 10 de março será
Na minha opinião, tinha. A disso- mais estável do que a solução da
lução foi desnecessária. A maioria continuidade desta maioria…
geraria um governo com personali- E o precedente Santana Lopes?
dades que dariam todas as garantias. É um caso diferente. Nessa altura, o
Nem sequer a questão do PR, na Presidente Sampaio aceitou nomear
tomada de posse de António Costa, um novo primeiro-ministro, apoiado
se colocava [se Costa abandonas- pela mesma maioria. E esse governo
se o governo para ocupar um cargo esfrangalhou-se em poucos meses.
europeu poderia haver dissolução], E agora? Com uma maioria a
porque a saída de Costa não era pro- braços com um caso judicial que
priamente voluntária, mas forçada afetava o seu anterior primeiro-
pelas circunstâncias. Além de des- ministro e vários colaboradores
necessária, foi uma decisão perigosa, seus, o Governo não se
porque coloca fora da esfera política esfrangalharia?
a decisão sobre o timing e a agenda Mas isso é o que nós não sabemos.
partidária. Mas dada a cultura de- Não sabemos, aliás, quase nada
mocrática que caracteriza o senhor acerca desse caso judicial e conviria
Presidente da República, nunca ele se saber, para que as pessoas, em
sentiu incomodado ou pressionado março, tivessem toda a informação.
por estas críticas… E, mais uma vez, o primeiro-
Ao contrário de outras pessoas ministro tirou aquela conclusão, mas
ou instituições, sim, já lá vamos... isso não alterou a composição da
Mas reflita comigo: tendo em AR nem alterou a vontade do PS de
conta o histórico de casos e prosseguir com as responsabilidades
casinhos, em que este foi apenas de Governo que os portugueses lhe
a gota de água, havia condições conferiram em 2022.
políticas para continuar, com O senhor já declarou estar
um governo chefiado por uma disponível para qualquer função

que o partido lhe peça para
assumir, nem que seja a de
presidente da junta.
Eu disse que não renunciaria aos
meus direitos de me candidatar seja
ao que for, incluindo a presidência
da minha junta de freguesia. O que
é, aliás, a coisa mais fácil, visto que o
meu partido nunca ganhou a presi-
dência da minha junta de freguesia
[União de Freguesias Aldoar, Foz do
Douro, Nevogilde, liderada por Tiago
Mayan Gonçalves, candidato pela IL
às presidenciais de 2021] [risos]. E até
já me candidatei [risos]!
Isso foi noutros tempos, se se
candidatasse agora, tenho a
certeza de que ganhava. Mas
mantém essa postura e essa
disponibilidade?
Sim, eu tenho atividade política des-
de os 15 anos e tenciono mantê-la até
morrer.
Isso significa que mantém
a disponibilidade para uma
candidatura a Belém?
O tempo político é diferente do tem-
po físico. E o que aconteceu no dia
7 de novembro [demissão de Costa]
tornou as eleições presidenciais infi-
nitamente mais longínquas.
Politicamente, sim, mas os
prazos de calendário mantêm-se.
Ficamos por um nim?
Não tenho nada a acrescentar ao que
já disse.
Normalmente, diz-se que a
decisão é pessoal. Mas no caso
de um militante de um grande
partido, essa decisão não deverá
ser coordenada com esse partido?
O PS já teve candidatos que
tomaram essa decisão à revelia do
partido. Manuel Alegre, Maria de
Belém...
Legítimo, é. Mas olho para a História
recente e concluo que o PS tem
pagado um preço muito elevado
por, nas últimas quatro eleições
presidenciais, não se ter apresentado
unido com um candidato único
e forte às eleições presidenciais.
Da minha parte, contribuirei para
que a grande área política que o PS
lidera tenha uma única candidatura
presidencial e que ela seja forte.
Além de
desnecessária, a
dissolução foi uma
decisão perigosa,
porque coloca fora
da esfera política
a decisão sobre o
timing e a agenda
partidária
Mesmo tendo em conta a
excelente coabitação com
Marcelo, em 90% do tempo, o
PS pagou um preço assim tão
elevado?…
Um preço elevado, no sentido em
que perdeu nessas eleições. Desde
2006 que não há uma figura desta
área em Belém.
Mas talvez porque o PS não tenha
encontrado a figura certa…
Temos de trabalhar nessa matéria.
Mesmo apesar de as eleições
estarem tão longínquas como
disse… tem de se começar a
preparar, já, uma candidatura?
Sim, embora essas coisas não se
preparem no mesmo sentido em que
se prepara um cozinhado. É estar
atento às figuras, ao apoio que essas
figuras vão merecendo, etc.
Concluo que não desistiu da
ideia…
Nós desistimos de coisas que que-
remos fazer. Como eu não pensei
nisso, não desisti de nada…
A introdução que faz neste livro,
num texto inédito, parece uma
lição de Ciência Política. Destina-
se a obra ao grande público, ou
pode também ser útil a estudantes
da matéria?
É uma coisa instintiva. Gosto muito
de escrever, eu próprio escrevo os
meus discursos, e gosto de refletir
sobre o que faço. Quer enquanto
investigador, quer enquanto cidadão.
Entendi que fazia sentido anteceder
esta seleção dos discursos mais
relevantes deste ano e meio sobre
uma reflexão do que é o Parlamento
e do que é presidir ao Parlamento.
E há aqui algo de inovador, no
próprio facto de fazer e publicar esta
reflexão.
É, também, uma espécie de
legado?
A intenção não é essa. Trata-se de
uma reflexão de um trabalho em
curso.
Tendo em conta a progressiva
fragmentação partidária,
o Parlamento ganhou
protagonismo? Funciona agora
melhor ou com mais dificuldade
do que antes?
O regime democrático português
tem uma enorme vantagem: a da
grande estabilidade que resulta de ter
uma representação partidária hege-
monizada por dois grandes partidos.
Um ao centro-esquerda, outro ao
centro-direita, e que alternam, entre
11 JANEIRO 2024 VISÃO 73
O PS tem pagado um
preço muito elevado
por não se ter
apresentado unido
com um candidato
às eleições
presidenciais.
Da minha parte,
contribuirei para
que a grande área
política que o PS
lidera tenha uma
única candidatura
presidencial e que
ela seja forte
si, no Governo. E que concordam no
que diz respeito a grandes orienta-
ções, nomeadamente, nas da política
externa – mas também em outras
várias áreas essenciais de política
interna. Mas o sistema tem outra
vantagem: não obstante isto, temos
um Parlamento onde é relativamente
fácil entrar – quaisquer 50 mil votos
podem ser suficientes. Isto permite
que cada um destes grandes partidos
tenha à sua direita ou à sua esquerda
outras forças políticas, que são muito
importantes. Primeiro, para que
toda a gente se sinta representada.
Depois, para que um escrutínio mais
apertado seja exercido, precisamen-
te, sobre os dois grandes partidos.
Garantindo, também assim, outra
grande função do Parlamento, que é
a de fiscalizar.
Mas há quem diga que podemos
ter agora um terceiro grande
partido, o Chega.
Esperemos pelos resultados.
No início, o senhor anunciou
que seria imparcial e contido.
Mas, durante este percurso, foi
acusado de alguma parcialidade
e, sem querer ser ofensivo, de
incontinência verbal. Conseguiu
manter a contenção que
anunciou?
[Sem hesitar] Sim, sim! Se há algo de
que eu poderia ser criticado por um
observador imparcial seria de algum
74 VISÃO 11 JANEIRO 2024
excesso de contenção. Por exemplo,
nunca usei o poder regimental de
que disponho de retirar a palavra seja
a quem for. Por mais violento que
fosse o discurso em questão.
Mas isso alguma vez aconteceu
com algum dos seus antecessores?
Aconteceu. Mas eu nem sequer sei
como funciona o botão para o efeito.
Porque acredito que o debate político
tem de ser vivo e, às vezes, é duro,
agressivo e, até, violento. A única coi-
sa que fiz foi intervir, dentro da obe-
diência ao regimento, sempre que o Um livro…
discurso de quem quer que fosse se
tornava injurioso e agressivo, desig-
Singular
nadamente, para quem, não estando São 176 páginas que
no plenário, não se podia defender. E deixam para a posteridade
quando é que isso aconteceu? Quan- os principais discursos e
do uma comunidade étnica foi acu- intervenções de Augusto
sada de ser mais propensa à prática Santos Silva, durante a
de crimes… longa sessão legislativa que
A comunidade cigana, pelo Chega. decorreu de março de 2022
… Quando foram usadas expressões a setembro de 2023. Entre
muito agressivas para com comuni- os 24 textos selecionados,
dades estrangeiras em Portugal… os discursos marcantes da
Ainda o Chega. tomada de posse e o do 25
… E quando chefes de Estados es- de Abril, em 2023. A obra é
trangeiros, que aqui estavam a nosso pontuada pelo texto inédito,
convite, foram tratados de forma de uma longa introdução
indigna… de 35 páginas, onde Santos
E sempre o Chega. Silva dá a sua visão de como
… Na presença do Chefe de Estado deve conduzir-se a segunda
português, na presença das Forças figura do Estado.
Armadas portuguesas, na presença
dos deputados e do Governo

português, na presença do Corpo
Diplomático…
O senhor também reitera, no
livro, que o discurso de ódio está
interdito. Quem é que determina
o que é discurso de ódio e o que
não é?
O regimento do Parlamento deter-
mina-o. Determina que o presidente
da Assembleia da República deve
intervir advertindo o orador quando
o seu discurso se desviar do assunto
ou for injurioso ou agressivo.
Mas depende sempre do critério
do presidente, que pode ser
mais ou menos largo. Não
terá sido demasiado severo,
nomeadamente, para com o
Chega?
Não, está enganado! Nunca foi dirigi-
do a nenhum grupo em particular! E
adverti membros do Governo, mem-
bros de vários grupos parlamentares,
sempre em caso de ataques, não de
natureza política, mas de natureza
pessoal. Mas é evidente que há uma
margem de interpretação. O que é
agressivo e o que é injurioso depen-
de muito da qualificação, e é por isso
que o presidente da AR deve ser con-
tido. Se frequentar a AR, verá o nível
a que podem chegar os apartes e que
eu ignoro... O que não posso ignorar
é quando esses apartes se concen-
tram numa deputada em especial e
têm uma natureza de ofensa pes-
soal. Aí, tenho de intervir. Discurso
de ódio não é dizer que “eu odeio
fulano”. O discurso de ódio é dizer
que os estrangeiros estão a mais,
que estão a roubar o nosso país ou
que devem ser expulsos. Isso é que
fomenta o ódio.
Outra passagem no seu texto diz
que não podem ser apreciadas
propostas ou projetos-lei que
violem a Constituição e que o
senhor recusou alguns. Teve
algum parecer prévio do Tribunal
Constitucional, para decidir
isso?…
Não, nem preciso de ter. A
Constituição e o regimento dizem
que não posso admitir esses projetos
em duas situações: quando é violada
a lei-travão…
Mas isso é mensurável,
quantitativamente, trata-se de
números da despesa e, portanto,
matéria de facto. Refiro-me
a projetos de apreciação mais
subjetiva.
Isso compete ao exercício da minha
responsabilidade. Sou eu que admito
ou rejeito projetos. E o regimento
diz com clareza em que condições
– e são muito restritas – é que eu
posso rejeitar um projeto. Uma delas
é a violação da Constituição e, na
sequência da interpretação de ante-
cessores meus, eu faço uma inter-
pretação minimalista. Só recusei três
projetos: um deles de prisão perpé-
tua, outro de castração química e,
outro, uma alteração de um tratado
internacional, coisa que não compete
à AR.
Portanto, matérias muito óbvias.
Sim, a violação “flagrante” da Consti-
tuição. Mas todas as minhas decisões
podem ser objeto de recurso. E a 1.ª
Comissão, a de Assuntos Consti-
tucionais, elabora um parecer. Ora,
as minhas decisões foram sempre
apoiadas por essa comissão.
No texto, o senhor defende que,
como cidadão, tem direito à sua
opinião, com cuidados a expressá-
la, tendo em conta a função. Ora,
muito recentemente, foi acusado
de, ao expressar opiniões sobre
a Operação Influencer, estar a
pressionar o Ministério Público.
Não foi a propósito da Influencer.
Foi a propósito de vários processos,
já concluídos, nos quais a atuação
do MP merece reserva, do ponto
de vista de quem exerce funções de
presidente da AR.
Crise
da imprensa
e impostos
No despique que foi
mantendo, na AR, com a
bancada do Chega, foi acusado
de estar a promover o partido
de André Ventura.
Trata-se de uma teoria que não
consigo compreender e que refu-
to. Seria a mesma coisa – com as
devidas proporções – que acusar
aqueles que, nos anos 30, se opu-
seram à ascensão do estalinismo
ou do nazismo de estarem a pro-
mover esses sistemas, ou acusar
os que se opuseram a Mussolini
de o ter promovido.
Mas está a fazer comparações
fortes…
Por isso é que eu disse
“com as devidas proporções”…
Eu percebo esse princípio. Mas
a verdade é que a televisão está
a transmitir – e o foco fica ali,
nessa cena e nesse palco…
É uma decisão editorial das
televisões.
Temos um problema na forma
como a comunicação social
filtra para o grande público o
debate político?
Nós temos jornalismo a menos e
precisamos muito de jornalismo.
Como está a acompanhar a
crise na Global Média?
Com muita preocupação,
exatamente porque é o
Parlamento que legisla sobre
direitos, liberdades e garantias,
e a liberdade de imprensa é
absolutamente essencial. E ela
passa, entre outras coisas, por
grupos que tenham as condições
financeiras e económicas para
que essa atividade seja exercida.
A imprensa não deve
depender, economicamente,
do Estado. Mas o Estado
não estará, aqui, a falhar em
qualquer coisa? Não haverá
uma forma imaginativa
de apoiar a imprensa de
referência, livre, sem que se
levante a suspeição sobre o
controlo dos media?
Mais ano, menos ano, teremos
de revisitar o quadro fiscal das
empresas de comunicação social.
Talvez seja por aí que encontre-
mos medidas menos intrusivas
e menos suscetíveis de causar
suspeições.
11 JANEIRO 2024 VISÃO 75
Mas o pretexto foi a Influencer…
Não. Até começou pela minha suges-
tão de que a PGR devia esclarecer as
buscas em sedes do PSD. É que eu
sou imparcial.
Mas a substância da pergunta não
está respondida: extravasou, ou
não, as suas competências?
Não. Há uma divergência, que resulta
do facto de que ‒ aliás, nota-se aqui,
na Assembleia ‒ há quem pense
que o presidente da AR deve ser
uma espécie de relógio. Limitando-
se a avisar a oradora ou o orador,
“senhor(a) deputado(a), o seu tempo
já terminou”. Vários partidos têm
defendido isso e têm-me criticado
por eu ir além dessas funções de
“regente” dos trabalhos do plenário.
E eu entendo que o presidente da AR
conduz os trabalhos com isenção e
que representa a AR – e, desse modo,
quando fala em nome da Assembleia,
deve falar em nome das maiorias
que se formaram. Portanto, eu posso
dizer que “apoiamos a Ucrânia”. Mas,
além disso, sou um cidadão, membro
de um partido político e deputado
eleito por um círculo eleitoral. E a
minha liberdade de ação mantém-
se. Claro que não posso ignorar a
função que exerço no Estado, e devo
fazer isso, não num tom de quem
está num comício ou numa conversa
de café, mas com a linguagem e
contenção próprias.
E é isso que tem feito, neste caso?
Sim. Mais: o Parlamento é o único
órgão que pode legislar em matéria
de direitos, liberdades e garantias.
Ora, pode calar-se quando direi-
tos, liberdades e garantias estão em
causa?
Estamos de acordo. Mas o
Parlamento tem a sua Comissão
de Direitos, Liberdades e
Garantias, não é o senhor. E
as posições do Parlamento, se
o senhor as defende como tal,
como bem referiu a propósito da
Ucrânia, terão de ser consensuais
ou, ao menos, maioritárias.
Sim, mas eu devo preocupar-me
quando vejo que valores respeitáveis
podem estar em conflito uns com
os outros e a plena liberdade da
investigação judicial pode estar a
contender com a liberdade e a ação
política de partidos. E eu também
tenho de olhar sob esse prisma.
A democracia parlamentar existe
porque há partidos. E devem ter
liberdade de ação. E, quando ela
76 VISÃO 11 JANEIRO 2024
é posta em causa, deve haver um
esclarecimento público.
De qualquer modo, o poder
judicial também é um órgão de
soberania. E, embora o MP seja
um órgão judiciário (não judicial),
é forte a sua crítica quando diz
que a PGR tem falta de cultura
democrática, por, alegadamente,
não aceitar a crítica…
O ponto é mesmo esse. Não acei-
tar a crítica. Houve pessoas, entre
as quais, eu próprio, que discorda-
ram da atuação do MP. E houve uma
reação da mais alta entidade do MP a
dizer que se tratava de um “ataque”
ao MP… É preciso que nos habitue-
mos que discordar não significa ata-
car. Discordar e criticar é próprio da
democracia e, em democracia, não há
ninguém que esteja imune às críticas.
Não perceber isso é um problema de
cultura democrática.
O senhor diz que nem todas
as petições dos cidadãos, que
chegam à AR, podem ser dadas
como justas ou exequíveis,
independentemente do número
de assinaturas ou respetiva
fundamentação ou popularidade…
Quer dar algum exemplo
concreto?
Não darei um exemplo. Mas o ins-
trumento da petição possibilita aces-
so direto dos cidadãos ao Parlamen-
to. Matéria em que somos pioneiros,
visto que já a Constituição de 1822 o
consagrava. E os grupos de cidadãos
até podem apresentar projetos-lei
(foram aprovados dois). Mas há a
ideia de que a petição está sempre no
lugar da verdade, e não é assim. Há
petições que ecoam campanhas, na
opinião pública. E há petições justas,
mas muito setoriais. Por exemplo:
pedir que uma vacina possa ser de
acesso universal e gratuito – e essa
não ser uma decisão política, mas
técnica.
Olhando para os seus discursos,
aqui publicados, que frase
sua elegeria como “frase do
mandato”? E que intervenção
acha que lhe correu melhor?
Bem, do discurso da tomada de
posse, eu elegeria a frase em que, ci-
tando Amos Oz, eu digo que precisa-
mos de mais pontos de interrogação
do que de pontos de exclamação. E,
depois, acho que exprimi bem o que
penso no discurso do 25 de abril de
2023 em que explico que a demo-
cracia “precisa de tempo”. E que, se
decidirmos a sorte dos governos com
base nas sondagens mensais, não há
governo que aguente.
Então, eu tiraria uma frase desse
discurso, para concorrer com a
ideia que escolheu: “Devemos
preferir a respiração pausada
própria de uma democracia
madura, à respiração ofegante
típica das excitações populistas.”
[Sorrisos] Sim, também gosto dessa.
O seu discurso é sempre
europeísta. Mas, nas recentes
eleições internas do seu partido,
houve quem manifestasse
preocupação com a recuperação
de eventuais entendimentos

com os partidos à esquerda,
depois do que se passou em
Israel e, sobretudo, na Ucrânia.
Por exemplo, levar o PCP para
o Governo não poderia ser
interpretado, pelos nossos aliados
na NATO, como levar para lá a
quinta-coluna?
Não acompanho essas preocupações.
Mas algumas delas vieram da
parte do candidato que o senhor
apoiava [José Luís Carneiro].
Sim, mas essa parte não acompanho.
A fórmula da chamada Geringonça,
desde o início tornou claro o que não
entrava nos acordos – por exemplo,
política europeia e externa. Nessa
matéria, é mais o que aproxima o
PS do PSD do que o que aproxima o
PSD da IL e do Chega e o PS do PCP
ou do BE…
Considero
um cenário
profundamente
negativo aquele em
que o Governo da
República estivesse
dependente do
favor dessa dita
“verdadeira
direita”
E a quinta-coluna?
Olhe: nas primeiras semanas do 1.º
governo da Geringonça, explicámos
aos nossos parceiros e aliados qual
era o sentido daquele governo. E
eu falei com o secretário-geral da
NATO [Jens Stoltenberg] sobre isso
e ele riu-se e interrompeu-me: “Ó
homem, isso é o que está sempre
a acontecer com os nórdicos! Eles
também têm partidos anti-NATO
que, às vezes, entram em coligações
de governo!”
Então, se Pedro Nuno Santos
ressuscitar a Geringonça, terá o
seu beneplácito.
Ele não precisa.
Pergunto-lhe, porque espero
que responda como militante do
PS, se não puder fazê-lo noutra
qualidade… O senhor é dos que
teme a ascensão da extrema-
direita, ao governo, pela mão
de um partido democrático?
“Extrema-direita”, ou direita
radical, ou populista, como se
queira chamar… enfim, o Chega.
Ou a “verdadeira direita”,
como dizem os próprios…
[Sorrisos]. Considero um cenário
profundamente negativo aquele
em que o Governo da República
estivesse dependente do favor dessa
dita “verdadeira direita”. E digo-o
como pessoa que se considera
como representante do regime
democrático, e, portanto, como
presidente do Parlamento.
Seria, então, um cenário
indesejável?
Como indesejável seria que um
governo do PS estivesse refém
de contrapartidas concedidas
a partidos à sua esquerda, que
implicassem qualquer rutura do PS
com a sua tradição pró-europeia,
por exemplo.
Mas esse argumento pode ser
revertido. O PSD também
pode fazer um acordo em que
princípios fundamentais fiquem
de fora desse acordo.
Por isso é que fui cuidadoso na
minha resposta. Falei de um governo
que ficasse dependente do favor
dessa “verdadeira direita”.
Já enviou um exemplar
autografado deste seu livro ao dr.
André Ventura?
Eu respeito as pessoas. E como esse
grupo parlamentar não me considera
seu presidente, estou dispensado de
fazer isso. fluis@visao.pt
Parágrafo
para Chega ler
No livro, dá exemplos do
que não se deve permitir no
plenário: ataques a minorias
étnicas ou a chefes de Estado
estrangeiros, por exemplo. Um
parágrafo à medida do Chega?
Não.
Mas, se não existisse o grupo
parlamentar do Chega, o
senhor, se calhar, não se
lembraria de escrever isto…
Provavelmente, não. Só que
houve uma alteração da posição
do Parlamento. Até 2019, o
Parlamento português esteve
imune a manifestações políticas,
ideológicas e retóricas de
extrema-direita. Especialmente,
nas primeiras legislaturas, esteve
vulnerável a manifestações
políticas, ideológicas e retóricas
de extrema-esquerda…
… E todos nos lembramos de
um certo deputado da UDP…
… Sim, mas que entretanto se
foram integrando no regime,
aprendendo que a democracia
lhes garantia representatividade
e o poder que o povo lhes
conferisse.
Mas o senhor, no seu texto,
usa argumentos fortes. Fala
em prevenir comportamentos
“desordeiros”. Isto aconteceu,
alguma vez?
Sim, aconteceu. Na sessão solene
de receção ao Presidente Lula.
Mas há precedentes de outros
protestos a chefes de Estado
estrangeiros, no passado, e
nunca nenhum presidente
da Assembleia reagiu como o
senhor…
Mas também nunca nenhum
Chefe de Estado estrangeiro,
discursando no Parlamento
português, a convite do
Parlamento português, viu o
seu discurso constantemente
interrompido e pateado.
Isso nunca tinha acontecido.
Reconheço o direito ao protesto
e há lugar para certas formas de
protesto. Grupos parlamentares
ausentes da sala, por exemplo. Ou,
como aconteceu no caso da IL, um
grupo parlamentar representado,
apenas, pela presença do seu líder
de bancada. Outros deputados
tinham, na lapela, a bandeira da
Ucrânia, manifestando, assim, o
seu desacordo com o Presidente
Lula nessa matéria.
11 JANEIRO 2024 VISÃO 77
 ---------- L EG I S L AT I VAS

MARCELO
O PRINCÍPIO
DA INCERTEZA?
78 VISÃO 11 JANEIRO 2024

Pedro Nuno e Montenegro estão longe de uma
ligação com Belém como a que Costa teve.
Perante a incógnita da solução governativa
que as legislativas trarão, os últimos dois
anos de mandato presidencial vislumbram-se
árduos, já que Marcelo Rebelo de Sousa pode
não conseguir acertar o passo com o próximo
primeiro-ministro
— POR NUNO MIGUEL ROPIO
A
Apesar dos pesares que Mar-
celo Rebelo de Sousa e Antó-
nio Costa possam ter causado
um ao outro, nos oito anos
que já levam de convivência
institucional, os tempos que
se seguirão à ida às urnas, a
10 de março, podem tradu-
zir-se numa relação muito
mais tensa entre Belém e São
Bento, do que aquela a que se
assistiu desde a conquista da
maioria absoluta pelo PS, em
janeiro de 2022. O problema
nem estará tanto nos defeitos,
mas no feitio de quem sair
vencedor das eleições legis-
lativas. Pedro Nuno Santos e
Luís Montenegro não só estão
muito aquém da proximidade
que Marcelo mantém com
Costa há muito – basta di-
zer que um foi professor do
outro –, e nada aponta para
que pensem em mudar esse
estado de alma, como deram
sinais de que não gostam do
estilo presidencial que se ins-
talou no Palácio de Belém, a
partir de 2016.
Ainda que o líder do PSD
até possa levar uma ligeira
vantagem sobre o socialista,
fruto de uma tentativa de
aproximação que fez a Marce-
lo no primeiro mandato pre-
sidencial, não existem gran-
des diferenças relativamente a
Pedro Nuno. E há duas fortes
razões: a geometria políti-
ca para a qual as sondagens
apontam [com um PS a ga-
nhar mas com a direita em
maioria, desde que na equa-
ção se conte com o Chega] e
as conhecidas alfinetadas da-
das por Montenegro ao Chefe
de Estado, desde que Belém
começou a fazer questão de
reivindicar para si parte do
sucesso e do prestígio que a
Gerigonça alcançou.
11 JANEIRO 2024 VISÃO 79
 ---------- L EG I S L AT I VAS

Quanto a Pedro Nuno “A declaração do

Santos, o congresso dos so-
cialistas que o entronizou,
no último fim de semana,
deixou claro que chegou ao
fim a confiança que o partido
deu a Marcelo, para a reelei-
ção presidencial, em janeiro
de 2021. Durante a reunião
magna, o novo líder do PS
fez questão de se distanciar
de palavras fortes como as
proferidas pelo presidente
do partido, Carlos César, ou
o histórico Manuel Alegre.
Porém, aumentou a incógnita
sobre o que aí vem, quando
acenou que consigo, à frente
de um Governo, será escrito
um novo capítulo, diferente
daquele que Costa traçou,
a começar pelo apoio a um
candidato a Belém que seja
da família socialista.
Presidente da República
sobre Teodora Cardoso
foi deselegante,
inadequada e infeliz”
Montenegro sobre
declaração de Marcelo
acerca de Teodora Cardoso
Março de 2017
“Nunca apoiarei um
candidato da direita. Ou
apoio um candidato da área
do PS, ou, não havendo
um candidato da área
do PS, votarei num dos
candidatos da esquerda,
nomeadamente, no
candidato ou candidata
do BE, ou no candidato
ou candidata do PCP”.
Pedro Nuno Santos recusa apoiar
recandidatura de Marcelo
Julho de 2020

CHEGA PARA LÁ “Deixámos a tarefa de

Segundo o politólogo José
Filipe Pinto, o secretário-
-geral do PS “quer mos-
trar que é um tempo novo,
de uma atitude nova; e que,
não sendo constitucionalista,
como Marcelo é, não deixa de
conhecer quais são as com-
petências de um primeiro-
-ministro, de um Governo e
de um Presidente da Repú-
blica”. “O que Pedro Nuno
expôs é que não pretende
que se mantenha um clima
de ingerência, que Costa foi
deixando acontecer. Ou seja,
admite o poder moderador
de Belém. Mas irá relacio-
nar-se com a magistratura
de influencia e não com a de
interferência”, defende. Por
outro lado, Marcelo vê Mon-
tenegro “como um líder que
lhe aconteceu estar no lugar
certo e na hora propícia, mas
que, ao contrário do que Ca-
vaco Silva disse, não é alguém
com capacidade para liderar
um projeto vitorioso da direi-
ta democrática, que exclua a
direita populista”, salienta o
docente de Ciência Política
e especialista em populismo.
Nos últimos oito anos,
Pedro Nuno Santos mos-
trou-se em desacordo com
decisões de António Costa,
defesa dos valores do
socialismo democrático a
Ana Gomes, uma distinta
militante do PS que, sem o
apoio da nossa organização,
corajosamente defendeu
quase sozinha a matriz
do nosso ideário”.
Pedro Nuno Santos sobre
presidenciais em que Costa
apoiou Marcelo
Janeiro de 2021
“É o primeiro-ministro
que deve ver, em cada
momento, se são aqueles
que estão em melhores
condições para terem
êxito nos seus objetivos.
O primeiro-ministro é
responsável pela escolha
mais feliz ou menos feliz”
Marcelo sobre Pedro Nuno,
após polémico despacho
sobre aeroporto
Junho de 2022
“Se a lei define
determinadas regras
sobre incompatibilidades,
e há situações que são
abrangidas por essas regras,
então há que fazer cessar
a incompatibilidade”
Marcelo sobre negócios do pai
de Pedro Nuno com o Estado
Outubro de 2022
na gestão do País e no re-
lacionamento com Belém.
O pico desse desconforto
aconteceu nas presidenciais,
de janeiro de 2021, em que
o PS não apoiou um can-
didato. Meses antes, Costa
manifestara confiança na
recandidatura de Marcelo,
numa visita à Autoeuropa.
Além de entrar, em outu-
bro de 2020, num bate boca
com o então ministro dos
Negócios Estrangeiros, Au-
gusto Santos Silva, e com
Fernando Medina, na altura
presidente da Câmara de
Lisboa, apoiantes de Mar-
celo, o agora líder do PS (já
ministro) criticou numa Co-
missão Política do PS, em
novembro, essa estratégia.
E, à porta fechada, chega a
acusar Marcelo de contribuir
para o fim da Gerigonça, ao
não ter pedido, em outubro
de 2019, um outro acordo
escrito aos partidos, como
fizera Cavaco Silva, em 2015.
Todavia, é do gabinete de
Pedro Nuno que até parte
o famoso e-mail a pedir à
TAP que altere um voo de
Moçambique, em março de
2022, para agradar a Belém.
Quando chegou a hora de
devolver os galhardetes, no
verão de 2022, Marcelo não
se fez rogado: esteve contra
a opção de Costa em man-
ter Pedro Nuno, devido ao
despacho para a construção
do futuro aeroporto de Lis-
boa. Desde Belém ao líder do
maior partido da oposição,
passando pelo próprio chefe
do Governo, ninguém sabia
da decisão.
Assim como puxara o ta-
pete a Constança Urbano de

80 VISÃO 11 JANEIRO 2024


Sousa, após os incêndios de
2017, ou a um peso político
pesado, de seu nome Eduar-
do Cabrita, na sequência do
acidente com o carro do mi-
nistro da Administração In-
terna na A6, Marcelo con-
siderou, a 20 de junho, que
Costa não estava a fazer a
"escolha feliz". Dali a quatro
meses, colocou de novo o
ministro na berlinda, devido
à controvérsia causada com
um contrato por ajuste direi-
to, entre o Estado e empresa
do pai de Pedro Nuno, ad-
mitindo que o negócio deve-
ria ser fiscalizado. Quando o
ministro das Infraestruturas
se demitiu, no final de 2022,
porque dera autorização à
TAP para pagar 500 mil euros
a Alexandra Reis, Marcelo foi
lacónico: "Ninguém é obriga-
do a ficar no Governo".
Relação Marcelo não
esconde que preferia ter
Costa até ao fim do mandato,
devido à ligação que
mantiveram oito anos
NARCOS BORGA
No caso do presidente la-
ranja recue-se a janeiro de
2016, à primeira corrida pre-
sidencial de Marcelo, para
encontrar uma foto juntos.
Como líder parlamentar,
Montenegro foi o único alto
dirigente do PSD a juntar-se à
campanha. Uma pastelaria de
Espinho serviu como ponto
de encontro. De lá para cá,
nunca evitaram apontar crí-
ticas mutuamente. Foi o que
aconteceu quando a então
presidente do Conselho de
Finanças Públicas, Teodora
Cardoso, em 2017, considerou
que o ministro das Finanças,
Mário Centeno, precisaria de
um “milagre” para alcançar
determinadas metas orça-
mentais. Marcelo achou que a
redução do défice não era “um
milagre” mas um esforço do
País. Montenegro condenou-o.
“Todos os casos.
Do primeiro e até ao
último, são merecedores
de uma investigação
profunda”
Montenegro sobre
declarações de presidente
sobre abusos sexuais
Outubro de 2022
“Não é claro que
surgisse uma
alternativa
evidente e forte
imediata ao que existe
[caso o Governo caísse]”
Marcelo critica falta
de uma oposição forte
Janeiro de 2023
“Não se pode ir atrás
da emoção, a emoção
muitas vezes não é
racional, e a cópia
perde sempre com
o original”
Marcelo sobre Montenegro
por críticas à política à lei
da imigração
Fevereiro de 2023
“Marcelo Rebelo
de Sousa é um Presidente
diferente”
Montenegro sobre crítica
de Marcelo à oposição
Março de 2023
“Eu não estou aqui
para fazer oposição
ao Presidente da
República e também
espero que o Presidente
não esteja aqui
para fazer oposição
à oposição”
Montenegro sobre críticas
de Marcelo ao atuação
do PSD
Abril de 2023
“Não reabrir processos,
que não têm sucesso
a nível europeu
— e podem retardar
aquilo que convinha
não retardar mais
—, é de extrema
prudência”
Marcelo sobre impasse
de PSD quanto
a investimentos do PRR
Dezembro de 2023
Ao sair do Parlamento,
Montenegro só voltou à ri-
balta com a derrota de Rui
Rio nas legislativas de 2022.
Para conselheira, até foi bus-
car Inês Domingos, consul-
tora económica de Belém. Só
que se, pelo verão, de 2022,
Marcelo falava numa crise
política, tendo em conta as
polémicas que minavam a
maioria absoluta, rapida-
mente mudou de mensagem,
ao ver que Montenegro não
convencia os portugueses.
Isso levou o líder do PSD a
apontar baterias a Belém,
como aconteceu quando
Marcelo pôs o pé em falso
sobre os números de vítimas
de abusos sexuais na Igreja.
Nos finais desse ano e ao
longo de 2023, em que se
sucederam várias demis-
sões no Governo, Marcelo
apontou não ver “alterna-
tiva” credível ao PS, para
dissolver o Parlamento. A
esse facto seguiram-se pe-
quenas demonstrações de
desagrado sobre a atuação
do líder do PSD, de que foi
exemplo a condenação que
fez às palavras de Montene-
gro sobre a lei da imigração,
na sequência da morte de
cidadãos estrangeiros num
incêndio na Mouraria, em
Lisboa.
Desde a demissão de Cos-
ta, Marcelo ouviu dos dois
líderes juras de amor, que
parecem não o ter conven-
cido. De acordo com o po-
litólogo José Filipe Pinto,
este histórico leva Marcelo a
ter a “noção de que o futuro
passa por ele, porque nada
se avizinha previsível: nem
o vencedor, nem o risco de
o País ter eleições de novo,
para encontrar um Governo”.
“O principio da indefinição
é a única certeza agora, por-
que PS e PSD não parecem
preocupados com o facto
de as suas estratégias igno-
rarem que Marcelo convive
mal com o esquecimento e o
apagamento de protagonis-
mo”, conclui. Contudo, ainda
há dois meses de caminho
pela frente… nropio@visao.pt
11 JANEIRO 2024 VISÃO 81
 ---------- J U ST I ÇA
Juiz “safou” Costa
Nuno Dias Costa considerou que “lei malandra” foi uma
“opção política”, mas Ministério Público discordou.
Tribunal da Relação terá de decidir se houve ou não
prevaricação no Simplex Industrial, o que ditará o
futuro de António Costa na Operação Influencer
— P O R C A R LO S R O D R I G U E S L I M A
O
s juízes do Tribunal
da Relação de Lis-
boa terão uma pa-
lavra decisiva sobre
o futuro de António Costa na
Operação Influencer. Após o
recurso do Ministério Públi-
co, além de outras matérias,
os desembargadores serão
chamados a decidir se hou-
ve crime de prevaricação na
preparação e aprovação do
Simplex Industrial, entretan-
to alterado pelo governo, já
depois de ter sido enviado à
Presidência da República para
promulgação. É que, apesar
das suspeitas indicadas pelos
procuradores, em novembro,
o juiz de instrução desvalo-
rizou a situação, afirmando
que, mesmo existindo favo-
recimento à empresa Start
Campus, dona do centro de
dados, em Sines, tratava-se de
uma opção legislativa.
A decisão sobre o recurso
do Ministério Público acabará
por ter efeito no inquérito
que corre no Supremo Tri-
bunal de Justiça (STJ) contra
o (ainda) primeiro-ministro,
já que a investigação alega
ter existido um conluio entre
vários intervenientes para a
inclusão no diploma de uma
norma que permitisse à dona
do centro de dados contornar
o processo de licenciamento
camarário, a tal “lei malan-
dra”, como é referido por um
deles numa escuta telefónica.
Se as suspeitas caírem em
primeira instância, o mais
provável é que também aca-
bem por ceder no STJ.
Em novembro, após os
interrogatórios judiciais dos
arguidos detidos ‒ Diogo La-
82 VISÃO 11 JANEIRO 2024
cerda Machado, o “melhor
amigo” de António Costa, Vítor
Escária, ex-chefe de gabinete
do primeiro-ministro, Rui Oli-
veira Neves e Afonso Salema,
gestores da Start Campus, e
Nuno Mascarenhas, presidente
da Câmara de Sines ‒, o juiz de
instrução, Nuno Dias Costa,
deitou por terra a existência
de qualquer crime.
Segundo o magistrado ju-
dicial, mesmo que se enten-
desse que “tal combinação
se destinava a permitir que a
necessidade de licenciamento
camarário fosse contornada,
sempre se trataria de uma
opção legislativa”. Questão
diferente, assinalou o juiz,
era se existissem suspeitas
de corrupção para produ-
zir “uma lei à medida”, ou
seja: se o Tribunal da Relação
mantiver a opinião do juiz de
instrução, o caso contra An-
tónio Costa fica quase ferido
de morte, já que o primeiro-
-ministro é apontado como
coautor do (eventual) crime.
A posição de Nuno Dias
Costa está a ser contesta-
da pelos procuradores João
Paulo Centeno, Hugo Neto e
Ricardo Lamas. No recurso
para o Tribunal da Relação
de Lisboa, os magistrados
do Ministério Público consi-
deraram que só “uma leitura
mais apressada” poderá ter
levado o juiz de instrução a
retirar as suas conclusões.
Elencando uma série de
escutas telefónicas entre Dio-
go Lacerda Machado, João
Galamba, antigo ministro das
Infraestruturas, Rui Oliveira
Neves e Afonso Salema, os
procuradores garantem que os
envolvidos “envidaram esfor-
ços no sentido de implementar
normas” que permitissem a
dispensa do processo de li-
cenciamento a entidades pri-
vadas, o que ia de encontro às
pretensões da Start Campus,
tendo em conta as “dificulda-
des e atrasos” que a empresa
“vinha sentindo por parte da
Câmara de Sines”. O MP alega
ainda, contrariando o juiz de
instrução, que houve, de facto,
crime de prevaricação, já que
os intervenientes políticos vio-
laram “normais aplicáveis” às
funções, como os “princípios
da igualdade, imparcialidade,
transparência e prossecução Celeridade António Costa
do interesse público”. quer ser ouvido
rapidamente pela justiça.
Uma semana antes da Procuradora-geral não
aprovação do diploma em se compromete com prazos
Conselho de Ministros (19
de outubro), o então ministro
das Infraestruturas, João Ga-
lamba, foi escutado a pedir a
Diogo Lacerda Machado uma
“informação com as normas
de que poderia beneficiar a
atividade dos data centers”,
referiram os procuradores
João Paulo Centeno, Hugo
Neto e Ricardo Lamas, no
despacho que detalhou a sus-
peitas contra os detidos na Ministério Público
operação de 7 de novembro.
“Parece-nos cristalino que o
afirma ter existido
arguido João Galamba não um conluio entre
só atuou conluiado com os governantes
arguidos Afonso Salema e
Rui Oliveira Neves, como foi, para favorecer
na verdade, o autor e ver- a empresa que
dadeiro mentor dos factos”,
reforçaram os magistrados
construiu o
no recurso, entregue no iní- centro de dados,
cio do mês. em Sines. João
A sucessão de escutas te-
lefónicas revela que, após Galamba foi o
aquele primeiro contacto, “mentor”

Rui Oliveira Neves e Afonso
Salema, gestores do projeto
do centro de dados, desdo-
braram-se em vários tele-
fonemas para a tal recolha
de informação. Num deles,
Rui Oliveira Neves abordou
João Tiago Silveira, colega
na sociedade de advogados
Morais Leitão, que tinha sido
convidado pelo governo para,
a título informal, coordenar
vários processos de simpli-
ficação legislativa. Durante
a conversa, Tiago Silveira, de
acordo com a transcrição,
disse ao gestor para “não se
preocupar”, porque quem iria
decidir seria ele próprio. E foi
nesta conversa que surgiu, a
13 de outubro, a escuta fatal
para o primeiro-ministro: a
certa altura, João Tiago Sil-
veira ‒ que não respondeu ao
contacto da VISÃO ‒ afirmou
ter estado “quatro horas com
o Costa” e que “o gajo” estava
“completamente entusias-
mado”.
Quatro dias após esta con-
versa, o Ministério Público
acabaria por abrir uma inves-
tigação autónoma a António
Costa, cuja origem, como
adiantou, em novembro, a
Procuradoria-Geral da Re-
pública e os factos entretanto
conhecidos confirmaram, “no
conhecimento da invocação
por suspeitos do nome e da
autoridade do primeiro-mi-
nistro e da sua intervenção
para desbloquear procedi-
mentos”.
Entretanto, a 19 de outu-
bro, o diploma foi discutido
e aprovado em Conselho de
Ministros. Baseando-se em
dados do processo legislati-
vo ‒ remetido ao Ministério
Público pela Presidência da
República ‒, os procuradores
afirmam que foi “introduzi-
da uma norma” no Simplex
Industrial que permitia “a
dispensa de licenciamento
em operações urbanísticas,
em termos equiparáveis a
obras promovidas pela Ad-
ministração Pública, quando
promovidas por entidades
privadas em parques indus-
triais, empresariais ou de lo-
gística, relativamente a pro-
jetos reconhecidos como de
Interesse Nacional”.
Para o Ministério Público,
o (alegado) crime consumou-
-se com a aprovação do di-
ploma, até tendo em conta a
ligação entre António Costa
e Diogo Lacerda Machado,
advogado que nos últimos
anos foi consultor da em-
presa promotora do projeto
e é suspeito de tráfico de in-
fluências.
O decreto do governo da-
ria entrada em Belém a 9 de
novembro, dois dias após
as detenções e a demissão
de António Costa. A 15 de
dezembro, de acordo com
uma nota da Presidência da
República, o diploma, ten-
do em conta as “dúvidas e
controvérsias”, foi devolvido
à Presidência do Conselho
de Ministros, que o remeteu
novamente para o Palácio de
Belém, a 27 de dezembro,
expurgado dos artigos que
causaram polémica.
A 4 de janeiro deste ano,
Marcelo Rebelo de Sousa aca-
baria por promulgar o decre-
to, referindo que a nova ver-
são apresentada pelo governo
reduzia “significativamente
as questões mais controver-
sas do diploma, que ficaram
limitadas a simplificações
com repercussão direta na
promoção de mais habitação”.
Na investigação, estava
em causa uma adenda ao ar-
tigo 7º, mas a Presidência
fez questão de referir que o
articulado aprovado e pu-
blicado “não inclui a matéria
que cobria operações promo-
vidas por entidades privadas
em parques industriais”. Isto
mesmo pode ser já confirma-
do em Diário da República,
com a publicação do decreto,
no qual não consta qualquer
norma que possa ser ligada
ao projeto da Start Campus.
ARGUIDOS TAMBÉM
RECORRERAM
A caminho do Tribunal da
Relação de Lisboa estão tam-
bém os recursos dos argui-
dos Diogo Lacerda Machado
e Vítor Escária. O primeiro,
recorde-se, entrou, em no-
vembro, no Tribunal Central
de Instrução Criminal indi-
ciado por três crimes (tráfico
de influência, corrupção ativa
e prevaricação), saindo, após
o interrogatório judicial, com
apenas um crime de tráfico de
influências apontado pelo juiz
de instrução. Por sua vez, Vítor
Escária, inicialmente suspei-
to de um crime de tráfico de
influências e dois de preva-
ricação, acabaria também só
indiciado pelo primeiro.
No recurso, a defesa do
“melhor amigo” do primei-
ro-ministro começa, precisa-
mente, por tentar mitigar esta
qualidade social de Lacerda
Machado, dizendo até que
foi apenas por isso mesmo
que o advogado acabaria por
estar envolvido no processo.
Só que, argumentou o ad-
vogado Manuel Magalhães
e Silva, “não há nos autos
qualquer indício de que o
arguido tenha falado alguma
11 JANEIRO 2024 VISÃO 83
 ---------- J U ST I ÇA

Prevaricar ou legislar? vez com o primeiro-ministro

sobre o projeto de constru-
Juiz e Ministério Público tiveram entendimentos diferentes ção” do centro de dados, em
sobre os factos relativos à lei do Simplex Industrial. Entretanto, Sines. “A única referência ao
o governo alterou o diploma e Marcelo Rebelo de Sousa data center teve lugar, como
promulgou-o. Afinal, o que está em causa? o arguido referiu, aquando
do seu interrogatório, apenas,
para chamar a atenção do PM
O QUE É O ção do Simplex de João Tiago para o problema urbanístico
CRIME DE Industrial, já que Silveira. que se iria colocar em Sines,
PREVARICAÇÃO? o diploma foi en- perante a iminência de as
A Lei estabelece xertado com uma QUAL O PAPEL grandes empresas aí instala-
que comete o norma que assenta DE ANTÓNIO das, incluindo o data center,
crime o “titular de como uma luva COSTA? criarem, nos próximos cin-
cargo político” que nas pretensões da O primeiro-minis- co anos, mais de cinco mil
“contra o direito, empresa promo- tro será suspeito postos de trabalho, com um
conduzir ou deci- tora do centro de de prevaricação acréscimo habitacional de 15
dir um processo dados, em Sines, em coautoria. Já mil pessoas, atenta a realida-
em que intervém, ou seja, houve por que, além de estar de familiar dos trabalhado-
no âmbito das parte de titulares a par do diploma res”, acrescentou o defensor
suas funções, com de cargos políticos do Simplex Indus- de Lacerda Machado.
o objetivo de, por uma intenção de trial, através de Ainda segundo o recurso,
essa forma, preju- beneficiar o proje- contactos diretos Lacerda Machado não teve
dicar ou beneficiar to e não um dever com João Tiago “intervenção sobre este tema
alguém” de imparcialidade Silveira, também junto de qualquer entidade
e prossecução do teria conhecimen- pública, fosse do secretário
interesse público. to das pretensões de Estado João Galamba ou
QUAL FOI O dos promotores, do presidente da APA [Agên-
ENTENDIMENTO QUEM SÃO OS sobretudo no cia Portuguesa do Ambien-
DO JUIZ DE ENVOLVIDOS que diz respei- te] Nuno Lacasta, fosse do MARCOS BORGA
INSTRUÇÃO? NESTE CASO? to à rapidez no ministro Duarte Cordeiro e
Nuno Dias Costa A investigação licenciamento mesmo do chefe de gabinete
considerou que a coloca João da obra. Aliás, no do primeiro-ministro, Vítor
alteração legis- Galamba, ex-mi- comunicado de Escária”, algo que “é corro-
lativa aprovada nistro das Infraes- 7 de novembro, a borado pela reconstituição em Lisboa, “mas que na reali-
em Conselho de truturas, como o PGR adiantou que cronológica factual, se feita dade ocorreu em São Bento”,
Ministros, a 19 de “mentor” da ideia, as suspeitas sobre com correção”. residência oficial do primei-
outubro de 2023, isto é, aproveitar a António Costa Já a defesa do ex-chefe de ro-ministro. “Tamanha foi a
ainda que servisse alteração legis- resultavam de gabinete de António Costa leviandade da investigação
para a empresa lativa em curso conversas de ter- considerou que na “falta de ou a vontade de se apimentar
Start Campus con- para, algures no ceiros, que invo- elementos, o Ministério Pú- a estória”, ironizou.
tornar o processo texto, colocar uma caram o seu nome blico permitiu-se construir
de licenciamento norma que pudes- para desbloquear uma estória baseada em su- E DEPOIS DAS ELEIÇÕES?
camarário, fora se ser aplicada procedimentos. posições: a suposição da exis- Como não é expectável que o
uma opção política à Start Campus. tência de um pacto criminoso, Ministério Público no Supre-
e, por isso, não João Tiago Silvei- MARCELO a que se juntou a suposição do mo Tribunal de Justiça tome
constituía crime. ra, ex-secretário REBELO altruísmo” de Vítor Escária, uma posição final sobre as
de Estado, que DE SOUSA “que nada pediu ou aceitou suspeitas de António Costa
QUAL A estava a coorde- PROMULGOU O para si como contrapartida antes das próximas eleições
POSIÇÃO DO nar informalmente DECRETO? para se pôr a cometer crimes”. legislativas ‒ marcadas para
MINISTÉRIO vários diplomas Sim. Mas o Presi- Para o advogado Tiago Ro- dia 10 de março ‒, a próxi-
PÚBLICO? de simplifica- dente da Repú- drigues Bastos, o Ministério ma polémica à volta deste
Os procuradores ção legislativa, é blica fez questão Público considerou que o seu processo terá que ver com
do Departamento suspeito de ter de assinalar que cliente aceitou “as solicitações o tribunal competente para
Central de Inves- colaborado com o diploma apro- de Diogo Lacerda Machado investigar António Costa.
tigação e Ação João Galamba na vado não inclui para abusar da sua influência É que, se enquanto pri-
Penal (DCIAP) introdução da nor- a matéria que junto de decisores públicos”, meiro-ministro dispõe do
defendem a exis- ma, a pedido de cobria operações criticando o facto de a investi- chamado “privilégio de foro”
tência do crime Rui Oliveira Neves, promovidas por gação ter situado uma reunião (a lei determina à partida que
de prevaricação gestor da empresa entidades priva- entre Vítor Escária, Diogo compete ao Supremo Tribu-
no processo que e advogado do das em parques Lacerda Machado e repre- nal de Justiça investigar e jul-
levou à aprova- mesmo escritório industriais. sentantes da Start Campus na gar o Presidente da Repúbli-
sede do PS, no Largo do Rato, ca, presidente da Assembleia

84 VISÃO 11 JANEIRO 2024


da República e primeiro-mi-
nistro por crimes cometidos
no exercício de funções), há
dúvidas sobre o que aconte-
cerá ao processo quando um
novo governo tomar posse.
De acordo com informa-
ções recolhidas pela VISÃO,
no Supremo Tribunal de Jus-
tiça não há um entendimento
claro sobre esta matéria. Um
ex-juiz conselheiro mani-
festou à VISÃO a opinião de
que a investigação deve man-
ter-se na mais alta instância
judicial portuguesa, apesar
de António Costa perder a
qualidade de primeiro-mi-
nistro. “Os factos em causa
foram praticados no exercício
de funções e deve ser nessa
perspetiva que, para determi-
nação da competência, devem
ser enquadrados”, referiu o
magistrado judicial.
Há nove anos, contudo,
apreciando um pedido de
habeas corpus interposto por
José Sócrates, preso preventi-
vamente no âmbito da Ope-
ração Marquês, o então juiz
conselheiro Oliveira Mendes
foi claro numa declaração de
voto ao acórdão que apre-
ciou, ainda que lateralmente,
esta questão: ao estabelecer
a competência do STJ para
julgar os três titulares de ór-
gãos de soberania por crimes
cometidos no exercício de
funções, a lei determina que
isto só possa acontecer quan-
do existam “dois pressupostos
cumulativos”, referiu Oliveira
Mendes, considerando que o
“foro especial” não se aplicava
a José Sócrates por este já não
estar em funções.
Em declarações à VISÃO,
Paulo Saragoça da Matta
adianta uma possível solu-
ção para o problema: “Há um
princípio geral que é a fixação
da competência. O Supremo
já fixou a competência para
esta fase (inquérito) e deve
manter-se até ao fim. Se, en-
tretanto, o processo evoluir
Problema João Galamba
foi apontado como o “mentor”
de um esquema para favorecer
a empresa Start Campus
para outras, como a instrução
ou julgamento, então a com-
petência pode mudar devido
à perda do privilégio de foro.”
Mas, até lá se chegar, a de-
fesa de Vítor Escária já quer
colocar a questão da compe-
tência do tribunal para julgar
este caso o mais rapidamente
possível. No recurso para o
TRL, Tiago Rodrigues Bastos
considerou ser “por demais
evidente que a investigação
visava também o primeiro-mi-
nistro”. Pelo que, continuou,
o juiz do Tribunal Central de
Instrução Criminal praticou
atos num processo cuja com-
petência pertence ao Supremo
Tribunal de Justiça, já que a
“qualidade de primeiro-mi-
nistro” de um dos suspeitos
“comporta implicações para
todos”.
PARTIDO EM TRÊS
Além dos cinco arguidos, ini-
cialmente detidos, o processo
conta com mais quatro: o
ex-ministro das Infraestru-
turas, João Galamba, o presi-
dente da Agência Portuguesa
do Ambiente, Nuno Lacasta,
o advogado, antigo secretário
de Estado da Justiça e ex-
-porta-voz do PS João Tiago
Silveira e a empresa Start
Campus.
João Galamba e João Tia-
go Silveira ainda não foram
ouvidos no processo, mas já
pediram a consulta aos autos,
algo que o Ministério Público
só autoriza nas instalações
do Departamento Central de
Investigação e Ação Penal, não
permitindo cópias de todos os
elementos.
Investigação a Depois da constituição de
António Costa uma equipa especial para a in-
vestigação – que integra ele-
mantém-se mentos da Polícia Judiciária,
no Supremo, Autoridade Tributária e PSP
–, os procuradores decidiram
após a tomada partir a investigação em três
de posse de casos: Lítio, em Montalegre,
um novo Hidrogénio e centro de dados
em Sines. A procuradora-geral
governo? Não da República emitiu uma ins-
há consenso trução, obrigando os investi-
gadores a reportarem-lhe os
entre os juízes desenvolvimento do processo.
conselheiros clima@visao.pt
11 JANEIRO 2024 VISÃO 85
 ---------- ECO N O M I A

Quando os Estados
vão às compras
O Governo mandatou a Parpública para comprar ações dos CTT. O que faz esta entidade
e de que forma os outros países na Europa tentam ter peso junto das empresas?
— POR RUI BARROSO

N
as últimas décadas,
o Estado português
tem assumido mais
a posição de vende-
dor do que de comprador de
participações em empresas.
Tirando algumas exceções
– como resgates e nacio-
nalizações temporárias –,
os CTT foram um dos raros
casos em que o Governo foi
ao mercado adquirir ações de
uma empresa privada. Esta
operação, que ocorreu em
2021, está envolta em polé-
mica. Apesar de as compras
já terem acontecido há mais
de dois anos, esse facto só
agora foi tornado público,
após uma notícia do Jornal
Económico. O Governo tinha
luz verde da Unidade Técnica
de Acompanhamento e Mo-
nitorização do Setor Público
Empresarial (UTAM) para
construir uma posição até
13% e um despacho assinado
pelo então ministro das Fi-
nanças, João Leão, manda-
tou a Parpública para com-
prar, numa primeira fase, até
1,95% da empresa que tinha
sido privatizada no final de
2013. No entanto, o Estado
não foi além dos 0,24%.
Essas compras acontece-
ram numa fase em que o Go-
verno e a empresa de correios
mantinham negociações ten-
sas sobre o novo contrato de

86 VISÃO 11 JANEIRO 2024

 CTT O Governo de António
Costa mandatou a Parpública
para comprar ações da
empresa de correios em 2021

o Estado não ficasse numa Dividendos dos CTT

“situação negocial em que
pudesse estar encostado con- na última década valem 40%
tra a parede, sem nenhuma
alternativa”, de forma a as-
do encaixe com a privatização
segurar que o serviço postal O valor pago pela empresa de correios aos acionistas
universal continuaria a ser corresponde a 85% dos lucros obtidos. Mas as ações estão
prestado. bem abaixo do preço da entrada em bolsa
Para executar essa estra-
tégia, o Executivo ativou a A venda dos de dividendos. os espanhóis
Parpública, uma sociedade CTT era uma das Na última década, da Indumenta
pública que gere algumas das privatizações a empresa Pueri (a dona
participações que o Estado exigidas pela de correios da empresa de
detém em empresas. Esta hol- Troika durante remunerou têxtil infantil
ding foi constituída em 2000, o programa os acionistas Mayoral) e Manuel
sucedendo às empresas esta- de assistência em quase Champalimaud,
tais que tinham ficado a gerir financeira. A €380 milhões, detendo,
alguns dos ativos nacionaliza- forma de o fazer distribuindo cerca respetivamente,
dos no pós-25 de Abril e que foi através de de 85% dos lucros 14,99% e 13,73%.
poderiam vir a ser reprivati- uma entrada em obtidos nesse De acordo com
zados. Geriu as participações bolsa, a única período. um estudo feito
públicas em empresas que alienação feita Apesar dessa pelos CTT no final
eram joias da coroa da eco- pelo Estado nessa política, à medida de 2022, cerca
nomia nacional, como a EDP, altura com recurso que os resultados de 29% do capital
a REN, a Portucel ou os CTT, ao mercado dos CTT iam estava nas mãos
por exemplo. Após o Estado se de capitais. O abrandando, de investidores de
ter desfeito dessas posições – primeiro passo os grandes retalho. Já 42% da
com a última grande onda de consistiu numa investidores base acionista era
vendas durante o programa da oferta pública de internacionais portuguesa.
Troika –, a Parpública passou venda de 70% começaram
a ter um papel mais discreto. E do capital no a reduzir as Críticas
mesmo no regresso da TAP à final de 2013, que participações, da Anacom
esfera pública – empresa que atraiu cerca de 25 levando as ações Desde a
tinha figurado na carteira da mil investidores, da empresa de privatização, os
holding estatal antes da pri- muitos deles correios a perder CTT têm sido
vatização de 2015 –, a holding de retalho. Em fulgor. Em 2013, o alvo de críticas e
viu o controlo da companhia setembro de 2014, ano que marcou multas por parte
aérea ficar na Direção-Geral foram vendidos a preparação da Autoridade
do Tesouro e das Finanças os restantes para a entrada em Nacional de
D.R.

(DGTF). 30% diretamente bolsa, a empresa Comunicações

a investidores de correios (Anacom), com
institucionais. No tinha registado o regulador a
concessão e em que o Execu- total, o Estado um lucro de considerar que
tivo tentava ainda convencer conseguiu um €77 milhões. a empresa tem
o PCP e o Bloco de Esquerda encaixe de €909 Em 2022, data ficado aquém
a deixar passar o Orçamento milhões com esta dos dados do do acordado
do Estado para 2022. A ope- transação. último exercício no contrato
ração foi alvo de críticas. “Foi Logo após a completo, esse de concessão.
feita à socapa, para satisfazer A Parpública privatização, valor tinha Em maio do
um negócio político no Par-
lamento com os partidos da
já teve sob gestão os principais
acionistas
encolhido em
mais de metade,
ano passado,
por exemplo,
extrema-esquerda”, acusou participações passaram a para €36,4 a Anacom
o líder do PSD, Luís Monte- em joias da coroa ser bancos de milhões. Já as considerou
negro. Por seu lado, o então investimento e ações valem que “todos os
ministro das Infraestruturas da economia gestoras de ativos, atualmente menos indicadores
e atual secretário-geral do PS, portuguesa, como o Goldman 35% do que os de qualidade
Pedro Nuno Santos, defendeu
que a decisão foi uma forma
como a EDP, Sachs, o Deutsche
Bank, a Standard
€5,52 a que foram
vendidas no final
de serviço se
encontram aquém
de limpar a “asneira” que foi a a REN Life e a Allianz de 2013. dos respetivos
privatização. Já António Cos- e a Portucel, Global Investors, Atualmente, os objetivos de
ta justificou a opção de ir ao atraídos pela maiores acionistas desempenho
mercado adquirir ações dos que foram generosa política da empresa de fixados para o ano
CTT por “cautela” e para que privatizadas de distribuição correios são 2022”.

11 JANEIRO 2024 VISÃO 87

 ---------- ECO N O M I A

Dos milhões na Galp

à coudelaria de Alter. Quais
os ativos da Parpública?
A sociedade de gestão de participações públicas está presente
em ramos de atividade como o imobiliário, a agricultura e a saúde.
É ainda responsável pela participação estatal na Galp
Galp do Instituto da Imprensa Nacional
A participação de Habitação e da Casa da Moeda,
8,02% na Galp é Reabilitação Urbana empresa que
uma das joias da (IHRU), pouco mais produz documentos
coroa na carteira de 2% da Lisnave e como o Cartão
da Parpública, 1% da TAP SGPS, a de Cidadão ou o
a segunda antiga dona da TAP passaporte e que
maior acionista S.A. cunha moedas
da petrolífera correntes e de
portuguesa. Essa Imobiliário coleção.
posição tem, aos A Parpública é
preços atuais, um responsável, desde Mercados
valor de mercado meados do ano abastecedores
de cerca de €800 passado, pela A empresa que
milhões. gestão integrada de gere participações
imóveis públicos. públicas é dona
Comboios e um Tem 100% da ainda da Simab,
autódromo Estamo, a entidade que tem posição
A Parpública que vende, arrenda maioritária
detém a 100% a e promove os ativos nos mercados
Sagesecur, empresa imobiliários não abastecedores das
proprietária estratégicos do regiões de Lisboa,
dos comboios Estado e que tem Braga, Faro e Évora.
e carruagens mais de €1 000
utilizados na milhões sob gestão. Agricultura e
travessia da Ponte Controla também florestas
25 de Abril, e a Fundiestamo e A Parpública é
também tem a a Arco Ribeirinho também a dona
totalidade do capital Sul, empresa da Companhia das
do Circuito do responsável pela Lezírias, que se
Estoril. requalificação de assume como “a
áreas ribeirinhas de maior exploração
Hospital da Cruz Almada, Barreiro e agropecuária e
Vermelha e Inapa Seixal. florestal existente Apesar das posições que que estão atualmente no seu
Apesar de não ter a em Portugal”, foram sendo alienadas nas portefólio, tais como a Im-
maioria do capital, Águas compreendendo a últimas décadas, a Parpública prensa Nacional – Casa da
a Parpública detém 81% do capital da sua área a Lezíria continua a ter uma carteira Moeda, a Águas de Portugal
mais de 40% da Águas de Portugal de Vila Franca de valiosa. Segundo as contas ou o Autódromo do Estoril”,
sociedade que está nas mãos Xira, a Charneca mais recentes, relativas ao diz Nuno Fernandes, profes-
gere o Hospital da da Parpública. do Infantado e o final de junho do ano passa- sor catedrático de Finanças
Cruz Vermelha e da Os restantes 19% Paul de Magos. do, a holding tinha um ativo no IESE Business School, em
Inapa, uma empresa pertencem à Caixa A empresa tem
de distribuição de
superior a €10 000 milhões, Espanha, à VISÃO.
Geral de Depósitos ainda a concessão muito à conta do controlo
papel e embalagens. e existiu a intenção da Coudelaria de
da Águas de Portugal e da ESTADOS COMPRADORES
de transferir esta Alter, onde são
Participações participação de 8% na Galp O negócio com as ações dos
participação do criados cavalos
minoritárias banco público puro-sangue
Energia. A holding tem ainda CTT interrompeu a aparente
A sociedade estatal para a sociedade lusitano e algumas
investimentos relevantes no discrição mantida pela Par-
gere também que gere as ofertas turísticas. A imobiliário, na agricultura, pública nos últimos anos.
posições mais participações sociedade gestora nas florestas e na saúde (ver Não tanto pela dimensão,
pequenas em estatais. de participações do caixa). Mas tem sido mais um mas mais pelo simbolismo
algumas empresas. Estado detém ainda veículo de parqueamento de de o Estado ativar o seu bra-
Além dos 0,24% Cunhagem de 100% da Florestgal, participações do que de ges- ço financeiro para comprar
detidos nos CTT, moeda a primeira empresa tão estratégica das participa- ações de uma empresa pri-
a Parpública tem A Parpública pública de gestão ções públicas. “Não consigo vada cotada em bolsa. As 355
também 5% da tem também a e desenvolvimento ver quaisquer sinergias entre 126 ações da empresa de cor-
MGI Capital, 4,77% totalidade da florestal. os negócios das empresas reios – que correspondem a

88 VISÃO 11 JANEIRO 2024


0,24% do capital – valem, aos
preços atuais, €1,26 milhões
de euros. Os valores da aqui-
sição não foram divulgados,
mas tendo em conta a co-
tação média dos títulos em
setembro e outubro de 2021,
o Estado terá investido cerca
de €1,69 milhões.
O investimento estatal em
empresas privadas é um tema
longe de ser consensual. No
passado, em Portugal, a in-
terferência política já contri-
buiu para resultados negati-
vos, como a decisão de forçar
uma fusão entre a Portugal
Telecom e a Oi. A Comissão
Parlamentar de Inquérito
à Gestão da TAP também
mostrou diversas ingerên-
cias na empresa. “Penso que
está à vista de todos que a
Galp A Parpública ainda
detém 8% da petrolífera
portuguesa, uma participação
que vale €800 milhões
intervenção do Estado nes-
sas empresas, e em muitas
outras, tem sido ruinosa para
os contribuintes”, considera
Nuno Fernandes.
Ainda assim, quando es-
tão em causa interesses es-
tratégicos, há governos que
vão a jogo. Em Espanha, por
exemplo, o executivo lide-
rado pelo socialista Pedro
Sánchez autorizou, no final
do ano passado, a Socieda-
de Estatal de Participações
Industriais (SEPI) a comprar
até 10% da Telefónica, para
servir de contrapeso à entra-
da do fundo soberano saudi-
ta na gigante das telecomu-
nicações. Também noutras
nações, como a Alemanha,
França e Itália, por exemplo,
há participações públicas em
empresas deste setor.
A SEPI é ainda investido-
ra de referência na empresa
que gere a rede elétrica, na
gigante alimentar Ebro Foods
e detém posições, entre 2%
e 5%, na Enagás, na Airbus
e na IAG, empresa de avia-
ção que junta a Iberia e a
British Airways e que é uma
das candidatas à compra da
TAP. Também em França, o
Estado é acionista de grandes
empresas, através do Banque
Publique d’Investissement.
D.R.
Além da operadora Orange,
existem ainda participações
públicas relevantes no setor
de semicondutores, na cons-
trutora automóvel Stellantis
e na siderúrgica Vallourec,
por exemplo.
Já na Alemanha, o pode-
roso banco de desenvolvi-
Em Espanha, mento KfW, além da parti-
Pedro Sánchez cipação de 16,6% na maior
deu ordem operadora de telecomunica-
ções, detém 20% da empresa
para a compra de serviço postal germânica.
de até 10% A instituição financeira assu-
miu uma função importante
da Telefónica. durante a pandemia, ope-
França racionalizando os apoios à
e Alemanha Lufthansa. Também teve um
papel essencial para ajudar
também têm sido a mitigar os efeitos da crise
interventivos energética causada pela inva-
são da Rússia à Ucrânia, sal-
em empresas vando empresas de energia e
estratégicas financiando os investimentos
necessários para diminuir a
dependência do gás russo.
Antes disso, o KfW tinha
já servido de ponta de lança
do governo alemão para tra-
var as pretensões de Pequim
em torno de empresas es-
tratégicas. Em 2018, a State
Grid – que ficou com 25% da
REN – queria comprar 20%
da 50Hertz, que opera a rede
de eletricidade do Norte e do
Leste da Alemanha. Mas o
banco de fomento germânico
teve ordem do executivo para
comprar essa participação de
forma a bloquear o interes-
se chinês. Durante a crise de
dívida soberana e nos anos
que se seguiram, Pequim foi
um investidor ativo no Velho
Continente, tendo procurado
empresas em saldo nos países
alvo de resgates financeiros ou
noutros mercados. Em Portu-
gal, por exemplo, a China con-
seguiu comprar mais de 20%
da EDP e da REN. Na Grécia,
Pequim ficou com o controlo
do estratégico porto de Pireus.
Apesar de a Comissão Eu-
ropeia ter sido uma das en-
tidades que nessa crise exi-
giram agressivos programas
de privatização aos países
que pediram resgates, nos
últimos anos tem aprova-
do medidas para dificultar
compras vindas de Pequim.
Isso também se tem refle-
tido na atuação de alguns
Estados. Se, na Alemanha, o
KfW já foi posto ao serviço
para bloquear investimento
chinês, em França, Macron
tem dado mais poder ao Es-
tado para proteger empre-
sas estratégicas. Seja através
da entrada no capital destas
entidades ou da adoção de
golden shares, que com uma
quantidade pequena de ações
permite ao governo ter poder
de veto na entrada de novos
investidores na entidade em
questão. E dada a concor-
rência estratégica cada vez
mais aguerrida entre os di-
versos blocos económicos,
não seria surpreendente que
a intervenção dos Estados em
empresas se intensificasse.
rbarroso@exame.pt
11 JANEIRO 2024 VISÃO 89
 O P I N I ÃO
Ventura torce
por Pedro Nuno?
Filipe
O
ra vamos lá falar de cenários
pós-eleitorais. E centremos
Luís a discussão no elemento que
mais ruído vai provocar em
campanha e naquele que mais
condicionará as estratégias e os discursos,
à esquerda (no PS, que agitará o papão da
extrema-direita) e à direita (no PSD, que
será pressionado pelas escolhas pós-10 de
março): André Ventura e o Chega.
Cenário um: O PS ganha as eleições, mas
a direita, no seu conjunto, dispõe de uma
maioria parlamentar. Luís Montenegro,
porém, cumprindo a sua promessa de
que não avançaria se não ficasse em
primeiro, não se mexe. O Presidente
— Editor-executivo
da República indigita o líder do partido
mais votado, Pedro Nuno Santos, como
primeiro-ministro. Mas, na apresentação
do programa de governo, uma moção de
rejeição lançada pela direita (pelo CDS...)
é aprovada e o governo não passa. Pedro
Nuno mantém-se como chefe do governo
de gestão, enquanto Luís Montenegro vai
construindo um executivo alternativo, à
direita, negociando, então, com IL, CDS
GOLPE DE VISTA e... Chega. O líder do PSD cumprirá,
formalmente, a sua promessa de que não
AD ENVERGONHADA
OU SEM VERGONHA
quis ser primeiro-ministro, porque não
A ser verdade que ganhou as eleições. Mas agora, visto que
o CDS (e o PSD) o PS não conseguiu fazer passar o seu
pretendem apagar governo, considera-se libertado dessa
da fotografia da AD obrigação. (Ou então, sai de cena e outra
histórica a figura figura do PSD faz o arranjinho.) André
de Diogo Freitas Ventura ganha.
do Amaral, estamos Cenário 2: O PSD fica em primeiro
perante, não apenas lugar em número de votos e de mandatos
uma vigarice política, – ou, pelo menos, em número de votos.
mas também um Luís Montenegro é o líder do partido mais
problema moral. Sá votado e tem o caminho livre, porque
Carneiro, Freitas e existe uma maioria de direita (que inclui
Gonçalo Ribeiro Telles o Chega). Mas Montenegro, indigitado
foram os três vértices pelo Presidente Marcelo, e cumprindo a
de um triângulo que sua promessa eleitoral, não conversa com
tornou a AD de 1979 o Chega, limitando-se a garantir o apoio
e de 1980 possível. de IL e CDS, incluindo estes partidos no
E são eles, por igual,
seu governo. Deixa ao Chega o ónus de
os expoentes de uma
apoiar ou de rejeitar um governo de direita.
marca que se tornou
uma superbrand
Como não foi chamado, André Ventura,
política. É preciso cumprindo a sua promessa, apresenta uma
descaramento – e moção de rejeição. No entanto, como o PS
uma grande dose de não tem maioria à esquerda e, portanto,
estalinismo – para não tem uma alternativa de governo, Pedro
varrer do “boneco” o Nuno mantém-se fiel à filosofia de 2015 e
histórico fundador do não apresenta qualquer moção. A moção do
CDS e cofundador Chega é rejeitada com os votos contra da
da democracia restante direita e a abstenção da esquerda
portuguesa. – que jamais apoiará qualquer iniciativa do
90 VISÃO 11 JANEIRO 2024
Chega. O executivo passa. Fica provado que
é possível haver um governo de direita, em
Portugal, sem o Chega. E André Ventura
perde.
Cenário 3: O PSD ganha as eleições,
mas não há maioria de direita no
Parlamento. Pedro Nuno Santos anuncia
que apresentará uma moção de rejeição
a qualquer governo liderado pelo PSD e
começa a trabalhar numa nova Geringonça
à esquerda. Marcelo Rebelo de Sousa, fiel ao
seu próprio critério, seguido na sequência
das eleições açorianas de 2021, não perde
tempo a indigitar um primeiro-ministro
sem hipóteses, e “nomeia” (como Cavaco
fez com Costa, em 2015...) Pedro Nuno
Santos para formar governo, mas exigindo,
como Cavaco, acordos escritos, dentro
de determinadas “baias”. E a direita (por
maioria de razão, André Ventura) perde.
Cenário 4: Independentemente de quem
fica em primeiro lugar, há uma maioria
à direita, mas o PSD recusa falar com
o Chega. Um governo de esquerda não
tem viabilidade. E um governo de direita,
liderado pelo PSD, conta com uma moção
de rejeição do Chega – que só o Chega vota
favoravelmente. Mas aparece outra moção
de rejeição, do PS, aprovada por toda a
esquerda e que beneficia da abstenção do
Chega. O Presidente da República que, ao
contrário de Cavaco, em 2015, mantém
intactos todos os poderes constitucionais,
incluindo o de dissolução da AR – deixa
passar os prazos constitucionais para
marcar novas eleições. Mantém-se em
gestão o primeiro-ministro indigitado,
Pedro Nuno Santos ou Luís Montenegro
(ou nenhum deles, caso nem sequer
haja condições, à partida, para indigitar
ninguém, e António Costa continua…).
Neste cenário – o mais improvável –, André
Ventura empata.
Em todos estes cenários (em que, por
razões de espaço, se ignora o que os resul-
tados de partidos como o Livre e o PAN
poderiam provocar), é preferível, para o
Chega, uma vitória de Pedro Nuno Santos,
desde que haja uma maioria de direita. E
em nenhum caso uma vitória de Montene-
gro lhe será útil. E foi por isso que Marcelo
Rebelo de Sousa, o jogador de xadrez, pre-
vendo todas as complicações pós-eleitorais,
não quis dissolver o Parlamento enquanto
o País não dispusesse de um Orçamento
aprovado, que qualquer governo de gestão,
de qualquer partido, terá de seguir. Marcelo
já garantiu a governabilidade. fluis@visao.pt
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DO MONTE BRANCO
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João Carlos Mendes (Grafismo), Manuel Barros Moura (Radar)
e Pedro Dias de Almeida (Cultura)
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Redatora Principal e Grandes Repórteres: Mafalda Anjos, Com 200 anos de tradição na produção de
Carlos Rodrigues Lima, José Plácido Júnior e Rosa Ruela vinho, é também das oliveiras desta Herdade,
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(Coordenadora VISÃO Se7e/Porto), Joana Loureiro, João Amaral Santos, Luísa
muitas delas centenárias, que nascem os
Oliveira, Luís Ribeiro (Coordenador Ambiente), Margarida Vaqueiro Lopes, Mariana azeites que celebram à mesa a alegria dos
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Nunes, Rui Antunes, Rui Barroso, Sandra Pinto, Sara Rodrigues, Sara Santos,
Sílvia Souto Cunha, Sónia Calheiros e Susana Lopes Faustino
em packs para ofertas.
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Por Susa Monteiro

Ilustradora nascida cinco anos após o 25 de Abril, na cidade de Beja, onde ainda hoje
vive. Faz livros e capas para diversas editoras e colabora, regularmente, com a Imprensa
nacional. Na VISÃO, o seu traço acompanha, há muitos anos, as crónicas dos escritores

114 VISÃO 11 JANEIRO 2024

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