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REPORTAGEM O INFERNO DA DROGA VOLTOU AO CASAL VENTOSO

A NEWSMAGAZINE MAIS LIDA DO PAÍS HÁ 31 ANOS WWW.VISAO.PT

MARIANA
VIEIRA DA SILVA JUSTIÇA
“O MUNDO OS ESQUEMAS
NÃO NASCE E AS AMIZADES
QUANDO DE MANUEL
ENTRA UM SERRÃO
GOVERNO
NOVO”
N.º 1621 . 28/3 A 3/4/2024

A CIÊNCIA CONTRA
A PERDA DE MEMÓRIA
Como o cérebro seleciona aquilo de que nos lembramos. O impacto nocivo
da desinformação. As estratégias para fortalecer a mente e prevenir o seu declínio
A AMNÉSIA COLETIVA AFETA AS ESCOLHAS POLÍTICAS?
NOVO E-2008
100% ELÉTRICO

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AUTOMÓVEL MAIS
ANO CONSECUTIVO
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Autonomia elétrica até 568 km em ciclo urbano WLTP.


Consumo de energia combinado kWh/100 km: 14,2- 16,7 (WLTP). Emissões combinadas de CO₂ (g/km): 0.
Para mais informações consulte peugeot.pt.
*
Desde 2021. Dados ACAP.
NotíciasFlix

28 MARÇO 2024 --- Nº 1621


VISÃO
ENTREVISTA
Rui Nunes .......................10

RADAR
A semana
em 7 pontos
O que acontece na
Rússia não fica na Rússia
.............................................. 14
Holofote
VISÃO SETE
Kate Middleton .............. 16
Cafés históricos,
Raio-X de Braga a Loulé ........... 92
Chocolate amargo ......... 17
Celebrar Abril em abril

LUÍS BARRA
Periscópio ........................................... 102
Medina puxa dos galões
Receitas para a Páscoa
.............................................. 19
........................................... 106
Próximos capítulos
Ayuso, uma estrela em A droga voltou em força ao Casal Ventoso ............ 56
Moda portuguesa
Nos últimos cinco anos, a encosta do vale de Alcântara, em Lisboa, voltou e cheirinho a café,
apuros............................... 20
em Cascais .................... 108
a ser lugar de eleição para traficantes e consumidores. Um problema de
Fotos com História
saúde pública, que precisa de mais investimento para ser resolvido
Na cama pela paz.......... 24
OPINIÃO
Transições O grande “puzzle” da memória humana .............. 30
José Eduardo
Maurizio Pollini, gigante À medida que se desvendam os mistérios sobre o funcionamento da Agualusa
dos teclados .................... 26 A convicção do impostor
memória e o impacto das ameaças a que ela está exposta, novos estudos
................................................6
Imagens apontam caminhos para preservar e fortalecer a nossa “casa das histórias”
Dias de celebração ....... 28 Rui Tavares Guedes
Governar cá dentro
O primeiro dia do resto da vida do novo ciclo .... 42
com os olhos lá fora .......8
FOCAR Os planos de Marcelo para evitar novas dissoluções, as primeiras medidas
A corte de Manuel de Luís Montenegro, as estratégias de Pedro Nuno Santos e o legado Pedro Marques Lopes
Serrão ............................... 82 de António Costa. Ainda uma entrevista com a ministra cessante É preciso muita coragem
Mariana Vieira da Silva para pertencer
Quando a “Ciência” ao Governo ...................... 18
é uma fraude .................. 88
Daesh-K, o regresso da ameaça terrorista ............ 66 Bernardo Pires
Assoberbada pelo conflito ucraniano, a Rússia de Putin descurou de Lima
as ameaças fundamentalistas e Moscovo foi palco do pior atentado Provas de vida................ 22
em duas décadas José Carlos
de Vasconcelos
A guerra civil nos EUA já começou? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 0 Alguns “sinais” ............. 90
O ensaísta canadiano Stephen Marche lança um alerta, num livro Visão da Liberdade
agora editado em Portugal, sobre o futuro próximo nos Estados Unidos Marta Torrão ..................114
da América. Os preparativos para uma nova guerra civil estão em curso,
sustenta
Interdita a reprodução,
mesmo parcial, de textos,
O adeus aos juros negativos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78 fotografias ou ilustrações
O Banco do Japão foi o último a acabar com a política de taxas abaixo sob quaisquer meios,
e para quaisquer fins,
de 0%, que vigorou durante mais de uma década em algumas grandes inclusive comerciais.
economias. Esta experiência monetária funcionou?

w w w.visao.pt
ONLINE Henrique Costa Luís Delgado Margarida Vaqueiro
Santos LINHAS DIREITAS Lopes
Últimos CAFÉ CENTRAL Os mortos OPINIÃO
artigos Passas de Putin I am so sorry, Kate.
no site da do Allgarve Perdemos
VISÃO todos a noção

28 MARÇO 2024 VISÃO 3


---------- L I N H A D I R E TA

31 anos com VISÃO


– CORREIO D O LEI TOR

Subscreva
Celebramos esta semana 31 anos da VISÃO, cujo primei- as nossas
ro número foi para as bancas a 25 de março de 1993. São
mais de três décadas da newsmagazine mais lida do País e, newsletters
sobretudo, de um compromisso com o jornalismo livre e A melhor informação,
independente que, todos os dias, procuramos renovar. gratuitamente, na sua
caixa do correio.
www.visão.pt
1993 1994 1995 1996 1997
ANTEVISÃO
VISÃO SETE
VISÃO PLUS Os jogos de sorte
VISÃO VERDE por vezes dão azar
– Diamantino Reis
Portimão

1998 1999 2000 2001 2002 ELEIÇÕES


Como emigrante, sinto uma
enorme tristeza e vergonha
Nas bancas alheia ao constatar o número
de compatriotas pelo mundo
que, num ato xenófobo, ran-
coroso e egoísta, votaram, ira-
dos, num partido de extrema-
2003 2004 2005 2006 2007 -direita. Com superioridade e
total falta de empatia, defen-
dem a expulsão e a exclusão
de outros que detêm estatuto
igual. Talvez lhes saia o tiro
pela culatra no esquecimento
de que “não devem fazer aos
AUTOIMUNES outros o que não gostariam
As novas descobertas que lhes fizessem”.
2008 2009 2010 2011 2012
– Hugo Rodrigues Madeira
Catalunha, Espanha

VOTOS OU DEPUTADOS
No distrito da Guarda, a AD
recebeu 29 033 votos ele-
gendo um deputado, enquan-
to o Chega só precisou de 15
2013 2014 2015 2016 2017 821 votos para eleger o mes-
mo número. Para quando a
revisão da lei eleitoral alteran-
do o método de conversão?
– Ademar Costa
MANUEL ALEGRE Póvoa de Varzim
As memórias do escritor

2018 2019 2020 2021 2022

--------
Contactos
visao@visao.pt
As cartas devem ter um máximo
de 60 palavras e conter nome,
morada e telefone. A revista
reserva-se o direito
2023 2024 de selecionar os trechos que
considerar mais importantes.

Morada
JOANA RIBEIRO
CORREIO: Av. Jacques Delors,
Entrevista-perfil
Edifício Inovação 3.1, Espaço
com a atriz
nº 511/512, 2740-122 Porto Salvo

4 VISÃO 28 MARÇO 2024


NEM TUDO
É FICÇÃO
A convicção
do impostor
José

N
Eduardo a televisão destacava-se a
Agualusa figura flamejante de Donald
Trump, dirigindo-se a uma
multidão de seguidores, todos
eles com a cabeça coberta por
bonés vermelhos, nos quais se podia ler a
frase “Make America Great Again”.
‒ Há línguas entrando no nosso país! ‒
alertava Trump, agitando no ar as delicadas
mãozinhas de veludo. ‒ E não temos um
único especialista, em toda a nossa pode-
rosa nação, que possa falar essas línguas.
São idiomas… É a coisa mais louca… Eles
— Escritor
têm idiomas que ninguém neste país nunca
ouviu falar. É uma coisa muitíssimo hor-
rível mesmo. São línguas verdadeiramente
estrangeiras.
Samuel, terminou de beber o café, ator-
doado, agoniado, horrorizado, enquanto,
a milhares de quilómetros de distância, a
multidão aplaudia o extraordinário discur-
so do ex-Presidente norte-americano. Um
empregado aproximou-se, solícito, da sua
mesa:
‒ Então, meu jovem, hoje não vai querer
um pastelzinho de nata?
Samuel disse-lhe que não. Pediu a conta
e saiu do café pensando naquelas línguas
verdadeiramente estrangeiras, línguas os candidatos e, se entendesse que estes
inominadas, que cruzavam furtivamente a cumpriam todos os restantes requisitos,
fronteira para atacarem, talvez durante o passava-lhes a chamada.
— Há línguas sono, à traição, os infelizes norte-america- Naquela manhã, Pablo encontrou um
entrando no nos monoglotas. candidato que parecia ideal. Era brasileiro,
nosso país! Ele, Samuel, desprezava (discretamen-
te) os monoglotas. Nascera em Estocol-
carioca, residia em Lisboa, e não se hor-
rorizou com o ordenado proposto (todos
— alertava mo, filho de uma sueca e de um imigrante os suecos se horrorizavam). Além disso,
Trump, português, e estudara numa escola francesa. segundo contou, vivera muitos anos na
Assim, falava com fluência o sueco, o por- Suécia, saltando de cidade em cidade, de
agitando no ar tuguês, o francês e ainda, como toda a gente maneira que conhecia bem o país, falando o
as delicadas hoje em dia, o inglês. Além disso, estudara sueco quase com a mesma segurança com
mãozinhas russo e chinês na faculdade.
Passara um ano em Pequim, aperfei-
que falava português.
‒ Em princípio, o senhor cumpre todos
de veludo. — çoando o idioma, e depois, aos 23 anos, de- os requisitos ‒ disse-lhe Pablo. ‒ Vou agora
E não temos cidira radicar-se em Lisboa, onde a família passar a um colega meu, apenas para que
mantinha um apartamento. Gostava de sol, confirme a sua fluência no idioma. Pode
um único de surf e de pastéis de nata. ser?
especialista, Conseguira emprego numa empresa de O candidato não pareceu nem um pouco
em toda a recrutamento e seleção, onde poliglotas intimidado:
ILUSTRAÇÃO DE SUSA MONTEIRO

como ele eram valorizados. O trabalho de ‒ Com certeza, amigo. Pode passar.
nossa poderosa Samuel consistia em entrevistar candidatos Samuel cumprimentou-o em sueco.
nação, que a determinados empregos, de forma a com- Ninguém lhe respondeu. O jovem refez a
provar a fluência dos mesmos em sueco. pergunta, e de novo não obteve resposta
possa falar Um outro colega, Pablo, de nacionalidade alguma. Ensaiou outras, e todas foram aco-
essas línguas argentina, mas que falava um português lhidas da mesma forma ‒ por um vasto si-
perfeito, fazia um primeiro contacto com lêncio. Finalmente, escutou um atordoado,

6 VISÃO 28 MARÇO 2024


OK! OK! OK! Desistiu, sacudindo a cabeça, Riram-se ambos, às gargalhadas. Nessa O candidato
ao mesmo tempo que passava o telefone a
Pablo:
noite, já em casa, saboreando um pastel de
nata enquanto voltava a ver, no telejornal,
carioca tinha
‒ Lamento, Pablo, o gajo não fala sueco… Donald Trump insurgindo-se contra os idio- de sobra
Pablo esforçou-se por ser delicado: mas muitíssimo estrangeiros que ameaçam a aquilo que
‒ Sinto muito. O senhor não falou nada grandeza da América, Samuel voltou a lem-
com o meu colega. Deduzo que não fale brar-se do episódio com o candidato carioca. a ele lhe faltava
sueco… Pensando melhor, parecia-lhe que Pablo — convicção.
O homem tossiu. Depois, baixando a
voz, quis saber se o colega supostamente
hesitara ao informá-lo da suspeita do outro.
Talvez durante aquele brevíssimo instante
Um aldrabão
sueco ‒ ele disse “supostamente sueco” ‒ tivesse acreditado no candidato; agora, tam- convicto é
estava escutando a conversa. Não, elucidou bém a gargalhada do colega lhe parecia falsa. capaz de tudo,
Pablo, não estava. No dia seguinte, no trabalho, repa-
‒ Vou ter de ser franco com você ‒ disse rou, ou julgou reparar, que os colegas lhe inclusive de
o candidato com uma voz firme. ‒ Não lançavam olhares suspeitosos. Calavam-se desacreditar
conversei com o seu colega porque ele não
estava falando sueco comigo. Ele não fala
de repente quando ele surgia. Dia após dia,
Samuel foi perdendo a fé nele próprio. O
a realidade
uma palavra de sueco, entendeu?! Está sa- sueco começou a parecer-lhe uma língua
caneando todo o mundo aí. verdadeiramente estrangeira. Começou a
‒ Como?! sentir-se ele próprio verdadeiramente es-
‒ É um mentiroso, esse cara! Nem uma trangeiro.
palavra! O candidato carioca tinha de sobra
Pablo desligou o telefone. Voltou-se para aquilo que a ele lhe faltava ‒ convicção. Um
Samuel: aldrabão convicto é capaz de tudo, inclusive
‒ Ele diz que tu não falas sueco. de desacreditar a realidade. Pensou de novo
‒ Não falo sueco, eu?! em Trump e, dessa vez, não se riu.
‒ Nem uma palavra! visao@visao.pt

28 MARÇO 2024 VISÃO 7


E D I TO R I A L

Governar cá dentro
com os olhos lá fora

A
Rui penas cinco meses depois das tência. Já se viu, aliás, na forma como começou a
Tavares eleições legislativas de 2019, o País
entrou em confinamento, à seme-
responder aos atentados terroristas nos arredo-
res de Moscovo.
Guedes lhança do resto da Europa, devido O regresso da ameaça terrorista islâmica é
ao crescimento acelerado de casos outro foco de preocupação, com os sinais de
de Covid-19. Menos de três semanas depois das alarme a soarem de forma estridente em países
eleições de 2022, as tropas russas invadiram a como a França e a Bélgica. Mas também, mais
Ucrânia e, de um dia para o outro, as ondas de uma vez, com as ondas de choque desse alar-
choque do conflito vieram somar mais um grau mismo e preocupação a poderem ter efeitos
elevado de incerteza política e económica, num nefastos na economia do continente e, acima de
mundo que tentava recuperar do desgaste da tudo, a criarem maior instabilidade política, fa-
pandemia. vorecendo os grupos mais populistas e radicais.
Em qualquer dos casos, estes dois aconteci- É neste contexto, particularmente volátil e
mentos de transcendência internacional marca- perigoso, que o novo Governo vai iniciar fun-
ram, de forma profunda, os últimos dois gover- ções. Vem carregado de promessas de mudan-
— Diretor
nos liderados por António Costa. Obrigaram a ça e, para já, com um consenso alargado, e até
refazer planos, alterar prioridades, procurar um surpreendente, em relação a algumas medidas
maior alinhamento com os parceiros internacio- destinadas a aumentar os rendimentos de vários
nais e, inevitavelmente, a responder com muito grupos profissionais. O que não é suficiente para
maior empenho às situações de emergência ter vida longa. Nem isso nem apresentar bons
que entretanto iam surgindo, em detrimento de resultados na economia, como se viu agora com
qualquer objetivo estratégico de longo prazo. o brilharete do excedente deixado por Fernando
Aqueles dois momentos revelaram igual- Medina ‒ que de pouco serviu para o resultado
mente como a conjuntura mundial tem hoje eleitoral do PS em 10 de março.
um papel cada vez mais importante e decisivo A verdade é que muita da realidade interna
para qualquer governo. O que não deixa de ser vai estar dependente do contexto internacio-
uma ironia dos novos tempos: ganham-se elei- nal dos próximos meses. O que não diminui a
ções com propostas de consumo interno, mas responsabilidade do Governo que agora inicia
os tempos de governação estão cada vez mais funções. Antes pelo contrário: vai exigir, isso
condicionados pelo que acontece no resto do sim, a constituição de um grupo coeso, com faro
mundo. Com uma agravante: ao contrário do político e que saiba ler os sinais da conjuntura
que sucedia anteriormente (choque petrolífero mundial. É isso que exigem os tempos atuais:
de 1973 ou o crash financeiro de 2008), as crises governar para dentro, mas sempre a olhar para o
sucedem-se agora a um ritmo muito mais rápi- que se passa lá fora.
do, sobrepondo-se até umas às outras. E têm um
efeito de contágio quase instantâneo e global. PEDIDO DE DESCULPA ‒ Nas últimas se-
Esta incerteza permanente a nível mundial manas, devido a uma sucessão de ocorrências
e o desequilíbrio constante entre os planos que na nossa cadeia logística, a edição impressa da
se fazem a nível interno e as convulsões que VISÃO não foi entregue a todos os assinantes ou
chegam de fora ‒ num tempo em que as redes chegou com demasiado atraso à maioria deles.
sociais e a paisagem mediática privilegiam o Embora a redação da VISÃO não tenha qual-
imediatismo e exploram a intolerância ‒ tornam quer responsabilidade nesse erro grave, quero
Ganham-se mais difícil a vida de qualquer governo. Por isso, deixar aqui o meu pedido de desculpa por esta
eleições com nos países onde se realizam eleições livres é cada
vez mais difícil um partido conseguir sobreviver
triste ocorrência. E, se me permitem, reafirmar
o nosso apelo à compreensão dos muitos milha-
propostas de no poder ‒ e ainda mais raro fazê-lo com uma res de leitores com quem, há anos, mantemos
consumo interno, maioria robusta, sem necessitar de coligações. uma relação de confiança ‒ que não desejamos
O grau de incerteza internacional é hoje ele- ver quebrada. Os nossos muitos milhares de
mas os tempos de vado para qualquer governo, seja qual for a di- assinantes são, na semana em que celebramos
governação estão mensão do país. E é uma sombra omnipresente 31 anos de existência, o núcleo mais forte de
cada vez mais para o Executivo que Luís Montenegro vai agora
apresentar e liderar. Já se percebeu que, a leste,
leitores da VISÃO. É a pensar neles, em primei-
ro lugar, que todas as semanas produzimos a
condicionados Vladimir Putin vai aproveitar qualquer pretexto revista. É por eles que queremos continuar a fa-
pelo que acontece para tentar alargar o conflito agora confinado à zer aquilo que nos distingue: um jornalismo de
Ucrânia. E, à sua maneira, cavalgar cada foco de qualidade, independente, livre e o mais possível
no resto incerteza para ajudar a dividir a Europa e, dessa rigoroso. Vamos continuar este caminho, juntos.
do mundo forma, enfraquecer o apoio a Kiev e à sua resis- rguedes@visao.pt

8 VISÃO 28 MARÇO 2024


OS NOSSOS CLIENTES, O AMBIENTE
E A SUSTENTABILIDADE
MERECEM O NOSSO MELHOR!

EPAL distinguida pela ERSAR


PRÉMIO DE EXCELÊNCIA 2023
Serviço de Abastecimento Público de Água ao Consumidor

SELO DE QUALIDADE 2023 Uso Eficiente de Água


SELO DE QUALIDADE 2023 Serviço de Abastecimento Público de Água ao Consumidor

Os “Prémios dos Serviços de Águas e Resíduos” da ERSAR são entregues


às entidades gestoras reguladas que mais se distinguem no seu desempenho
Rui NunesMédico e professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

Se médicos, engenheiros
e sociedade, em geral, não
sabem como a Inteligência
Artificial toma uma decisão,
então como sabemos nós que
estamos a ir na direção certa?
Se houver uma falha, de quem
é a responsabilidade?
— P O R R U I AN T U N ES T E X TO E LU Í S BARR A FOTO
O
O primeiro doutorado em Bioética
em Portugal dirige, desde setembro,
a mais prestigiada organização in-
ternacional desta área do saber, cen-
trada em direitos humanos, dos ani-
mais e no ambiente. Ex-presidente
tão como sabemos nós que estamos
a ir na direção certa? Se houver uma
falha, de quem é a responsabilidade?
Na saúde, é uma oportunidade
com riscos?
Trará inúmeros benefícios, isso é
claro. Em todas as especialidades, vai
ajudar no diagnóstico e nas propos-
tas de tratamento. Mas tem também
sérios desafios, porque há este risco
de começar a ocupar o espaço dos
médicos, através de robots autóno-
mos. Recentemente, um transplante
de fígado foi executado integral-
mente por IA, em Barcelona. Robots
que se movem e dominam a lingua-
gem humana são uma evolução sem
Brasil, etc. Pelo menos que os regimes
democráticos adotem leis semelhan-
tes, por forma a punir fortemente o
que todos consideram inaceitável,
como o controlo das emoções huma-
nas através de IA ou o reconhecimen-
to facial sem qualquer supervisão.
O que mais teme na IA?
O que temo é se um dia perdemos
a gestão do sistema financeiro, das
nossas contas bancárias, do mercado
laboral, do sistema de saúde e educa-
tivo, se os humanos, por mais inteli-
gentes que sejam, ficam sem condi-
ções de controlar toda esta evolução.
A supervisão humana é absolutamen-
te central, caso queiramos que a IA
da Entidade Reguladora da Saúde, precedentes. Uma superinteligência sirva a Humanidade e não o contrário.
o médico Rui Nunes, de 62 anos, artificial pode ter capacidade de Em 2012, foi o principal mentor
integra o Conselho Nacional de Ética moldar o nosso destino coletivo. do Testamento Vital. Hoje, exis-
para as Ciências da Vida e foi nessa Há um ano, uma carta aberta, tem menos de 40 mil pessoas com
qualidade que, na sexta-feira, 22, subscrita por várias personalida- registos válidos no sistema infor-
esteve na Assembleia da República, des, alertava para a “corrida de- mático nacional. Esperava maior
uma vez que este comité de bioética senfreada ao desenvolvimento de adesão?
é um órgão consultivo do Parla- mentes digitais cada vez mais po- Nota prévia: uma evolução desta
mento “sobre as grandes questões derosas, que ninguém, nem mes- magnitude, no plano dos direitos
éticas da vida”, como a eutanásia, a mo os criadores, consegue enten- humanos, vale por si, não é de espe-
interrupção voluntária da gravidez, der, prever ou controlar”. Estamos cial relevância avaliarmos o número
a procriação medicamente assistida perante um avanço tecnológico de efetivo de diretivas antecipadas de
ou a Inteligência Artificial (IA). “Uma consequências incalculáveis? vontade ou de testamentos vitais que
área para a qual o nosso país tem de Não tenho qualquer dúvida de que possam ter sido elaborados. Muitos
ter um olhar distinto, porque é uma estamos. Aliás, o parecer do Conselho não estão registados e não são con-
tecnologia muito promissora mas Nacional de Ética para as Ciências da tabilizados. Ainda assim, vou rein-
também com grandes desafios do Vida, que vai ser apresentado publi- cidir na proposta para que se torne
ponto de vista ético, jurídico e so- camente, em breve, na Assembleia da obrigatório informar os pacientes,
cial”, diz. Antes de regressar ao Por- República, afirma isso mesmo, que a no momento da admissão no sis-
to, de onde é natural, falou à VISÃO, IA é uma mudança de paradigma im- tema de saúde, da possibilidade de
na casa da democracia. parável. Esse grito de alerta por parte fazerem um testamento vital.
Numa perspetiva histórica, a IA de cientistas e empresários do setor Porque há mais mulheres do que
está ao nível de grandes inova- digital não só peca por tardio como é homens a aderir?
ções que transformaram o modo manifestamente ineficaz. Não há estudo científico empírico
de vida da Humanidade, como a O que está ao alcance fazer? credível que possa determinar com
roda, os caminhos de ferro ou a Aumentar a literacia sobre IA, nas rigor, mas penso que há razões de
eletricidade? escolas e na sociedade, e reforçar a natureza pessoal. Por regra, as mu-
Está bastante acima disso, porque supervisão jurídica. Há países, como a lheres pensam mais nestes aspetos
nós ainda estamos numa fase hipe- Coreia do Sul, que estão a fazer pro- da vida, querem tomar mais precau-
rembrionária da IA. Tem o potencial gramas de formação em IA e novas ções e são mais decididas.
de alterar profundamente as nossas tecnologias para todas as gerações. A origem do Testamento Vital está
vidas. Já é muito influente, desde os Não se compreende porque Portugal ligada ao prolongar da vida sem
computadores às aplicações, às com- ainda não tem um gabinete central uma luz de esperança.
pras do supermercado, ao sistema que coordene a implementação da Porque em certos casos, nomeada-
financeiro, até às artes criativas, mas IA, quer do ponto de vista tecnoló- mente terminais, os médicos iam
sê-lo-á muito mais. Desenvolveu-se gico quer educativo. Há poucos dias, mais além do que alguns doentes
muito depressa e estamos a entrar foi aprovada a lei de IA da União desejariam, em virtude da tecnolo-
numa fase em que a IA tem um con- Europeia, que deve ser um sinal para gia altamente sofisticada. Algumas
trolo que não conseguimos explicar. o mundo. Mais do que tentar propor pessoas, para não dizer muitas, en-
Por exemplo? moratórias, porque não é possí- tendem que esse excessivo recurso à
Um médico que vai fazer uma in- vel parar a Ciência – se paramos na tecnologia é uma espécie de obs-
tervenção cirúrgica com um robot Europa, faz-se na Índia ou na China tinação terapêutica, tecnicamente
dotado de IA. Se médicos, enge- –, deve-se estender o movimento eu- designada por distanásia. No fundo,
nheiros e sociedade, em geral, não ropeu a outros países, nomeadamente este testamento serve para evitar
sabem como a IA toma uma decisão, às grandes potências, como Estados tratamentos fúteis ou desproporcio-
porque é tão densa e profunda, en- Unidos da América, China, Índia, nados na ótica do doente.

28 MARÇO 2024 VISÃO 11


A regulamentação da Lei do Tes- Em matérias de portanto, carecem de evolução legis-
tamento Vital demorou dois anos. lativa. Hoje discute-se, por exem-
A Lei da Eutanásia já foi aprovada vida e de morte, plo, a criação de gâmetas artificiais,
há quase um ano e ainda não foi o País não pode criados in vitro a partir de células
regulamentada. Há dias soube-se estaminais humanas. É evidente que,
que a provedora da Justiça reque- andar para a quando isto for concretizado, vai
reu ao Tribunal Constitucional a frente e para precisar de regulação jurídica pró-
inconstitucionalidade da mesma. pria. Mas, para o estado do desenvol-
O que está a falhar? trás. Temos uma vimento da procriação medicamente
Na regulamentação da Lei do Testa- lei avançada. assistida em Portugal, a lei que temos
mento Vital, apesar de tudo, foi pre- é muito moderna e contempla as
ciso criar um sistema digital de raiz. França acabou principais questões éticas.
Na da eutanásia, não entendo esta de colocar Qual é a sua posição sobre a edição
demora na regulamentação. Consi- genética nos humanos?
dero extemporâneo abordar de novo no texto Aí tenho algumas restrições éticas.
a problemática da constitucionalida- constitucional Se for feita para fins terapêuticos
de, quando o Tribunal Constitucio- que a medicina não alcança, a edição
nal já se pronunciou favoravelmente o direito à IVG. do genoma é um meio de tratamen-
e quando a lei já está em vigor. Não estou a to como outro qualquer. Se for efe-
A lei ficou bem desenhada? tuada para melhorar um ser humano
O facto de Portugal ter legislado ver que haja que é normal, impondo ao nascituro
muitos anos depois de outros países motivos para determinadas características que
teve vantagens. A nossa lei respeita ele não pediu, como olhos verdes,
a vontade de quem está com um so- retrocedermos ser alto, ser homem, ser mulher, ser
frimento inultrapassável e evita que inteligente ou o que quer que seja, já
a eutanásia voluntária e pontual se tenho muitas reservas.
torne uma prática indiscriminada, Já que estamos nesta casa, qual o
reservando-a a pessoas que mostra- atual estado de saúde da ética na
ram uma vontade firme, reiterada e podem administrá-la, o número de política portuguesa?
pensada. potenciais profissionais disponíveis Na ética das políticas, a evolução
Concorda que, tendo o doente essa é muito maior. tem sido positiva. Já a ética na polí-
faculdade motora, deve ser o pró- O que pode um médico objetor de tica partidária precisava de ser apro-
prio a acionar a administração do consciência fazer se todos os ou- fundada, desde logo, por um maior
fármaco, como diz a lei? tros médicos do hospital também rigor na seleção dos nossos agentes
É outro mecanismo que a legisla- o forem? políticos. Tem de haver um compro-
ção encontrou, que é o exercício da Pois, esse é que é o problema. Se há misso destes junto da sociedade e,
autonomia da vontade, mas tem de serviços em bloco que são objetores, por outro lado, a população tem de
haver sempre um médico a super- a solução passa pelas administrações ser muito mais exigente em relação
visionar e a prescrever os fárma- hospitalares perceberem essa sensi- aos atores políticos.
cos. Quando a pessoa se encontra bilidade no momento de recrutarem Vamos ter menos mulheres no
completamente paralisada, então os profissionais, porque, com certeza, Parlamento. Na nova legislatura,
médicos ou os enfermeiros podem ninguém decide ser objetor da ma- de 85 passam a 76. Como estamos
administrar. nhã para a noite. a evoluir em matéria de igualdade
Na Interrupção Voluntária da Como encarou as declarações de de género?
Gravidez (IVG), despenalizada em Paulo Núncio, vice-presidente do Deram-se evoluções muito impor-
2007 até às dez semanas, vários CDS, que será agora deputado, a tantes na lei da paridade, no acesso à
hospitais do SNS não a executam sugerir novo referendo sobre o saúde e à educação, em determina-
por objeção de consciência dos aborto? das posições económicas e lugares
médicos que aí exercem. É previ- Quero crer que se tratou apenas de de chefia. Vemos hoje um panora-
sível que o mesmo aconteça em uma intervenção de natureza eleito- ma completamente distinto do que
relação à eutanásia? ral. Em matérias de vida e de morte, tínhamos há 20 anos. As faculdades
Nenhum médico pode ser obriga- o País não pode andar para a frente de Medicina têm mais de 50% de
do a praticar um ato contra a sua e para trás, os portugueses não en- mulheres. Um exemplo da minha
vontade, mas compete ao objetor tenderiam. Temos uma lei avançada. vida profissional na Universidade do
de consciência assegurar que são França acabou de colocar no texto Porto: hoje é obrigatório haver pa-
salvaguardados os direitos dos in- constitucional o direito à IVG. Não ridade de género na constituição de
teressados, seja em matéria de IVG, estou a ver que haja motivos para um júri para uma prova de mestrado
de eutanásia, de procriação medi- retrocedermos. ou doutoramento. É um mau sinal a
camente assistida, testamento vital, E quanto à procriação medica- involução quanto ao número de de-
etc. Estranho ainda existirem hospi- mente assistida, a legislação é putados na Assembleia da República,
tais que são objetores de consciên- adequada? mas quero crer que, na constituição
cia em bloco. No caso da eutanásia, Tal como a IA, estas são áreas de do Governo, haverá essa sensibilida-
uma vez que médicos e enfermeiros rapidíssima evolução tecnológica e, de de género. rantunes@visao.pt

12 VISÃO 28 MARÇO 2024


RR A DA R

7
GETTY IMAGES
O que acontece na Rússia
não fica na Rússia
As fotografias das homenagens às vítimas do significar que, mesmo aceitando as premissas
PONTOS atentado terrorista no Crocus City Hall, em
Moscovo, não são muito diferentes das que, há
com que Putin governa, a garantia de segurança
pode não estar assegurada. Tal como, em outu-
DA SEMANA cerca de um mês, observámos nos memoriais
dedicados a Alexei Navalny, o opositor em quem
bro de 2002 (Putin tinha 50 anos e governava
há três), o ataque ao teatro Dubrovka provocou
o Ocidente depositou esperanças e que acabou uma escalada no conflito tchetcheno, o aten-
morto numa prisão da Sibéria. Para um portu- tado de 22 de março de 2024 produzirá uma
guês, essas imagens têm ainda o simbolismo de, intensificação da guerra no território ucraniano.
não raras vezes, ser possível ver nelas cravos Sintoma disso são as primeiras reações de Putin,
vermelhos, que ficarão para sempre ligados ao que não perdeu tempo a estabelecer a ligação
25 de Abril. A transição portuguesa marcou o entre a Ucrânia e os autores do atentado, rei-
início da terceira vaga de democratização do vindicado pelo Daesh, autoproclamado Estado
século XX, segundo o cientista político Samuel Islâmico. A propaganda pró-regime também
Huntington. está a tentar fazer vingar a versão de que os
Huntington morreu em 2008 e, depois d’A suspeitos foram recrutados no Tajiquistão
Terceira Vaga (1991), lançou outro livro que pela embaixada ucraniana. Nas entrevistas que
também teve muita repercussão. Chama-se realizou, a jornalista do New York Times não
O Choque das Civilizações e a Mudança na encontrou quem acreditasse nessa narrativa,
Ordem Mundial (1996) e tem como argumen- embora admita que, perante o medo e a ameaça,
S A R A B E LO L U Í S *
to principal a ideia de que, após a Guerra Fria, uma parte da população esteja disposta a aderir
seriam as “civilizações” – as questões culturais à tese. De resto, não seria a primeira vez que,
e religiosas – que, daí em diante, conduziriam na história da Humanidade, um líder se tornava
a política global. A tese, controversa, sofreu popular por garantir segurança. Apesar da guer-
inúmeras críticas, embora o mundo no pós-11 ra na Ucrânia, a liberdade é um valor que muitos
de Setembro tenha dado uma certa razão ao continuam a tomar como garantido na Europa,
autor americano. mas múltiplas regiões do mundo existem em
Graças às alterações constitucionais que ha- que os cidadãos – “gente como nós” – abdi-
bilmente foi fazendo, Putin governa desde caram de ser livres para se sentirem seguros.
1999 (entre 2008 e 2012, a presidência esteve a Não sendo a Rússia uma sociedade aberta, os
cargo de Dmitry Medvedev, para evitar man- últimos anos têm demonstrado ser impossível
datos sucessivos). Há gerações de russos que só afirmar que o que se passa na Rússia fica apenas
conheceram Putin como líder dos destinos do Rússia – sobretudo no que diz respeito ao jogo
país. Depois do caos económico dos anos 90, o de luzes e sombras da estratégia europeia em
antigo oficial do KGB impôs-se sobretudo com relação à guerra na Ucrânia. Reeleito há menos
a promessa de travar a inflação e de, é sabido, de duas semanas, Putin não perdeu tempo no
restabelecer a ordem. Nessa medida, a guerra passa-culpas do atentado de Moscovo. Também
na Ucrânia constituiu, nas palavras da jorna- o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, largou
lista Valerie Hopkins, que cobre a Rússia para o eufemismo da “operação militar especial”,
o New York Times, “uma enorme rutura nesse assumindo, pela primeira vez, que o país estava
contrato social de ‘não te envolvas na política, em “estado de guerra”. A Putin, o conquistador
que eu providencio-te segurança e um Estado sem escrúpulos, interessa tirar todos os divi-
*Subdiretora razoavelmente operacional’”. dendos, mesmo que, por detrás do ataque do
sbluis@visao.pt Para a população russa, os terríveis aconteci- Daesh, até possam estar as motivações invoca-
mentos do Crocus City Hall podem também das por Huntington. Tudo em prol da guerra.

14 VISÃO 28 MARÇO 2024


2%
NÚMERO
Crescimento previsto para este ano, de acordo com o boletim económico
agora divulgado pelo Banco de Portugal
Apesar da conjuntura no resto da Europa e das taxas de juro elevadas, a economia portuguesa
conseguiu um desempenho melhor do que o previsto no ano passado. Para 2025 e 2026,
o Banco de Portugal também prevê um crescimento de 2,3% e 2,2%, respetivamente.

UNIÃO EUROPEIA CULTURA

A longa cruzada Cheque-livro


contra as “big tech” já disponível
A União Europeia informou, na última segunda-feira, No próximo mês de abril, serão
25, a Alphabet, a Apple e a Meta de que estavam emitidos os primeiros cheques-
sob investigação por causa de alegadas violações livros, destinados àqueles que
à nova lei da concorrência europeia, que entrou fizeram 18 anos nos últimos
em vigor a 7 de março. A legislação exige que os dois anos. A medida, uma
gigantes da tecnologia abram as suas plataformas, das mais emblemáticas do
para que os concorrentes mais pequenos possam governo agora demissionário
ter acesso aos seus utilizadores. Já na semana no setor da Cultura, abarcará,
passada, o Departamento de Justiça norte-americano no total, segundo o anunciou
processou a Apple por violar leis da concorrência, com o ministro Pedro Adão e Silva,
práticas que têm como objetivo manter os clientes cerca de 200 mil jovens, que
dependentes dos seus iPhones, inviabilizando a assim vão receber um cheque
mudança para um aparelho concorrente. FRASE de 20 euros para descontar
em livrarias físicas. Poderão
“Portugal escolher, conforme explicou
Adão e Silva, qualquer livro

tem uma disponível.

situação
orçamental
que quase
toda a gente ESPANHA

inveja. Não Ele está de volta


LUSA

PATRIMÓNIO
podemos Fugido à Justiça espanhola
por causa do seu
“Descida da Cruz” deverá ir deitar fora envolvimento no processo
independentista, Carles
para o Soares dos Reis algo que Puigdemont anunciou que
é candidato às eleições
Adquirida na feira de arte de antiguidades de Maastricht
pela Fundação Livraria Lello, a pintura Descida da Cruz, toda a gente regionais catalãs de 12 de
maio. O antigo presidente
de Domingos Sequeira, deverá ficar em depósito no
Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, de acordo
com informações recolhidas pelo jornal Público. Depois
inveja” regional da Catalunha garante
que quer fazer da região uma
“nação independente”: “Há
do seu regresso a Portugal, a obra – que terá custado MÁRIO CENTENO, que escolher entre aqueles
1,1 milhões de euros – será mostrada ao público pela governador do Banco que querem continuar a
primeira vez no próximo dia 18 de maio, no Mosteiro de Portugal, na inscrever a Catalunha entre
de Leça do Balio, sede da Fundação Lello. Alguns apresentação as comunidades autonómicas
das novas previsões
historiadores consideram que a pintura deveria ser espanholas ou aqueles que
para a economia
confiada ao Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, querem terminar o trabalho
cujo acervo já integra a Adoração dos Magos, uma das para que a Catalunha seja
quatro pinturas da série de final de carreira, de que faz reconhecida entre as nações
parte a Descida da Cruz. independentes do mundo.”

28 MARÇO 2024 VISÃO 15


R ---------- H O LO FOT E

Kate Middleton
Agora é bem-amada
Maldizentes União
Agora que, pelo Com a notícia de Antes de se saber
pior motivo, que tinha sido
passou a princesa que a princesa sofre diagnosticado
bem-amada, é de cancro, talvez os um cancro (não
de lembrar que especificado) a
Kate não teve vida tabloides britânicos Kate, a divulgação

Abanão
fácil desde que se arrependam Conflitos
de uma fotografia
foi anunciado o da princesa com
Foi em choque seu noivado com de lhe ter chamado, Até agora, a os três filhos deu
que o Reino Unido William, em 2010 e ao marido, princesa apenas azo a teorias
(e não só) soube, (casaram-se no foi visada numa mirabolantes
no passado dia ano seguinte). o príncipe William, acusação – e nas redes sociais
22, que tinha sido Os tabloides casal “work-shy logo por parte do sobre o seu
diagnosticado britânicos logo a cunhado. No seu desaparecimento
um cancro “chumbaram”, por Wills” – ou seja, com livro de memórias público, por
a Kate Middleton, ser filha de um suposta tendência Na Sombra, um lado, e o
42 anos, anúncio casal de classe editado em 2023, seu estado de
feito pela própria média sem pinga para a preguiça o príncipe Harry saúde, por outro.
princesa nas de sangue azul. conta que É verdade que
redes sociais. Apesar de ser er — PO R J . PL ÁCI D O J Ú N I O R irmão, William,
o irm a imagem foi
Kate explicou bonita, de see e Kate
Ka se aliaram editada – um erro
que a doença vestir com estilo ao p pai, Carlos, e à crasso que serviu
oncológica foi e de se dedicar
icar madrasta, Camilla,
mad para questionar
detetada na ao exercício físico, para “atirá-lo aos quase tudo sobre
sequência de uma a imprensa leões”, se isso
leõe a veracidade
cirurgia abdominal cor-de-rosa a servisse para
serv da fotografia.
que fez em janeiro exasperou-se:se: aparecerem bem
apar Mas agora o
último, e que apenas encontrou
ontrou na imimprensa. caso está, claro,
agora se submete “uma boa Harry também
Harr ultrapassado
a um tratamento rapariga”, sem
em alega que Kate
aleg e as notícias
de quimioterapia. “magnetismo” o” nem contribuiu para
cont que chegam
Multiplicaram-se, “disparates de a ostracização,
os do Palácio de
depois, as juventude”. Por na fafamília real, Buckingham
mensagens não chegaremem do da ssua mulher, dão conta de
de solidariedade casal manchetes
hetes Meghan Markle,
Meg uma família real
à princesa e os bombásticas, s, os com um passado unida perante o
apelos, neste tabloides atéé incómodo:
incó flagelo da terrível
momento duro, o apelidaramm ex-atriz, afro-
ex-a doença: também
ao respeito pela de “work-shy y -americana e
-ame a Carlos III foi
privacidade de Wills” – ou seja,
eja, divorciada. Mas
divo diagnosticado
Kate, do príncipe com suposta a o certo
ce é que um cancro
William e dos três tendência paraara William e Kate,
Willia (na próstata).
filhos do casal a preguiça. nos tempos
– George, de 10 mais recentes,
anos, Charlotte, conseguiram
cons
de 8, e Louis, uma cobertura
de 5. Terminou, noticiosa mais
notic
pois, o mistério positiva, com
posi
alimentado na o seu
se trabalho
internet com em prol da saúde
teorias desabridas. mental e dos
men
sem-abrigo.
sem

16 VISÃO 28 MARÇO 2024


R ---------- R A I O -X

Chocolate amargo
Em virtude do aumento exponencial do preço do cacau no último ano,
os chocolates tendem a ficar cada vez mais caros
— POR MANUEL BARROS MOURA

68%
A Páscoa está mesmo à porta, e, mesmo que ainda não tenha dado por isso, quando chegar
a hora de comprar as tradicionais amêndoas, ovos e coelhos, vai perceber que o preço do chocolate está,
como se diz, pelas horas da morte. Tudo porque o custo do cacau, a principal matéria-prima desta iguaria,
está a registar subidas vertiginosas. Só entre 1 de janeiro deste ano e 7 de março, a tonelada de cacau
passou de 4 196 dólares (cerca de €3 864) para 7 054 dólares (quase €6 495), na Bolsa de Mercadorias
de Nova Iorque. Uma subida de 68%, que se segue a uma espiral de crescimento que se iniciou em 2022.
No final desse ano, a tonelada valia “apenas” 2 600 dólares, quase três vezes menos do que atualmente...

EVOLUÇÃO DO PREÇO DO CACAU DESDE O INÍCIO DE 2023


VALORES EM DÓLARES POR TONELADA

6 000

4 000

2 000

0
JANEIRO FEVEREIRO MARÇO ABRIL MAIO JUNHO JULHO AGOSTO SETEMBRO OUTUBRO NOVEMBRO DEZEMBRO JANEIRO FEVEREIRO MARÇO
2023 2023 2023 2023 2023 2023 2023 2023 2023 2023 2023 2023 2024 2024 2024

MAIORES PRODUTORES MUNDIAIS DE CACAU


VALORES DE 2022, EM MILHARES DE TONELADAS

Costa
do Marfim Gana
2 200 1 100

4,45 Indonésia
MILHÕES DE TONELADAS 667
A subida exponencial do preço do cacau
prende-se com, segundo os especialistas,
a escassez da oferta, provocada pelo
envelhecimento e as doenças que estão a atacar
as culturas na África Ocidental, sobretudo na Costa
do Marfim e no Gana, os principais produtores, Equador
cujas quotas de mercado ascendem, 337
respetivamente, a 43% e a 20%. A Organização
Internacional do Cacau estima que a produção
mundial em 2023-2024 deverá cair 11% Camarões
em termos anuais, para 4,45 milhões Resto 300
de toneladas, e a moagem quase 5%, do mundo Nigéria
os valores mais baixos 386 Peru Brasil
171 280
em mais de 40 anos 274
República Dominicana
76
FONTES FAO, Nações Unidas, Bloomberg, Banco Carregosa, Diário de Notícias e Visual Capitalist RL/VISÃO

28 MARÇO 2024 VISÃO 17


POLITICAMENTE

É preciso muita coragem


CORRETO

para pertencer ao Governo


Pedro

É
Marques hoje que conheceremos o novo
Governo. Como não tenho a mais
importância dos cargos desempenhados. Há
algo de muito errado quando um homem ou
Lopes pequena dúvida de que Luís Mon- uma mulher com a responsabilidade política
tenegro quer o melhor para o País, pela Saúde ou Educação de uma comunidade
espero que ele tenha consegui- é remunerado como um qualquer diretor de
do recrutar as pessoas que realmente quis. segunda linha de uma multinacional.
Numa palavra: os mais competentes e os que O maior obstáculo a ter pessoas compe-
melhor queiram servir a causa pública. Estou tentes a trabalhar para o bem comum é a
certo de que o novo primeiro-ministro se vontade de que alguns setores da Justiça têm
riu com vontade ao ouvir a conversa da treta em usurpar as funções de quem é eleito para
do governo mais ou menos político. Como as exercer. Já não são só os espetaculares e
se a política não fosse a atividade em que se rotineiros processos que não dão em nada e
tenta fazer o melhor pelo bem comum e em só servem para destruir carreiras e cimen-
que não há combate político que mereça esse tar a ideia de que os políticos são todos uns
— Analista político
nome se não tiver por base o interesse da co- ladrões. Diga-se de passagem, e repetindo
munidade. Não deve ter sido tarefa nada fácil. pela enésima vez o que aqui tenho escrito:
Nas presentes circunstâncias, há uma grande uma parte importante do Ministério Público
probabilidade de que quem quer muito ir (MP) é uma das grandes responsáveis pela
para o Governo não ser o mais competente e má imagem que a classe política tem junto
de que os mais capazes e competentes fujam dos cidadãos, pelo declínio do prestígio das
de cargos públicos como o diabo foge da instituições e pela fuga dos nossos melhores
cruz. Resta-nos pouco mais do que confiar da mais nobre atividade. E não valia a pena
na genuína vontade de servir a causa pública referir: é fundamental o escrutínio da Justiça,
do maior número possível de pessoas e no mas os resultados têm sido pouco menos do
pecado favorito do diabo: a vaidade. que discutíveis.
É, de facto, precisa muita coragem, muita Agora estamos noutro patamar. O MP dá-
indiferença ou nada ter a perder para aguen- -se ao luxo de não concordar com decisões de
tar o que já se tornou rotina para detentores outros órgãos de soberania e lança processos
de importantes cargos públicos. Tentar fazer sobre quem as toma dentro da lei. Aconte-
o melhor pelo bem comum é agora também ce com sentenças de juízes, com decisões de
estar disponível para ser injuriado, difama- organismos do Estado e, claro, do Governo. A
do e ver a vida pessoal e dos seus próximos Operação Influencer é um caso claro. Põem-
completamente devassada. Exercer um cargo -se em causa contrapartidas a autarquias para
público é, na prática, prescindir da presun- a execução de obras públicas e investimen-
Agora ção de inocência e dar ao mais impreparado tos relevantes, discutem-se decisões apenas
estamos magistrado ou a um pouco sério jornalista o
poder de inverter o ónus da prova.
sujeitas ao poder discricionário do executivo.
Somado a isto temos agora um novo caso em
noutro Mas ser ministro ou secretário de Estado, que o MP impugna a decisão legal e legítima
patamar. além de já não ser algo que se possa incluir da Agência Portuguesa do Ambiente em au-
com orgulho no curriculum, passou a ser torizar a construção da maior central solar da
O MP dá-se uma espécie de cadastro. A lista de incom- Europa. A razão é pura e simplesmente achar
ao luxo de patibilidades que alguém que tenha exercido que quem a contesta e quem deu pareceres
não concordar um cargo no governo é tal que torna muito
difícil o regresso à vida no setor privado. O
não vinculativos tem razão... A isto chama-se
subversão dos poderes em democracia ou
com decisões exercício do poder político é cada vez mais querer mandar num país sem eleições.
de outros apenas possível aos ricos que podem passar A governação de Luís Montenegro não
longos períodos sem exercer as suas profis- será fácil visto o reduzido apoio que tem no
órgãos de sões, aos professores, aos políticos profissio- Parlamento – e não só. Mas seria bom que os
soberania nais e pouco mais. O que antes já era muito opositores fossem forças políticas e sociais e
e lança discutível – a velha história de se ficar com
a “vida feita” por se ter sido ministro – ago-
que fôssemos nós depois a avaliar o seu tra-
balho, não quem tem outras funções. Desejo
processos ra tornou-se uma clara mentira. E, claro, ainda que não faltem homens e mulheres
sobre quem vale sempre a pena lembrar que os salários competentes e com vontade de servir que
de ministro e de secretário de Estado são corajosamente consigam ultrapassar todas
as toma um insulto, não só para quem os recebe, as barreiras normais e as que infelizmente se
dentro da lei mas sobretudo para a imagem que se dá da estão a tornar normais. visao@visao.pt

18 VISÃO 28 MARÇO 2024


R ---------- P E R I SCÓ P I O

Medina puxa dos galões


Pedro Nuno parece querer associar o PS à satisfação de reivindicações,
mas Medina diz que Governo AD pode fazer isso sozinho...

“Tendo em conta que ue “[Suplemento para PSP


pode ser necessário io e GNR] é perfeitamente
alterar limites acomodável dentro do
a
de despesa, nós Orçamento,
Orça
ç sem necessidade
estamos disponíveiseis de retificativo. [E o caso
d
para viabilizar umm dos professores] também é
do
Orçamento retificativo”ivo” perfeitamente acomodável
pe
PEDRO NUNO SANTOS OS dentro do OE deste ano sem
de
Secretário-geral do PS nenhum retificativo”
FERNANDO MEDINA
Ministro das Finanças cessante

INDISCRETOS 15 MINUTOS DE FAMA

Todos, todos, todos!


O deputado do Chega reeleito por Faro, pois estas “produzem menos tempo” por
Pedro Pinto, também já vai revelando um estarem “indisponíveis mais tempo por
sentido de humor próprio dos políticos causa da gravidez”. A conversa é, de facto,
do sistema. Desta vez, partilhou, nas redes muito antiga – não do século XIX, como
sociais, um meme em que se podem ver Luís parece, mas de março de 2015.
Montenegro e Nuno Melo, em Belém, com
Gonçalo da Câmara Pereira (que não os
acompanhou, mas que, como líder do PPM, Cuidado com as análises
faz parte da AD...) a espreitar escondido O governo de António Costa pode estar
atrás do sofá. Comentário de Pedro Pinto: de saída, mas continua atento aos...
“O Presidente da República, afinal, recebeu comentadores. A noite de domingo, 24, Ventura no
todos...” Todos, todos, todos, ou não fosse o
Marcelo um admirador do Papa Francisco!
ia já avançada, quando o Conselho de
Ministros emitiu uma nota a desmentir as
“Big Brother”?
declarações de Luís Marques Mendes, que,
Neste domingo, na estreia
no Jornal da Noite, na SIC, garantia que
de mais uma temporada do
Bruxelas estava a reter pagamentos do
Big Brother, esperava-se
PRR por responsabilidade do executivo. Se
que o apresentador Cláudio
a moda pega, o próximo governo vai ter de
Ramos tivesse anunciado
contratar (mais) assessores. De preferência,
a participação de André
disponíveis para trabalhar fora de horas.
Ventura. Não aconteceu,
ainda, mas, a qualquer
momento, o líder do Chega
Ucranianos por todo o lado poderá integrar o lote de
Ainda pouco (ou nada) se sabia do que
A internet não esquece sucedera na sala de espetáculos de
concorrentes. É que foi ele
próprio quem escreveu, no
Um post da autoria de Mário Amorim Moscovo, que se tornara cenário de um Twitter, que, se algum dia
Lopes (MAL), deputado eleito pela atentado – reclamado pelos islâmicos andasse a implorar coligações
Iniciativa Liberal, pelo círculo de Aveiro, do Daesh-Khorasan –, quando o major- ou alianças à direita ou
nas últimas legislativas, tornou-se, nesta general Agostinho Costa anunciou, centro-direita, e ninguém
semana, viral, mesmo tendo sido publicado, em primeira mão, na CNN Portugal, os lhe ligasse nenhuma, que o
na rede social X (ex-Twitter), há quase... responsáveis pelos ataques: “Foram internassem ou o colocassem
dez anos. Numa conversa com outra os ucranianos.” O pivô estranhou tão a fazer programas com José
internauta, MAL criticou a “imbecilidade a pronta conclusão, mas o especialista em Castelo Branco ou Cláudio
que a conversa da igualdade chegou”, indo assuntos de segurança deu um risinho e Ramos. É desta vez que
mais longe ao considerar que “é natural “esclareceu” os telespectadores sobre as a TVI vai rebentar com as
que salário [das mulheres] seja inferior”, culpas de Kiev. — F.L/N.M.P/J.A.S. audiências...

28 MARÇO 2024 VISÃO 19


---------- P R ÓX I M O S CA P Í T U LO S

Isabel Díaz Ayuso


Uma estrela
em apuros
no reino da
escandaleira
e da desinformação
— POR FILIPE FIALHO

U
m dos nomes mental, Alberto González
grandes do jorna- Amador, já confessou três
lismo espanhol, crimes – dois de evasão fiscal
Berna González e um de falsificação de do-
Harbour, escreveu no úl- cumentos –, num processo
timo fim de semana, no El de intermediação e venda de
País, que “uma das virtu- máscaras anti-Covid, duran-
des da democracia é que os te a pandemia. Pormenor: os
líderes se esgotam (...) e que negócios realizados entre o
nenhum é imortal”. A prosa empresário e várias institui-
tinha como tema a mulher ções (públicas e privadas) de
que, desde 2019, preside a saúde, na área metropolitana
Comunidade Autónoma de da capital espanhola, reali-
Madrid, Isabel Díaz Ayuso: “É zaram-se através de firmas-
duvidoso que alguém consiga -fantasma, contratos fictícios
recordar-se de uma única e esquemas criativos de lionárias – em 2019, como
política sua que tenha deixa- sobrefaturação que envolve- explica o El País, Cristiano
do marca, mas é sem dúvida ram testas de ferro (incluindo Ronaldo pagou 19 milhões
um fenómeno de massas, um dois irmãos andaluzes, um de euros para evitar cumprir
animal político. Atrai a sua camionista, o outro mecânico 23 meses de cárcere devido
forma de falar, de provocar, de bicicletas e automóveis). a delitos fiscais relacionados
de vestir, de comparecer, A Agência Tributária com direitos de imagem.
de ter imagem própria e de espanhola (AEAT) acusa
impor-se à dos outros, seja Alberto González de ter em- CAMA E MASERATI
Sánchez [o primeiro-ministro bolsado indevidamente 351 De forma surpreendente, a
e secretário-geral dos socia- mil euros e de ser o mentor presidente da Comunidade
listas do PSOE] ou Feijóo [lí- de diversas transações que de Madrid continua a dizer-
der da oposição e do Partido lhe permitiram multipli- O “ambiente -se vítima de “perseguição
Popular, formação da qual
Ayuso é militante há quase
car por oito as receitas e os
lucros da Maxwell, empresa
de taberna” política” e a instrumentalizar
o caso para atacar os seus
duas décadas]”. de prestação de serviços que no Congresso adversários. “Se depois de
Com 45 anos, a dirigen- vão do imobiliário aos certi- dos Deputados uma vida de trabalho, uma
te conservadora e antiga ficados ambientais. O namo- pessoa tem determinado
repórter formada na Univer- rado de Ayuso habilita-se já fez com que património e pode comprar
sidade Complutense parece agora a uma pena que pode os insultos e as uma casa, um carro – ou
ter uma tendência especial
para ser, ela própria, notícia.
chegar aos dez anos de pri-
são efetiva, mas o processo
insinuações entre sete –, desde que tudo esteja
legal, sou livre para entrar
Nos últimos dias, têm sido pode culminar num acordo Sánchez e Feijóo nessa viatura ou para me
muitos os meios de comu- judicial em que o arguido envolvessem meter nessa cama”, referiu
nicação social a exigir a sua assume as ações ilícitas, de- Ayuso, a 13 de março, sobre
imediata demissão. Motivo: nuncia eventuais cúmplices as mulheres o apartamento duplex e o
o seu companheiro senti- e aceita pagar multas mi- de ambos Maserati que o casal partilha.

20 VISÃO 28 MARÇO 2024


Alvo Presidente da Comunidade
de Madrid diz-se vítima de
“perseguição política”, os média e
o governo pedem a sua demissão

o PSOE a demitir o antigo BRONCAS


ministro José Luis Ábalos do
cargo de deputado e susci-
HISTÓRICAS
ta ainda algumas suspeitas
sobre o comportamento da Alguns escândalos mediáticos,
terceira figura do Estado, em Espanha, neste século
Francina Armengol, a atual
presidente do Congresso dos
Deputados e antiga chefe do
governo regional das ilhas
Baleares.
Os socialistas desvalo-
rizam e desafiam Feijóo a Aznar e o terror
clarificar os negócios que, A 11 de março de 2004,
enquanto presidente da Jun- três dias antes das eleições
ta da Galiza (2009-2022), legislativas, a Al-Qaeda
celebrou com uma empresa, realizou um conjunto de
a Sargadelos, onde traba- atentados, em Madrid,
lhava a mulher do líder dos provocando 192 mortos.
populares, Eva Cárdenas. Apesar de os serviços
Numa resposta mimética, o secretos conhecerem os
PP ameaça ir até às “últi- responsáveis, o chefe do
mas consequências” para governo, José María Aznar,
apurar as circunstâncias acusou a ETA. Nunca pediu
em que o governo resga- desculpa pelo “engano”.
tou a Air Europa, em 2020,
com 475 milhões de euros,
companhia aérea onde então
trabalhava Begoña Gómez,
a mulher do primeiro-mi-
nistro. Indignado, Pedro
Sánchez aproveitou para O rei e a amiga
GETTY IMAGES

ajustar contas com o líder Em junho de 2014, aos 82


da oposição e recordar a anos, o rei Juan Carlos
Feijóo “a estreita amizade abdicou na sequência de
que manteve durante cinco uma série de polémicas,
Desde então, as discussões fender Ayuso e alegam que anos com um capo do nar- incluindo comissões suspeitas,
sobre corrupção, nepotismo, Pedro Sánchez e o PSOE cotráfico na Galiza” (Marcial superiores a €100 milhões, na
conflito de interesses, tráfico montaram uma cabala para Dorado). Com as críticas a construção da linha ferroviária
de influências e desinforma- desacreditar a dirigente ma- subirem de tom, a deputada de alta velocidade na Arábia
ção agudizaram-se. No seu drilense e desviar as atenções Cristina Valido, das Caná- Saudita, e o seu envolvimento
livro mais recente, Espa- de outros casos sensíveis. Em rias, diz que o ambiente no com a aristocrata Corinna zu
nha, o Pacto e a Fúria, Enric primeiro lugar, o delicado Parlamento espanhol é agora Sayn-Wittgenstein.
Juliana, diretor adjunto do processo de amnistia a Carles comparável “ao de uma
diário La Vanguardia, escre- Puigdemont e aos demais taberna”. Pelo meio, Ayuso
ve que os seus compatriotas soberanistas catalães, que mantém-se em funções e
“têm medo do futuro e das decretaram unilateralmente o seu principal “escudeiro”
notícias”, vivendo num “pes- a independência em outubro e estratega, Miguel Ángel
simismo difuso e constante”. de 2017. Em segundo, e ainda Rodríguez, continua a dizer
Marialva da bola
O país atravessa uma nova mais grave, afiançam, o atual que as ameaças e os insultos
era de polarização, para a executivo continua embru- que dirigiu aos jornalistas Luis Rubiales, ex-presidente da
qual contribui agora um ciclo lhado no “caso Koldo”, uma do El País e do elDiario.es Real Federação Espanhola de
eleitoral vertiginoso – auto- trama de supostas comissões foram uma simples “conver- Futebol (entre 2018 e 2023),
nómicas no País Basco (21 de ilegais na adjudicação de sa infeliz”. Afinal, que outra tornou-se uma figura global ao
abril), autonómicas e muni- contratos de material sanitá- coisa poderia esperar-se do beijar na boca a campeã do
cipais na Catalunha (respeti- rio, também durante a pan- conselheiro de comunica- mundo Jenni Hermoso. Antes,
vamente, 12 e 28 de maio) e demia, de que é protagonista ção e antigo porta-voz de fora envolvido num esquema
para o Parlamento Europeu um ex-assessor do Ministé- José María Aznar que, a 11 para a realização da Supertaça
(9 de junho). Os protagonis- rio dos Transportes (Koldo de março de 2004, tentou de Espanha na Arábia Saudita.
tas políticos e as rivalidades García), cujo enriquecimento convencer o mundo de que É ainda suspeito de realizar
regionais encarregam-se do lhe permitiu adquirir a pron- os atentados de Atocha eram outros contratos irregulares
resto. O PP e Alberto Núñez to várias moradias e viaturas obra exclusiva da ETA? em proveito próprio.
Feijóo não hesitam em de- de luxo. O escândalo levou ffialho@visao.pt

28 MARÇO 2024 VISÃO 21


P O N TO S
CA R D E A I S
Provas de vida

J
aneiro de 2018, Jalalabad, Afeganis- ção de atores não estatais no Médio Oriente,
tão. O Daesh-Khorasan (Daesh-K) após o ataque do Hamas a Israel.
Bernardo realiza um ataque à bomba contra a A 22 de março, num centro comercial
Pires ONG Save the Children, na tentativa
de expulsar um alvo ocidental hu-
em Moscovo, homens armados do Daesh-K
disparam indiscriminadamente no interior
de Lima manitário dedicado à defesa dos direitos das de um teatro, matando cento e trinta e cinco
crianças, seja contra a violência que contra civis, confirmando os alertas internacionais
si ocorre ou evitando a brutal exploração de das semanas anteriores e as vulnerabilidades
trabalho infantil. do aparelho de segurança russo.
Julho de 2018, Bannu e Mastung, Pa- Há pelo menos quatro grandes conclu-
quistão. O Daesh-K leva a cabo um ataque sões a retirar deste ciclo de terrorismo com
suicida num comício, em plena campanha esta chancela específica. Primeira, desde
para as legislativas. Mais de cento e cinquen- 2015, quando o grupo se organiza e come-
ta pessoas morreram. ça a ter relevância no concorrido mercado
Agosto de 2019, Cabul, Afeganistão. O global da jihad, que procura aliar o retorno
Daesh-K reivindica um ataque suicida numa dos métodos mais sangrentos na marcação
festa de casamento xiita, matando perto de da agenda mediática a um propósito político
— Analista de política
cem pessoas. de renascimento de um califado no gran-
internacional
Em maio de 2020, num hospital de de Khorasan, uma área no planalto da Ásia
crianças e num cemitério em Cabul e Kuz Central, com vista ao controlo pelo terror de
Kunar, Afeganistão, terroristas do Daesh- todo o Afeganistão, todo o Tajiquistão, partes
NORTE -K, com uniformes da polícia, dispararam do Irão, do Turquemenistão, do Usbequistão
A proposta do mediador das indiscriminadamente matando trinta pes- e do Quirguistão.
negociações entre os parti- soas, incluindo bebés e mulheres grávidas. A Segunda, que o recrutamento é feito
dos nos Países Baixos passa barbárie aconteceu pouco depois do acordo numa lógica transnacional, no qual se cruza
por um acordo parlamentar de retirada dos EUA, assinado com os tali- a concretização desse plano ideológico com
detalhado e para a legislatura,
bãs, no Qatar, pela administração Trump. O as oportunidades abertas pelo novo ciclo
de apoio a um governo tec-
país mergulhou, nesses meses, numa espiral da jihad, menos localizado e mais disperso,
nocrático. Duvido que Wilders
não explore isto à exaustão.
ainda maior de caos e conflitos entre grupos recorrendo a mais redes de financiamento,
terroristas, de que o ataque suicida de no- vindas do crime organizado e tráficos de vária
SUL vembro na universidade de Cabul seria mais natureza, e a uma ideia comum de dissolução
O Presidente de Angola fez a um exemplo. Trinta pessoas morreram. de fronteiras, soberanias estaduais, monopó-
segunda visita à China, onde, Agosto de 2021, aeroporto de Cabul. lio da força e ordem interna. Terceira, precisa-
para além da dívida bilateral e No decorrer da caótica retirada das tropas mente neste sentido, são alvo deste projeto a
do fornecimento energético, norte-americanas, o Daesh-K leva a cabo destruição do que ainda resta da arquitetura
apelou ao respeito pela sobe- um ataque suicida que mata cento e setenta institucional do Afeganistão e do Paquistão,
rania da Ucrânia, à libertação civis, três dezenas de talibãs e treze milita- como de outros países da Ásia Central com
de reféns israelitas e ao fim da res norte-americanos. grande influência da Rússia, que tanto passou
ofensiva militar em Gaza. Ao longo de 2022, o Daesh-K conduziu e a exercer esse papel junto dos talibãs afegãos,
reivindicou cento e cinquenta e oito ataques como suporte das autoridades paquistanesas,
ESTE no Afeganistão, Paquistão e Tajiquistão, com como ainda próxima dos regimes das ex-
A Eslováquia ultrapassou a armas, explosivos e bombistas suicidas, em -repúblicas soviéticas da Ásia Central, como
fasquia dos 2% do PIB para mesquitas e escolas, esquadras de polícia ou aliada dos regimes da Síria e do Irão.
a Defesa, ao passo que a postos de controlo talibã. Bairros de etnia Quarta, não surpreende por tudo isto que
Turquia não chegou lá ainda. hazara foram dos alvos mais fustigados. Moscovo tenha sido um alvo preferencial de
Apesar disso, ninguém duvida Em julho de 2023, mantendo uma predo- um grupo que está a crescer geograficamen-
sobre quem é mais poderoso minância de ataques no Afeganistão e no Pa- te e que tem hoje mais meios e capacidade
na NATO, o que implica fazer-
quistão, o Daesh-K atingiu mortalmente com operacional do que há oito, dez anos. Para
mos um debate tão qualitativo
bombistas suicidas uma grande convenção de o Daesh-K, a Rússia tem o mesmo estatuto
como quantitativo.
um partido pró-talibã em Khar, no Paquistão, de inimigo dos EUA ou do Irão. No entan-
OESTE matando mais de sessenta pessoas. to, convém lembrar que os longos anos da
O plano de Bolsonaro para um É a partir de 2024 que o arco de atuação Rússia de Putin também se confundem com
golpe contra Lula, com a ajuda deste poderoso braço do Daesh se alarga. ciclos de terrorismo interno, mais locali-
das Forças Armadas, foi confir- Em janeiro, em Kerman, no Sudeste do Irão, zado nas bolsas islâmicas secessionistas ou
mado pelos chefes dos ramos duas explosões matam perto de cem pessoas mais disperso pelas redes regionais. Ligar,
que se recusaram a tal crime. que prestavam homenagem ao antigo líder por isso, o que aconteceu à Ucrânia é não só
Bolsonaro continua impune e dos Qods, Qasem Soleimani, uma ação que mais uma manipulação grosseira da história
até fez campanha online junto pretendeu mostrar a força do grupo num e dos factos, como um sinal de fraqueza de
de eleitores portugueses. contexto de crescente anarquia e prolifera- Putin. Mais um. visao@visao.pt

22 VISÃO 28 MARÇO 2024


R ---------- FOTO S CO M H I STÓ R I A

GETTY IMAGES

FAZ AGORA 55 ANOS

Na cama pela paz


John Lennon e Yoko Ono tinham acabado de se casar. Corria o ano de 1969,
o mundo assistia impotente ao desenrolar dos acontecimentos sangrentos da
Guerra no Vietname, e aquele que era, na altura, um dos casais mais mediáticos da
atualidade aproveitou a fama para despertar a atenção de todos. Quatro dias após
as bodas, o antigo músico, cantor e compositor dos The Beatles e a nova mulher
deram início à mais pública lua de mel de que há memória. Entre as 9 e as 21 ho-
ras de 25 de março a 30 de abril de 1969, o casal abriu as portas da suíte presi-
dencial do Hotel Hilton de Amesterdão à Imprensa. Chamaram-lhe o Bed-ins for
Peace, uma manifestação não violenta pela paz. Mais tarde, entre 26 de maio e 1 de
junho do mesmo ano, repetiram o protesto no Hotel Rainha Isabel, de Montreal,
no Canadá. Foi lá que, no último dia do protesto, foi gravado aquele que ficou para
a História como um dos mais reconhecidos hinos à paz: Give Peace A Chance.

— POR MANUEL BARROS MOURA

24 VISÃO 28 MARÇO 2024


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R ---------- T R A N S I ÇÕ ES

O impressionante sucesso em Varsó-


via não subiu, porém, à cabeça do jo-
vem pianista. Ao invés de aproveitar e
avançar de imediato para uma carrei-
ra, optou por se refugiar nos estudos,
aprender mais e só mais tarde apostar,
de forma profissional, nos recitais
em nome próprio. No final da déca-
da de 1960, participou em concertos
improvisados em fábricas (progra-
mando para estudantes e trabalhado-
res no Scala de Milão), dirigidos pelo
seu amigo Claudio Abbado, maestro
italiano que, além de ter sido diretor
musical do Scala, foi principal regente
da Orquestra Sinfónica de Londres,
maestro convidado da Sinfónica de
Chicago e diretor musical da ópera es-
tatal de Viena. Abbado era um idealista
de esquerda, tal como o compositor
de vanguarda marxista Luigi Nono.
Estas duas figuras contribuíram muito
para a formação ideológica de Pollini,
GETTY IMAGES que sempre se manteve próximo do
Partido Comunista Italiano.
Nas décadas de 1970, 1980 e 1990,
Maurizio Pollini realizou uma série
de gravações com a prestigiada edi-
1942-2024 tora Deutsche Grammophon – ten-

Maurizio Pollini
do a primeira sido Três Movimentos
de Petrushka, de Stravinsky, além da
Sonata nº 7, de Prokofiev, em 1971
Gigante dos teclados –, bem como concertos e digressões.
Rotulado de “pianista chopiniano” na
juventude, Pollini afirmou-se na ma-
turidade com Ludwig van Beethoven,
O comunicado do Teatro alla Scala, de O pianista nasceu a 5 de janeiro de Robert Schumann e Franz Schubert,
Milão, não podia ser mais claro: Mau- 1942, em Milão, no seio de uma família tendo também sido aclamado pela
rizio Pollini “foi um intérprete capaz de de artistas e intelectuais ligados ao crítica pelo seu trabalho com Johan-
revolucionar a perceção de composito- movimento modernista italiano. O nes Brahms.
res como Chopin, Debussy e o próprio pai, Gino, era arquiteto racionalista e Em Portugal, Pollini atuou no Gran-
Beethoven, bem como de trazer para tocava violino; a mãe, Renata Melotti, de Auditório da Fundação Calouste
a ribalta as vanguardas, sobretudo era pianista e irmã do escultor Fausto Gulbenkian, pelo menos, em três mo-
Schönberg, e a música contemporânea”. Melotti. O piano foi também o ins- mentos: em 2002, interpretando Cho-
Para os responsáveis daquela que é uma trumento eleito pelo jovem Mauri- pin e Debussy; em 2007, no âmbito
das mais importantes salas de ópera do zio, que aprendeu desde muito novo do Ciclo de Piano, colocando em diá-
mundo, o virtuoso italiano foi “um dos com os mestres Carlo Lonati e Carlo logo compositores frequentes na sua
grandes pianistas do nosso tempo e um Vidusso, antes de ingressar, em 1959, trajetória, como Karlheinz Stockhau-
ponto de referência fundamental na no Conservatório de Milão. Um ano sen, Robert Schumann e Ludwig van
vida artística do teatro durante mais de depois, ganhou o primeiro prémio no Beethoven; e em 2009. Entre outros
50 anos”. E recordam que, entre 1958 Concurso Chopin de Varsóvia, no qual, prémios conquistados ao longo da
e o seu último recital, em fevereiro de com apenas 18 anos, era o mais jovem carreira, destaca-se o Diapason d’or,
2023, Pollini tocou ali 168 vezes, além inscrito. Arthur Rubinstein, presiden- em 2011, com a gravação de Variações
de ter participado num elevado número te do júri, não lhe poupou, na altura, Diabelli, de Beethoven.
de conferências e de workshops com elogios: “Tecnicamente, já toca melhor Maurizio Pollini morreu no sábado,
estudantes. Em declarações ao jornal do que qualquer um de nós!” Por seu 23, aos 82 anos, em Milão. O pianista
Público, o pianista português Pedro lado, o crítico musical italiano Piero tinha cancelado uma série de concer-
Burmester concordou que estamos Rattalino terá considerado que “este tos nos últimos anos, devido a proble-
perante “uma das maiores referências jovem ou se torna o maior pianista do mas de saúde. Deixa a mulher, Marili-
da interpretação musical dos últimos mundo ou acaba no manicómio!” O sa, com quem se casou em 1968, e um
60 anos”, que unia a “técnica prodigio- futuro mostrou que não foi como o de filho, Daniele, seu herdeiro musical,
sa” ao serviço “de uma leitura refinada, um louco que o nome de Pollini ficou pois também ele é músico, pianista e
analítica e cosmopolita”. na história da música. maestro. — M.B.M.

26 VISÃO 28 MARÇO 2024


R ---------- T R A N S I ÇÕ ES

MORTES António Pacheco Estoril e Atlético, foi ao fazer as pazes. António


serviço do Benfica que Pacheco morreu na quarta-
Manuel Ruiz Foi futebolista e distingiu-se
mais sucesso teve. No seis -feira, 20, no Hospital de
por envergar as camisolas
de Lopera do Benfica, Sporting e da
anos que passou no clube Portimão, onde estava
Foi o principal acionista da Luz, foi duas vezes internado desde que, a 12 de
Seleção Nacional. Natural de
do Betis de Sevilha campeão nacional e venceu março, sofrera um enfarte.
Portimão, e com passagens
durante cerca de duas uma Taça de Portugal e Tinha 57 anos.
por clubes como Torralta,
décadas e presidente uma Supertaça. Participou
Portimonense, Belenenses,
do clube entre 1996 e ainda em duas finais
Reggiana (Itália), Santa Clara,
2006. Começou como da Taça dos Campeões
dirigente, em 1989, sob Europeus, perdidas para o
a presidência de Hugo PSV Eindhoven (1988) e o
Galera, que em dezembro Milan (1990). Na primeira,
de 1991 o nomeou ficou célebre o episódio
vice-presidente para os em que, ao perder uma das
assuntos económicos. chuteiras quando seguia
isolado para o ataque,
Mais tarde, já durante o
Pacheco descalçou a outra
“Eduardo
seu mandato, conseguiu
duas promoções para e atirou-a ao solo. Em 1993, das Conquilhas”
o clube, o título da Taça foi, juntamente como Paulo Chamava-se Eduardo Santos,
do Rei de 2005 e a Sousa, protagonista do mas todos o conheciam
qualificação para a Liga Verão Quente que aqueceu e tratavam por Eduardo
dos Campeões. Manuel o futebol português, das Conquilhas, nome
Ruiz de Lopera morreu no quando ambos alegaram que deu à marisqueira
sábado, 23, aos 79 anos, salários em atraso para que abriu há 59 anos, na
na sua casa em Sevilha, trocar o Benfica pelo Parede, e que se tornou
não resistindo a Sporting. Terminada um dos mais prestigiados
problemas digestivos a carreira, Pacheco estabelecimentos da linha de
resultantes de uma e o Benfica Cascais. Morreu no domingo,
diverticulite. acabariam por 24. Tinha 93 anos.

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R ---------- I M AG E N S

Dias de celebração
Nesta semana, juntámos algumas imagens
de momentos especiais. Acontecimentos que,
por motivos religiosos, políticos, culturais
ou rituais, permitem aos povos reunir-se
em momentos de festa e de união

GETTYIMAGES

YOKOSUKA JAPÃO
Graduados da Academia de Defesa Nacional do Japão atiram os
bonés para o ar, aquando da cerimónia de formatura em Yokosuka,
província de Kanagawa, no último sábado, 23.

SEVILHA ESPANHA
À primeira vista, pode haver
quem se assuste com a
imagem e julgue tratar-se
de membros do Ku Klux
Klan. Nada disso. Estes são
penitentes da irmandade
de La Paz que, no dia 24,
em Sevilha, participaram na
procissão do Domingo de
Ramos, que marcou o início
da Semana Santa na capital
da Andaluzia.

28 VISÃO 28 MARÇO 2024


MACAU CHINA
Pendurada num gigante cacho de balões, uma artista dança sobre
as Ruínas de São Paulo, durante o Desfile Internacional de Macau,
no domingo, 24.

HAIDERABADE ÍNDIA
A última segunda-feira, 25,
foi dia de festejar o Holi,
o Festival das Cores com
que se celebra, na Índia
e em muitas outras partes
do planeta, a chegada
da primavera. Esta imagem
de dezenas de pessoas
a brincar com os gulal, os
pós coloridos, foi captada
em Haiderabade.

28 MARÇO 2024 VISÃO 29


A CIÊNCIA
DA MEMÓRIA
“SE BEM
ME LEMBRO...”
A admirável rede de ligações neuronais
é polivalente, mas frágil. À medida que se
desvendam os mistérios sobre o funcionamento
da memória e o impacto das ameaças a que
ela está exposta, novos estudos apontam
caminhos para preservar e fortalecer
a nossa “casa das histórias”
— PO R CL AR A SOARES*

30 VISÃO 28 MARÇO 2024


Título do programa
de palestras da RTP,
com autoria e apresentação
de escritor Vitorino Nemésio,
exibido entre 1970 e 1975.
Quem ainda se lembra?
Acontecimentos
emocionalmente
carregados, como
um acidente ou
uma discussão
violenta
que envolva
humilhação,
podem conduzir
a um “apagão”

mência, da comissão da revista cien-


tífica The Lancet. A boa notícia é que
radical, mas antes já tinha Nazismo Foram vozes à direita para se até aos 70 anos ainda se vai a tempo.
essas ideias em privado – necessários 30 passar a comemorar tam-
faltava-lhe era o à-von- a 40 anos para a bém o 25 de Novembro”, EVIDÊNCIAS PROMISSORAS
tade para as manifestar memória negativa do
nazismo se enraizar
recorda a investigadora. Sabemos quem somos graças às facul-
em público, por causa da Recuemos a 2007 para dades mnésicas; privados delas, dei-
na Alemanha
pressão social. lembrar que, num concur- xamos de ser donos do nosso destino.
Na nossa memória cole- so televisivo, Salazar foi Porém, é isso que acontece a um em
tiva, é dado como certo, eleito “o maior português cada 20 europeus com 65 e mais anos,
nota Filipa Raimundo, que de sempre”. Na altura, segundo as estimativas da Alzheimer
tivemos um “colonialismo muitas vozes se levanta- Europe. Seria mais ou menos pacífico,
mais ou menos bene- ram perante tal eleição, embora constrangedor e, por vezes,
volente” e que o Estado apesar de se tratar de
Novo “construiu a ideia
doloroso, aceitar que há tarefas que
uma quase ficção. Filipa
de império”. As crianças vão falhar se forem feitas ao mesmo
Raimundo diz que é
“aprendiam na escola que, “preciso desmistificar” o
tempo que outras – na cozinha, por
durante os Descobrimen- que aconteceu, pois as exemplo – ou que é mais difícil pla-
tos, Portugal comercializa- pessoas que participaram near coisas mas elas escaparem na
va especiarias e escravos, no concurso “não com- mesma, à revelia do visado (“tomei,
como se estivesse tudo no punham” uma amostra ou não, o medicamento?”).
mesmo pacote”. representativa da popula- O filme O Pai, uma adaptação da
De acordo com Francisco ção, nem em idade, géne- peça de teatro que Florian Zeller es-
Bethencourt, “parte da ro ou local de residência. creveu e realizou, ilustra bem o efeito
oposição ao regime de “Quem votou foi quem se devastador que a doença tem num
Salazar preferiu a com- mobilizou para tal.” idoso (protagonizado por Anthony
posição a uma política Talvez muitos não se Hopkins) e nos seus familiares.
clara de memória” sobre recordem, mas, a seguir a Quem estuda a fundo as patologias
o Estado Novo e sobre a Perante estes resultados, a Mark- neurodegenerativas, e mais especi-
Guerra Colonial. “É preciso
lembrar que as Forças acontecimentos test, empresa de estudos
de mercado, replicou a
ficamente a doença de Alzheimer,
sabe que se devem a “alterações mo-
Armadas, protagonistas do
25 de Abril, não estariam
traumáticos, pergunta num inquérito, leculares que resultam em défices da
esse sim, nacional, com
particularmente interes- existem todas as prerrogativas das
memória episódica e da navegação
espacial”. Quem o afirma é Tiago Gil
sadas num inquérito às
vicissitudes da guerra.” A processos sondagens. O vencedor,
nesse caso, foi D. Afonso
Oliveira, presidente da Sociedade
Portuguesa de Neurociências (SPN)
falta de trabalho de me-
mória, sublinha, “contribui
naturais de Henriques, seguido de
e docente da Escola de Medicina da
Luís de Camões e Fernan-
para a relativa amnésia” amnésia do Pessoa. Salazar viria Universidade do Minho. Ele e a equipa
de investigadores que coordena no
em relação à ditadura e ao
conflito nas colónias. coletiva que a ficar em 4.º lugar, com
11% dos votos. Afinal, há Instituto de Investigação em Ciências
O 25 de Abril sempre se
comemorou, mas, mais
evitam a memória – e a História não da Vida e da Saúde estão a fazer um
trabalho pioneiro neste campo, tendo
se apagou por completo.
recentemente, “cresceram recordação — Sara Rodrigues mapeado a composição molecular dos
lípidos em várias regiões do cérebro
afetadas pela doença.

28 MARÇO 2024 VISÃO 35


Irene Flunser Pimentel HISTORIADORA
Agora, a meta é “renormalizar es-
tas alterações no cérebro e, usando

“A memória do que aconteceu modelos genéticos da doença, indu-


zi-la em roedores, a fim de manipu-

antes do 25 de Abril não é querida” lar a enzima moduladora de lípidos


– fosfolipase D2 –, que parece ter
A especialista no período contemporâneo português, um efeito protetor”. Esta descoberta
lamenta a ignorância sobre o passado fascista é promissora, uma vez que, apuran-
do de que forma a composição dos
lípidos afeta estruturas importantes
Vamos ter 50 pública. Trata-se de uma (como as bainhas de mielina), se pode
deputados de um reconstrução moldada potenciar ligações neuronais.
partido de extrema- pela realidade atual, e “Estamos a tentar perceber como
direita na Assembleia não é previsível. Não é que este efeito protetor acontece”,
da República. Que conseguimos saber assinala, com entusiasmo, o investiga-
lugar ocupa o passado como será a memória dor. E adianta: “A compreensão deste
autoritário em de 2024 daqui a dois ou mecanismo pode levar à criação de
Portugal? três anos. novos biomarcadores para diagnos-
Penso que esse ticar a doença, avaliar a sua evolução
passado ocupa um O que um povo lembra e identificar novos tratamentos.”
lugar em Portugal. Esta ou esquece sobre o seu Atualmente, está em fase de avalia-
votação do Chega, com passado diz-nos que ção um novo medicamento, já aprova-
50 deputados, não tem tipo de povo é? do nos EUA: trata-se de um anticorpo
só que ver com esse Claro que diz, mas diz capaz de promover a redução de pro-
facto, mas sobretudo também muito sobre as teínas acumuladas (placas amiloides)
com um ciclo global elites que, ao fim e ao que afetam a memória. Dado que esta
de subida e ascensão cabo, conduzem esse terapia apenas atrasa ligeiramente a
da extrema-direita presente é a ascensão, povo. Neste momento, evolução clínica da doença, outros al-
populista, racista e em todo o lado, do se calhar, o Chega é vos terapêuticos são necessários, sen-
xenófoba. Portanto, populismo de extrema- uma dessas elites – e do a manipulação da composição dos
Portugal, aí, não se direita. está a levar os eleitores lípidos uma promissora alternativa.
distingue do resto da para uma determinada O presidente da SPN sublinha ain-
Europa nem do resto Por que razão se vota opinião. da que as condições neurodegenera-
do mundo. O facto de o Chega, esquecendo o tivas dependem de muitos fatores:
25 de Abril ter sido uma mal que os fascistas Há memórias “Além da idade e das variantes ge-
rutura provocada pelos nos fizeram? divergentes? néticas ligadas ao metabolismo dos
militares, através de um É muito curioso, porque A memória do que lípidos, o risco aumenta em função
golpe de Estado que é quase sempre assim; e aconteceu antes do 25 do tipo de alimentação e de outras
depois se transformou esta é uma das grandes de Abril não é querida. condições, como o stresse crónico e
numa revolução, atrasou qualidades que a Hoje, ainda não há a quadros depressivos, entre outros.”
a entrada da extrema- democracia nos trouxe: tendência para dizer,
direita no arco político. fazer-nos esquecer o por exemplo, “vamos EFEITOS CALEIDOSCÓPICOS
que acontecia antes. recuperar a PIDE” ou Entremos agora no caldo cultural
A memória coletiva É o efeito perverso da “vamos recuperar a em que crescemos. “Até aos 2 anos,
está em permanente qualidade de um regime censura”, embora se oiça o hipocampo ainda está a desenvol-
mudança em função democrático – que, claro, uma frase muito batida, ver-se e, até aos 5, a linguagem não
das realidades do permite o pluralismo por ignorância, que é: está bem desenvolvida”, nota Pedro
presente? de opiniões. Acaba por “Volta, Salazar, estás Albuquerque, professor no departa-
Penso que sim. As nos levar a esquecer perdoado.” Há muita mento de Psicologia Básica da Escola
realidades do presente o que não foi bom e, falta de conhecimento de Psicologia da Universidade do Mi-
têm muita influência na muitas vezes, ainda faz da História recente nho. Daí que as memórias de infância
forma como pegamos o contrário, “dourando a de Portugal, quer da sejam mais difíceis de codificar e, por
na memória coletiva e pílula”. ditadura quer do 25 de isso, de recordar: “Alguns estudos
como ela é formada. Por Abril. É inacreditável sugerem que, na primeira infância, as
mais que recordemos o A memória coletiva é como ainda existem memórias olfativas e táteis costumam
que se passou, através um processo social de pessoas que pensam, ser as mais presentes.” Quem viu o
de livros de História, reconstrução? por exemplo, que os filme de animação Ratatui, em que
conferências ou filmes, É sempre um processo últimos 50 anos foram o rato Remy toca o coração de um
a realidade presente de reconstrução, que anos perdidos. Não crítico gastronómico que se rende ao
é sempre aquela que depende muito também foram nada: foram anos prato cujo odor o transportava para
tem mais influência. E o da criação da opinião ganhos. — S.R. o seu universo familiar, percebe tam-
bém porque é que “comer é, hoje, uma
experiência”, observa o especialista.

36 VISÃO 28 MARÇO 2024


O que pensa das tecnologias,
que auxiliam a nossa memória,
incluindo a coletiva?
Vivemos numa era em que a
desinformação é real, e, detes-
to dizê-lo, vejo isso nos média.
Qual é o ponto de vista – e os
preconceitos – de quem fornece
a informação? A memória social
pode ser modificada, distorcida
ou formulada em função do con-
texto. Num dado momento, uma
figura histórica pode ser vista
como um herói; noutro, será um
vilão, mas é possível que volte a
ser, mais tarde, um herói!

E o que sente a respeito disso?


A memória cultural está sempre Conviver Estar com amigos, especialmente em contextos saudáveis,
a mudar. Há quem lhe chame como o exercício físico, é uma atividade que favorece a memória
“legado”, mas o termo é mal
aplicado, porque permite que
alguém seja lembrado de forma uma série de ciclos REM e não-REM, “é normal que tudo o que podemos
favorável, mesmo se fez coisas que produzem uma proteína associada projetar para o futuro tenha que ver
más, embora alegando boas a neurotransmissores que ajudam à com aquilo que retivemos do pas-
razões. consolidação das memórias proces- sado, com as experiências vividas e
sadas durante o dia”, constata Pedro testemunhadas, e de modificações que
Na era da pós-verdade, que Albuquerque. “Para se consolidarem, fazemos sobre o material que temos
riscos temos pela frente? as memórias têm de seguir mecanis- apreendido”.
A memória está a ser ameaçada mos neurobioquímicos, passando de
devido à desinformação e à pro- um processamento no hipocampo O CABO DAS TORMENTAS
liferação de informações falsas, para um processamento cortical [no Todos estes fenómenos fazem parte
que interferem na codificação córtex cerebral]”, acrescenta. de um cérebro funcional e emocio-
e comprometem o processo da Além dos estudos que sugerem nalmente são. O problema é quando
sua criação. Este problema tende que dormir menos de cinco horas é a memória se perde, ou está lá, mas
a agravar-se com a entrada em meio caminho para produzir falsas em parte incerta. Vivências traumá-
cena da Inteligência Artificial, lembranças, um estudo do Centro ticas, sobretudo em idades precoces,
uma vez que se torna cada vez Nacional Francês de Investigação quando o cérebro infantil ainda não
mais difícil ter uma visão objetiva Científica, publicado na revista Psy- é suficientemente robusto para lidar
e com distanciamento. chological Science, demonstrou ser com condições adversas (pobreza,
possível implantar memórias artifi- famílias disfuncionais, situações de
O excesso de dados a que ciais na mente de ratos adormecidos. abuso, negligência e de consumo de
estamos expostos tem custos Essas persistiram e refletiram-se no substâncias), têm um impacto devas-
para a saúde da memória? comportamento das cobaias, duran- tador no desenvolvimento cerebral.
Lembrar-se de muitas coisas te o estado de vigília, reforçando a “Perante uma ameaça, o córtex
nem sempre é bom ou desejável. função do sono na consolidação de pré-frontal é suprimido e todos os re-
Com frequência, tal impede que memórias. cursos cerebrais são mobilizados para
se veja com clareza o que está Um bom exemplo de como a rea- lhe fazer face”, começa por afirmar
em primeiro plano e em fundo, lidade supera a ficção reside no filme a psiquiatra Margarida Figueiredo-
dificultando o pensamento e a A Origem (Inception, no original), em -Braga, do Observatório do Trauma,
capacidade de fazer abstrações. que o cineasta Christopher Nolan ex- na Universidade de Coimbra. “Com
plorou esse labirinto no qual sonho e isso, é ativada a amígdala e reduz-se
Um exemplo de como aperfei- memória se fundem e nem sempre se a atividade do hipocampo, cuja fun-
çoar as competências mnésicas sabe em que dimensão se está. ção é distinguir passado e presente”,
no quotidiano? Diogo Telles clarifica ainda a im- prossegue a professora da Faculdade
Desenvolver a memória não portância da memória no quotidiano: de Medicina da Universidade do Porto.
verbal, prévia à linguagem. Ao “Os nossos comportamentos e ati- Acontecimentos emocionalmente
converter o que quer lembrar em tudes no presente resultam sempre carregados, como um atropelamento,
imagens insólitas e visualizá-las da evocação das memórias passadas. um acidente, uma discussão violenta
num mapa mental da sua casa ou Nós somos um conjunto de memórias que ponha em risco o estatuto ou
do seu bairro, reduz a probabili- (conscientes e inconscientes), e são envolva humilhação, podem gerar
dade de esquecimento. elas que conduzem e orientam todas estas alterações no cérebro e conduzir
as nossas escolhas e que determinam ao que vulgarmente se designa por
o nosso futuro.” Aliás, acrescenta, “apagão” (tradução do termo inglês

28 MARÇO 2024 VISÃO 39


Lembranças
há muitas
Para se compreender melhor a
memória, é importante conhecer os
shutdown).
diferentes tipos em que se divide. Nesses casos, uma pessoa fica com
Nesse sentido, o médico psiquiatra amnésia e não se lembra de nada.
Diogo Telles vai beber diretamente “Procura-se a dissociação como es-
ao manual de psicopatologia que tratégia de defesa para sobreviver ao
escreveu, no qual explica que ela trauma e à dor”, esclarece a psiquiatra,
“permite a capacidade de fixar, que também colabora no Instituto de
conservar e rememorar informação, Investigação e Inovação em Saúde, i3S.
experiências e factos”: Esta situação está bem retratada na
série DOC-Nas Tuas Mãos, do canal
IMEDIATA AXN, que está agora na sua terceira
Duração de segundos temporada. O guião conta a história
CURTO PRAZO OU DE TRABALHO real de um médico, Pierdante Piccioni,
Duração varia de segundos a minutos ex-diretor do Serviço de Urgência do
Hospital Maggiore di Lodi, em Itália,
REMOTA OU A LONGO PRAZO que, em 2013, acordou, após um aci-
Duração varia de minutos a décadas dente de carro, convencido de que se
encontrava em 2001, num mundo sem
Consoante as modalidades euros, smartphones ou redes sociais.
cognitivas, poderá também Na realidade, é uma experiência
falar-se de memória: mais comum do que se possa imagi-
EXPLÍCITA OU DECLARATIVA nar. No entanto, não existe qualquer
Dentra-se habitualmente em factos correlação entre a duração do coma e
e acontecimentos, e o próprio está a duração da amnésia. “Depois do que
consciente da sua utilização. aconteceu, muita gente acabou por vir
falar comigo, e sei de casos em que
SEMÂNTICA
estiveram em coma seis meses e per-
não existe referência ao tempo ou ao
deram um mês de memória, enquanto
espaço (situações de conhecimento
geral, mais teóricas – por exemplo, “o
outros estiveram em coma poucos
mundo é redondo”).
minutos e perderam 20 anos de me-
mória. O que faz toda a diferença é o
EPISÓDICA, BIOGRÁFICA tipo de lesão cerebral que foi sofrida, larga escala.
OU HISTÓRICA aliada à componente psicológica, que No artigo, mostrou-se também que
Referente a experiências do próprio tem que ver com a ansiedade e de- o aumento da atividade neuronal se
(por exemplo, “hoje à tarde, comi pressão, provocadas pela síndrome fazia acompanhar de memórias mais
uma sanduíche”). A memória de stresse pós-traumático”, explicou fortes e de condutas desreguladas, que
autobiográfica corresponde a à VISÃO o próprio amnésico (nunca deixavam de acontecer quando essa
acontecimentos da vida.
recuperou as memórias perdidas) na atividade era reduzida. Os cientistas
IMPLÍCITA OU DE PROCEDIMENTO altura da estreia da série, em 2020. avançaram com uma explicação: a
As memórias são obtidas automa- A perda de lembranças pode as- sinergia das células neurais gera uma
ticamente e utilizadas de forma sumir contornos dramáticos, mas memória poderosa no cérebro, mas
inconsciente (por exemplo, conduzir conviver com memórias negativas sem filtro, ou seja, a representação
ou andar de bicicleta). Refere-se a que invadem a mente a partir de uma interna das informações ligadas à
hábitos e capacidades motoras, sen- pista ou de um gatilho do ambiente é experiência não chega a fazer-se, e
soriais ou eventualmente linguísticas. igualmente perturbador. isso afeta o comportamento.
DE PROCEDIMENTOS Um estudo publicado na revista Aqui chegados, a pergunta que se
Relaciona-se com competências Cell, em janeiro, revelou os meca- coloca é óbvia: há saída possível des-
motoras (“o saber-fazer”); nismos pelos quais se criam memó- te inferno, ou seja, dessensibilizar o
rias poderosas que se traduzem em trauma e o sofrimento associado?
PERCETIVA OU PRIMING comportamentos descontrolados, Margarida Figueiredo-Braga conside-
Permite, por exemplo, identificar como acontece a quem sofreu trau- ra que sim: “Por vezes, mais tarde, no
formas e reconhecer imagens vistas
mas ou tem adições. A equipa liderada ambiente seguro de uma psicoterapia,
anteriormente.
pelo neurocientista britânico Charlie é possível revisitar essas memórias
DE CONDICIONAMENTO Clarke-Williams, da Universidade de intrusivas e persistentes.”
(ASSOCIATIVA) Oxford, analisou o comportamento
Permite aprendizagem através dos de roedores sob o efeito da cocaína PARA MEMÓRIA FUTURA
processos de condicionamento. e monitorizou ainda a atividade das Ainda não se sabe tudo acerca do
NÃO ASSOCIATIVA populações de células nervosas. O que acontece no cérebro, outrora de-
Está envolvida no desenvolvimento protocolo de investigação permitiu signado por “caixa negra”. Porém, os
de reflexos, habituação e demonstrar que a produção de me- avanços vão acontecendo. Tal como
sensibilização. mórias robustas se devia à cooperação se podem recuperar informações que
dessas células, espalhadas por várias pareciam apagadas para sempre e
áreas do cérebro, em simultâneo e em atenuar o ruído ensurdecedor de re-

40 VISÃO 28 MARÇO 2024


Recordações Nem todas as memórias
que vamos acumulando ao longo
da vida são verdadeiras

nam nos circuitos motores, como o da


doença de Parkinson”, avança Tiago
Gil Oliveira. No caso das memórias,
não é bem a mesma coisa: “Elas são
codificadas em circuitos e conjuntos
de neurónios, que são dinâmicos.
Ainda não se tem uma compreensão
total desses mecanismos para fazer
uma manipulação controlada e obter
um efeito concreto.”
Consola-nos pensar que, à medida
que o tempo passa, mesmo que se re-
gistem perdas cognitivas e mnésicas,
vai-se ganhando memória enciclo-
pédica (ou semântica). E, qualquer
que seja a linha do tempo em que nos
encontremos, podemos sempre liber-
tar espaço no disco descarregando in-
formações que não queremos perder
para auxiliares externos que hoje são,
na sua maioria, digitais.
Os psicólogos Sam Gilbert, do Ins-
tituto de Neurociência Cognitiva da
Universidade de Londres, no Reino
Unido, e Evan Risko, da Universidade
de Waterloo, no Canadá, chamaram
cordações aterrorizadoras, também já a isso “transferência cognitiva” (em
é possível resgatar memórias perdidas inglês, cognitive offload).
em doenças neurológicas (Alzheimer, Adotar a política dos lembretes
acidentes vasculares cerebrais, trau- para as coisas que se quer fazer (me-
matismos cranioencefálicos). mória prospetiva) ou para minimizar
Em fevereiro, uma equipa de inves- partidas do cérebro implica o ris-
tigadores da Wake Forest University e co de, se os perdermos (ou não nos
da Universidade do Sul da Califórnia, lembrarmos do código de acesso do
nos EUA, testou implantes neuronais, local virtual onde foram armazena-
instruindo-os para criarem códigos de dos), ficarmos sem nada. Por isso,
informação do hipocampo, e usou-os não depender deles em demasia é a
para desenhar um padrão de atividade melhor atitude. E, já agora, dar uma
das células nervosas ligado à recorda- oportunidade às nossas capacidades,
ção de informações. confiar nelas, ainda que imperfeitas,
Desenvolveram então um modelo “As memórias são através do esforço atencional, para
de computação que gerou padrões de apreciar plenamente as experiências
estimulação individuais e aplicaram codificadas em que vivemos, seja um concerto, uma
os códigos no hipocampo através de
neuroestimulação. Quase 40% dos
circuitos e conjuntos exposição ou outra atividade qualquer.
Confirma-o Pedro Albuquerque, a
pacientes com problemas de memória de neurónios. Ainda partir dos estudos sobre o tema: “Estar
conseguiram combinar as imagens
nos testes de memória visual quan-
não se tem uma presente sem estar sempre a registar o
que acontece facilita a sua recordação
do o procedimento foi feito nos dois compreensão total posterior; o suporte digital pode, mais
hemisférios cerebrais. Este estudo, tarde, fazer com que a memória para
publicado na Frontiers in Computa- desses mecanismos o que acontecer seja pior”.
tional Neuroscience, e liderado pelo
cientista Brent Roeder, abre a porta
para fazer uma Por outras palavras, numa era do-
minada pelas tecnologias, as melhores
à criação de próteses personalizadas manipulação memórias talvez sejam mesmo as dos
para facilitar a retenção de dados
neste tipo de doentes.
controlada” momentos que não se fotografam
nem editam enquanto ocorrem.
“Hoje, as novas técnicas de mani- TIAGO GIL OLIVEIRA csoares@visao.pt
pulação da atividade cerebral funcio- Neurocientista *Inês Cunha Direito

28 MARÇO 2024 VISÃO 41


NOVO CICLO
O XADREZISTA,
O PATINADOR
E O “ACTION MAN”
Os planos de Marcelo para evitar novas dissoluções,
as medidas imediatas de Luís Montenegro,
as estratégias de Pedro Nuno Santos e o legado,
em números, de António Costa. Saiba como serão
os primeiros dias do resto da legislatura
— PO R FI LI PE LU ÍS

42 VISÃO 28 MARÇO 2024


28 MARÇO 2024 VISÃO 43
UM
ÁRBITRO
QUE
TAMBÉM
JOGA
Marcelo procura margem

C
para não ter de dissolver o
Parlamento outra vez. Mas
Ventura é pedra no sapato

Considerado o “árbitro” do sistema, o


Presidente da República (PR), até seis
meses antes de completar o manda-
to, mantém intactos os poderes, in-
cluindo o de exibir o cartão vermelho
e dissolver, de novo, a Assembleia
da República. Mas, noutra metáfora
desportiva, ele é uma espécie de jo-
gador de xadrez. Assim é descrito e,
Alta tensão André Ventura deu
por vezes, se descreve, em privado – poderes, que, por exemplo, se con- por findas as tréguas dos últimos
Marcelo Rebelo de Sousa, quando vê cedeu o suplemento de missão aos meses. Gémeas brasileiras voltam
duas, três jogadas políticas à frente efetivos da PJ e, depois, já oficialmente à ordem do dia...
dos outros. A 7 de novembro de 2023, em gestão, se recusou estendê-lo às
quando António Costa apresentou a forças de segurança...
demissão, e no preciso momento em
que se discutia, na especialidade, o CHEGA, A PEDRA NO SAPATO
Orçamento do Estado (OE) para este Esta centralidade do Presidente da
ano, o Presidente previu um horizonte República, que se iniciou no momento
de ingovernabilidade. Vai daí, decidiu em que Costa se demitiu, deverá conti-
assegurar que o País seria dotado de nuar até ao final do mandato. Marcelo
um OE. A ideia do excedente orça- procurará usar toda a influência para
mental e da redução da dívida para fazer com que o executivo sobreviva até
baixo da barreira psicológica dos que outro inquilino ocupe o Palácio de
100% do PIB agradava a Belém, que Belém. Nessa perspetiva, a nota inédita
viu o documento como uma apólice de
seguro para os tempos que aí vinham:
sobre a liderança da oposição, no co-
municado de Belém em que indigita
Caso o Orçamento
com ou sem governo, Portugal ligava o Luís Montenegro como primeiro-mi- do Estado para
piloto automático. Essa circunstância
puxou pela (reconhecida) criatividade
nistro, é uma “instrução” do PR para
clarificar, desde já, como se arrumam 2025 seja rejeitado,
presidencial, que dissolveria a As-
sembleia da República au ralenti, à
as peças. Nessa nota, Marcelo “nomeia”
Pedro Nuno Santos como líder da
Marcelo pode não
espera da aprovação do documento, oposição, uma referência não usual em manter o critério
provocando grande perplexidade po-
lítica: já havia um primeiro-ministro
comunicados similares. No PSD, isto
é considerado um mau começo. Mas de 2021/2022.
demissionário, mas ainda não existia
um governo de gestão. Foi assim, com
a tempestade rebentou mais à direita,
com a indignação do Chega e de André
Tudo pela não
Costa demitido mas no pleno uso dos Ventura, ele próprio a preparar-se para dissolução
44 VISÃO 28 MARÇO 2024
Nomes para 2026
A estes se poderia juntar o de António
Costa, mas o ex-primeiro-ministro
aposta tudo num cargo europeu

ANDRÉ VENTURA LUÍS MARQUES


O REPETENTE MENDES
O crescimento O PRETENDENTE
do Chega faz de No seu espaço
André Ventura um de opinião, na
osso duro de roer SIC, o influente
nas presidenciais. comentador, que
A divisão, à direita segue, por esta
e à esquerda, do via, as pisadas de
campo democrático Marcelo, confirmou
tradicional pode a hipótese de
levar, no mínimo, uma candidatura
a uma segunda presidencial. Está
volta forçada por na pole position da
Ventura. grelha de partida...

PEDRO PASSOS MÁRIO CENTENO


COELHO A RESERVA
MARCOS BORGA

O INVISÍVEL Como governador


No ano passado, do Banco de
Passos Coelho Portugal, Centeno
admitiu ter ainda tem feito jus
“um horizonte à sua tese de
disputar esse estatuto com o líder do Belém, se estranha esta reação, visto pessoal e político”, que o cargo
PS. Desta forma, o Chega suspende as que a nota apenas refere “o óbvio”. Por numa iniciativa tem dimensão
tréguas eleitorais feitas com Belém e outro lado, porém, diz-se, no Palácio, organizada pelo política: ainda
Expresso. Uma agora aconselhou
retoma o seu discurso anti-Marcelo. que Marcelo quis deixar claro que o
candidatura prudência no uso
Um dos primeiros atos de retaliação País continua a dispor de dois blocos
presidencial de do excedente
surgiu imediatamente, com o Chega a democráticos dominantes e que a
Passos poderia orçamental. Quer
prometer que o grupo parlamentar vai alternativa ao PSD (ou à AD) é o PS. travar Ventura. Belém?
pedir explicações sobre o papel do PR O PR quer evitar, a todo o custo, ter
e do filho, Nuno Rebelo de Sousa, no de fazer uma nova dissolução da AR.
caso das gémeas brasileiras tratadas, Neste momento, o jogador de xadrez
em Portugal, com um dos medica- já pensa como vai “garantir” que o OE
mentos mais caros do mundo. Curio- para 2025 seja viabilizado. Mais pró-
samente, até agora, o Chega assestou as ximo dessa discussão, voltará a ouvir
baterias, neste caso, contra o governo todos os partidos representados na FRANCISCO AUGUSTO
e contra o então secretário de Estado Assembleia e espera que o PS siga o ASSIS SANTOS SILVA
da Saúde, Lacerda Sales, poupando seu exemplo, quando era líder do PSD O MODERADO O SUSPENSO
o Presidente. A VISÃO sabe que, no e Guterres primeiro-ministro, abs- O perfil conciliador A transferência
Chega, houve instruções para tratar tendo-se na votação do documento. de Francisco Assis, do governo para
com pinças o caso e para ensaiar uma Nem que seja à segunda: o critério que capaz de captar a Presidência da
progressiva colagem a Marcelo. A ex- presidiu à dissolução de 2021/2022 – votos à direita e AR foi a pensar
pectativa do Chega era de que Marcelo o chumbo do OE – poderá alterar-se. à esquerda, pode no trampolim para
não se opusesse à entrada do partido Nesta perspetiva, o futuro ministro das fazer de um político uma candidatura
num acordo de governo com o PSD. Finanças deverá preparar-se para apre- sem sucesso a Belém. Acabou
nas tentativas por não ser reeleito
Falhado esse objetivo, o Chega volta a sentar uma segunda versão da próxima
de chegar à deputado e a carga
fazer de Marcelo o inimigo público nº 1. lei orçamental. Mais uma vez como no
liderança do PS da derrota retira-
Esta perturbação pode ser uma das futebol, o Orçamento do Estado para
uma hipótese lhe hipóteses. Mas
mais incómodas pedras no sapato do 2025 pode ir a “prolongamento” ou ganhadora. nunca se sabe...
Presidente. A VISÃO apurou que, em mesmo a “penáltis”. fluis@visao.pt

28 MARÇO 2024 VISÃO 45


LUÍS BARRA

MONTENEGRO, Silva sobre como se deve formar um


governo, em ambiente de reclusão,
evitando fugas de informação e ou-

O PATINADOR
vindo um número muito restrito de
colaboradores. Em 1985, o então líder
do PSD hospedou-se numa estalagem,

A
fora de Lisboa, e blindou o governo
Como o novo primeiro-ministro quer dominar com a “virtude original” da discrição
e do sigilo. Luís Montenegro passou
os patins que alguns já lhe põem nos pés as últimas semanas largamente in-
e conseguir boa nota técnica e artística comunicável, tendo conversado com
pouca gente sobre a orgânica que tem
em mente, de tal forma que o único
nome mais ou menos conhecido, no
Antes mesmo de Luís Montenegro co- Saúde, Educação e Agricultura, procu- início desta semana, era Hugo Soares
meçar a governar, há quem preveja que, rando pacificar corporações como as – e mesmo esse para líder da bancada
em breve, lhe colocarão uns patins. Mas dos polícias, oficiais de justiça, médi- parlamentar e não para o executivo. E
se o equilíbrio é instável, a missão não cos, professores e agricultores. Estes dizemos “mais ou menos”, porque até
é impossível. Segundo se comenta nas são os quatro trabalhos de Hércules do essa notícia, transmitida por Marques
cúpulas da AD, o momento é de “ner- Governo de Luís Montenegro, para os Mendes, domingo, 24, à noite, na SIC,
vos de aço e coesão à prova de bala”, e próximos seis meses, sendo que alguns e confirmada por alguns meios de co-
isto, “independentemente do que cada resultados terão de ser apresentados municação no dia seguinte, pode ser
um pense, agora, sobre a estratégia de antes das eleições europeias, a 9 de ainda uma manobra de diversão, como
alianças ou acordos” (sempre com o junho. O primeiro-ministro indigitado, adverte uma fonte social-democrata...
espetro do Chega em pano de fundo). que deverá tomar posse na próxima Uma das principais preocupações
Localização do novo aeroporto de terça-feira, 2 de abril, mantém-se políticas de Montenegro é manter uma
Lisboa, nova tranche do PRR, plano de numa corrida contra o tempo. relação institucional impecável com o
emergência para as consultas no SNS, Segundo a VISÃO apurou, Mon- Presidente da República (PR), porque
estabilização da conflitualidade social tenegro terá recebido e tomado em “vai precisar muito dele”, conforme
nas áreas da Segurança Interna, Justiça, boa conta os conselhos de Cavaco é reconhecido em São Caetano, mas

46 VISÃO 28 MARÇO 2024


Em frente Novo primeiro-
-ministro precisa de plano
de ataque que permita vitória
nas europeias e viabilização
do OE para 2025

sem, no entanto, consentir que passe tes. Montenegro pondera ainda, mas mais seguro, por forma a reforçar
a ideia de que é Marcelo quem man- com muitas dúvidas, apresentar um o bloco da direita, e isso tem estado
da no Governo. Montenegro tentará Orçamento Retificativo, para acomo- nas cogitações dos estrategos da São
manter a relação no plano estrita- dar algumas das promessas, mas isso Caetano. Até à última hora, Rui Rocha,
mente institucional, recuperando uma depende da negociação que começará líder dos liberais, tem mostrado in-
velha ideia de Cavaco, de 2006 – a a fazer com vários setores profissio- teira disponibilidade para fazer parte
“cooperação estratégica”. nais, “no dia seguinte ao da tomada da “solução”. Aliás, as suas palavras
Embora ambos os protagonistas de posse”, segundo garantia de um sobre o “momento de recato”, que
sejam institucionalistas, Marcelo e dirigente da AD. Na verdade, o líder deve ser agora respeitado, indicam,
Montenegro já tiveram os seus mo- do PSD prefere não ter de apresentar segundo fontes social-democratas,
mentos de atrito. Num dos casos mais nenhum retificativo e usar parte do o alinhamento com a cartilha “mon-
embaraçosos, o líder do PSD ficou em excedente orçamental para apagar já tenegrista” no que diz respeito aos
silêncio, deixando a António Costa a alguns fogos, guardando a “artilharia passos sigilosos que deviam conduzir
tarefa de defender o Presidente, quando orçamental”, sobretudo algumas boas à formação do Governo conhecido
este cometeu a gafe sobre os casos de notícias, dificilmente recusáveis pela nesta quinta-feira...
pedofilia na Igreja, ao considerar que oposição, para o documento referente Entretanto, entre as medidas mais
“tinham sido poucos”. Há cerca de um ao exercício de 2025. reclamadas – e às quais Montenegro
ano, Marcelo também deu uma entre- prometeu responder – estão a ex-
vista ao Público, que Montenegro não PROMESSAS EM “LEASING” tensão do suplemento de missão às
gostou de ler. Nela, o PR afirmava que O aspeto comunicacional é importan- forças de segurança – €155 milhões
“uma alternativa, para ser forte, tem te, sobretudo nesta fase até às euro- anuais, permanentes no futuro – e
de ter um partido liderante no respe- peias, que a AD “precisa de ganhar”, a reposição do que falta do tempo
tivo hemisfério [a direita]” e que o PSD nas palavras de um seu dirigente. Um congelado nas carreiras dos profes-
se constituía como “uma alternativa reforço da votação na AD tornaria sores – €300 milhões. Mas o tempo
fraca na liderança”. O presidente soci- mais difícil, por exemplo, a um der- dos professores é uma gota no oce-
al-democrata acusou o toque e sentiu rotado Pedro Nuno Santos, chumbar ano dos vários congelamentos por
a necessidade de vir a terreiro fazer “a de caras um Orçamento do Estado e que passou a Administração Pública,
defesa da honra”: “Asseguro ao País, aos provocar novas eleições (partindo do no período da Troika. É previsível, e
portugueses e ao Presidente da Repú- princípio de que um Chega em alta o PSD prevê, que outros sindicatos,
blica que o PSD é alternativa ao governo também esteja interessado nelas). resolvido o problema dos professo-
do PS”. Entretanto, numa “coincidência Alargar o acordo da AD à IL seria res, exijam tratamento igual. O que,
arranjada”, os dois já se tinham cruzado segundo antigas contas feitas por
na BTL, aproveitando para dizer, ambos, António Costa, mesmo que exagera-
que falavam muito ao telefone. “Quase das, pode significar €900 milhões de
dia sim, dia sim”, acrescentou, de forma despesa adicional permanente. Entre
algo maliciosa, o Chefe de Estado... os cenários da AD, está a possibilidade
de alguma contestação social – mas a
MULHERES, PRECISAM-SE! promessa era negociar com os profes-
Uma das dificuldades, que veremos, sores. Desta maneira, segundo fontes
nesta quinta-feira, se foi resolvida ou da coligação, “os outros casos terão de
não, passa por encontrar mulheres ser avaliados ao longo da legislatura”.
para o elenco governamental. Mui- O próprio descongelamento da car-
to tempo afastado do poder e com reira dos docentes deverá ser faseado,
poucos quadros óbvios, o PSD de o que transforma a possível resolução
Montenegro tem uma ainda maior es- das várias situações que possam surgir
cassez de competências femininas que Depois de reposto numa espécie de “solução leasing”, a
encaixem, de caras, num governo da diluir ao longo do tempo.
República. Teresa Morais e Margarida o tempo de serviço Também aqui a disponibilidade do
Balseiro Lopes (mas também Filipa
Roseta) foram nomes que circularam
dos professores, PS para um Orçamento Retificativo
é encarada com cuidado. Fernando
em recentes “mentideiros”. Pesos-
-pesados, como Miguel Pinto Luz
virão outros Medina diz que estes referidos €155
mais €300 milhões são perfeitamente
ou Paulo Rangel – nem por isso, no setores exigir acomodáveis no OE vigente – mas o
passado, especialmente próximos do
líder –, deverão fazer parte do núcleo tratamento igual. discurso socialista sobre os perigos
da “caixa de Pandora”, ou seja, de que
político restrito, bem como o futuro
ministro das Finanças. O que preside
Montenegro vai outros setores profissionais tragam
um movimento reivindicativo em
às preocupações de Montenegro é dis- caminhar em gelo cascata que onere insuportavelmente a
por de um governo politicamente ex-
periente e coeso, que não dê pretexto fino, procurando despesa, desvaneceu-se por completo.
Seja como for, Luís Montenegro
para casos e casinhos e que possa dar
indicações de capacidade técnica para
diluir soluções vai caminhar por cima de gelo fino.
Resta saber se vai conseguir patinar.
resolver os problemas mais premen- no tempo fluis@visao.pt

28 MARÇO 2024 VISÃO 47


O HOMEM
QUE NÃO
ARRASTA OS PÉS
Câmara, luzes e, sobretudo como diziam

N
os cartazes, “ação”: Pedro Nuno Santos fala como
se fosse o primeiro-ministro. Resta saber se
António Costa não vai andar por aí...

“Não quer dizer que seja a última vez por forma a lançar “de uma vez por
que nos encontramos nestas encruzi- todas” a obra do novo aeroporto de
lhadas do serviço de Portugal.” Estas Lisboa. No fundo, Pedro Nuno fala
palavras do Presidente da República, como um primeiro-ministro, apro-
à saída do último Conselho de Minis- veitando o silêncio de Montenegro,
tros do consulado de António Costa, concentrado, nestes dias, na difícil
reunião a que Marcelo, por cortesia formação do Governo.
do primeiro-ministro, na despedida, A intervenção de Fernando Me-
presidiu, significam o aval presiden- dina (que não gostou de ver o PS tão
cial à eventual candidatura de Costa apressado em “emendar” o seu or-
ao cargo de presidente do Conselho çamento), garantindo que o Governo
Europeu, ainda neste ano. Esta seria pode tomar as medidas prometidas
a forma mais óbvia de ambos se en- no quadro do que está em vigor, retira
contrarem numa tal “encruzilhada”, importância às declarações de Pedro
ainda durante o mandato do Presi- Nuno, o que terá provocado mal-es-
LUCÍLIA MONTEIRO

dente da República, que termina no tar na direção do PS. De ora avante,


início de 2026. o secretário-geral fica a saber que, a
Alheio a estes salamaleques, o prazo, terá ali um adversário interno
secretário-geral do PS, Pedro Nuno – pelo menos, é assim que está a ser
Santos, procura “descostificar” o interpretada a opinião não solicitada
partido, começando por anunciar o do ministro cessante das Finanças...
aval socialista a um Orçamento Reti- Esta oposição construtiva de Pe-
ficativo (do Governo AD) que permita dro Nuno procura, como nos dizem Pedro Nuno
aumentar a despesa e, assim, tomar
medidas que, embora reivindicadas
no PS, construir a imagem de um
político responsável (em oposição a
aproveitou
por vários setores da sociedade e so- imaturo...) e de um homem de Estado. a reclusão
cioprofissionais, como o dos profes- No entanto, é pouco crível que esta
sores, o governo de Costa não tomou. boa vontade se estenda à aprovação de Montenegro,
No Largo do Rato, o “sim” a um
Orçamento que venha retificar o de
do Orçamento do Estado (OE) para
2025. Em círculos socialistas, ainda
ocupado a compor
Fernando Medina, e que está em vi-
gor, é uma forma de corrigir o tiro da
assim, não passou despercebida a
nuance entre “jamais o PS viabiliza-
o Governo, para
dupla Costa/Medina e associar o PS às rá um Orçamento da AD” (versão da dominar a agenda
boas notícias, obrigando o Governo a
partilhar os louros da respetiva apli-
noite eleitoral) e “dificilmente o PS vi-
abilizará um tal Orçamento” – versão e dizer o que
cação. Mas é também uma forma de
recuperar o estribilho “pedro-nunis-
posterior. Entre alguns dos apoiantes
de Pedro Nuno, como Francisco Assis,
deve ser feito,
ta” de “deixar de arrastar os pés”, bem admite-se uma postura equivalente num Orçamento
como de manter a iniciativa da agenda
política, transmitindo uma imagem
à que teve Marcelo Rebelo de Sousa,
quando, na qualidade de presidente Retificativo.
de ação e de fazedor. Nesta perspe-
tiva está, também, a pronta disponi-
do PSD, viabilizou três Orçamentos
consecutivos de António Guterres.
Medina não
bilidade para reunir com o Governo “Só que”, contrapõe uma fonte soci- gostou...
48 VISÃO 28 MARÇO 2024
Fazedor No governo ou na
oposição, a mesma luta: “O País
tem de andar para a frente!”

PS será, mais do que nunca, alterna-


tiva. Com mais sorte ainda, haverá
segundas legislativas no espaço de
um ano. A escassa margem de votos
de diferença – pouco mais de 54 mil,
equivalente a um Estádio de Alva-
lade... – dá a Pedro Nuno Santos “a
certeza” de que, daqui para a frente,
o PS, já recomposto e livre da heran-
ça de Costa, só pode melhorar – e,
portanto, ganhar. Este seria mesmo o
cenário preferível para o secretário-
-geral socialista que, em privado, vê
Luís Montenegro como “um primei-
ro-ministro de transição”.

O FATOR COSTA
Quando Mário Soares abandonou a
liderança do partido, para ocupar o
cadeirão de Presidente da República,
foi muito difícil para qualquer um dos
sucessores afirmar-se. Sucessivamen-
te, Almeida Santos, Victor Constâncio,
Jorge Sampaio e António Guterres
veriam o então PR a sobrepor-se-
-lhes no palco ou a condicionar-lhes
as próprias estratégias. António Costa
prometeu, porém, que “não vai andar
por aí”. Ainda assim, a possibilidade
de ocupar o almejado cargo europeu
fará com que o protagonismo do ex-
-primeiro-ministro venha a emergir,
mesmo que não se pronuncie sobre
política interna. O PR, como vimos,
já deu o seu aval e é possível que
Marcelo também convença o pró-
prio Governo de Montenegro a fazer
campanha europeia pelo socialista. O
que já desencadeia outra especulação:
será que o apoio de Montenegro à
candidatura de Costa poderá servir
alista de linha um pouco mais dura, CHUMBAR O ORÇAMENTO de moeda de troca para a viabilização
“nessa altura ambos os partidos se Segundo nos garantem, Pedro Nuno de um primeiro Orçamento?
irmanavam no objetivo comum de fa- Santos precisa de saber o resultado Resta saber se Costa poderá avan-
zer Portugal aderir à moeda única; as das europeias antes de decidir, em çar, ou se terá aceitação, caso o envol-
circunstâncias atuais são diferentes”. definitivo, o que fará aquando da vimento na Operação Influencer não
Neste momento, a prioridade de votação do OE para 2025. Para já, for, entretanto, descartado – embora
Pedro Nuno Santos é, a curto prazo, mantém o rumo, que não diverge do saibamos que a própria presidente
encontrar um nome forte para liderar que o próprio Presidente da Repúbli- da Comissão Europeia, Ursula von
a lista do PS ao Parlamento Europeu. ca definiu, na nota emitida quando der Leyen, também estava a braços
Aqui, o nome mais óbvio seria mes- da indigitação do novo primeiro-mi- com uma investigação sobre um
mo o de António Costa, que poderia nistro (ver páginas 44 e 45): liderar caso como ministra da Defesa da
imitar a atitude de Mário Soares no a oposição. Se ganhar as europeias, Alemanha quando foi nomeada para
tempo de Guterres. Na altura, o an- não há dúvidas: durante a discussão o cargo… Seja como for, António
tigo Chefe de Estado, já depois de ter do OE, terá oportunidade de obrigar Costa continuará a ser figura central
sido Presidente da República, aceitou o PSD a “pedir batatinhas” ao Chega, na política nacional – e Pedro Nuno
sujeitar-se à prova das eleições eu- cujos votos favoráveis permitiriam a Santos prepara-se, com bonomia,
ropeias, sob o pretexto de que, se os sobrevivência do Governo, e encostar para lidar com isso. Como diz um seu
socialistas europeus tivessem a mai- o PSD à direita radical e populista, colaborador, “o Pedro Nuno tem uma
oria em Estrasburgo, seria candidato retirando a Ventura argumentos para personalidade fortíssima e, portanto,
a presidente do Parlamento Europeu, se reivindicar como líder da oposi- uma vida própria insuscetível de ser
o que não se verificou. Ainda assim, o ção. E esta é a solução mais óbvia. ofuscada por quem quer que seja”.
“velho leão” cumpriu o seu mandato. Com sorte, o OE será aprovado e o fluis@visao.pt

28 MARÇO 2024 VISÃO 49


À BOLEIA
DAS “CONTAS
CERTAS”
Costa e Medina romperam com a tradição
do despesismo e alcançaram o maior
excedente orçamental em democracia.
O legado vai permitir um brilharete

O
ao Governo da AD
— POR CLARA TEIXEIRA

MARCOS BORGA

O novo ministro das Finanças da AD em €155 milhões anuais, a reposição À custa do crescimento económico,
– à hora do fecho desta edição, o seu do tempo de serviço congelado dos gerado em larga medida pelo turismo,
nome ainda era desconhecido – re- professores, durante os próximos cin- do aumento da receita fiscal “superior
ceberá de herança do governo socia- co anos, orçado em €300 milhões, e ao previsto em €1 135 milhões” e da
lista uma almofada financeira de €3 um plano de emergência para o SNS, execução da despesa “em €438 mi-
193,5 mil milhões, o valor do maior que pode envolver aumentos salariais lhões abaixo do estimado”.
excedente orçamental em 50 anos reivindicados pelos médicos e outros Ao mesmo tempo, Medina alertou
de democracia. Fernando Medina, o profissionais de saúde. Com ou sem para os efeitos futuros no equilíbrio
ministro cessante, vai oferecer-lhe Orçamento Retificativo. Um ponto das contas públicas dos aumentos de
de bandeja os meios para fazer um importante a ter em conta é o facto salários e das pensões (que estimou
brilharete e, se assim o entender, sa- de esta almofada atualmente existir, em, respetivamente, €1 000 milhões
tisfazer as reivindicações das classes sim, mas o custo com esses aumentos e em €1,5 mil milhões) e das neces-
profissionais – polícias, professores, de classes profissionais públicas fica sidades de investimento público, na
médicos... –, que contribuíram para para sempre, ou seja, é despesa fixa transição energética e digital, e em
avolumar o descontentamento que e permanente em cada um dos anos. segurança externa. “É fundamental
fez com que o PS perdesse as eleições. O excedente de 1,2% do PIB em que Portugal mantenha políticas que
Compete agora ao futuro titular das 2023, já considerado “excessivo” pelo assegurem o equilíbrio orçamental e
Finanças decidir o que fazer com este presidente do PS, Carlos César, não a redução da dívida pública. Só esse
dinheiro. Joaquim Miranda Sarmento, é uma má notícia para a política das caminho nos permitirá apoiar as fa-
coordenador do programa económico “contas certas”, como recordou o pró- mílias e a economia em momentos de
da AD, defendeu antes das eleições prio ministro das Finanças a seguir crise e preservar e continuar a reforçar
que “os excedentes devem servir para ao anúncio oficial. Num comunicado, a credibilidade externa do País”, disse.
reduzir a dívida pública”. Mas não Fernando Medina afirmou que as re- Mas o legado socialista não se es-
faltam “fogos” para apagar, e o pri- duções do défice e da dívida (que caiu gota nas “contas certas”. Até 2026,
meiro-ministro indigitado, Luís Mon- para 99,1% do PIB) são “excelentes Portugal beneficiará das verbas do
tenegro, pode ter um entendimento notícias para o País” e defendeu que o Plano de Recuperação e Resiliência
diferente. No topo das prioridades do excedente orçamental resulta “de boas (PRR), cuja quinta tranche, no valor
novo Governo poderá estar a atribui- políticas públicas, que promoveram o de quase €2,8 mil milhões, está agora
ção do suplemento de missão às forças crescimento económico, o emprego e dependente da aprovação definitiva,
de segurança (PSP e GNR), estimado a melhoria dos rendimentos”. Como? pelo novo Governo, de três diplomas

50 VISÃO 28 MARÇO 2024


Fernando Medina O último ministro das
Finanças de António Costa congratulou-se
com as “excelentes notícias para o País”,
mas deixou avisos ao governo que se segue

As contas certas da relativos à orgânica da Administração PRR: Pagamentos


governação socialista Pública e do mercado de capitais, que
o anterior executivo deixou prepara-
ultrapassam
No decorrer dos dois mandatos de António dos. Essa quantia, que na melhor das €4 mil milhões
Costa, a economia deu um trambolhão
hipóteses poderá chegar até julho, Até 20 de março, Portugal recebeu 35%
durante a pandemia e a inflação disparou
com a guerra na Ucrânia. Mas o crónico défice será uma mais-valia política para os dos fundos totais do PRR e distribuiu
orçamental transformou-se no maior primeiros meses de governação de mais de 18% pelos beneficiários
excedente em 50 anos de democracia e a Luís Montenegro, numa altura em que
dívida pública desceu abaixo dos 100% do PIB apenas 20% da dotação da “bazuca
PRR
europeia” se encontra executada. Dotação total
VARIAÇÃO DO PIB (%) €22 216
O SLOGAN DE CENTENO milhões
5,7 6,8 O conceito das “contas certas”, trans-
3,5 2,8 2,7 formado em slogan da governação
1,8 2 2,3 2* socialista, foi usado pela primeira vez Pagamentos
em 2017 pelo ex-ministro das Finan- em curso
ças Mário Centeno, para se referir à €594
milhões Pagamentos efetuados
execução do primeiro orçamento da euros €4 073 milhões
-8,3 Geringonça, que contribuiu para a sa- (18,3% da dotação total)
ída de Portugal do Procedimento por
2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023 2024 Défices Excessivos. Na altura, Centeno VALOR TRANSFERIDO PARA PORTUGAL
deu-lhe um significado diferente da-
SALDO ORÇAMENTAL (% DO PIB) quele que António Costa se apropri-
1,2
ou. O antigo titular das Finanças não Por transferir
se referia à meta do défice zero, ou € 14 444
0,1 0,2** mesmo ao excedente orçamental atin- milhões
0
gido pela primeira vez em 2019 (0,1%
-0,3 -0,3 do PIB), mas à execução rigorosa do €7 772
orçamento aprovado no Parlamento, milhões
-1,9 garantindo que as receitas cobriam as 35% da dotação
-3 -2,9 total
despesas e assegurando a redução da
-4,4 dívida pública.
Apesar de não existir na ciência CANDIDATURAS
-5,8 económica, o conceito de “contas cer-
2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023 2024 tas” apareceu nos programas eleitorais
do PS e do próprio PSD e passou a Submetidas
fazer parte do léxico político nacional 312 636
INFLAÇÃO (%)
como uma garantia de boa governa-
7,8 ção. O excedente histórico de 1,2% do Aprovadas Analisadas
PIB em 2023 aí está para confirmá-lo. 164 425 207 267
csteixeira@visao.pt

4,3

2,4 * A MAIOR FATIA DOS PAGAMENTOS


FOI PARA:
1,4 1,3
1,0
0,5 0,6 0,3 VALORES EM MILHÕES DE EUROS
0
2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023 2024
Miranda Empresas 1 492
Sarmento, Entidades públicas 995
DÍVIDA PÚBLICA
coordenador Empresas públicas 455
131,5
134,9
económico da AD, Autarquias e áreas metropolitanas 352
131,2
126,1
121,5 defendeu antes Escolas 274
124,5
116,6
112,4
das eleições que Instituições de Ensino Superior 173
**
98,9 “os excedentes Famílias 162
99,1
devem servir Inst. economia solidária e social 89
2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023 2024
* previsão do Banco de Portugal, **previsão do OE 2024
para reduzir Inst. sistema científico e tecnológico 81

FONTE INE, OE 2024, Banco de Portugal MT/VISÃO a dívida pública” FONTE Relatório semanal monitorização do PRR (20 março 2024)
MT/VISÃO

28 MARÇO 2024 VISÃO 51


Mariana Vieira da Silva
Ministra da Presidência

O Pedro Nuno
também pertencia
ao núcleo duro
de António Costa
Logo após o último Conselho de Ministros da era Costa,
presidido por Marcelo Rebelo de Sousa, Mariana Vieira
da Silva falou à VISÃO do legado e deixou recados.
Porque o “mundo não nasce quando entra um governo
novo...” Uma entrevista à flor da pele

P
— P O R N U N O M I G U E L R O P I O T E X T O E J O S É C A R LO S C A R VA L H O F O T O S

Pronta a entregar a quem se segue briefings dos Conselhos de Ministros


a chave do gabinete na Presidência daqueles momentos difíceis. Aguar-
do Conselho de Ministros, Mariana do quem vier para este espaço já com
Vieira da Silva assegura que a transi- a secretária limpa.
ção entre o Governo socialista e o de Está a levar à letra o que António
Luís Montenegro não se pautará pela Costa pediu: fazer uma transição
falta de informação e pelos alçapões diferente da que foi feita pelo go-
herdados de Passos Coelho. Para a verno de Passos Coelho.
ministra da Presidência, que, desde Como secretária de Estado de então,
2015, integrou sempre o núcleo duro não tive ninguém a passar a pasta. De
de António Costa, o PS não terá facto, o que encontrámos naqueles
conseguido explicar aos portugueses primeiros tempos foi um banco para
a sua política das “contas certas” e resolver, em 20 dias, um monte de
critica a possibilidade de o PSD vir a outros problemas, que não estavam
reformular as linhas orientadoras do na mente de ninguém, e, depois,
Plano de Recuperação e Resiliência todo um clima, principalmente junto
(PRR). Vista, durante muito tempo, das instituições europeias, de desva-
como possível sucessora de Costa, lorização, de suspeição e de agitação Mas, por coincidência, ao mesmo
assegura que a surpresa da demissão de todos os fantasmas. tempo, soube-se que as contas pú-
do chefe do Governo a impediu de Por que razão o Governo sentiu blicas, mais do que certas, estavam
pensar entrar na corrida à liderança necessidade de entregar uma pasta muito boas.
do PS – mas que tal também nunca aos jornalistas e ao Presidente da Sempre olhámos para as contas
foi equacionado por si. República, esta segunda-feira, com certas como resultado de políticas e
Estou surpreendido com este seu os dossiers que ficam pendentes? não como algo que procurámos. O
gabinete em polvorosa. Já está a Isso não é comprometer uma es- País precisava de baixar a sua dívida
antecipar-se à chegada de quem a tratégia de quem aí vem? e o seu défice. E demonstrámos que
sucede? Não. Quando um governo acaba da conseguíamos fazê-lo com políticas
Tenho oito anos e meio de coisas. forma como este acabou, de for- muito diferentes do que se dizia ser
Se começasse a fazer isto lentamen- ma não previsível, e no contexto possível. Faz dia 30 um ano, quando
te, não chegaria ao dia com tudo de grandes reformas do PRR, deve saíram os resultados do saldo posi-
arrumado. Sou daquelas pessoas haver informação sobre os diplomas tivo, que tinha sido também melhor
que gostam de guardar as notas de que ficam prontos e o ponto de si- do que o previsto, o Governo apre-
reuniões todas, e isso implica alguma tuação dos diferentes investimentos. sentou um pacote muito significativo
organização. Esta é a minha forma É também uma forma de mostrar de medidas de combate ao aumento
de lidar com este período. Se um aquilo que, nos últimos meses, não do custo de vida e aumentámos os
dia me apetecer escrever sobre este foi muito fácil de mostrar, porque salários mais do que estava previs-
momento, saberei onde tenho os em período eleitoral os governos têm to. Quando se fala de contas certas,
meus cadernos, as minhas notas dos limitações de comunicação. pensamos sempre num número que

52 VISÃO 28 MARÇO 2024


Balanço Mariana Vieira da Silva
defende que o PSD deve criar as
condições de governabilidade que,
enquanto esteve na oposição, nunca
deu ao PS

tória que se contará destes oito anos


e alguns meses é muito mais sobre
o que foi possível alcançar e muito
menos sobre os acontecimentos des-
te último ano. Quem vive em Setúbal
e trabalha em Lisboa não esquece-
rá que pagava 200 euros de passe
e agora paga 40; uma família, com
três filhos, que chegava a setembro e
pagava os manuais escolares todos,
agora não, e isso não esquecerá. E
havia taxas moderadoras, que aca-
baram.
Por que razão o PS não conseguiu
acenar com essas conquistas na
campanha eleitoral?
Porque no período de pico de in-
flação é muito difícil, e pode até às
vezes parecer contraditório, levar as
pessoas a pensarem que, no longo
termo, têm um aumento e uma me-
lhoria da qualidade de vida. Mas não
sou historiadora e muito menos me
cabe fazer a história destes oito anos.
Quando a inflação começou a dar
ajuda ao excedente orçamental,
não devia o Governo ter lançado
obras públicas, que fizessem valer
o epíteto de “fazedor” de que Antó-
nio Costa se gabou?
Tenho dificuldade em ouvir a ex-
pressão “ajuda” da inflação sem
reagir, porque a inflação pode ter um
efeito contabilístico positivo, mas foi
difícil para a vida das pessoas. O Go-
verno nunca fez previsões económi-
cas muito distintas das organizações
internacionais. Portugal conseguiu
manter níveis de crescimento signi-
ficativos, apesar de um contexto In-
ternacional adverso, mas que não era
previsível. O défice não se adivinha,
fica e não na quantidade de coisas prevê-se. O importante é que peran-
que passa a ser possível fazer. Eu te o excedente houve a vontade de o
prefiro sempre esta segunda abor- devolver e de permitir aos cidadãos
dagem. beneficiarem dessa boa situação das
Estas contas certas parecem não contas públicas.
ser sentidas nas vidas dos portu- “A história que Este excedente não foi “um exces-
gueses, a começar pelos funcioná-
rios do Estado.
se contará destes so”, parafraseando Carlos César?
Só podemos considerar um excesso
Gostaria de separar dois momentos
muito claros, ao longo dos últi-
oito anos e alguns algo que pudéssemos prever. Todos
os indicadores apontavam para uma
mos anos. Por um lado, tivemos um meses é muito mais situação económica diferente da que
aumento brutal do salário mínimo,
na ordem dos 62%, um aumen- sobre o que foi ocorreu.
Mas no final do ano, o Ministé-
to de quase 30% do salário médio
e, este ano, o aumento dos salários
possível alcançar rio das Finanças já sabia o que aí
vinha, tanto que correu a saldar
foi muito superior àquilo que era o e muito menos dívida pública.
acordado com os sindicatos. Outra
coisa distinta é o sentimento que sobre Certo. Mas uma coisa é a redução
da dívida, que é um objetivo im-
muitas pessoas têm, que é legítimo e
normal, após dois anos de inflação e
os acontecimentos portantíssimo, outra coisa foi, em
dezembro, quando se percebeu que
um aumento do custo de vida. A his- deste último ano” a economia esteve melhor do que o

28 MARÇO 2024 VISÃO 53


previsto, querer aproveitar a margem planeamento, quando o objetivo da sim, terá um impacto nos calendá-
orçamental para tomar medidas, reforma é precisamente reforçá-los. rios. O País discutiu de forma muito
como fizemos todos os anos. Só que O governo que chega vai confron- alargada os princípios do PRR. Cabe
houve um contexto político diferente tar-se com a necessidade de ter ao próximo governo governar, e go-
que o limitou. uma orgânica diferente da que vernar implica muitas vezes terminar
Mas compreende a crítica de Car- existiu. o trabalho dos governos anteriores –
los César? Quando chegámos, tínhamos um que, neste caso, se traduz em imensa
Compreendo a sensação de poder banco para resolver. Uma reforma obra lançada. O mundo não nasce
ser difícil de explicar. Mas o momen- da administração pública, no sentido quando chega um governo novo.
to temporal em que as coisas ocor- do seu fortalecimento, não pode ser O PSD, na altura, disse que o PRR
reram não é comparável. A economia vista como algo que vai penalizar o se foca muito pouco na economia e
correu melhor do que o previsto e, próximo governo. Deixamos pronto no apoio às empresas.
como o Ministério das Finanças teve todo o trabalho preparatório de O PSD pode definir as suas priori-
oportunidade de explicar, uma parte articulação com as áreas governati- dades. Mas se me pergunta se acho
deste saldo vem de os salários terem vas e de audição de peritos. Não faz bem que façam uma grande revisão
crescido mais do que tínhamos pre- sentido haver sete secretarias-gerais do PRR, acho mal e quase nenhum
visto, assim como as contribuições no mesmo edifício, quando podemos país a fez, porque o calendário é
para a Segurança Social. Isso é que otimizar, desde o processamento de apertado.
é relevante: a riqueza nas mãos das salários à aquisição de compras pú- Convidar Marcelo para presidir o
pessoas. blicas centralizadas. último Conselho de Ministros foi
Há a sensação de frustração de sair O desconforto em relação a Mar- para serenar a relação turbulenta
com contas certas que vão ser usa- ques Mendes também se esten- entre o Governo e Belém, nos últi-
das por outros? deu ao PRR. A quinta tranche de mos dois anos?
Não consigo ter esse pensamento. financiamento não veio porque o Não sei porque diz isso. Se fala do
Mas se a pergunta é se há coisas que Governo prefere que seja Monte- PRR, essa é uma das áreas a que o
tenho pena de não concluir, é claro negro a pedi-la? Presidente dedicou atenção e sobre a
que gostava de concluir este pro- Desde o início do PRR, os gover- qual sempre partilhámos informação
cesso de transição para a nova sede nos de António Costa já estiveram e respondemos a todas as questões.
do governo – que pode ser trans- oito meses em gestão. Não podemos Tendo a Mariana Vieira da Silva
formador das relações institucionais achar que este tipo de crises políti- feito parte do chamado núcleo
dentro do governo e com a admi- cas não tem nenhum efeito, porque duro do primeiro-ministro, sabe
nistração pública. Gostava muito de é evidente que tem. Sobre o quinto que falo de casos como o de João
concluir a revisão dos salários dos pedido: o que está estabelecido é que Galamba, em que os alertas de Be-
dirigentes da administração públi- há um período de três meses para lém foram ignorados.
ca – em que é preciso mexer. Mas organizar a informação e depois, a Teremos tempo para analisar todos
isso não se traduz em frustração. É partir de abril, inicia-se o processo esses “casos e casinhos” ao longo
a vida. Agora, é tempo de outros fa- em que o pedido pode ser feito. O dos próximos tempos. Uma parte
zerem esse trabalho e de a oposição governo que vai tomar posse, no dia deles já caiu até em tribunal, sem
apresentar a sua alternativa. 2 de abril, tem um tempo perfei- qualquer resultado [ex-secretário de
E foi isso que a levou de uma for- tamente razoável para terminar e Estado Miguel Alves]. Aquilo de que
ma, diria, invulgar, a emitir um concluir as metas, porque o País não o País precisa é de passar mais tem-
comunicado quase à uma da ma- está numa situação em que precise po a discutir as soluções para a vida
nhã, de segunda-feira, a criticar as do dinheiro amanhã. dos portugueses e menos tempo a
declarações de Marques Mendes? É possível ao próximo governo discutir esse tipo de casos, mes-
Quando há um comentador que tem reformular o PRR? A Eslovénia, mo que alguns tenham relevância e
o seu alinhamento político e parti- a Grécia e a Roménia já fizeram dos quais o Governo foi retirando
dário, com aquele nível de audiên- algumas adaptações. aprendizagens.
cia, que faz com que, em minutos, Gostava de acreditar que alguém que Estando a coordenação política
surjam perguntas de jornalistas, tenha esse propósito o tivesse dito sob a sua alçada, não sente que foi
temos a obrigação de responder. em campanha eleitoral, porque isso, nessa tutela que o Governo mais
Sobre o processo da reforma da falhou?
administração pública, ao longo Os governos de António Costa du-
das últimas semanas, têm sido ditas
todo o tipo de mentiras. Começou
“Gostava raram oito anos e meio. Até hoje, só
há um primeiro-ministro com mais
por se dizer que era uma reforma de acreditar tempo – o professor Aníbal Cavaco
escondida, quando é conhecida
desde o momento em que o PRR que alguém que Silva. E, por isso, não me parece que
se possa dizer sobre estes governos
foi colocado em discussão públi-
ca. Depois, que tinha o objetivo de
tenha o propósito que eles não funcionaram ou que
funcionaram com limitações. Não
reduzir o número de trabalhadores de reformular me reconheço nessa crítica
da administração pública, quan-
do temos mais 85 mil funcionários o PRR o tivesse O “caso Galamba” não é uma
mancha que fica desses dois anos
públicos do que quando chegámos.
E não está escrito em parte nenhu-
dito em campanha de Governo, que terminou de
forma abrupta com a Operação
ma a fusão de todos os gabinetes de eleitoral” Influencer?

54 VISÃO 28 MARÇO 2024


partido vai deixar de ter.
Até à saída de Pedro Nuno Santos do
Governo, participámos exatamen-
te nos mesmos fóruns de decisão e
estratégias. Agora, é um tempo de o
PS perceber como é que se conquista
o eleitorado mais jovem, que neste
momento não tem, e como é que se
renova.
São esses jovens e aquela popula-
ção frustrada, de que já falou, que
explicam um fenómeno político
como o Chega?
É preciso notar que o PS, tendo
Resultados Eleita deputada, pelo círculo de Lisboa, a ainda ministra considera que o perdido as eleições, ficou muito
caso judicial que ditou a demissão de Costa explica, em parte, o resultado do Chega perto de vencer e teve mais votos do
que em 2015 – é preciso relativizar
os resultados. O que mais explica
Não sei a que se refere como o “caso Tanto tempo vista como possí- o crescimento do Chega é, por um
Galamba”. O que tivemos foi uma si- vel sucessora de António Costa, lado, esse descontentamento com
tuação absolutamente inaceitável no porque é que não avançou para a aumento do custo de vida e o con-
Ministério das Infraestruturas, em corrida à liderança do PS? texto de desconfiança dos partidos
abril de 2023, que envolveu violên- Naquele dia 7 de novembro, confesso políticos e dos políticos, que decorre
cia. Mas convenhamos a relevância que aquilo que me preocupou foi sa- dos últimos meses da nossa vida em
que tem na vida dos portugueses e ber como lidar com os acontecimen- sociedade. Agora, sabemos que sem-
das portuguesas. O primeiro-minis- tos. Nunca tive esse projeto de vida, pre que a extrema-direita ocupa uma
tro tinha uma decisão para tomar e portanto, também não era naquele determinada dimensão num país, o
tomou-a. Quanto à Operação In- período conturbado que eu iria tê-lo. crescimento pode ser muito rápi-
fluencer, no dia 7 de novembro todos Foi pressionada nesse sentido? É do, mas o decrescimento é bastante
lemos uma frase e assistimos, pela que esperavam mais de si. lento.
televisão, a um conjunto de ações por Continuo a poder dar o meu con- O PS está disponível para pactos
parte dos órgãos policiais, e, desde tributo ao PS e à vida política. É isso circunstanciais com o PSD?
então, nada mais sabemos sobre as que farei a partir de dia 3 de abril, no O PS, ao longo da sua história, nunca
tais suspeitas. Parlamento. O PS teve uma disputa constituiu um entrave. Mas tendo
Houve uma precipitação de Antó- eleitoral serena, mas muito partici- ganhado a AD, é tempo de o PSD
nio Costa ao demitir-se? Fez mal pada, e tem hoje um secretário-geral liderar o governo e criar as condições
não se recandidatar à liderança do que fará uma renovação de prota- para a sua governação, que nunca
partido? gonistas no partido, da sua estru- deu ao PS, mesmo quando, em al-
António Costa foi muito claro: os tura programática. Um partido não guns períodos, esteve em minoria.
portugueses precisam de confiar no pode ficar preso a uma determinada O lugar na Assembleia da Repúbli-
primeiro-ministro e ele entendeu estratégia. Estas eleições tinham a ca é para manter?
que, a partir daquele momento, não dificuldade que referiu há pouco, um Assumirei o meu lugar na Assem-
tinha essas condições de confiança sentimento por parte da nossa popu- bleia da República, porque acredito
para continuar e tomou a decisão lação de algum descontentamento e, que a vida política se faz de múltiplas
que admiro. Outra coisa diferente é acima de tudo, das expectativas que funções.
que, passados estes meses, continua- criou por ver a sua vida a melhorar A adaptação será fácil?
mos a saber exatamente o mesmo ao longo de muitos anos e isso ter Não sei. Nunca fui deputada e é mes-
que soubemos naquela manhã. Isso deixado de acontecer por força da mo uma estreia. Mas gosto muito de
é que é muito difícil de aceitar, não inflação. desafios. E não desvalorizo o papel
porque alguém tenha direito espe- Mas a continuidade do PS foi bem da oposição. Acho que o facto de
cial, mas porque todos os cidadãos defendida por Pedro Nuno Santos? a direita o ter desvalorizado tanto
têm de ter o direito de se defender. Havia ali uma certa falta de con- durante os últimos anos foi negativo
E o clima de suspeição que se gerou vicção na campanha eleitoral. para a democracia portuguesa e tam-
sobre o primeiro-ministro é também Mas essa é a sua avaliação, não é a bém uma explicação para a ascensão
a parte da explicação do que aconte- minha. Fui cabeça de lista em Lisboa da extrema-direita.
ceu nestas eleições. e isso é um sinal, por parte do líder, E essa será a sua vida, até António
Que futuro é que se desenha para de um equilíbrio com a defesa do Costa lhe lançar o repto, para a
António Costa? legado. levar com ele para Bruxelas.
A minha expectativa, porque confio A Mariana Vieira da Silva fazia Ao longo destes anos todos, sempre
nas instituições, é de que as coisas parte daquele núcleo duro de An- que me perguntaram o que é que eu
possam desenvolver-se ao ponto de tónio Costa, que... ia fazer a seguir, respondi a mesma
não se desperdiçar o talento político, E o Pedro Nuno também pertencia a coisa: não organizo a minha vida as-
o conhecimento e as relações euro- esse tal núcleo duro. sim. Vou ocupar meu lugar no Parla-
peias daquele que é um dos maiores Que estabelecia a tal tática que mento, porque tenho muita vontade
talentos políticos que o País tem. Pedro Nuno Santos já disse que o de trabalhar. nropio@visao.pt

28 MARÇO 2024 VISÃO 55


56 VISÃO 28 MARÇO 2024
CASAL VENTOSO
Regresso
ao inferno
Nos últimos cinco anos, a encosta do Vale de Alcântara,
em Lisboa, voltou a ser lugar de eleição para traficantes
e consumidores de droga. O eixo entre a Quinta
do Loureiro, Avenida de Ceuta e Rua Maria Pia é agora
o caminho para se chegar ao fim da linha. Um problema
de saúde pública que necessita de mais investimento
financeiro, meios técnicos e humanos para abrandar
o recrudescimento do fenómeno
— P O R SÓ N IA CAL H E I R O S T E X TO E LU Í S BARR A FOTOS

28 MARÇO 2024 VISÃO 57


A
Ainda a porta não abriu e já está gente
à espera na Rua da Quinta do Lourei-
ro. Antes das dez da manhã, são perto
de uma vintena, na maioria homens,
entre os 40 e os 50 anos. Chegam a pé,
subindo as escadas desde a Avenida de
Ceuta, descendo a encosta pela Rua Cos-
ta Pimenta ou surgindo dos recantos e
escadarias do bairro Quinta do Lourei-
ro – um dos vários criados aquando da
reconversão do Casal Ventoso, em 1999.
Lá dentro, no Serviço de Apoio In-
tegrado (SAI) da associação Ares do
Pinhal, assistentes sociais, enfermeiros
e técnicos de apoio psicossocial prepa-
ram as salas – uma onde os utentes se
podem injetar, outra para irem fumar
–, bem como mantimentos para o pe-
queno-almoço dos toxicodependentes,
ali tratados como doentes e não como
delinquentes.
Ana Morgado começou a cheirar
cocaína aos 16 anos. Andava no liceu e onde pensava ficar pouco tempo e explica. No fundo, a atividade analgé-
queria manter-se acordada noite den- permaneceu mais de um ano, quando sica tira a ressaca, mas, como reforça
tro para estudar e ficava com os senti- voltou a Portugal foram-lhe retirados os Elsa Belo, assistente social e diretora da
dos mais alerta. Mais novinha, com 12, quatro filhos (de 17, 11, 10 e 7 anos), todos organização não governamental Ares
lembra-se de um tio parar o carro no entregues aos respetivos pais. do Pinhal, “precisa de tratamento de
Casal Ventoso para ir comprar droga e Diariamente, ela e o atual com- continuidade e entrar no programa de
ela ficar à espera. panheiro têm de conseguir 30 euros, metadona ou de buprenorfina é admitir
Agora, com 42 anos, vai regularmente no mínimo, seja lá como for que os que não há mais solução.”
à “sala de chuto” injetar speedball (mis- arranjam: “A vender metais na sucata e
tura de cocaína e heroína). Em quase no ferro velho, por exemplo.” Quando MAIS CONSUMO, MAIS TRÁFICO
três décadas de dependência, Ana já foi a moda do roubo dos catalisadores Em 2021, ainda dominados pela pan-
conseguiu fazer várias pausas sozinha, dos automóveis, ela conseguia entre demia de Covid-19, o SAI abriu com
algumas de anos seguidos, mas “falta 400 e 500 euros por dia. “Não poupei a estrutura montada para atender um
sempre qualquer coisa”. E quando não nada. Quanto mais dinheiro tenho, total de 300 pessoas, calculadas a par-
tem heroína ou cocaína, experimenta mais gasto.” tir de um diagnóstico feito em 2018,
novos cocktails. “Os comprimidos alu- Recentemente, Ana Morgado com- e dessas imaginava-se que 50 fossem
cinogénios misturados com álcool tam- prou na candonga buprenorfina em frequentadoras assíduas da sala. Mas, as
bém produzem o mesmo efeito. É como comprimidos sublinguais, substância 300 vieram em barda e, passados três
se tivesse fumado um ácido”, descreve. utilizada para tratar a dependência de anos, há 2 570 inscritos, o que significa
Depois de Ana ter ido para Espanha opiáceos. “É como se fosse metadona, que circulam na Quinta do Loureiro e
à procura de melhores oportunidades, para fazer o desmame da ‘castanha’”, Avenida de Ceuta – alguns lanços de

58 VISÃO 28 MARÇO 2024


Vergonha No Vale de Alcântara, nem todos usam
a sala de consumo assistido. Há quem se injete
e fume cocaína ou heroína escondido em recantos

uma task force com outros serviços de


apoio social e também aos migrantes
[10% dos utentes].” Esta foi uma ideia
defendida pelo PS, na Câmara Municipal
de Lisboa, e subscrita pelo PSD/CDS-
-PP, no verão passado, em alerta para
o regresso do tráfico e do consumo de
droga ao Vale de Alcântara.
“Uma realidade visível a olho nu”,
alertou Cátia Rosas, vereadora socia-
lista, numa reunião pública da câmara.
“Um número sobredimensionado de
consumidores gera um círculo vicioso,
dificulta o tratamento, concentra as de-
pendências numa única zona da cidade
e facilita o tráfico ilegal”, acrescentou
na altura.
A prevalência para qualquer subs-
tância psicoativa ao longo da vida ilícita
subiu 60%, entre 2001 e 2022, pas-
sando de 7,8% para 12,8%, concluiu o
V Inquérito Nacional ao Consumo de
Substâncias Psicoativas na População
Geral. “Não basta uma estratégia de
redução de danos, é necessária uma
estratégia de prevenção de consumos
e uma estratégia de recuperação da to-
xicodependência”, reforçava, na mesma
reunião, Sofia Athayde, vereadora para
os Direitos Humanos e Sociais, Saúde,
Educação e Juventude.
No mundo, mais de 296 milhões de
pessoas consumiram drogas em 2021,
segundo dados da Nações Unidas, um
aumento de 23% em relação à década
anterior.

SEM SERINGAS NO CHÃO


No início de fevereiro, uma carta aberta,
escrita pelos presidentes das juntas de
freguesia de Alcântara, Davide Amado,
e de Campo de Ourique, Pedro Costa,
endereçada ao presidente da autarquia
lisboeta, Carlos Moedas, ao Ministério
jardim no Vale de Alcântara, abaixo da da Administração Interna, ao Instituto
Rua Maria Pia. “A cada ano que passa, para os Comportamentos Aditivos e as
inscrevem-se mil novas pessoas, ao Dependências, ao Instituto de Seguran-
ritmo de quatro por dia, 60 por mês”, ça Social e à Agência para Integração
enumera Roberta Reis, coordenadora Migrações e Asilo, pedia intervenção
técnica do SAI. “A cada ano que urgente no terreno, de forma a devolver
Esta foi a primeira sala de consumo
assistido do País, mas entretanto tam-
passa, inscrevem-se a segurança a quem ali mora e circula
todos os dias.
bém já existe outra no Porto. Abrir uma mil novas pessoas, A 21 de fevereiro, houve uma limpeza
segunda, por exemplo, na zona oriental (de seringas e demais lixo) e o gra-
da capital, “é algo que vemos como de- ao ritmo de quatro deamento de uma parte da passagem
sejável e, eventualmente, também em
cidades limítrofes a Lisboa, em outros por dia, 60 por superior pedonal da Avenida de Ceuta.
Apesar de realmente não se verem se-
municípios”, diz João Goulão, médico
e presidente do conselho diretivo do
mês”, enumera ringas ou pratas no chão, as tendas dos
toxicodependentes mudaram-se agora
ICAD – Instituto para os Comporta- Roberta Reis, para as traseiras da linha de comboio,
mentos Aditivos e as Dependências. “É viradas para a Rua Maria Pia.
uma conjunção de esforços que terá de coordenadora “Estou muito preocupado com a
ser desenvolvida entre o governo central
e a autarquia de Lisboa, que tem estado
do Serviço de Apoio situação. Nunca vi nada assim. O con-
sumo de droga tem crescido desde a
muito presente nesta temática, além de Integrado pandemia e o pós-pandemia”, desabafa

28 MARÇO 2024 VISÃO 59


Narcos O tráfico de droga faz parte do bairro
da Quinta do Loureiro, com vigias espalhados
em pontos estratégicos

Vida dura Francisco conhece bem o Casal Ventoso:


nos anos 1990, ia lá comprar droga para consumir
em casa; agora, vai à Quinta do Loureiro tomar
metadona, carregar o telemóvel e conviver
60 VISÃO 28 MARÇO 2024
Davide Amado, autarca de Alcântara, fim do realojamento. Um verdadei-
que não compreende a falta de inves- ro hospital foi montando dentro de
timento financeiro: “O orçamento da um conjunto de contentores, onde os
câmara municipal para 2024 é de 1 303 UM MÊS consumidores podiam tomar banho,
milhões de euros. Uma sala de consumo
assistido custa 350 mil euros por ano, o
NA QUINTA receber roupas, comer, dormir e tra-
tarem-se – a introdução da metadona
mesmo valor da isenção do pagamento DO LOUREIRO em países como a Holanda e a Suíça foi
de taxas municipais para quatro dias da ATIVIDADE DO SERVIÇO DE APOIO
revolucionária e serviu de exemplo para
ModaLisboa, muito longe dos cerca de INTEGRADO, SALA DE CONSUMO ser trazida para Portugal.
três milhões de euros de isenção para ASSISTIDO, DURANTE JANEIRO No início de 1999, entregaram-se as
o festival Rock in Rio.” primeiras 248 chaves no novo bairro
“É preciso estar no terreno”, lembra da Quinta do Cabrinha, que haveria de

12 233
João Soares, ex-autarca socialista, res- realojar 1500 famílias.
ponsável pela erradicação das barracas, Os tempos mudaram e já não há
entre 1995 e 2002, e pelo realojamento barracas, mas o recrudescimento do
de 1500 famílias do antigo Casal Ven- tráfico e do consumo de droga é já
Seringas distribuídas avulso
toso, em tempos apelidado, no jornal uma certeza. Sobre se a encosta do Vale
britânico The Guardian, de “maior mer- de Alcântara vai voltar a encher-se de
cado de drogas a céu aberto na Europa”. toxicodependentes, Elsa Belo é peren-
“Até ao final do meu mandato, o
Casal Ventoso não terá barracas. Aque-
la encosta será para arrasar, mas até à
9 077 2 372
Kits distribuídos Consumos
tória: “Não vamos deixar, ou então não
queremos cá estar. Pode mesmo ser o
princípio do fim de algo.”
frente da Maria Pia há habitação a ser com duas endovenosos
recuperada”, disse o ex-presidente da seringas e (41%) CHEIRO A MORTE
câmara no auge do consumo e tráfico material asséptico No final de 2023, também Horácio
de droga no Casal Ventoso. Félix, presidente da Comunidade Vida
Havia mais de mil casas abarraca- e Paz, abordou em entrevista à Agência

10 900
das onde hoje um T1 com 60 metros Ecclesia o surgimento em Lisboa de
quadrados pode custar 270 mil euros. pequenos “casais ventosos”: “Não se vê
Além dos edifícios recuperados ou no- alteração nas políticas nem na preo-
vos, existem também espaços verdes e cupação com esta questão. Temos, se
Seringas recolhidas na rua
equipamentos sociais. “Apanhei avós calhar, de recuperar aquilo que foi feito
a irem visitar os netos que viviam em nos anos 1990, desde a prevenção a nível
tendas improvisadas, havia pessoas das escolas, ao tratamento das pessoas.
a dormirem no túnel do caminho de
ferro. O bairro tinha sido conquistado
pela droga pesada. Contavam-se pelos
149
Refeições
4 157
Consumos
(…) Aliás, registo com desagrado que o
valor que as instituições recebem para
o tratamento dessas pessoas, que foi
dedos das duas mãos as famílias e as servidas por dia fumados (59%) estabelecido em 2008 e que continha
casas que não estavam conquistadas uma cláusula de atualização anual, só
pela droga. Era imbatível”, recorda hoje foi atualizado em 2023, depois de mui-
o político socialista. ta pressão, num valor de 12,5%, que é
“A minha primeira prioridade foi o claramente insuficiente.”
Casal Ventoso. Vivi o problema apai- João Goulão, responsável pelo ICAD,
xonadamente. Seguimos uma regra acompanha no raciocínio: “É fundamen-
sagrada: as pessoas não são corridas dos tal que todos aqueles que se queiram
sítios onde vivem.” E assim o fez João
Soares, na esperança de que a mudança
“Estou muito tratar tenham acesso facilitado a tra-
tamento. Que haja um percurso fluido
de configuração do bairro reduzisse o preocupado desde, por exemplo, o Serviço de Apoio
problema, enquanto local de tráfico e Integrado, que proporciona ganhar con-
consumo de droga. com a situação. fiança no pessoal de saúde e acabar com
Em janeiro de 1997, houve adjudica-
ção da empreitada da nova urbanização
Nunca vi nada as listas de espera com a maior rapidez
possível. As equipas de tratamento estão
da Avenida de Ceuta, prometendo um assim. O consumo completamente depauperadas. A tran-
mínimo de 500 fogos concluídos no sição para o novo ICAD, recentemente
prazo de 28 meses. Passado um ano, de droga tem criado, vai aumentar de 180 para cerca
a autarquia dava início à destruição de
tendas e barracas no Casal Ventoso. A crescido desde de 1300 profissionais, mas ainda não
temos orçamento aprovado.”
avenida foi cortada, as pessoas avisadas
para retirarem os seus pertences e as
a pandemia Maria tem 61 anos e o rosto demasia-
do vincado para a idade, olhos pintados
máquinas mandavam tudo abaixo. e o pós-pandemia”, com lápis preto, sem esborratar. Está no
Os que aceitaram a proposta dos flash pós-consumo. “Parece que vejo
técnicos e assistentes sociais entraram desabafa Davide bichinhos”, diz enquanto vai buscar
para o Gabinete de Apoio ao Toxico-
dependente, estrutura municipal que
Amado, autarca um iogurte com uma colher de açúcar.
“Só dou na ‘branca’, pago dez euros por
funcionou entre 1997 e 2002, data do de Alcântara cada quarta [0,25g de cocaína]”, conta a

28 MARÇO 2024 VISÃO 61


viúva, que no ano passado viu o marido, pescoço ou nas zonas genitais (virilhas,
de 59 anos, morrer em casa de overdose. pénis), totalmente proibido.
Começou a experimentar droga Em três anos, as cerca de 60 pessoas
aos 20 e tal anos, por curiosidade e que estiveram à beira da morte nesta
sem o manancial de informação que sala foram todas salvas e as cinco grávi-
hoje circula (“não perdoo aos jovens das que apareceram seguiram caminho
que hoje se drogam”). Só não consu- para a consulta de Patologia da Adição
miu na gravidez, enquanto o mari- da Maternidade Alfredo da Costa, dando
do mantinha “grandes stones”. Esta à luz em segurança.
antiga funcionária pública lembra o Francisco, 58 anos, mora no bairro
que o chefe lhe dizia, com frequência, Padre Cruz e faz questão de sublinhar:
sempre que apanhava o elétrico 28 e “Tenho casa, tenho água, só a luz é que
ia até ao Casal Ventoso a meio do dia deixei de pagar. Venho aqui carregar
de trabalho: “Não sei o que se passa o telemóvel, comer qualquer coisa e
consigo, mas depois do almoço vem conviver.” É dos poucos utentes do SAI
sempre mais ativa.” que não teve recaídas ao longo dos anos.
Em uma hora, o SAI registou 38 Facto surpreendente também para Elsa
consumos – a mesma pessoa pode ir Belo, como é que só com metadona
mais do que uma vez no mesmo dia. Na (55 miligramas por dia) tem a situação
sala de injetar, com oito lugares, estão controlada e nunca se sente tentado?
disponíveis caricas, líquido cítrico, água “Não tenho nada, nem VIH, nem he-
esterilizada, filtros, seringas e garrotes. patite C. Saí limpo. Até me chamavam o
Os frequentadores podem estar ali uma ‘paranoico’, pois nunca partilhava nada.
hora a consumir heroína, cocaína, crack Vinha comprar ao Casal Ventoso e ia
ou midazolam, um comprimido azul consumir para casa”, lembra.
que depois de desfeito em pó fica pron- A boa memória de Francisco, que
to para o caldo. As mesmas substâncias foi vigilante de uma loja de fotografia
podem também ser inaladas na sala ao a preto-e-branco, ajuda-o a conver-
lado, por seis pessoas em simultâneo, sarmos sobre os anos 1990, época do
durante meia hora. boom da heroína. “Havia mortos todos
“Tentamos sempre que os consu- os dias por overdose, ficavam deitados
midores não passem da sala de fumo no chão”, lembra. “Cheirava a limão
para a de injetar. Há quem venha uma podre, era horrível. Cheirava a morte”,
vez por dia, outros entram e saem três corrobora Maria. “Quando chegava aqui,
vezes”, elenca Elsa Belo. tinha a sensação de que encontrava
É um circuito sem julgamentos, nem Lisboa inteira, até colegas de trabalho
grandes contabilidades, sob o olhar eu vi”, conta Francisco. Na Rua Costa
atento de Nuno Gomes, enfermeiro Pimenta parecia sempre hora de ponta.
no Hospital de São José, que conhece “Em meados da década de 1990,
alguns pormenores da vida destas pes- os consumidores que circulavam no
soas: “Elas têm identidade. Por exemplo, bairro tinham atingido os cinco mil,
aquele senhor ali de cócoras e de colete diariamente”, lê-se no livro Casal Ven-
é funcionário público.” toso revisitado: Memórias para ima-
Nuno quase nunca desvia o olhar, ginar um futuro, de Miguel Chaves e
pois podem precisar de ajuda com a Patrícia Pereira.
técnica correta de assepsia, o uso do
garrote para ajudar a ver a veia e não a À ESPERA DO FENTANIL
massacrarem ou para não se picarem no Se há três décadas a estimativa apontava
para 100 mil heroinómanos, após a re-
conversão do Casal Ventoso o número
“Vivi o problema desceu para 30 mil e assim se mantém.
“A nossa perceção é de que o número
do Casal Ventoso absoluto de utilizadores de drogas não
terá disparado tanto como disparou a
apaixonadamente. visibilidade do tema”, refere João Gou-
Seguimos uma regra lão. “O Inquérito Nacional ao Consumo
de Substâncias Psicoativas na População
sagrada: as pessoas Geral não aponta para um aumento
significativo dos utilizadores. Mas esse
não são corridas dos é um inquérito feito no domicílio, com
sítios onde vivem”, regras muito estritas e que deixa de fora
as pessoas em situação de sem-abrigo.”
lembra João Soares, Mesmo que o cálculo chegue a 50
mil utilizadores, a maioria não é virgem
ex-presidente da CML de intervenção, pois mantém ligação

62 VISÃO 28 MARÇO 2024


Stresse social A falta de emprego, de assistência
social ou de habitação tem desencadeado
a vontade de consumir a pessoas estabilizadas

COMO NASCEU
O CASAL
VENTOSO?
Retrato traçado a partir do livro Casal
Ventoso revisitado: Memórias para
imaginar um futuro, de Miguel Chaves
e Patrícia Pereira (2019, Edições Húmus)

A designação Castelo Ventoso surge,


pela primeira vez, num mapa de Lis-
boa, em 1837. “Terra de pão e oliveiras”,
refrescada por ventos do rio Tejo e da
serra de Monsanto.
O Casal Ventoso surge entre 1878 e
1890, quando Lisboa cresceu e a sua
população quase duplicou de 178 mil
para 301 mil habitantes. Um aumento
demográfico resultado da fuga dos
campos à procura de melhores empre-
gos, à boleia do crescimento industrial,
nas atividades fabris (Fábrica da Pólvora,
de louças, azenhas, manufaturas de
tratamento de couro, de fiações, curtu-
mes, estamparias, azeite, sabão, velas) e
portuárias.
Mas logo as vagas cíclicas de desem-
prego tomaram conta da vida desta
classe operária que, até à década de
1880, morava em vilas rodeadas de
propriedades agrícolas.
No início da construção da linha do
caminho de ferro e de novas redes de
acesso dão-se mudanças habitacionais
num lugar que sempre teve necessidade
de intervenção comunitária. A exclusão
escolar criava desemprego crónico e
logo exclusão social.
Na década de 1970, na falta de um tra-
balho fixo, muitos andavam “à gandaia”, a
apanhar e a vender o que encontravam
no lixo, desde trapos a cartões.
É na segunda metade dos anos 1980
que surge o narcotráfico, com oportu-
nidades de trabalho ilegal e mais gente
disposta a isso. O bairro entalado entre
Campo de Ourique e Alcântara vivia
estigmatizado pela delinquência e pela
miséria. Um estudo da Câmara Municipal
de Lisboa, divulgado em 1995, revelava
que 40% dos fogos não tinham água
canalizada, 27% não dispunham de es-
gotos, 10% de eletricidade, metade sem
zona de banho e 42% sem cozinha.
Com o aparecimento e uso das drogas,
as pessoas começaram a perder fami-
liares e amigos. Mas, nos novos bairros
criados no plano de demolição total e
de realojamento da população, realizado
entre 1997 e 2002, perderam também a
convivência. As filhós e rabanadas que
antes eram partilhadas nos pátios das
vilas deixaram de existir.

Dose mínima Mais de 1 200 utentes passam,


todos os dias, numa das duas unidades móveis
de distribuição de metadona, com circuitos
de cinco paragens por Lisboa
28 MARÇO 2024 VISÃO 63
com estruturas de redução de danos e As substâncias clássicas continuam a trabalha neste território há 25 anos.
de tratamento. Em Portugal, 85% dos ser heroína, cocaína e canábis. Agora, “Trata-se de um problema de saúde
consumos são recreativos e ocasionais o crack vai ocupando o lugar anterior- pública e esta é uma população mais
e apenas 10% a 15% são dependentes. mente preenchido pela heroína, entre as doente do que a população em geral,
A descriminalização do uso de droga fez populações mais vulneráveis”, descreve com maior incidência de várias doen-
do modelo português um dos melhores João Goulão. ças relacionadas com a substância que
exemplos do mundo no combate à toxi- Um perfil de consumos que, sem consomem, a via de consumo, a forma
codependência. “Aconteceu quando foi querer, protege os adictos, pois, apesar como vivem, sem o conforto de uma
aprovada a primeira Estratégia Nacional de tudo, temos recursos terapêuticos, casa, nem recursos para se alimenta-
de Luta Contra a Droga, em 1999, uma programas de manutenção com opiá- rem, nem dinheiro para medicamentos
estratégia de intervenção integrada, re- ceos como a metadona, para o consumo quando adoecem.”
dução da oferta com redução da procura, de heroína, coisa que não dispomos para O contacto diário com os consumi-
num contexto e postura muito huma- o crack, por exemplo. “Ainda falta des- dores leva-o a traçar um retrato muito
nista e pragmática”, lembra João Goulão. cobrir muita informação sobre a forma específico: “São muito vulneráveis ao
O que sustentou o modelo português de estas drogas atuarem nos recetores stresse social, aos problemas com falta
de descriminalização do consumo de do cérebro. É muito pouco provável de emprego, de assistência social ou de
droga foi a coexistência de outras va- que se encontre uma terapêutica de habitação. Muitos, que até estavam esta-
lências associadas: centros de apoio para substituição para a cocaína como exis- bilizados, não resistem a essas situações.”
sem-abrigo (com mais de 500 camas em te para a heroína. Tem sido investigada Tempos sociais conturbados como
cinco centros, em 2002), programas de uma espécie de vacina que cria uma os vividos nos anos de intervenção da
substituição de metadona de baixo li- incapacidade de sentir os seus efeitos, troika no País, de 2011 a 2014, os dois
miar, troca de seringas, equipas de rua mas ainda está em desenvolvimento”, anos de pandemia, o desemprego, a
em unidades móveis, o Centro das Taipas faz notar o médico. precariedade de salários baixos, as duas
desdobrado em Equipas de Tratamento. Quanto à epidemia gerada pelo con- guerras, a inflação, a perda de poder de
A ação desenvolveu-se em quatro fases: sumo de fentanil, sobretudo nos EUA compra ou a crise na habitação afetam
prevenção, redução de danos (onde se (em Portland, por exemplo, o número de os mais vulneráveis das franjas mais
inserem as salas de injetar e fumar), mortes por overdose aumentou 533%, desfavorecidas da sociedade.
tratamento e reinserção. entre 2018 e 2022), os técnicos estão Antes da intervenção da troika exis-
O estudo Wastewater analysis and muito atentos e ainda sem preocupa- tiu um programa de discriminação
drugs – a European multi-city study, de ções, como garante o especialista. positiva para empregar toxicodepen-
2022, que analisou as águas residuais de “É fundamental que o fentanil es- dentes em recuperação em microem-
54 milhões de pessoas, de 104 cidades, teja disponível para uso terapêutico. presas, com o ordenado mínimo pago
de 20 Estados-membros da União Euro- Durante a pandemia, foi o analgésico pelo Instituto do Emprego e Formação
peia e da Turquia, divulgado, na semana de tipo opiáceo mais utilizado nos cui- Profissional e benefícios fiscais para o
passada, pelo Observatório Europeu da dados intensivos. O que aconteceu nos empregador. A extinção desse projeto,
Droga e da Toxicodependência, sublinha EUA é que existe uma tradição muito a par com a crise económica que levou
que as seis drogas investigadas (cocaína, mais liberal de prescrição deste tipo de muitas empresas à falência, devolveu
metanfetamina, anfetamina, MDMA, fármacos para situações menos graves. essas pessoas à rua, ao consumo, sem
cetamina e canábis) foram encontradas É frequente uma dor de costas, que tempo de se reerguerem.
em quase todas as cidades participantes nós tratamos com diclofenac, nos EUA Vinte e quatro horas de narcotráfico
– Lisboa, Porto e Almada em Portugal. avance logo para opiáceos, criando uma são suficientes para alimentar várias
Com 794 miligramas de cocaína por massa muito significativa de doentes famílias, seja no Vale de Alcântara, no
cada mil pessoas por dia (mg/1000p/dia), dependentes. Uma das características Intendente, no Martim Moniz e Rua
Lisboa ficou em 10º lugar no ranking, dos opiáceos é a pessoa sofrer por abs- do Benformoso, na Quinta do Lavrado
sendo Antuérpia, na Bélgica, a cidade tinência, por não ter o uso continuado (antiga Curraleira), na Mouraria ou na
com maior consumo (2 553 mg/1000p/ da substância.” Cova da Moura, onde é feito o corte da
dia). No caso da metanfetamina, as três droga, desdobrando um quilo em três.
cidades portuguesas registam níveis NARCOS: LISBOA O circuito está bem oleado. Os cabe-
baixos: Antuérpia revela a média diária Tal como Elsa Belo, assistente social, cilhas ficam fora dos bairros, enquanto
de 524 (mg/1000p/dia) e Lisboa 14,8 também Carlos Gomes, psiquiatra, recrutam moradores que precisam
(mg/1000p/dia). Por cá, o consumo de ganhar dinheiro para sustentar o vício,
MDMA/ecstasy aumentou, mas não pagando-lhes em produto. Na Quinta
tanto como noutras cidades: Lisboa “É fundamental do Loureiro, são muitos os jovens na
(188 mg/1000 p/dia), Almada (29,1 mg) função de vigias, espalhados estrate-
e Porto (20 mg). que todos os gicamente junto às arcadas e escadas
As análises feitas na ETAR de Alcân-
tara colocam Lisboa como uma das ci-
que se queiram exteriores dos prédios. Há donos de
cafés a fornecerem-lhes as embalagens
dades com maior consumo de cetamina tratar tenham de comida, para que não saiam do posto
a nível europeu, com a presença de 21,34 de controlo.
mg/1000p/dia, atrás de Barcelona com acesso facilitado Sempre que ali circulam estranhos
32 mg/1000p/dia.
“Há novas drogas que têm ganho
a tratamento”, são gritadas, e repetidas em eco pelos
vigias, palavras de código a avisar da
grande importância em outros paí- alerta João Goulão, presença de penetras, como aconte-
ses, mas nós, portugueses, somos algo ceu com a equipa da VISÃO. Sente-se
conservadores quanto à sua utilização. presidente do ICAD alguma tensão no ar. Vamo-nos cum-

64 VISÃO 28 MARÇO 2024


Olho clínico Em três anos, o enfermeiro Nuno Gomes
ajudou a salvar as cerca de 60 pessoas que na “sala
de chuto” estiveram à beira da morte com uma overdose

primentando, enquanto paramos para motoristas de táxi (um entrou só para enfermeira Marina Pereira, que chama
ver os murais de arte urbana –sabemos ir buscar pratas), estafetas de entregas a atenção para o aroma a banana adi-
que estamos a ser observados de vários de comida, operários da construção cionado ao líquido. A precaução serve
ângulos. civil e duas mães que se preocupam se para não irem traficá-la ou misturá-la
Algumas avós também aceitam es- os seus filhos sabem que andam por ali com outros fármacos.
conder grandes quantidades de droga a consumir. Marina mantém uma relação de
por boas maquias, enquanto os adoles- Há carros estacionados com dois e confiança com os utentes, entre a casa
centes traficam na rua protegidos pela mais ocupantes atarefados em queimar dos 20 e 70 anos. Ao postigo, cada um
idade, que não os impede de irem presos. o produto, em fazer o caldo e em fumar só lhe diz o número da ficha onde está
“Tirando os consumidores da rua, o trá- o que ali foram comprar. Uma fauna que registada a dose e ela responde-lhe com
fico reduz. Com a metadona, as pessoas depois das sete da tarde volta a aumen- um cumprimento, o seu nome e o co-
deixam de ser escravas do consumo e tar. Muitos saem dos seus trabalhos e pinho de plástico. Gosta da relação que
assim se vê o impacto comunitário e na passam na Quinta do Loureiro antes do este trabalho tem com a saúde mental,
criminalidade”, nota Elsa Belo. “É muito regresso a casa. a sua área de especialização.
difícil não cair nas tentações”, resume a Estamos habituados a que seja o A partir de 8 de abril, as carrinhas
técnica. “É preciso ter uma atitude dife- paciente a esperar pelo médico, mas na de distribuição de metadona vão re-
rente daquela que se tem relativamente carrinha de distribuição de metadona duzir o horário para metade, por falta
às pessoas que exploram essa vulnera- passa-se o contrário. Às 15 e 30 horas, de pessoal, deixando de funcionar das
bilidade”, reforça João Goulão. Carlos Gomes muda-se do consultório 8 da manhã às oito da noite, para abrir
do SAI para uma dessas duas unidades das 8 às 13 e 30 horas. “As pessoas que
METADONA À HORA CERTA móveis, com circuitos de cinco para- vinham tomar a dose ao final da tarde,
Na hora de almoço, a partir do meio- gens por dia para servir mais de 1 200 depois do dia de trabalho, vão ver a sua
-dia, há muito mais gente a circular na utentes. Ali, fica à espera dos seus pa- situação piorar. Deixar de ter metadona
zona. Aparecem três ou quatro rapa- cientes, com ou sem consulta marcada, disponível durante 12 horas por dia,
rigas, na casa dos vinte, escanzeladas, acompanhado de dois monitores em para passar a apenas seis, significará
com os rostos transfigurados e cabelos permanência e duas técnicas (psicóloga menos seringas distribuídas, logo maior
desgrenhados, a ressacar por mais uma e assistente social). probabilidade de propagação de doen-
dose. Uma foi ao SAI buscar mais de A metadona é um depressor da ati- ças infecciosas [VIH, hepatites virais e
seis seringas, outra vem com a t-shirt vidade do sistema nervoso central, tuberculose]”, avisa Elsa Belo. “Sabemos
da farda de trabalho e senta-se cá fora também chamado de psicoléptico, e mais hoje do que há 30 anos, mas os
com o maralhal. Homens trabalhadores “pode matar”. Tem de haver controlo recursos não podem ser os mesmos”,
à jorna, como eletricistas ou pintores, médico e deve ser ingerida à frente da lamenta. scalheiros@visao.pt

28 MARÇO 2024 VISÃO 65


PUTIN VAI
ATIRAR-SE
AO DAESH-K?
A filial afegã do Estado Islâmico reivindicou
o atentado de Moscovo e responsabiliza o Presidente
russo de ser um “cristão infiel” que combate o Islão
e o califado contemporâneo
— POR FILIPE FIALHO
A
A 26 de agosto de 2021, durante a
caótica retirada das tropas dos EUA e
da NATO, o Aeroporto internacional
de Cabul, no Afeganistão, foi palco de
um atentado suicida que provocou 183
mortos e outros tantos feridos ‒ mai-
oritariamente afegãos, incluindo uma
dúzia de talibãs, e ainda 13 soldados
norte-americanos. Nesse mesmo dia,
o Presidente dos EUA, Joe Biden, pro-
meteu vingança contra os autores da
carnificina: “Não vamos perdoar. Não
vamos esquecer. Vamos perseguir-
-vos e fazer-vos pagar”. O principal
destinatário desta mensagem era um
jovem “leão urbano” ‒ entenda-se ter-
rorista ‒, então com 26 anos, chamado
Sanaullah Ghafari, mais conhecido
pelo seu nome de guerra, Shahab al-
-Muhajir. A razão para ele ter ficado
com a cabeça a prémio, e Washington
oferecer 10 milhões de dólares a quem
ajudasse a localizá-lo, era simples:
Ghafari era já o wali (governador) e o
comandante supremo da filial afegã
do autoproclamado Estado Islâmico,
o ISIS-K ou Daesh-K. O K significa
Khorasan, “Terra do Sol” (em persa),
região que se estende do Nordeste
do Irão a toda a Ásia Central, onde o
grupo pretende instaurar a sede de
um califado global.
Como a Rússia e o resto do mundo
perceberam no final da tarde da passa-
da sexta-feira, 22 de março, o Daesh-K
e o seu líder continuam de boa saúde
e a criar medo e terror em demasia-
dos lugares. Um grupo de milicianos
fundamentalistas às ordens de Gha-
fari entrou de rompante no Crocus
City Hall, uma sala de espetáculos em
Krasnogorsk, na periferia da capital
russa, e começou a disparar indiscri-
minadamente sobre os cerca de seis
mil espectadores que se preparavam
para assistir a um concerto rock. A
banda Picnic, por motivos óbvios,
não chegou a entrar em palco, nem a

28 MARÇO 2024 VISÃO 67


apresentar os novos temas lançados no início
do mês. Além da inspiração ultranacionalista,
uma das canções parecia profetizar o pior:
“Não temas nada, nada temas ‒ nem o fogo,
nem as sombras que ecoam. Já não és mais
uma criança de faces rosadas. Banha-te com
o teu próprio sangue ao amanhecer. E agita
o dia que floresce.” Em pouco mais de 20
minutos, os atacantes massacraram centena
e meia de pessoas, colocaram cargas explosi-
vas no edifício e puseram-se em fuga, ainda
antes da chegada das forças de segurança e
com as chamas a consumirem, por completo,
o enorme auditório.
REPRESSÃO E PROPAGANDA
O atentado parecia ter sido cuidadosa-
mente planeado e executado, para provocar o
máximo de vítimas. Depressa se concluiu que
não havia qualquer precedente tão trágico,
em território russo, desde a crise dos reféns
no também moscovita teatro Dubrovka (132
mortos), em 2002, e do macabro sequestro
na escola de Beslan (334 mortos), na Ossétia
do Norte, em 2004, ambos perpetrados por
separatistas chechenos.
Já na madrugada do último sábado, na se-
quência de uma gigantesca operação de caça
ao homem, a polícia e os serviços de infor-
mações internos (FSB, ex-KGB) anunciaram
a captura de 11 suspeitos. Horas depois, num
comunicado oficial ao país, gravado previa-
mente, o Presidente Vladimir Putin prestou
homenagem às vítimas e respetivas famílias e
fez saber que “todos os autores, organizado-
res e responsáveis por este crime vão receber Torturados Há muito que esta filial do Estado Islâmico
um apropriado e irremediável castigo”. Na Autoridades russas original, criada no início de 2015, considera
alocução televisiva, revelou ainda que alguns apresentaram a Rússia como sua inimiga e, prova disso
quatro dos alegados
dos terroristas tinham sido detidos na região terroristas envolvidos
mesmo, foi o ataque frustrado contra uma
de Bryansk ‒ cerca de 400 quilómetros a no ataque ao Crocus sinagoga na histórica cidade de Kaluga, que
sudoeste de Moscovo ‒ e se dirigiam rumo City Hall. Moscovo as autoridades de Moscovo reconheceram a 7
à “fronteira ucraniana”. O canal RT, afeto ao admite reintroduzir de março (com a neutralização mortal de dois
Kremlin, divulgou a seguir imagens de alguns a pena de morte, alegados terroristas). Nessa mesma data, os
dos detidos, nomeadamente quatro indiví- suspensa desde 1996 EUA alertaram para a possibilidade iminente
duos de nacionalidade tajique com residência de um atentado na capital russa, exortando
na Rússia, com evidentes sinais de tortura e os seus cidadãos a evitarem ajuntamentos e
a confessarem que desconheciam quem os locais turísticos. “Uma provocação” da CIA e
contratara a troco de meio milhão de rublos. da Casa Branca, segundo Putin, para “intimi-
Só que a tese do envolvimento do regime dar e desestabilizar” o maior país do mundo.
de Kiev acabaria por desmoronar-se assim No entender de Sanaullah Ghafari e dos
que o Daesh, através das redes sociais e da sua seus quatro mil homens (a estimativa é das
própria agência noticiosa (Amaq), reivindicou Nações Unidas), os russos, os norte-america-
o ataque contra o Crocus City Hall e exibiu nos e os chineses são todos uma cambada de
imagens recolhidas pelas câmaras que os seus takfiri, “infiéis” que é preciso abater, sem dó
homens levavam no corpo. A generalidade nem piedade, por serem apóstatas e violarem
dos analistas sublinhou que as intenções e as a sharia (a lei islâmica). Em rigor, de acordo
omissões de Putin e dos seus colaboradores com o Daesk-K, nem os talibãs escapam a esta
estavam condenadas ao fracasso, como expli- terminologia político-religiosa, por se terem
caram Jason Burke, no The Guardian, e Mark reconciliado e fazerem o jogo de Washington,
Galeotti, no The Times. Tal como ocorreu em Pequim e Moscovo. O jovem emir apresenta
Espanha há duas décadas, com o governo de argumentos adicionais ‒ e históricos ‒ para
José María Aznar a querer culpar a ETA e a justificar o seu ódio ao “cristão” Vladimir
fazer de conta que os atentados de Atocha não Putin e aos Executivos “eslavos” da capital
podiam ser obra de jihadistas, o Kremlin tem russa: a invasão do Afeganistão pela ateia
agora de assumir uma nova “operação espe- União Soviética (entre 1979 e 1988); as duas
cial” contra o seu verdadeiro alvo: o Daesh-K. guerras na Chechénia (1994-2009), república

68 VISÃO 28 MARÇO 2024


Terror total
Nº DE ATENTADOS DAS DIFERENTES FILIAIS
DO AUTOPROCLAMADO ESTADO ISLÂMICO (DAESH),
E RESPETIVA LOCALIZAÇÃO, DESDE MARÇO DE 2023

África Ocidental 403

Síria 189

Iraque 158

África Central 142

Moçambique 79
Khorasan
Afeganistão e Ásia central 66 Não inclui o ataque de Moscovo

Sahel 47

Ásia Oriental 27

Somália 8 FONTE The Washington


Institute for Near East Policy MT/VISÃO

Sanaullah Ghafari também não tolera que


haja combatentes chechenos e tártaros envol-
vidos na refrega entre a Ucrânia e a Rússia
(dois países eslavos) e, como tal, se não que-
rem ser acusados de apostasia, os verdadeiros
muçulmanos têm o dever de participar apenas
na guerra santa contra os cruzados infiéis,
onde quer que eles se encontrem.
A 3 de janeiro de 2024, uma célula suici-
da do Daesk-K provocou 94 mortos e 300
feridos em Kerman (ou Carmânia), no Irão,
russa de maioria muçulmana; a intervenção
militar na Síria (desde 2015), para garantir a
BARBÁRIE durante as cerimónias religiosas de homena-
gem ao general Qassem Soleimani, naquele
sobrevivência do regime de Bashar al-Assad Principais atentados do que é considerado o mais mortífero atentado
e impedir o crescimento do califado contem- Daesh-K desde 2015, na história da república islâmica, fundada em
porâneo desejado pelo iraquiano Abu Bakr data da sua fundação 1979. A 28 do mesmo mês, dois elementos do
al-Baghdadi (fundador do Daesh que se sui- grupo tentaram dinamitar a igreja de Santa
cidou em 2019, para evitar a sua captura por 13 JULHO 2018 Maria, em Istambul, na Turquia, e, a 19 de
tropas especiais norte-americanas); ou ainda Ataques simultâneos março, a polícia alemã deteve, nas imedia-
as recentes interferências e o apoio de grupos em Mastung e Bannu ções de Karlsruhe, outros dois milicianos
mercenários como os Wagner às juntas gol- (Paquistão): 131 mortos que, no verão passado, estiveram na Suécia
pistas no Sahel e na África Ocidental (Mali, com o propósito de destruir o Parlamento
Burkina Faso, Sudão, Guiné-Conacri, Níger), 26 AGOSTO 2021 de Estocolmo.
para conter o avanço jihadista. Célula suicida espalha Um dos segredos para a facilidade de re-
o caos no aeroporto crutamento do Daesh-K está, em larga medi-
AMEAÇA GLOBAL de Cabul e faz 183 da, no Tajiquistão e no sentimento de injustiça
Nas contas da ACLED, organização não go- mortos. Nos sete do mundo muçulmano pelo que se passa na
vernamental criada por vários académicos meses anteriores, Palestina. O regime de Duchambé é um alia-
para rastrear a violência nos cinco cantos do o grupo realizou do estratégico de Moscovo e os tajiques são
216 ataques de que
globo, o Estado Islâmico já realizou perto de dos povos mais pobres e reprimidos da Ásia
resultaram três mil
40 ataques na Rússia, desde 2018. O mapa Central. Mais de dois milhões (um quinto da
vítimas
interativo criado pelo Washington Institute população) teve de emigrar nos últimos anos
com o intuito de monitorizar todas as filiais 3 JANEIRO 2024 para a Rússia, onde funcionam como mão de
do Daesh indica que estas realizaram 1121 ata- Dois suicidas obra barata e ficam à mercê da radicalização
ques no último ano, de que resultaram 4770 protagonizam, em fundamentalista. Agora, conhecida a identi-
mortos e feridos, além de terem marcado Kerman (Carmânia), no dade e a nacionalidade de alguns dos atacan-
presença em 49 países (de Moçambique às Irão, o pior atentado da tes ao Crocus City Hall, e com o governo de
Filipinas, passando pelas Maldivas). Detalhe: República Islâmica: 94 Putin a admitir o regresso da pena de morte
os militantes que lutam pela província do mortos e 300 feridos (oficialmente suspensa desde 1996), teme-se
Khorasan são os mais letais, provocando, em o pior. No mínimo, terá de fazer depressa o
média, 14 vítimas por atentado, constituindo que Joe Biden não conseguiu cumprir desde
a “maior ameaça global da atualidade”. agosto de 2021. ffialho@visao.pt

28 MARÇO 2024 VISÃO 69


EUA
A próxima
guerra civil
já começou
(e ainda ninguém reparou)
Os planos da primeira batalha já foram
traçados. Os problemas políticos são
estruturais, a crise é de longa data
e está em fase de aceleração. Os serviços
de informações de outros países coligem
dossiers sobre a possibilidade de colapso
dos EUA, e as ondas de choque irão
alastrar a todo o mundo

— POR STEPHEN MARCHE


O
Os Estados Unidos da América estão a chegar ao fim. Resta
saber como. Todos os governos, todos os negócios, todas as
pessoas vivas, todos serão afetados pela resposta.
O inimaginável tornou-se o dia a dia do americano. Bandos
de bufões profanam o edifício do Capitólio, há gás lacrimo-
géneo e tanques nas ruas de Washington, uma guerra inter-
mitente entre manifestantes e milícias, rebeldes armados a
tentar raptar governadores em exercício, incerteza quanto à
transição pacífica do poder ‒ se lêssemos isto acerca de um
outro país, julgaríamos que já tinha começado uma guerra civil.
Os EUA estão a resvalar para o tipo de conflito sectário que é
comum em países pobres com histórias de violência, e não na
mais perene das democracias e maior economia do mundo. A
queda foi súbita. Há uma década, a estabilidade e a supremacia
global americanas eram dados adquiridos. Recordar o 11 de
Setembro de 2001 era pretexto para grandes demonstrações
de unidade nacional. Os EUA eram sinónimo do triunfo da
democracia. Isso acabou. A solidariedade desvaneceu-se. O
sistema americano tornou-se um caso de paralisia digno de
estudo. A violência política está a aumentar.
A próxima guerra civil na América não se parecerá com uma
guerra civil num país mais pequeno. Os EUA são um país frá-
gil, mas enorme. O seu poder militar continua sem rival. A sua
economia dita a saúde da economia global. Se cair a República
americana, cai a democracia enquanto sistema político mais
avançado do mundo. Se cair a democracia, caem a paz e a se-
gurança da ordem global. Ninguém escapará às consequências.

A PROBABILIDADE DE UMA GUERRA CIVIL


Peter Mansoor, antigo coronel do Exército dos EUA e professor
de História Militar na Universidade Estadual do Ohio, é um
veterano da Guerra do Iraque que agora estuda as insurrei-
ções do passado. Não lhe é difícil imaginar em solo america-
no um equivalente contemporâneo de guerras civis noutras
paragens. “Não seria como a primeira guerra civil americana,
com exércitos em manobras no campo de batalha”, afirma.
“Provavelmente seria um vale-tudo-menos-tirar-olhos, vi-
zinhos contra vizinhos, divididos por crenças, cores de pele e
religiões. Seria horrível.”
em 25. Nos EUA, os extremistas antigovernamentais mataram
42 pessoas em 2019, 53 em 2018, 37 em 2017, 72 em 2016, e 70
em 2015. De acordo com esta definição, a América já vive um
conflito civil, no limiar de uma guerra civil.

Numa sondagem realizada no rescaldo da vitória de Trump SISTEMA COMPLEXO EM CASCATA


na eleição presidencial de novembro de 2016, 31% dos eleitores Uma guerra civil, qualquer que ela seja, nunca tem uma causa
americanos previram uma segunda guerra civil num horizonte única. Um enorme número de fatores contribui para que uma
de cinco anos. Em 2017, na Foreign Policy, um painel de es- sociedade pacífica e próspera mergulhe na violência. Como
pecialistas em segurança nacional avaliou a probabilidade de as interações são turbulentas, as situações estáveis parecem
haver uma guerra civil nos 10 a 15 anos seguintes. As respostas redundar inesperadamente no caos. A natureza complexa de
oscilaram entre 5% e 95%. A mediana situou-se em 35%. Tan- um sistema em cascata explica por que razão o inimaginável
to aos olhos dos especialistas como do americano comum, a acontece vezes sem conta.
probabilidade de, a breve prazo, eclodir uma guerra civil era Inimaginável não significa imprevisível. O colapso ocorrerá
mais ou menos igual à de tirar de um baralho um 10 ou uma mais cedo do que se espera, será súbito, mas não será uma
carta de valor superior. surpresa. A América abre brechas num momento em que
Tal estimativa, contudo, era só para “os 10 a 15 anos se- existe uma capacidade inédita de acompanhar a sua prolife-
guintes”. A tensão está a aumentar e crescem as forças que ração. A NASA revelou recentemente que a margem de erro
deslassam a unidade americana: a política hiperpartidarizada, da sua modelação das alterações climáticas era inferior a um
a degradação do ambiente, o aumento da desigualdade. Em vigésimo de grau. A precisão e a qualidade da previsão são
2019, num inquérito do Institute of Politics and Public Service extraordinárias. Quando ‒ e não se ‒ um furacão de categoria
da Universidade de Georgetown, perguntava-se aos america- 1, 2 ou 3 atingir Nova Iorque, os autores do modelo saberão,
nos “quão perto de uma guerra civil” se encontrava o seu país, à escala das ruas, as partes da cidade que ficarão inabitáveis.
numa escala de 1 a 100. As respostas agregadas indicaram 67,23, Os modelos do comportamento eleitoral em termos políti-
ou seja, quase a dois terços desse caminho. co-partidários tornaram-se mais realistas do que admitem
Segundo o Centro para o Estudo da Guerra Civil do Peace os seus criadores: um grupo de especialistas em ciência po-
Research Institute Oslo (PRIO), o critério técnico para definir lítica recusou-se a acreditar no seu próprio modelo quando
uma guerra como civil são mil combatentes mortos no decurso este anteviu que Trump seria eleito. Tal projeção parecia-lhe
de um ano. Na definição de conflito civil, a contagem começa demasiado exótica. Nunca a desigualdade económica foi tão

72 VISÃO 28 MARÇO 2024


esmiuçada, nunca as suas consequências para a democracia
tão bem compreendidas. Os estudiosos das guerras civis,
habituados a analisar conflitos no estrangeiro, veem agora
replicados no país mais rico do mundo, pátria das Forças
Armadas mais poderosas da História da Humanidade, os
padrões que identificaram.
Os livros de História das guerras civis abrem geralmente
com capítulos sobre os antecedentes desses conflitos. No caso
dos EUA, esse primeiro capítulo poderia ser escrito hoje. Os
desequilíbrios económicos e ambientais aumentam a cada ano
que passa. A riqueza produzida no país apenas reverte a favor
dos que estão no topo. O Governo, cuja legitimidade nunca é
reconhecida por todas as partes, não merece confiança. Di-
minui a fé nas instituições, sejam elas quais forem. O desígnio
nacional esmorece. A solidariedade nacional está em processo
de erosão. Mesmo quando dele recebe um mandato claro, o
Governo é cada vez mais incapaz de cumprir a vontade do
seu povo. A politiquice contamina todas as tarefas executivas.
Dos últimos quatro Presidentes, dois viram-se a braços com
longos processos de impugnação. Em duas das quatro últimas
eleições, o vencedor do voto popular foi derrotado por um
sistema eleitoral arcaico herdado do século XVIII. O poder
judicial é dogmático e está a endurecer ao ponto de a lei ter
pouco significado fora do contexto politizado da sua aplica-
ção por parte dos tribunais. Os noticiários da noite abrem
com massacres. O americano comum recusa dar ouvidos às
autoridades, mesmo quando estão em causa questões tão
importantes para a sua sobrevivência como a saúde pública.
A América convive há 160 anos com um mito pouco con-
solidado: o da sua unidade. Este tipo de mitos é sempre frágil.
Mesmo as identidades nacionais há muito estabelecidas, fu-
sões antiquíssimas de povos e crenças, se podem desagregar
a uma velocidade estonteante. No Iraque, antes de 2006 e de
o ódio sectário consumir o país, os casamentos entre xiitas
e sunitas eram relativamente frequentes. Os diferendos re-
ligiosos permanentes e insanáveis eram já uma relíquia do
passado. Depois deixaram de o ser.
Sempre que um Governo fracassa, onde quer que soçobre
a transição pacífica do poder, o restabelecimento da ordem
democrática requer nada menos do que um milagre. Na
A próxima guerra civil na América não será diferente. Quando os eleitores do Partido
América não se parecerá Democrata não se sentem representados, quando os eleito-
res do Partido Republicano não se sentem representados, o
com uma guerra civil num Governo não passa de mais um recurso a que deitar a mão.
A indignação alimenta ciclos de vingança destrutivos. As
país mais pequeno. Os EUA pessoas refugiam-se em tribos. Perdida a estabilidade do
são um país frágil, mas poder, é fácil arranjar desculpas para assassinar os vizinhos.

enorme. Se cair a República OS INCIDENTES CATALISADORES


Os despachos que se seguem baseiam-se nos melhores mo-
americana, cai a delos disponíveis, aqueles cuja capacidade preditiva foi con-
democracia enquanto firmada. São mais do que opiniões avalizadas. O mesmo não
se pode dizer dos incidentes catalisadores. São produtos da
sistema político mais imaginação, mas de uma imaginação escrupulosa e exaustiva.
Sistemas complexos em cascata são abstrações. Não dão
avançado do mundo. Se conta dos custos humanos. Em cada um dos despachos que
cair a democracia, caem a se seguem, imaginei um incidente catalisador que revelasse
o custo humano. Inspirei-me no relatório The Effects of
paz e a segurança da ordem Nuclear War, publicado em 1979 pelo Office of Technology
Assessment, a pedido da Comissão de Relações Externas do
global. Ninguém escapará Senado, talvez a obra de ficção mais influente da História. The
Effects of Nuclear War deu origem ao filme The Day After,
às consequências em que as “medidas abstratas de poder estratégico” referi-

28 MARÇO 2024 VISÃO 73


das no relatório eram apresentadas em termos mais fáceis O PONTO DE VISTA DOS DESPACHOS
de entender: o filme serviu-se do que eram então os mais A minha nacionalidade confere-me uma vantagem específica
avançados conhecimentos científicos para imaginar os efei- quando se trata de descrever um colapso iminente da América.
tos de uma guerra nuclear. Nos seus diários, Ronald Reagan Um conflito civil obriga as pessoas a tomar partido, e o seu
citou The Day After como uma das fontes de inspiração do ponto de vista é moldado pelo lado escolhido. Todo o conflito
Tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermédio (1987). civil é precedido de desorientação. Sendo eu canadiano, não
Na crise atual, em que tantas pessoas recusam ver o que me sinto afetado pela desorientação da América.
se desenrola diante dos seus olhos, urge confrontá-las com O Canadá serve de Horácio ao Hamlet americano: é teste-
esse tipo de previsões, muito embora o futuro seja intrin- munha próxima, empática e quase sempre irrelevante do drama
secamente imprevisível. Ninguém podia adivinhar que um aparatoso que se desenrola do lado de lá da fronteira. Sou um
empregado da Cup Foods em Minneapolis denunciasse à estrangeiro que viveu nos EUA, que trabalha nos EUA, que gos-
polícia uma nota de 20 dólares falsa; e que, chamado para ta dos EUA. Embora me situe no centro do espetro político do
investigar o incidente, o agente Derek Chauvin arrastasse meu país, não tenciono omitir o facto de que as minhas ideias
para fora do seu carro um homem chamado George Floyd relativas a políticas públicas seriam consideradas liberais pela
e, querendo imobilizá-lo, apoiasse um joelho sobre o seu
pescoço durante sete minutos e 46 segundos, ignorando as
suas mais de 20 súplicas para que o deixasse respirar. Nin-
guém podia prever que polícias à paisana entrassem por en-
gano em casa de Breonna Taylor e a baleassem mortalmente.
A coisa mais inteligente
Menos ainda podia alguém adivinhar que seriam estes e não que Trump afirmou
outros quaisquer incidentes de brutalidade policial ‒ e houve
literalmente milhares de outros ‒ a desencadear protestos acerca da sua carreira
gigantescos por todo o país. Mas qualquer observador atento
ter-se-ia apercebido facilmente da militarização das forças
política foi dita numa
policiais americanas, em curso há décadas; da frequência conferência de Imprensa,
com que nos EUA a polícia dispara sobre os cidadãos, três
a 30 vezes superior à verificada noutros países; da perda de em 2017: “Eu não cheguei
legitimidade da polícia enquanto garante da autoridade, aos
olhos da maioria da população negra; e da intensificação dos
e dividi o país. Este país
movimentos de protesto contra a brutalidade policial desde os já estava gravemente
tempos da Administração Obama. Breonna Taylor foi uma das
48 mulheres negras abatidas pelas forças policiais nos EUA dividido antes de eu cá
desde 2015. O seu nome e as circunstâncias particulares da
sua morte eram imprevisíveis. Mas não o acontecimento em
chegar.” Na melhor
si nem as suas consequências. Agora é totalmente previsível das hipóteses, Trump
que ocorra outro incidente de brutalidade policial, tal como
é previsível que na sua esteira ocorram motins. é um sintoma
74 VISÃO 28 MARÇO 2024
país entre azuis e vermelhos, o ódio violento ao Governo fe-
deral, a insustentabilidade económica, as crises iminentes na
segurança alimentar e ambiental das cidades, a ascensão das
milícias patrióticas antigovernamentais da direita radical ‒ são
o tema deste livro. A experiência americana não foi concebida
para aquilo que os EUA estão prestes a enfrentar. Quem quer
que seja o Presidente, essa realidade não mudará.
No discurso de vitória após a eleição de 2020, Joe Biden
disse ser “tempo de sarar”. Não passou de um voto piedoso.
No preciso instante em que o Presidente eleito esboçava um
gesto de reconciliação, o Presidente em exercício recusava
conceder-lhe a vitória. Nas principais cidades, a fé que os li-
berais têm nas instituições do seu país é tão intensa que roça
o delírio. Há 250 anos que é ensinado aos americanos que
o seu país, com os seus ideais e sistemas, é a solução para a
História. Hoje é-lhes penoso aceitar que são apenas um dos
seus carrascos e uma das suas vítimas.
A esperança numa restauração Biden não passa de uma
esperança vã. A presidência de Barack Obama baseava-se
naquilo a que, por delicadeza, chamaremos a ilusão de um
desígnio nacional. Foi no discurso de abertura da Convenção
Democrata de 2004 que a ideia foi por ele formulada com mais
paixão e pureza: “Não há uma América liberal e uma América
conservadora ‒ há os Estados Unidos da América. Não há uma
América negra e uma América branca e uma América hispânica
e uma América asiática ‒ há os Estados Unidos da América.”
maioria dos americanos. Vivo num país onde a existência de Era uma bela visão. Mas era uma fantasia. Existe mesmo uma
um serviço público de saúde e os limites à posse de armas são América vermelha e uma América azul. São sociedades dife-
dados adquiridos, mesmo entre os conservadores. rentes com valores diferentes, e os seus partidos políticos são
No entanto, ser democrata ou republicano é, cada vez mais, os arautos dessa diferença.
pertencer a uma tribo e não um compromisso com políticas Infelizmente, a América parece ter sido arrastada para uma
específicas. E eu não pertenço a qualquer das tribos. Tendo espiral autodestrutiva: ao colapsar, o sistema impede a sua
percorrido os EUA de lés a lés para observar as condições no própria reforma. O Congresso nem se consegue pôr de acordo
terreno, conversado com nacionalistas brancos e com manifes- para investigar extremistas violentos que atacaram a sua sede
tantes do movimento Black Lives Matter, com vendedores de e puseram em risco as vidas dos seus membros. Após os anos
armas e com mães de vítimas de massacres, tudo me pareceu Trump, os democratas tentaram sarar as feridas infligidas às
igualmente estranho, a população rural do Interior e as elites instituições americanas, mas permanecem, na sua maioria,
costeiras, o Norte e o Sul. Era como se fossem outros países. apegados a velhos hábitos, aos EUA em que cresceram. Uma
Os especialistas que foram as fontes destes despachos ‒ che- maneira de ler a situação política atual é dizer que os repu-
fes militares, agentes da polícia, agrónomos, ambientalistas, blicanos se aperceberam mais cedo do que os democratas do
historiadores, cientistas políticos ‒ ocupam uma faixa ampla colapso das instituições. Entretanto, para a América demo-
do espetro político. Muitos são republicanos de longa data. crática, o tempo está a esgotar-se.
Quase metade definir-se-ia como conservadora. Não procurei Atualmente, a política partidária é sobretudo uma distração.
uma diversidade de pontos de vista. Estas pessoas que sabem Tal não desculpa as ações antidemocráticas de alguns dos elei-
do que falam vêm de ambos os lados, mas servem interesses tos. Em 2021, Mike Nearman, da Câmara dos Representantes
mais vastos do que os da política partidária. do Oregon, foi expulso deste órgão por ter aberto a porta aos
desordeiros que assaltavam o Capitólio do seu estado. O Par-
A DISTRAÇÃO CHAMADA TRUMP tido Republicano tem agora uma ala eleita e uma ala militante
Boa ou má, todos temos uma opinião sobre Trump: o derra- armada. Os partidos e os seus membros já não têm grande
deiro defensor da grandeza americana ou uma séria ameaça importância. Culpar um dos lados alimenta um tipo perverso
à democracia nos EUA; um lutador pelos valores americanos de esperança: “Se ao menos os cargos fossem ocupados por
tradicionais ou um criminoso motivado apenas pela certeza republicanos mais moderados…”; “Se ao menos o antigo bi-
da sua impunidade. Não importa muito qual das opiniões é a partidarismo pudesse ser reposto…” Este tipo de esperança não
nossa. Trump é menos importante do que julgam uns e ou- só é imprudente como irresponsável. O problema não está em
tros. A coisa mais inteligente que o próprio afirmou acerca da quem ocupa o poder, mas nas estruturas do poder. O sistema
sua carreira política foi dita numa conferência de Imprensa americano é um modelo de governação arcaico, totalmente
em 2017: “Eu não cheguei e dividi o país. Este país já estava desadequado às realidades do século XXI. Precisa de reformar
gravemente dividido antes de eu cá chegar.” Na melhor das as suas fundações, e não apenas de caras novas.
hipóteses, Trump é um sintoma. Os EUA já arderam no passado. A Guerra do Vietname, os
É essencial reconhecer esta dura realidade: se Hillary protestos a favor dos direitos civis, os assassínios de John F.
Clinton tivesse sido eleita em 2016, as forças empenhadas na Kennedy e de Martin Luther King, o escândalo Watergate,
queda da República americana não seriam menos poderosas tudo foram catástrofes nacionais que permanecem na memória
do que agora. Tais forças ‒ o hiperpartidarismo, a divisão do contemporânea. Mas os EUA nunca se confrontaram com uma

28 MARÇO 2024 VISÃO 75


crise institucional como a atual. A confiança nas instituições
era muito maior nos anos 1960 e 1970. O Civil Rights Act, a lei
dos direitos civis, teve o apoio de ambos os partidos. A morte
do Presidente Kennedy foi lamentada coletivamente como
tragédia nacional. Retrospetivamente, o escândalo Watergate
foi a prova de que o sistema funcionava. A Imprensa relatou
os crimes presidenciais. Os americanos levaram a Imprensa
a sério. Os partidos políticos sentiram necessidade de reagir à
corrupção relatada. Hoje, nenhuma destas afirmações poderia
ser feita com a mesma segurança. O sistema político americano
está tão tomado pelo ódio que até as tarefas mais elementares
da governação se tornam impossíveis. O sistema judiciário
perde legitimidade a cada dia que passa. A todos os níveis, a
confiança no Governo está em queda livre, ou não pode ser
mais baixa, como no caso do Congresso, cuja taxa de apro-
vação ronda os 10%. Nada disto são previsões, especulações.
Tudo isto já aconteceu. Das ruínas da velha ordem irrompem
chamas de pura raiva.
O QUE ESTÁ EM CAUSA NO CONFLITO
As guerras civis são guerras totais pontuadas por atrocidades,
travadas entre comunidades e não entre soldados profissionais.
As insurreições são guerras por significados, conflitos em que
os ideais e a visão coletiva de um país se corromperam. É pre-
cisamente por estarem em jogo significados que as rebeliões
são tão violentas: quando lutamos pela liberdade e pela nossa
alma, não há nada de que não sejamos capazes.
A América foi fundada sob o lema E Pluribus Unum. Se
não vingar a ideia de unidade, múltiplas fações emergirão: As forças que despedaçam a América são radicalmente
os negros e os brancos, o Norte e o Sul, o Litoral e o Interior, modernas e tão antigas como o próprio país. Tudo o que agora
judeus, cristãos, muçulmanos, hindus, mórmones, cientolo- vem à tona tem estado à espreita, submerso, há décadas, se não
gistas, a Nação do Islão, os 50 estados, os seminolas e os sioux, mesmo desde o início. As revoluções sangrentas e a ameaça
os pés-negros e os comanches, imigrantes de todos os países de secessão são essenciais à experiência americana. A América
do mundo. Se quiséssemos, poderíamos fracionar a América esteve sempre sujeita a mudanças rápidas e drásticas. A questão
de 327 milhões de maneiras diferentes. não é se as fações mergulharão num conflito, ou como será esse
conflito, mas antes qual a América que daí emergirá.

O DESEJO DE NÃO VER O QUE AÍ VEM


Os governos estrangeiros Em certo sentido, a crise já chegou. Só faltam os incidentes
catalisadores. A primeira guerra civil americana foi antecedida
têm de se preparar pelo discurso do Estado da União de James Buchanan, cinco
para uma América meses antes. A sua afirmação de que a secessão era ilegal, mas
ele nada podia fazer quanto a isso em termos constitucionais,
pós-democrática, uma assinalou o momento em que a América se cindiu e a guerra
se tornou inevitável. Daí em diante, o país regeu-se por dois
superpotência autoritária sistemas políticos distintos, dois sistemas judiciários. O país
e, portanto, muito estalou antes de se dividir.
Nem os mais inteligentes, informados e dedicados cidadãos
menos estável. Têm de foram capazes de ver chegar a primeira guerra civil americana.
Quando os soldados confederados bombardearam o Forte Sum-
se preparar para uma ter no dia 12 de abril de 1861, ninguém acreditou que a primeira
América sem rumo, tão guerra civil era inevitável. O presidente da Confederação, Jeffer-
son Davis, declarou que o incidente, em que ninguém morreu,
consumida pelas suas era “o início de uma guerra terrível ou o fim de uma disputa
política”. Foi ambas as coisas e nenhuma delas. A guerra come-
crises que será incapaz çara mais cedo. A disputa política continuou por muito tempo.
Em Washington, no inverno de 1861, Henry Adams, neto de
de conceber, menos John Quincy Adams, declarou que “homem algum na América
ainda de pôr em prática, queria, esperava ou planeava a guerra civil”. O senador da Ca-
rolina do Sul, James Chestnut Jr., que fez mais do que muitos
políticas domésticas ou para provocar a catástrofe, prometeu beber todo o sangue der-
ramado do princípio ao fim do conflito. A opinião corrente à
uma política externa época era de que não teria de beber “um dedal sequer”. O Norte

76 VISÃO 28 MARÇO 2024


Brown chegar a Harpers Ferry, na Virgínia, com o intuito de
saquear o arsenal e armar os escravos? Como poderia não ha-
ver uma guerra civil depois de o congressista Preston Brooks,
proprietário de escravos, ter espancado o senador Charles
Sumner, um abolicionista, com uma bengala de castão de ouro,
deixando-o sem sentidos na sala do Senado? Como poderia
não haver uma guerra civil depois de a Carolina do Sul, por
considerar aquelas inconstitucionais, ignorar as tarifas adua-
neiras federais durante a crise da nulificação de 1832? Depois
das lutas contra a lei da mordaça?
Cenários Retrospetivamente, a política americana do “destino ma-
nifesto” tornou a guerra civil impossível de evitar. À medida
do apocalipse que cada território era aberto a colonos ‒ Missuri, Kansas,
Texas ‒, era preciso responder à pergunta sobre se a América
Este artigo é adaptado do era um país de escravos ou de homens livres, e não havia res-
primeiro capítulo de A Próxima posta. A abertura de cada novo território suscitava a pergunta
Guerra Civil – Notícias da impossível: o que é a América?
América do Futuro (ed. Antes de começar a primeira guerra civil, ninguém ante-
Zigurate), da autoria de cipou a catástrofe, mas, assim que teve início, era inevitável.
Stephen Marche, escritor e Hoje, vistos de perto, os acontecimentos parecem caóticos e
ensaísta canadiano, habitual confusos, mas, se nos abstrairmos da violência, não é difícil
colaborador de publicações perceber para onde conduzem. A inércia e o otimismo são
de prestígio como as revistas forças poderosas. É tão fácil fingir que tudo se vai resolver.
Esquire, The Atlantic, The New Também é fácil ficarmos obcecados com o caos do momento,
Yorker e dos jornais The New com a faúlha que poderá num ápice incendiar o país inteiro.
York Times e The Guardian. Como ninguém quer o que aí vem, ninguém quer ver o que
aí vem. Em momentos críticos da História, o futuro olha-nos
de frente. Nunca conseguimos encará-lo olhos nos olhos.
estava tão mal preparado para a guerra que nem armas tinha.
Em que preciso momento é que a primeira guerra civil se OS PREPARATIVOS JÁ ESTÃO EM CURSO
tornou inevitável? A pergunta é fascinante porque não tem Haverá quem diga que contemplar a possibilidade de uma
resposta. A presença de delegados da Geórgia na Carolina do nova guerra civil é ser alarmista. Tudo o que posso dizer é que
Sul foi necessária para o Sul arranjar coletivamente a coragem a realidade ultrapassou as previsões mais alarmistas. Imaginem
para enveredar pela secessão, embora a presença daqueles se recuar uns meros dez anos e ter de explicar a alguém que um
devesse à celebração do fim dos trabalhos de construção de Presidente republicano iria apoiar publicamente a ditadura
uma linha de comboio entre os dois estados. “Acaso a linha norte-coreana. Nem em sonhos tal passaria pela cabeça de um
Charleston e Savannah tivesse ficado pronta um mês antes ou qualquer teórico da conspiração. Se alguém o previu, mais não
depois, teria a desunião chegado noutra altura, e/ou sob outra teve do que um vago vislumbre. As tendências eram manifestas;
forma, ou mesmo nunca?”, perguntava William W. Freehling os seus resultados não.
em The Road to Disunion. Um único mês de atraso numa só Neste preciso momento há xerifes eleitos a promover
via-férrea teria bastado para impedir a morte de centenas de abertamente a resistência à autoridade federal. Neste preciso
milhares de americanos. momento há milícias a armarem-se e a treinar-se, em prepa-
Quanto mais perto estamos de um acontecimento, mais as ração para a queda da República. Neste preciso momento, na
coisas parecem evitáveis. Se Lincoln nunca tivesse sido eleito, internet, na rádio, na televisão por cabo, nos centros comer-
teria havido uma guerra? George Custer, então um cadete na ciais, disseminam-se doutrinas que defendem uma liberdade
academia militar de West Point, lembrava-se de ter visto sulistas radical, inatingível, messiânica. Neste preciso momento, o
a dirigirem-se para os navios a vapor atracados no cais a fim americanismo radical anseia por uma solução violenta para
de se juntarem aos respetivos estados: “Demasiado afastados as suas fantasias políticas. Neste preciso momento, a fé na
para, caso a disciplina militar o permitisse, se despedirem de democracia está estilhaçada. No rescaldo da eleição de Biden,
mim de viva voz, tiraram os chapéus em sinal de adeus quando uma sondagem da YouGov revelou que 88% dos republicanos
me avistaram a montar guarda contrariado ‒ o preço por ter não acreditavam que a sua vitória fosse legítima.
infringido o regulamento”, recorda, “o que retribuí ‒ não sem Os serviços de informações de outros países coligem dos-
antes me assegurar de que não estava nenhum oficial superior siers sobre a possibilidade de colapso da América. Os governos
a vigiar-me ‒ apresentando armas com o meu mosquete”. Os estrangeiros têm de se preparar para uma América pós-demo-
dois lados, então ainda unidos por sentimentos de fraternidade, crática, uma superpotência autoritária e, portanto, muito menos
separaram-se com saudações e com tristeza. Há anos que os estável. Têm de se preparar para uma América fragmentada,
homens de West Point lutavam entre si, às vezes em duelos, por com diferentes centros de poder. Têm de se preparar para uma
causa da questão da escravatura. A ideia de que iam começar a América sem rumo, tão consumida pelas suas crises que será
matar-se uns aos outros parecia absurda. incapaz de conceber, menos ainda de pôr em prática, políticas
Mas quanto mais olhamos para trás, mais inevitáveis nos domésticas ou uma política externa.
parecem os acontecimentos. Como poderia não haver uma A próxima guerra civil deixou de ser ficção científica. Os
guerra civil depois dos confrontos sangrentos que a História planos da primeira batalha já foram traçados ‒ e não por ro-
recorda como Bloody Kansas; depois de o abolicionista John mancistas, mas por coronéis. visao@visao.pt

28 MARÇO 2024 VISÃO 77


JAPÃO
O FIM DA
EXPERIÊNCIA
DOS JUROS
NEGATIVOS
N
Nos últimos anos, os juros subiram a
pique um pouco por todo o mundo. Mas
havia uma economia que se mantinha
irredutível e resistia ao endurecimento
da política monetária, mantendo as
taxas de referência abaixo de 0%. Isso
mudou no passado dia 19 de março,
quando o Banco do Japão fez o primei-
ro aumento de juros em 17 anos, para
entre 0% e 0,1%. Foi o fim da era de
juros negativos, que vigorou em algu-
mas grandes economias, como a Zona
Euro, após a grande crise financeira de
2008 e a de dívidas soberanas no início
da década de 2010.
Os economistas atribuem uma muito
baixa probabilidade a que essa arma
pouco convencional dos bancos centrais
venha a ser ativada no futuro. Contudo,
os efeitos dessas políticas monetárias
deverão continuar a ser alvo de debate
e podem ainda não ter sido revelados na
totalidade. Essa abordagem foi essencial
para evitar a armadilha da deflação, em
que consumidores e empresas adiam
decisões de compras e investimento,
com consequências nefastas para a
economia? Ou teve mais efeitos secun-
dários do que o desejável?
Este instrumento de política mone-
tária pode desafiar o senso comum e
O Banco do Japão foi o último a acabar ser visto como uma inversão do normal
funcionamento do sistema monetário e
com a política de taxas negativas, que financeiro. De forma simplista, com as
taxas abaixo de 0%, paga-se para em-
vigorou durante mais de uma década. prestar dinheiro e recebe-se por pedir
emprestado. As Euribor, por exemplo,
Ir abaixo de 0% ajudou algumas seguiram as taxas de referência para
economias a evitar o temido cenário valores negativos, o que foi um alívio
para quem tinha crédito e uma dor de
de deflação, mas pode ter provocado cabeça para a rentabilidade dos bancos
e para os aforradores que quisessem al-
efeitos secundários gum tipo de retorno em aplicações mais
seguras, como depósitos ou certificados
— POR RUI BARROSO de aforro. Em alguns países, os bancos
começaram mesmo a cobrar para aceitar

28 MARÇO 2024 VISÃO 79


BCE Mario Draghi iniciou a política de juros
negativos na Zona Euro em junho de 2014.
A taxa de depósito só regressaria a valores
positivos em julho de 2022, já com Christine
Lagarde na liderança do banco central

depósitos de grandes clientes ou de em- durante a crise pandémica. Na Zona


presas. Mas, em Portugal, o supervisor Euro, até pode parecer que o período
relembrou várias vezes que a lei proibia de juros negativos já ficou num pas-
taxas negativas nessas aplicações. sado distante. Mas não foi assim há
Também nos mercados financeiros, tanto tempo que a taxa de depósito do
os investidores passaram a aceitar pagar Banco Central Europeu esteve abaixo
para financiar Estados e empresas. O de 0%. Só em julho de 2022 – e já com
pico desse fenómeno ocorreu no final a inflação acima de 8% – é que Chris-
de 2020, quando, segundo a Bloomberg, tine Lagarde anunciou o fim das taxas
havia €17 biliões em títulos de dívida precedidas de sinal menos, medida que
a transacionar no mercado com juros tinha sido colocada no terreno em junho
negativos. Alguns investidores – como de 2014, por Mario Draghi, para forçar
Bill Gross, conhecido como o “rei das os bancos a fazer fluir o dinheiro para a
obrigações” – argumentaram que, com economia em vez de o deixarem para-
este tipo de condições monetárias, o do junto da autoridade monetária e de
capitalismo não funciona, já que deter outras instituições financeiras. A ideia
títulos de dívida em carteira passava a era espicaçar a concessão de crédito
ser mais um passivo do que um ativo, para animar a economia.
dadas as taxas negativas desses títulos. No entanto, nem todas as grandes
“Quem poupa fica com um retorno autoridades monetárias embarcaram
negativo, enquanto os devedores são na experiência. Nos EUA, mesmo com
pagos para pedir emprestado? Não é a pressão do antigo Presidente Do-
assim tão simples”, referiam os eco- nald Trump para adotar essa política,
nomistas do Fundo Monetário Inter- a Reserva Federal considerou que uma forma significativa os riscos para a es-
nacional (FMI), numa nota. “Quando medida desse tipo poderia trazer mais tabilidade financeira.” Uma das maiores
a inflação é de 3% e a taxa de juro de riscos do que benefícios, e houve dúvi- preocupações quando se implementou
um empréstimo de 2%, o retorno do das sobre a legalidade de uma solução esta medida pouco habitual estava re-
credor após a inflação é de menos de dessa natureza. Também o Banco de lacionada com a saúde financeira dos
0%. Nesta situação, dizemos que a taxa Inglaterra, após várias análises, optou bancos. Aplicar juros negativos nos
de juro real – a taxa nominal menos a por não seguir essa via. empréstimos e desencorajar o mesmo
taxa de inflação – é negativa”, explicam. Mas qual o balanço da experiên- nos depósitos poderia levar a uma com-
Mesmo com taxas positivas, os investi- cia monetária? Numa análise sobre o pressão das margens financeiras que
dores podem, em termos reais, aceitar assunto, de 2021, o FMI constatava: colocasse o setor em apuros. Contudo,
perder dinheiro para financiar Estados “A evidência, até agora, indica que as os estudos que têm sido feitos indicam
e empresas. E isso não foi um exclusivo políticas de taxa de juro negativas fo- que, apesar de os bancos verem a sua
da era de juros negativos. ram bem-sucedidas em flexibilizar as rentabilidade afetada com descidas de
condições financeiras sem aumentar de juros, esse efeito não foi exacerbado
RISCOS E BENEFÍCIOS
Na primeira metade da década de 2010,
os grandes bancos centrais estavam
confrontados com um problema: a
taxa de inflação aproximava-se de 0% O fim da era dos juros negativos
e as autoridades monetárias precisa- O Banco do Japão foi a última autoridade monetária a terminar com a política de taxas
vam de definir juros ainda mais baixos abaixo de 0%. Na Zona Euro, após cerca de oito anos com juros negativos, o BCE iniciou,
para estimular o crescimento. Porém, em julho de 2022, o ciclo mais agressivo de sempre de agravamento das taxas de referência
estava instituído o dogma do limite
% Suécia Zona Euro Suíça Japão
inferior de 0%. Os banqueiros centrais
4,0
viram-se entre a espada e a parede.
Para não ficarem com a sua principal 3,5
arma de política monetária sem muni- 3,0
ções, tiveram de quebrar aquela regra
2,5
não escrita, aliando os juros negativos
a outras medidas não convencionais, 2,0
como as compras de títulos de dívida e 1,5
outros ativos.
1,0
Em 2012, a Dinamarca arriscou na
política de juros negativos. Dois anos 0,5
depois, seria a vez do Banco Central 0
Europeu (BCE), o primeiro grande -0,5
banco central a fazê-lo. Seguir-se-iam
o Banco do Japão, o da Suécia e o da -1,0
Suíça. As taxas abaixo de 0% perma- 2010 2012 2014 2016 2018 2020 2022 2024
neceram por vários anos, reforçadas FONTE Reuters MT/VISÃO

80 VISÃO 28 MARÇO 2024


As bolsas e o imobiliário, e mesmo
outros ativos menos tradicionais, como
as criptomoedas, dispararam nos anos
em que os bancos centrais tornaram o
dinheiro grátis e inundaram o mercado
de liquidez. Terão estes ativos sido insu-
flados pelas políticas monetárias? Outro
dos potenciais impactos pode ter sido
na produtividade, visto que os custos de
financiamento ultrabaixos permitiram
que empresas-zombie, sem viabilidade
económica e menos eficientes, fossem
mantidas vivas devido aos juros artifi-
cialmente baixos.

EXPERIÊNCIA IRREPETÍVEL?
A necessidade de os bancos centrais

FOTOS: GETTY IMAGES


irem abaixo de 0% foi também um
sinal de que o seu arsenal convenci-
onal tinha ficado impotente perante
o risco da armadilha da deflação, em
que consumidores e empresas adiam
decisões de compras e de investimento
pelas taxas negativas. Segundo uma
análise de Grégory Claeys, investigador
O governador (na convicção de que o custo ficará mais
barato no futuro). As autoridades mo-
do centro de estudos Bruegel, “indire- do Banco do netárias alertavam que era necessário
tamente, uma melhoria da economia que os governos, através das políticas
devido à flexibilização monetária pode Japão, Kazuo orçamentais, também fizessem a sua
ajudar a contrabalançar esse efeito no
médio e no longo prazo”. Além disso, os
Ueda, anunciou, parte, para ajudar a economia a crescer
de modo sustentável.
bancos foram respondendo à pressão na
margem financeira com aumentos das
a 19 de março, Porém, atualmente, o cenário é
bem diferente. Depois de os índices de
comissões e cortes de custos. o fim dos juros preços terem disparado de uma forma
Outra preocupação era que, no caso
de os bancos aplicarem os juros ne- negativos na que poucos esperariam após o fim da
pandemia e nos primeiros meses da
gativos nos depósitos, os clientes re-
tirassem o dinheiro dessas aplicações
economia guerra na Ucrânia, a prioridade dos
bancos centrais é agora fazer com que
para guardá-lo debaixo do colchão. nipónica o génio da inflação regresse à lâmpada.
Na Alemanha, por exemplo, chegou a No caso da Zona Euro, por exemplo,
assistir-se a uma subida na procura de isso levou o BCE a subir a taxa da fa-
cofres quando alguns bancos decidiram cilidade permanente de depósito de
penalizar depósitos acima de €100 mil. -0,50% para 4% em pouco mais de
No entanto, o fenómeno foi bastante um ano, o valor mais alto na história da
contido e não teve reflexos de maior. moeda única. Com os preços a aproxi-
Uma história diferente, e que ainda marem-se novamente da meta de 2%,
pode estar longe de ter uma conclusão, a autoridade monetária liderada por
é saber até que ponto os juros bai- Christine Lagarde até admite cortar os
xos, conjugados com outras medidas juros em junho, mas de forma muito
não convencionais, podem ter criado moderada.
exageros nos mercados financeiros, No entanto, ninguém parece apostar
já que, por um lado, fizeram aumen- que os juros possam regressar a níveis
tar a liquidez no sistema e, por outro, negativos ou próximos de 0% na maior
desencorajaram o investimento em parte dos blocos económicos. “Os dias
aplicações mais seguras, como depó- das taxas ultrabaixas terminaram”, sen-
sitos. Numa nota a investidores citada tenciou Agustín Carstens, diretor-geral
pelo MarketWatch, o responsável de do Banco Internacional de Pagamen-
estratégia do Deutsche Bank, Jim Reid, tos, num discurso recente. O Japão até
observava que, embora os juros nega- pode continuar a ser uma das exceções,
tivos tenham impedido um cenário de com os juros ainda pouco acima de
deflação, possivelmente estimularam 0%. Mas, simbolicamente, marcou o
bolhas em determinados ativos. Quando fim da era em que a experimentação
o dinheiro não tem custo, há tendência da política monetária quebrou dogmas
para assumir mais riscos. económicos. rbarroso@exame.pt

28 MARÇO 2024 VISÃO 81


---------- J U ST I ÇA

A CORTE
DE MANUEL
SERRÃO
Professores universitários, jornalistas,
s,
rio
escritores e outros amigos do empresário
terão recebido benesses através da
alegada fraude a fundos europeus.
Suspeitos serão ouvidos como arguidos os
depois da Páscoa
— P O R C A R LO S R O D R I G U E S L I M A E L U Í S A O L I V E I R A

82 VISÃO 28 MARÇO 2024


S
Situada na fronteira entre
Vila Chã e Mindelo, em Vila
do Conde, a casa onde Ma-
nuel Serrão recebeu Maria
Cerqueira Gomes encheu os
olhos da apresentadora da
TVI. Tanto assim foi que, em
abril de 2021, no programa
Conta-me, a amiga do em-
presário não deixou de parti-
lhar o seu espanto: “Com uma
casa destas, ainda preferes
viver em hotéis?” Por esta
altura, segundo o Ministério
Público, há seis anos que o
empresário vivia no hotel
Sheraton Porto, uma estada
prolongada que manteve até
ao ano passado, cujo custo,
372 mil euros, terá sido im-
putado a projetos financiados
por fundos europeus. Esta
não terá sido a única extra-
vagância do empresário: se-
gundo informações recolhi-
das pela VISÃO, há suspeitas
de que Manuel Serrão tenha
distribuído, através do mes-
mo esquema, algumas benes-
ses pelos seus amigos mais
próximos, desde jornalistas
a escritores e professores
universitários.
Uma das plataformas uti-
lizadas seria o Jornal T, fun-
dado em 2015, que tem como
objetivo a divulgação da in-
dústria têxtil e de vestuário.
Propriedade da Associação
Têxtil e Vestuário de Por-
tugal, a publicação dirigida
por Manuel Serrão tem como
colaboradores os jornalistas
Jorge Fiel (ex-Expresso) e Jú-
lio Magalhães, “O Homem da
Página 3”, suspeito de ter ali-
mentado o alegado esquema
de faturação falsa de Manuel
Serrão através de duas so-
ciedades por si controladas,
a No Trouble e a House of
Learning. Terá sido através

28 MARÇO 2024 VISÃO 83


---------- J U ST I ÇA

Impostos Em 1998, Manuel


Serrão protestou contra
a coleta mínima no IRC,
introduzida pelo antigo ministro
das Finanças Sousa Franco
da ligação de várias empresas minhas empresas e os meus
– umas com projetos ligados trabalhos cá fora, mas, se me
a fundos europeus, outras convidam e eu acho graça,
como fornecedoras destas – aceito”, disse-o à TVMais, na
que o Jornal T foi financiado altura em que integrou o júri
nos últimos anos. da Miss Portugal 2004.
De acordo com a procura- Apesar da sua exposição
dora Joana César de Campos, pública, Serrão sempre quis
do Departamento Central que a vida pessoal se manti-
de Investigação e Ação Pe- vesse longe da ribalta, mas as
nal (DCIAP), suspeita-se que revistas cor-de-rosa adora-
“alguns colaboradores desse ram descobrir que se casara
jornal são, em simultâneo, com a jornalista Joana Car-
funcionários da Selectiva ravilla e que dela se separara
Moda e da Nicles, sendo na em 2007, tendo pelo meio
redação desse jornal que têm nascido uma filha, hoje com
os seus postos de trabalho, 20 anos (e sócia do FCP des-
indiciando-se que as suas de o dia 1). Além disso, Ma-
remunerações possam estar nuel é filho de Daniel Serrão
a ser imputadas a projetos (falecido em 2017), médico
cofinanciados da Selectiva de renome e conselheiro do
Moda, nos quais a Nicles fi- Papa João Paulo II.
gura como fornecedora”. No dia em que foi entro-
Além da extravagância no nizado Cavaleiro Honorário
Sheraton – fazendo recor- da Confraria do Vinho Verde,
dar a atriz Beatriz Costa, que em Braga, Daniel Serrão não
durante 50 anos esteve hos- poupou elogios ao empre-
pedada no hotel Tivoli, em sário, que já era confrade há
Lisboa –, o ferrenho portista sete anos (assim como mem-
(quer de clube, quer de cida- bro de mais 11 confrarias): “O
de) tem um longo historial meu filho tem uma carreira
de presença nas páginas da muito importante. A maior
imprensa e em canais de te- parte das pessoas conhece-o,
levisão. A sua participação em porque é bem-humorado,
A Noite da Má Língua, um mas ele desenvolve um tra-
programa da SIC que o punha balho exemplar na área têxtil.
em discussão amigável com Se houvesse uma confraria de Souza-Cardoso, antigo
Rita Blanco, Miguel Esteves dos produtores de moda, ele presidente da Associação Na-
Cardoso e Rui Zink, sob a era o grão-mestre”, contou cional de Jovens Empresários
moderação de Júlia Pinheiro, à Caras. (entre 1991 e 2009), e Antó-
foi o passaporte para fama nio Branco Mendes da Silva,
(a ela voltou, à Má Língua, INTERROGADOS DEPOIS seu cunhado, casado com a
entenda-se, 25 anos depois, DA PÁSCOA médica Paula Serrão. Os três
mas agora em versão podcast, Não era por “mestre” mas “criaram uma estrutura em-
de cujo painel já foi entre- sim por “maestro” que Ma- presarial complexa, composta
tanto suspenso). Seguiu-se nuel José de Valadares Pinto por um conjunto organizado
o comentário desportivo em Serrão era conhecido en- de pessoas coletivas, todas
vários canais de televisão. tre os seus amigos, tal como Manuel Serrão por aqueles controladas”, re-
Menos moderado a defender documenta a ficha técnica é suspeito de ter fere a procurada Joana César
as cores do FC Porto, Ma-
nuel Serrão ora irrompia com
do Jornal T. A procurado-
ra do DCIAP, por sua vez,
alimentado uma de Campos, fosse “porque
participadas, direta ou in-
uma bem audível gargalhada encontrou-lhe outra desig- teia de amizades diretamente” pelos três ou
ou, no mesmo tom, com um nação: “principal mentor e cumplicidades “porque mantendo ligações
berro. Menos se recorda- do esquema de fraude”, o entre elas através de sócios
rão de que fez parte, lado a qual, desde 2015, terá obtido à conta da fraude comuns, passados ou atuais,
lado com a antiga deputa- a aprovação e o pagamen- aos fundos participações cruzadas, car-
da comunista Odete Santos,
do Bate Boca, uma rubrica
to de fundos comunitários
no valor de 38,9 milhões de
europeus, a qual gos em órgãos de gestão e co-
laboradores ou funcionários
do programa matinal SIC 10 euros. Como colaboradores poderá superar da sua confiança”.
Horas, à época apresentado mais próximos dos eventuais os cerca de 40 No radar da investigação
por Fátima Lopes. “Nunca crimes, o empresário teria está ainda a sociedade Sandra
estive na televisão como pro- António de Souza-Cardoso, milhões de euros Pimenta Unipessoal, Lda.,
fissional, sempre mantive as sobrinho-neto de Amadeo já apurados detida pela atual namorada

84 VISÃO 28 MARÇO 2024


com informações recolhidas Mais fraudes
pela VISÃO. Até à hora de
fecho desta edição, só não foi AIMinho e 30 milhões
possível apurar se os interro-
gatórios decorrerão apenas O Tribunal de Braga está
no Ministério Público ou se a julgar, desde 2021, uma
os arguidos serão presen- fraude de 30 milhões a
tes a um juiz de instrução fundos europeus, a qual
para aplicação de medidas terá tido como epicentro
de coação. Tendo em conta os a antiga Associação
crimes em causa – fraude na Industrial do Minho
obtenção de subsídio, fraude (AIMinho). Em 2018, o
fiscal, branqueamento de ca- Departamento Central
pitais – e o valor do desvio, de Investigação e Ação
fonte judicial admitiu, como Penal (DCIAP) acusou
cenário, a apresentação dos 126 arguidos, 79 pessoas
arguidos a um juiz para apli- singulares e 47 coletivas,
cação de cauções elevadas. entre as quais o antigo
presidente da AIMINHO,
MAIS LIGAÇÕES FAMILIARES António Marques.
Além do cunhado, as ligações Segundo a acusação,
familiares de Manuel Serrão “foram investigadas 109
com a Operação Maestro operações distintas
passam ainda pela sua mãe, cofinanciadas por
Maria do Rosário Valadares fundos europeus e pelo
Souto. Diz o Ministério Pú- Orçamento do Estado”.
blico que “com vista à ocul- Um ano depois da
tação dos fundos e melhor acusação, a Agência para
dissipação e aproveitamento o Desenvolvimento e
dos mesmos”, o empresá- Coesão, entidade gestora
rio recorreu a várias contas dos fundos, admitiu à RTP
ALFREDO CUNHA

bancárias, entre as quais as que seria o Orçamento


da mãe – como cotitular ou do Estado a suportar
autorizado a movimentá-las as perdas. Os arguidos
–, que “instrumentalizava na estão a responder em
atividade ilícita”. julgamento por crimes
do empresário. De acordo ra que, “pelo menos, desde A realização de feiras e de associação criminosa,
com a investigação, os en- 2014”, esta entidade “tem sido certames de moda foi o ne- fraude na obtenção de
cargos associados à atividade maioritariamente financia- gócio central de Manuel Ser- subsídios, burla qualificada,
da empresa poderão “estar a da por fundos comunitá- rão, tendo ficado conhecido, branqueamento de
ser suportados pela Selectiva rios”. Pelo que, considera a durante vários anos, como o capitais, falsificação de
Moda” e pela No Less, uma procuradora Joana César de rosto do Portugal Fashion, documentos e fraude fiscal
sociedade anónima, gerida Campos, até “deveria ser en- enquanto vice-presidente qualificada, remontando
por Gilda Cerqueira Mendes, quadrada” legalmente como da Associação Nacional de os factos ao período
também beneficiária de fun- “entidade adjudicante”, isto Jovens Empresários. Após ter entre 2008 e 2013. O
dos europeus e que, entre o é, todos os serviços por si saído da ANJE, criou a Porto Ministério Público (MP)
final de 2023 e março deste adquiridos deveriam constar Fashion Week. sustentou na acusação
ano, ganhou quatro ajustes do portal base.gov.pt, que Pelo meio, fundou, em que os arguidos atuaram
diretos (Câmara Municipal divulga todos os contratos parceria, a agência Best Mo- no contexto de operações
da Maia, Instituto do Empre- públicos. dels. Foi também sócio do cofinanciadas por
go e Formação Profissional, Porém, os três principais ACT, um bar no Porto onde fundos europeus, como
Associação das Empresas de suspeitos terão conseguido, parava muita gente desse fornecedores de bens e
Vinho do Porto e Centro para nos últimos anos, manter universo das passagens de serviços que, na realidade,
o Desenvolvimento de Com- um nível de financiamento modelos. não foram prestados
petências Digitais). europeu que não ultrapassas- Além das preferências ou candidatando-se a
A própria associação Se- se os 50% dos rendimentos clubísticas, é-lhe conhecida a subsídios com projetos
lectiva Moda, presidida por da associação. O que, para o queda para a direita, quando que nunca tencionavam
João Oliveira Costa, mas, na DCIAP, foi conseguido “pre- o assunto é política. Foi, aliás, executar, conseguindo,
prática, segundo a investi- sumivelmente com a fina- membro da Juventude Cen- desta forma, desviar
gação, gerida por Manuel lidade de obstar àquele en- trista e participou, do lado de milhões de euros do
Serrão (que apenas detém quadramento”. Todos serão dentro, no cerco ao Palácio orçamento da União
o cargo de vogal), está sob interrogados como arguidos de Cristal, em 1975. Acabou Europeia.
suspeita. O DCIAP conside- depois da Páscoa, de acordo preso pela COPCON – e logo

28 MARÇO 2024 VISÃO 85


---------- J U ST I ÇA

Televisão A Noite da Má Língua, um programa da SIC


moderado por Júlia Pinheiro e em que também participava
Rui Zink, foi o passaporte para fama. Durante anos, também
defendeu o seu FC Porto em diversos canais de TV

libertado por ser menor – e


virou herói no liceu. “Até quis
que eles entrassem. Tinha
15/16 anos, um físico razoável
e achava que batia em toda a
gente”, recordou em tempos
Manuel Serrão.
Conhecido também como
um bon vivant, em que se
inclui gostos refinados por
refeições bem servidas, dava
atualmente voz ao programa
de gastronomia Por Pratos
Nunca Dantes Navegados,
da Rádio Observador, aos do-
mingos de manhã. Até prova
em contrário, essa sua par-
ticipação está suspensa. Em
tempos, fizera as Crónicas
de Escárnio e Mal Dizer para

JOSÉ JOÃO SÁ
a TSF.
Quem também suspendeu
a colaboração com o Obser-
vador e com a TVI/CNN foi
o jornalista Júlio Magalhães,
amigo e parceiro de golfe de
longa data de Manuel Serrão.
À semelhança da estilista Ka-
tty Xiomara, Júlio Magalhães
é suspeito de ter emitido fa-
turas de favor, ou seja, docu-
mentos fictícios a atestar um
serviço não prestado. Ambos,
aliás, foram alvo de buscas
domiciliárias.
Júlio Magalhães é um dos
acionistas da No Trouble,
PEDRO MONTEIRO

para a qual contribuiu com

MARCOS BORGA
12 mil euros em dinheiro,
num aumento de capital rea-
lizado em janeiro de 2020, e
sócio-gerente da House of
Learning, duas sociedades pelo menos, a cumplicidade vidos pela Selectiva Moda,
que, “na verdade, são geridas de quadros públicos liga- tendo esta associação asse-
de facto por Manuel Serrão, dos à atribuição dos fundos gurado as despesas de des-
António Branco Mendes da e à sua fiscalização. Nuno locação/viagens e alojamento
Silva e António de Souza- Mangas, presidente do pro- dos colaboradores daquele
-Cardoso”, refere a procu- grama Compete 2020, surge organismo intermédio”. Iro-
radora. “Indicia-se que Júlio Presidente do identificado como um dos nicamente, continuou a ma-
Magalhães também faturou
serviços a sociedades con-
Compete 2020, suspeitos de facilitação. Há
ainda dois antigos gover-
gistrada do MP a descrever,
as despesas acabariam por ser
troladas por Manuel Serrão, Nuno Mangas, e nantes sob suspeita. Ao nível pagas por fundos comunitá-
os quais não apresentam cor- dois secretários dos quadros intermédios, rios, já que foram integradas
respondência com a realida- a procuradora Joana César nos gastos gerais dos projetos
de”, concretizou. de Estado de Campos identificou vá- cofinanciados.
também estão rios funcionários da AICEP Júlio Magalhães e Manuel
O FIM DA TEIA DE CUMPLI-
CIDADES sob suspeita na (Agência para o Investimen-
to e Comércio Externo de
Serrão têm evitado prestar
declarações públicas sobre
A obtenção de quase 40 mi- Operação Maestro Portugal) suspeitos de estar esta investigação. Pedro Ma-
lhões de euros (valor que, desencadeada comprometidos com o em- rinho Falcão, advogado do
entretanto, pode subir na presário portuense. empresário, referiu pretender
sequência da investigação) pela Polícia Estes quadros terão parti- evitar julgamentos na praça
não teria sido possível sem, Judiciária cipado “em eventos promo- pública. clima@visao.pt

86 VISÃO 28 MARÇO 2024


---------- U N I V E RS I DA D ES

Pressão para brilhar Um currículo com uma


longa lista de publicações é crucial para
uma promoção ou para mudar de instituição,
conseguindo um emprego melhor

GETTY IMAGES
Quando a “Ciência” causado 10 mil mortes por
ano só na Grã-Bretanha.
Uma outra revisão siste-

é uma fraude mática mostrou que uma in-


vestigação, em que se defendia
a injeção de altas doses de
açúcar para reduzir a morta-
Só em 2023, 10 mil artigos científicos foram retirados – considerados lidade depois de um trauma-
inválidos – devido a má conduta ou fraude dos investigadores. tismo cranioencefálico, era
Calcula-se que deveriam ter sido muitos mais fraudulenta. Não se encon-
traram evidências de que os
— POR SARA RODRIGUES
ensaios clínicos – todos do

A
mesmo investigador – tives-
comunidade cientí- quência nas práticas mé- tudos do médico, publicada sem mesmo acontecido.
fica tem sido abala- dicas. no Journal of the American Já para não falar na mais
da por um grande Se há muitos artigos falsos Medical Association, em 2013, famosa fraude de todas – um
número de artigos que são simplesmente um “eu concluiu que administrar ami- artigo da autoria de Andrew
retirados (“retracted”, no ori- também”, concordando com do aos pacientes causava danos Wakefield, publicado na con-
ginal) devido à fabricação investigações anteriores, há renais e, às vezes, a morte. ceituada The Lancet, em 1999,
de resultados, plágio ou erros outros que forneceram dados Outro caso de fraude revela associou a vacina VASPR (con-
graves. Em resumo, fraude. para intervenções médicas que os betabloqueadores que tra o sarampo, a parotidite e a
Em 2023, segundo as inúteis ou mesmo nefastas. muitos pacientes cardíacos rubéola) ao autismo. Embora
contas da revista científica Veja-se, por exemplo, o europeus receberam, durante tenha sido provado que Wake-
Nature, 10 mil artigos fo- caso de pessoas gravemente mais de uma década, antes da field falsificou dados clínicos
ram removidos, deixaram doentes submetidas a inter- cirurgia, como forma de re- para receber dinheiro dos ad-
de ser considerados válidos venções cirúrgicas que rece- duzir a probabilidade de ata- vogados de pais de crianças
devido a erros grosseiros beram injeções de amido para ques cardíacos ou acidentes autistas que queriam proces-
ou má conduta. Pode parecer aumentar a pressão arterial. vasculares cerebrais, era uma sar os produtores da vacina, a
apenas uma gota no oceano Esta prática baseou-se em es- prática baseada num estudo teoria ganhou lastro e ainda
das mais de cinco milhões tudos do anestesista alemão de 2009 com dados fabrica- hoje é largamente citada nos
de publicações anuais, mas Joachim Boldt que foram re- dos. Uma estimativa revelou movimentos antivacinas e
este pingo pode ter conse- tirados. Uma revisão dos es- que este tratamento pode ter teorias conspiracionistas.

88 VISÃO 28 MARÇO 2024


PUBLICAR OU PERECER
“Há uma enorme pressão para
revistas não pagam as revi-
sões dos artigos”. Além disso,
bastava-me ler as primeiras
frases para ver que era fraude”,
Casos
publicar cada vez mais e mais, corrobora Eloy Rodrigues, conta Ricardo Dinis. Por en- famosos
para engrandecer os currí- quem revê são os pares, “que quanto, de acordo com a base Alguns exemplos de má
culos”, diz Eloy Rodrigues, também querem e precisam de dados do Retraction Watch, conduta ou fraude em
investigador na área das pu- de publicar”. pouco mais de 400 estudos artigos científicos
blicações científicas na Uni- O paradigma das publica- foram retirados. Para Ivan
versidade do Minho. ções em Ciência alterou-se há Oransky, o aumento das des-
Há mesmo um aforismo cerca de 10 anos, quando as cobertas de fraude não está Em 1999, Andrew
que está a deixar o mundo grandes revistas, que viviam relacionado com a pandemia, Wakefield publicou,
científico em polvorosa. “Pu- do dinheiro de quem que- já que, aponta, “os removidos numa das melhores
blicar ou perecer” (“publish or ria ler os artigos, passaram são uma ínfima percentagem”. revistas científicas, um
perish”, no original), que sig- a ser de acesso aberto. O di- Um dos exemplos rela- artigo que invocava
nifica a pressão para publicar nheiro tinha de vir de algum cionados com o SARS-CoV2 uma relação entre a
artigos científicos como forma lado, e assim os investigadores foi a utilização do fármaco vacina tripla (VASPR) e
de conseguir ter impacto na passaram a pagar taxas para hidroxicloroquina (usada na o autismo. Onze anos
comunidade. Um currículo publicarem, dando grande prevenção e tratamento da depois, a investigação
com uma longa lista de pu- lastro às chamadas “revistas malária), que seria a cura mi- foi considerada
blicações é crucial para uma predadoras”, em que tam- lagrosa para a Covid-19, como uma fraude, embora
promoção ou para mudar de bém se paga, mas a publicação propalaram Jair Bolsonaro até hoje dê gás
instituição, conseguindo um é muito mais rápida, sendo e Donald Trump. Em pouco a movimentos
emprego melhor. que o processo de revisão tempo, o estudo publicado na antivacinas.
Os artigos retirados (na por outros cientistas é quase Lancet foi desacreditado. “Foi
verdade continuam online, inexistente. pedido aos autores que en-
mas com uma adenda a dizer “Juntou-se a fome com viassem os dados dos 96 mil A plataforma online
que foram considerados in- a vontade de comer”, ilustra casos de que falavam no artigo Retraction Watch tem
válidos, expondo o seu autor Ricardo Dinis. “Os cientistas e chegou-se à conclusão que mais de 40 mil artigos
publicamente) aumentaram precisam de publicar e as re- era tudo fabricado, tudo in- científicos retirados
muito por duas razões: a in- vistas aceitam pagamentos.” venção”, relata Ricardo Dinis. por má conduta,
vestigação, sobretudo feita Estas predadoras vão, até, à “Cheguei a ler um estudo que plágio ou fraude nos
por voluntários que, quais de- caça dos autores. “Se quise- dizia que o Brufen fazia mal!” resultados.
tetives, vasculham a literatura rem publicar, basta enviarem Aliás, é nos pedidos de da-
académica em busca de erros; o artigo e mais uns euros.” dos para confirmação da in-
e, segundo, a confissão das Mas não se pense que a vestigação que está um busílis. O anestesista alemão
grandes revistas científicas de fraude acontece mais nestas, Embora os autores digam, Joachim Boldt está no
que o seu modelo de negócio também chamadas, “fábricas frequentemente, que os dados top dos cientistas com
– em que se paga para publi- de artigos”. Nas maiores edito- de backup dos seus artigos mais artigos removidos
car – as tornou passíveis de ras – Lancet, Nature, Science serão disponibilizados me- na Retraction Watch,
aceitar qualquer tido de tra- ou The New England Journal diante solicitação, um estudo 186.
balho antes de ser verificado. of Medicine, por exemplo – é realizado, em 2022, relatou
“Hoje, há maior escrutínio, “onde há mais retirados”, re- que 93% não os fornecem
temos ferramentas de deteção fere o professor universitário. quando solicitados por outros O presidente
de plágio e uma plataforma A Covid-19 foi uma autên- investigadores. Inundações, da conceituada
para encontrar similaridade”, tica torneira de estudos. Todos terramotos, computadores universidade de
nota Ricardo Dinis, professor queriam ser os primeiros a roubados e até térmitas já Stanford, nos EUA,
universitário e editor de revis- publicar. “Em alguns casos, serviram como desculpa para Marc Tessier-Lavigne,
tas científicas. a perda de dados. demitiu-se em agosto
O Retraction Watch, portal Portugal não foge à regra. de 2023 depois de
online criado em 2010, tem No entanto, e apesar do au- uma investigação ter
mais 47 mil artigos retirados
na sua base de dados. Ivan
A Covid-19 foi uma mento de artigos retirados,
os números são pequenos.
posto em causa “o
rigor e o processo
Oransky, um dos fundadores, autêntica torneira Vejamos a contabilidade: entre científico” dos seus
diz à VISÃO que “devia haver de estudos. Um 2000 e 2010 foram publica- artigos.
dez vezes mais artigos reti- dos 100 mil artigos de auto-
rados anualmente”, ou seja, dos exemplos res portugueses, tendo sido
“pelo menos 100 mil”, assim mais falados foi considerados inválidos 15; na No ano passado, uma
houvesse revisores suficientes
para a avalancha de publi-
o do fármaco década seguinte (2011-2020),
foram publicados 260 mil
professora da Harvard
Business School,
cações. O facto, acrescenta, hidroxicloroquina, e retirados 94. Porém, cha- nos EUA, foi acusada
Ricardo Dinis, é que “é mui- como propalaram ma a atenção Eloy Rodrigues, de falsificar dados
to difícil haver mais árbitros “muitos só são removidos, num estudo sobre…
nesta competição”, dado que, Bolsonaro e às vezes, 10 ou 20 anos mais honestidade.
com honrosas exceções, “as Donald Trump tarde. srodrigues@visao.pt

28 MARÇO 2024 VISÃO 89


O P I N I ÃO

Alguns “sinais”
José
Carlos de
Vasconcelos

1.
No meio de tantas incertezas e 3. Recordo, aliás (e não sei se isto algu-
ameaças à democracia, começo ma vez foi revelado…), que quando o PRD
por um sinal muito positivo: a viabilizou o primeiro governo de Cavaco
forma como está a decorrer a Silva, não exigindo – como podia e con-
transição governamental. Das seguiria – ir para o governo, pôs, porém,
declarações de Pedro Nuno Santos, na noite como condição para eleger o presidente da
eleitoral e a anunciar que o PS poderia via- AR a sua prévia concordância com o nome
bilizar um orçamento retificativo, à conduta a apresentar a sufrágio. O PSD propôs o de
de António Costa, em diversas circunstân- um seu destacado “militante” e polémico
— Fundador da VISÃO
cias e culminando com o simbólico amis- dirigente. O PRD não aceitou, mas disse
toso café/encontro com Luís Montenegro aceitar o de um deputado que na legisla-
em Bruxelas – tudo está a passar-se num tura anterior dera provas de seriedade e
clima de serena e sadia vivência/convivên- independência. E foi ele, Fernando Amaral,
cia democrática. O que creio ser muito bom o eleito. Exercendo o cargo com tal inde-
À MARGEM para o País e a democracia, para mais num pendência que Cavaco Silva, na legislatura
momento em que ganhou grande peso um seguinte, já com maioria, afastou-o…
Um “legado” Costa/ partido que por sistema desrespeita esses e 4. Por falar no governo, a sua constituição
Medina outros valores. será outro sinal importante. Uma das falhas
Assim, o novo executivo tomará posse de partida do primeiro-ministro cessante
Já referi aqui que,
num ambiente distendido, de “sucessão” foi ter formado um executivo com vários
considerando o
interesse do País,
natural, sem tensões escusadas nem dra- erros de casting – e, depois, não os reparar.
Costa priorizou os
matismo. Ao contrário do que várias vezes E Costa tinha já uma enorme experiência
excedentes orçamentais aconteceu, a última delas quando Antó- política, quer como ministro de várias pas-
e diminuir a dívida nio Costa substituiu Passos Coelho; antes, tas, quer, mais decisivo, como presidente da
externa a satisfazer quando António Guterres substituiu Cavaco Câmara Municipal de Lisboa. Pelo contrário,
reivindicações de vários Silva. E o desejável, para não dizer o indis- Montenegro não tem experiência nenhuma,
setores profissionais. pensável, mormente à luz da nova composi- a nível executivo. Assim, não havendo uma
O INE revela agora que ção da Assembleia da República (AR), é que segunda oportunidade para causar uma boa
o último excedente tal clima se mantenha. Mais: que a relação primeira impressão, é para si muito relevan-
ultrapassou as previsões entre os dois maiores partidos – PSD no te conseguir uma equipe governativa capaz,
do Governo e foi o governo, PS na oposição – seja de confron- saber dirigi-la, tomar a curto prazo medidas
maior de sempre em to ideológico e político, quanto a opções/ com efetivo e positivo impacto público. Na
democracia: 1,2% do PIB, decisões concretas, mas em simultâneo de campanha eleitoral, Montenegro em geral
3 193,5 milhões de euros. respeito e abertura ao diálogo. ultrapassou as expectativas que havia em
Ou seja: o PS podia, 2. De facto, um governo de direita/cen- relação a ele. E agora?
ou devia, ter satisfeito tro-direita (PSD, CDS, provavelmente IL), 5. Voltando um pouco atrás. O Chega ser
algumas daquelas minoritário e com menos deputados do que o partido mais votado pelos emigrantes é
reivindicações (bastaria os do centro-esquerda/esquerda (PS, Livre, absolutamente extraordinário! Porque se nos
as dos professores?), e BE e PCP), se não quiser ficar nas mãos países que os acolheram, a eles ou aos seus
assim, quase de certeza,
do Chega tem de dialogar e entender-se ascendentes, mandassem governos de parti-
ganhar as eleições.
sobretudo com o PS. De imediato para a dos como o Chega, não seriam aí acolhidos…
Que a opção/decisão
foi de António Costa
eleição do presidente da AR, cargo impor- E, no círculo fora da Europa, a sua votação
e Fernando Medina – tante em si mesmo e que com 50 deputados foi sobretudo expressiva no Brasil. Graças,
contra a vontade de, do Chega no hemiciclo exige qualidades de parece, ao apoio dos fiéis de Bolsonaro, a
pelo menos, muitos… – firmeza, por um lado, e de habilidade po- contas com a Justiça por causa da tentativa
ressalta de o PS admitir lítica, por outro. Assim, não concebo que o de golpe de Estado para impedir a posse do
agora aprovar até um PSD apresente um candidato sem “conver- Presidente democraticamente eleito: Lula, a
Orçamento retificativo sas” prévias (que não têm de ser públicas…) quem na AR o Chega xingou, chamando-lhe
para as satisfazer. com o PS. E o que acontecer agora, com “ladrão”, e que prometeu, se mandasse, im-
Só que nem será esta eleição, poderá constituir também um pedir de entrar em Portugal. E viva a comu-
necessário Orçamento... significativo sinal do que virá a seguir. nidade luso-brasileira! visao@visao.pt

90 VISÃO 28 MARÇO 2024


Proprietária/Editora: TRUST IN NEWS, UNIPESSOAL LDA.
Sede: Rua da Fonte da Caspolima – Quinta da Fonte
Edifício Fernão de Magalhães, n.º 8, 2770-190 Paço de Arcos
NIPC: 514674520.
Gerência da TRUST IN NEWS: Luís Delgado,
Filipe Passadouro e Cláudia Serra Campos.
Composição do Capital da Entidade Proprietária: 10.000,00 euros,
Acionista: Luís Delgado (100%)

NOVO RESTAURANTE
ANTE
Diretor: Rui Tavares Guedes
Subdiretores: Alexandra Correia, Filipe Luís,
MS GARDEN
Margarida Vaqueiro Lopes e Sara Belo Luís ANUNCIA A PRIMAVERA EM NOVA CARTA
ARTA
Conselheiro Editorial: José Carlos de Vasconcelos
EXAME/Economia: Tiago Freire (diretor)
COM GASTRONOMIA TRADICIONAL REVISITADA…
Editores: Clara Cardoso (visao.pt) Filipe Fialho (Mundo), Inês Belo (VISÃO Se7e),
João Carlos Mendes (Grafismo), Manuel Barros Moura (Radar) Para almoçar, jantar ou petiscar, a nova Carta do
e Pedro Dias de Almeida (Cultura) MS Garden, o Restaurante do MS Aparthotel,
Grandes Repórteres: Carlos Rodrigues Lima, José Plácido Júnior e Rosa Ruela é um autêntico hino aos pratos e petiscos de raiz
Redação: Clara Soares, Clara Teixeira, Cláudia Sérgio, Florbela Alves
(Coordenadora VISÃO Se7e/Porto), Gonçalo Almeida, Joana Loureiro, portuguesa.
João Amaral Santos, Luísa Oliveira, Luís Ribeiro (Coordenador Ambiente), Nesta unidade hoteleira 4 estrelas,, a comida de
Mariana Almeida Nogueira, Nuno Aguiar, Nuno Miguel Ropio, Paulo C. Santos,
Rui Antunes, Rui Barroso, Sandra Pinto, Sara Rodrigues, Sara Santos, tões mais leves,
conforto revisitada e as sugestões
Sílvia Souto Cunha, Sónia Calheiros e Susana Lopes Faustino mavera,
que dão as boas-vindas à Primavera,
Grafismo: Paulo Reis (Editor adjunto), Teresa Sengo (Coordenadora), boreia vários
juntam-se numa Carta que saboreia
Ana Rita Rosa, Edgar Antunes, Filipa Caetano e Patrícia Pereira
Infografia: Manuela Tomé e Raquel Leal mples aos
tipos de apetites, dos mais simples
Fotografia: José Carlos Carvalho, Lucília Monteiro, Luís Barra e Marcos Borga mais sofisticados.
Copydesk: Rui Carvalho e Teresa Machado
Secretariado: Sofia Vicente (Direção) e Ana Paula Figueiredo urante
Tudo no bom astral do Restaurante
Colunistas: Bernardo Pires de Lima e Pedro Marques Lopes MS Garden, ou na Esplanadaa do hotel,
Cronistas: Dulce Maria Cardoso, José Eduardo Agualusa e Mia Couto
Colaboradores: Luís Ricardo Duarte, Manuel Halpern, Miguel Judas,
frente à piscina, jardins e Rio Tejo,
Margarida Robalo, Sónia Graça (Revisão) e André Germano (Online) como vistas privilegiadas.
Ilustração: Susa Monteiro
Redação, Administração e Serviços Comerciais: Avenida Jacques Delors,
Edifício Inovação 3.1, Espaço nº 511/512 2740-122 Porto Salvo
Delegação Norte: CEP – Escritórios, Rua Santos Pousada 441- sala 206 e 208,
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Delegação Norte – Telefone: 220990052
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seus clientes ao almoço e jantar
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A VISÃO BS é a unidade de produção de conteúdos patrocinados
para parceiros da VISÃO, com coordenação do TIN Brand Studio. Assim, o Chef e Consultor
Produção, Circulação e Assinaturas: Vasco Fernandez (Diretor), Augusto Gemelli, à frente de uma
Pedro Guilhermino (Coordenador de Produção) Nuno Carvalho, Nuno Gonçalves,
Paulo Duarte (Produtores) e Isabel Anton (Coordenadora de Circulação),
equipa especializada, apresenta
Helena Matoso (Coordenadora de Assinaturas) uma Carta de Páscoa em que a
Serviço de apoio ao assinante: Tel.: 21 870 50 50 (Dias úteis das 9h às 19h)
Custo de chamada para a rede fixa, de acordo com o seu tarifário
alta qualidade dos ingredientes,
Impressão: Lisgráfica – Estrada de São Marcos Nº 27 confeção e apresentação dos
S. Marcos – 2735-521 Cacém pratos, irá proporcionar
Distribuição: VASP MLP. Pontos de Venda: contactcenter@vasp.pt
– Tel.: 808 206 545
momentos inesquecíveis, à mesa.
Tiragem média do mês de fevereiro: 24 950 exemplares
Registo na ERC com o nº 112 348

NESCAFÉ®
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e/ou bens anunciados. A respetiva veracidade e conformidade com a gama profissional em grão, vai acompanhar
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realidade, são da integral e exclusiva responsabilidade dos anunciantes
e agências ou empresas publicitárias. Interdita a reprodução, mesmo
as novas tendências, com o lançamento
mento da
parcial de textos, fotografias ou ilustrações sob qualquer meios, nova coleção Outono-Inverno, naa Lisboa
e para quaisquer fins, inclusive comerciais.
Fashion Week
Para celebrar o início da Primavera,
ra,
ASSINATURAS NESCAFÉ desenvolveu uma receita it úúnica
i e
Ligue já exclusiva para aqueles que marcarem
21 870 50 50 presença neste evento: o Nescafashion.
Dias úteis – 9h às 19h Nascido de uma receita criada pela equipa de
formadores baristas da Nestlé Portugal, esta
bebida de café vem abrir as portas da nova
estação do ano de forma ‘reconfortante’.
---------- V I S ÃO DA L I B E R DA D E
Cartazes para celebrar, em 2024, o espírito, a energia e a alegria do 25 de Abril de 1974

Por Marta Torrão


Nasceu em Lisboa, oito meses após o 25 de Abril, em dezembro de 1974, e por isso diz ser
“filha da revolução”. Estudou Ilustração e Desenho na escola de artes visuais Ar.Co, colaborou com
vários jornais e revistas, participou em exposições em Portugal e no estrangeiro. Autora de inúmeros
livros, venceu, em 2005, o Prémio Nacional de Ilustração com Come a Sopa, Marta!
instagram/mgtorrao

114 VISÃO 28 MARÇO 2024


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