Você está na página 1de 94

A NEWSMAGAZINE MAIS LIDA DO PAÍS WWW.VISAO.

PT

CRIME FRANCISCO
29/11/2023. . CONT. E ILHAS: €4. SEMANAL

O ASSALTO SEIXAS DA COSTA


DOS “NARCOS” AS MEMÓRIAS
AO PORTO E AS REFLEXÕES
DE SETÚBAL DO EMBAIXADOR
INCANSÁVEL
MARKUS VILLIG
OS PLANOS
23/11AA29/11/2023

DO “REI” DAS
TROTINETES
N.º 1603 .. 23/11

NAPOLEÃO
O HOMEM POR
DETRÁS DO MITO
A juventude, as batalhas, as mulheres e o declínio do fugaz imperador
dos franceses, que fez tremer a Europa e se tornou uma das figuras
mais lendárias da História – agora reinventada no cinema
NotíciasFlix
A R CT IC O C E A N
D E N D R O NOT U S F R O N D O S U S
A R CT IC O C E A N
23 NOVEMBRO 2023 --- Nº 1603
VISÃO
ENTREVISTA
James Crawford ............14

RADAR
A semana
em 7 pontos
O terramoto Milei não
nasceu no vácuo............ 20
Holofote
Sam Altman, o inventor
do ChatGPT .................... 22 VISÃO SETE
Os resistentes do Bairro
Raio-X Alto .................................... 92
O negócio do lítio......... 23

LUÍS BARRA
Super Bock em Stock:
Periscópio Descobertas na avenida
Afinal, de quem .......................................... 100
foi a ideia? ....................... 25
Próximos capítulos
Francisco Seixas da Costa: “Custou-me muito Remédio: Teatro sobre
saúde mental pelos
E, agora, Argentina? .... 26 a Cimeira das Lajes” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 6 Artistas Unidos ........... 102
Diplomata de carreira, esteve com Mário Soares em Gaza e ao serviço de
Fotos com História Casa Grande de
Portugal em França, no Brasil e junto da Organização das Nações Unidas.
O canto do cisne Romarigães, em Paredes
Entrevista com o embaixador, no lançamento do seu livro de memórias
da Revolução ..................30 de Coura ........................ 104
Transições Napoleão Bonaparte: O homem por detrás É Uma Mesa:
Sara Tavares: Um ponto A irrecusável leveza
de luz longe do mundo do mito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 6 de ajudar ........................ 108
............................................. 32 Na semana em que se estreia uma superprodução de Ridley Scott sobre o
imperador dos franceses, quem foi de facto esta figura histórica de destino
Na primeira pessoa singular e de nome inesquecível OPINIÃO
Nathan Martins: “Estive Mia Couto
14 dias em coma A assinatura póstuma ..10
e disseram à minha Assalto dos “narcos” ao porto de Setúbal . . . . . . . . . . . . . 50
mãe para se despedir Um comando narcotraficante português sequestrou um vigilante e invadiu Mafalda Anjos
de mim” ........................... 34 o porto de Setúbal, para recuperar uma carga de cocaína da América do Sul. A tragédia espanhola,
A VISÃO conta como tudo se passou ou como vender a alma
ao diabo ............................ 12
FOCAR
Como atua um governo- Reféns do terror .................................................................66 Pedro Marques Lopes
-zombie ........................... 84 Com ou sem cessar-fogo, Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro de As culpas do PS e o que
Israel, e Yahya Sinwar, o líder do Hamas em Gaza, estão condenados a perder dirá Montenegro........... 24
este conflito Bernardo Pires de Lima
Xi Jinping
Markus Villig quer continuar a pedalar ................. 72 em São Francisco ........ 28
Aos 19 anos, criou a Bolt e, aos 29, mantém o sonho de mudar o mundo – uma José Carlos de
cidade de cada vez. “Lisboa tem capacidade para cinco vezes mais trotinetes” Vasconcelos
Interdita a reprodução, Devia António Costa
mesmo parcial, de textos,
fotografias ou ilustrações Felizes os que têm teto .................................................... 78 ter-se demitido? ........... 90
sob quaisquer meios, Foram sem-abrigo, dormiram ao deus-dará, caídos como as folhas das
e para quaisquer fins,
Joana Marques
inclusive comerciais. árvores, mas deram a volta, e os seus testemunhos são exemplo de como Marshmello e os caramelos
uma casa devolve a dignidade da Web Summit...............114

w w w.visao.pt
ONLINE Gabriel Leite Mota Luís Delgado Massimo Forte
Últimos DA ECONOMIA, LINHAS DIREITAS BOLSA
artigos COM FELICIDADE Argentina de Milei DE ESPECIALISTAS
no site da O nosso vencimento Redes sociais,
VISÃO não é o nosso valor um mal necessário?

6 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


---------- L I N H A D I R E TA

– CORREIO D O LEI TOR

Subscreva
as nossas
newsletters
A melhor informação,
gratuitamente, na sua
caixa do correio.
www.visão.pt

ANTEVISÃO
VISÃO SETE
VISÃO PLUS Uma investigação
VISÃO VERDE para ler à luz dos
problemas da Justiça
– Afonso Cabral, Lisboa

ANSIEDADE

Napoleão, o homem,
O conteúdo [Ansiedade: O tempo
do medo, V1600] é pobre. Vários
Nas bancas psicólogos e clínicos abordaram o

o mito e o filme tema nos séculos XIX e XX. Como


pode uma revista abordar o tema

N
de forma tão pueril?
apoleão, o filme de Ridley Scott, protagoni- – José Branco
zado por Joaquin Phoenix, é uma das estreias
mais aguardadas do ano cinematográfico. E, “INFLUENCER”
como a qualquer épico que se preze, começa Os títulos, e muito melhor os
já com uma boa dose de polémica. Por um lado, alguns textos, dos artigos de Rui Tavares
historiadores apontaram erros e imprecisões históricas; Guedes e de Mafalda Anjos, defi-
por outro lado, os franceses não gostaram de ver alguns nem bem a choldra em que que-
aspetos da sua identidade retratados no grande ecrã rem transformar a nossa socie-
ESPECIAL AÇORES dade. Influência desastrosa e Um
pelo autor de Alien, Blade Runner e Hannibal. Perante
A força da Natureza minuto de silêncio pela imagem
as críticas, do alto dos seus 85 anos, o realizador inglês
das instituições [V1602] definem
ripostou com ironia e irritação, não se coibindo de exi-
bem a falta de bom senso, de
bir o seu habitual mau feitio. “Os franceses nem de si
qualidade e de independência
próprios gostam”, disse Scott, neste fim de semana, em que grassa em instituições que
entrevista à BBC. O filme – que se estreia nesta quinta, cada vez mais nos atraiçoam.
23, entre nós – serve-nos de pretexto para publicar um – José Mendes, Vouzela
longo artigo, que faz o tema de capa da VISÃO desta
semana. Assinado por Luís Almeida Martins, ele próprio CORREÇÃO
um “histórico” da VISÃO e, atualmente, editor da VISÃO Um lapso, a que o autor foi
História, O Homem por Detrás do Mito leva-nos a des- alheio, fez com que o título da
cobrir uma personagem “maior do que a vida” e, quer se crónica de Pedro Marques Lo-
queira ou não, uma das figuras fundacionais do Império pes, publicada na última edição
Francês. visao@visao.pt da VISÃO, Boa noite e boa sorte,
LIBERDADE democracia, perdesse a referên-
Quando a canção cia ao filme realizado por George
é uma arma Clooney. As nossas desculpas.
VISÃO vence prémio de Jornalismo
em Psiquiatria e Saúde Mental --------
Contactos
As jornalistas da VISÃO Rita visao@visao.pt
Rato Nunes e Mariana Almeida As cartas devem ter um máximo
Nogueira receberam o terceiro de 60 palavras e conter nome,
prémio da Sociedade Portuguesa morada e telefone. A revista
de Psiquiatria e Saúde Mental, reserva-se o direito
com a reportagem Burnout: de selecionar os trechos que
Trabalhar até Quebrar publicada considerar mais importantes.
na nossa edição de 1 de junho.
Depressão: Os Caminhos da Morada
GASTRONOMIA
Cura, de Mariana Almeida CORREIO: Av. Jacques Delors,
À mesa com
Nogueira, também foi distinguido Edifício Inovação 3.1, Espaço
Ljubomir Stanisic
com uma menção honrosa do nº 511/512, 2740-122 Porto Salvo
mesmo galardão.

8 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


MAPEADOR
DE ILHAS
A assinatura póstuma

Mia

O
Couto uvia-a chegar sabendo, pelo
ruído do passo, que era uma
mulher descalça. A voz dela
vagueava trémula:
– Valha-me meu santo...
meu santo...
E a voz ficava suspensa. Invocava santos,
mas não tinha nome para lhes dar. Que-
ria um nome mais familiar, um nome na
sua língua. Mas não lhe parecia bem: santo
Malinguane? E ensaiava uma outra versão:
“Valha-me santo Mucadji...”
Ajoelhou-se e benzeu-se à porta da mi-
— Escritor
nha casa.
– Não sou padre – avisei. – Sou escritor.
– É a mesma coisa – disse ela.
Pediu-me então que escrevesse uma
carta. Uma carta para o filho Zefé.
– A senhora sabe onde ele está?
– Sei sim, ele morreu. É por isso que lhe
vou escrever.
Sentou-se no degrau do pátio e foi fa-
lando como se não houvesse tempo. O filho
tinha ido para a cidade e não mais voltara.
Tinha-se perdido porque, nas guerras, os ca-
minhos ficam todos iguais. Cheios de pedras
soltas e resvaladiças para nunca mais serem
pisadas. Sem regresso, o filho estava morto.
– Não é verdade – interrompi.
Fui paciente nas explicações. Zefé esta-
Sentou-se va, com certeza, são e salvo. Acontece que
as cidades são grandes e os jovens perdem-
no degrau -se dentro delas. Com certeza, o moço sen- – Diga-me apenas para eu não desistir.
do pátio e tia saudades da sua aldeia. Não tardaria que “Sabe porque é que eu tenho a certeza
foi falando a viesse buscar e a levasse com ele. Mas com
as estradas em chamas quem pode viajar?
de que Zefé morto”, perguntou. “Porque
ele volta todas as noites. Volta para dormir
como se não Em silêncio, ela esperou que eu abrisse dentro do meu ventre. Ele volta e eu deixo
houvesse o caderno. Suspendeu a fala porque, segun- de ter cama, a casa ergue-se do chão como
do me disse depois, Deus distrai-se com um pássaro cego.”
tempo. O facilidade. Ancorou os olhos no chão como “Eu avisei o meu filho, senhor padre. Dis-
filho tinha se estivesse vendo um rio a passar. Aguardei se-lhe: ‘Não te enganes, Zefé. A estrada foi
ido para a com a caneta suspensa sobre o papel.
– Espere, padre. Preciso de chorar.
feita pelas tuas mãos, mas não foi feita para
os teus pés. Quando decidires partir, a es-
cidade e não Não deitou uma lágrima. Apenas encheu trada caminhará contigo. E vai-te perseguir
mais voltara. o peito de ar e suspirou como se quisesse todo o caminho. Até te devorar no destino.’”
desaparecer. Depois explicou-se, falando – Posso chamá-la de mãe? – perguntei.
Tinha-se agora na sua própria língua. Há muito que A resposta foi um sorriso triste. “Quan-
perdido olhava em volta e já não havia ninguém de do o senhor diz que sou mãe está a dizer
ILUSTRAÇÃO DE SUSA MONTEIRO

porque, nas quem se despedir. É por isso que tinha vin-


do a minha casa.
que sou Zefé, que sou ele, quando cortaram
o cordão umbilical foi um golpe incom-
guerras, os – Vai passar – disse eu. pleto. Não foi culpa da parteira, a vizinha
caminhos Adivinhou que era isso que eu ia dizer. Margarida. A verdade é esta, senhor padre:
Mas ela não queria ser consolada. Quem diz nenhuma mão sabe dar esse golpe. Nem a
ficam todos “vai passar” comete uma ofensa contra a vida sabe. É por isso que estou aqui, cha-
iguais esperança. mo-lhe assim de ‘senhor padre’, mas é para

10 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


me enganar. Olho para a sua casa e vejo Cumpriu a palavra. Quatro dias vi-a che- Cumpriu
uma igreja, preciso de ver uma igreja.” gar. Desta vez, vinha calçada. Umas botas de
– Por favor, senhor padre, chame-me homem tão grandes que tinha de levantar os a palavra.
pelo meu nome. pés devagar para não ficar descalça. Quatro
– Não sei o seu nome.
– Sabe sim.
– Ele voltou, senhor padre – anunciou
ela – Zefé voltou!
dias vi-a
E como eu permanecesse sem reação, ela No primeiro dia, a mãe de Zefé sonhou chegar. Desta
pousou a mão sobre o meu ombro e disse: que vivia numa casa. No dia seguinte, acor- vez, vinha
“Eu sou o meu menino de colo, nunca deixei dou e, onde havia céu, ela viu um teto. No
de ser esse menino. Olho a vida como se não segundo dia, sonhou que tinha a mesa pos- calçada.
tivesse vivido nunca. E ocupo a casa como se ta. E despertou sem fome. No terceiro dia, Umas botas
acabasse sempre de chegar. Porque para nós,
senhor padre, nunca houve casa.” E apontou
sonhou que era amada. Acordou com um
beijo. No quarto dia, sonhou que tinha an-
de homem
para as paredes, os dedos roçando a pedra. dado na escola. Quando acordou, ela pegou tão grandes
“Esta foi sempre a minha casa”, disse ela. E na caneta e escreveu. Quando quis parar de que tinha de
acrescentou: “Foi aqui que eu nasci.” escrever já era tarde. Porque a estrada vol-
– Agora, já vou. tara. Sem pedras, sem poeira, sem ruínas. levantar os
– E a carta? – perguntei. – Veja, senhor escritor. pés devagar
– A carta o senhor vai escrevê-la sozi-
nho. Já não precisa de mim.
Levantou a mão e mostrou-me a carta.
O que eu vi, naquelas rabiscadas linhas, foi
para não ficar
Virou costas. Antes de desaparecer na a minha própria caligrafia. E, no pé da pági- descalça
curva do caminho, ela disse: “Volto daqui a na, reconheci a minha assinatura: Zefé.
quatro dias.” visao@visao.pt

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 11


E D I TO R I A L

A tragédia espanhola, ou
como vender a alma ao diabo
Mafalda

N
Anjos o Fausto, de Goethe, a gran- Sánchez, que ficou em segundo lugar
diosa tragédia clássica alemã nas eleições gerais, corre riscos de ganhar
em que o protagonista, com o governo, mas perder o país. A indignação
tanto de ingénuo como de popular que se tem visto pelas ruas, onde
ambicioso, faz um pacto com milhares se têm manifestado diariamente
Mefistófeles, há uma pequena tirada que desde há duas semanas, tem raízes fun-
abarca um traço essencial da Humanidade: das: há séculos que Espanha convive com
“A lei é poderosa; mais poderosa, porém, é movimentos independentistas e regiona-
a necessidade.” A necessidade, ou o que se listas que ameaçam a sua soberania, um
imagina como tal, faz o Homem perder a processo que deixou marcas sangrentas na
moral e a razão. memória coletiva. Só a ETA, organização
Foi o que Pedro Sánchez viu como uma nacionalista basca, e grupos simpatizantes,
necessidade imperiosa – evitar que a ex- como os Comandos Autónomos, fizeram
— Diretora
trema-direita chegue ao poder em Espanha mais de 800 vítimas em 53 anos de terror,
– que o levou, tal como Fausto, a fazer um cuja luta armada só terminou há 12 anos.
pacto com o diabo. O objetivo de Sánchez, Um dos acontecimentos mais esclarece-
sublinhe-se, era legítimo: a chegada da dores da semana de investidura espanhola
extrema-direita ao governo, em Espanha, foi destacado por Joaquín Manso, diretor
representa um rombo para a democracia do El Mundo. O número três do PSOE,
espanhola e, até mesmo, um retrocesso Santos Cérdan, disse que desde março que
civilizacional. O problema é que a solução está em contacto com o Junts, esclarecen-
alternativa que o recém-empossado pri- do que o acordo nunca correu perigo. Uma
meiro-ministro de Espanha encontrou não admissão clara de que a amnistia, que Pedro
é melhor. Sánchez negou sempre durante a campa-
O acordo estabelecido entre o PSOE e o nha, estava a ser negociada com o fugitivo
Junts per Catalunya, que permitiu a investi- Carles Puigdemont, agora amnistiado, antes
dura de Sánchez, dá proveniência a antigas das eleições e ocultada dos cidadãos.
exigências independentistas, a maior das Não vou tão longe como Isabel Díaz
quais a polémica amnistia alargada “tanto Ayuso, a nova estrela do Partido Popular,
aos responsáveis como aos cidadãos que, que acusa o PSOE de “introduzir uma di-
antes e depois da consulta de 2014 e do tadura pela porta de trás”, mas parece-me
referendo de 2017, tenham sido objeto de evidente o desprezo pela ética democrática
decisões ou processos judiciais vinculados e pela transparência perante o eleitorado.
a estes acontecimentos”. Estão, estima-se, A questão que se impõe é sempre a mes-
mais de 300 cidadãos abrangidos. Além ma – onde devem ser colocadas as linhas
disso, Sánchez ofereceu ainda a marcação vermelhas? À qual acrescem outras duas:
de “um referendo sobre a autodetermina- São estes acordos, que põem em causa a
ção do futuro político da Catalunha”, um soberania, menos prejudiciais para a de-
modelo de financiamento diferenciado para mocracia espanhola do que a presença do
a Catalunha e um perdão de 20% da dívida Vox no governo? Não é isto ir longe demais
da região. para bloquear a alternância e perpetuar-se
Sánchez, Para conseguir uma maioria, Sánchez
precisou ainda do apoio da aliança à es-
no poder?
Com a fragmentação de voto e enco-
que ficou em querda Sumar, mas também de negociar lhimento dos centrões, e o crescimento de
segundo lugar favores com a Esquerda Republicana da franjas radicais um pouco por todo o lado,
Catalunha (ERC), a coligação basca EH estas são questões com que vários paí-
nas eleições Bildu, o Partido Nacionalista Basco (PNV), ses europeus, destacando-se Portugal, se
gerais, o Bloco Nacionalista Galego (BNG) e a Co- confrontam ou vão confrontar. E que são
corre riscos ligação Canária (CC). Um artilugio (gerin-
gonça em espanhol) bastante complexo, de
válidas tanto para a extrema-direita – e há
já 15, em 27 Estados-membros da União,
de ganhar geometrias e interesses altamente variá- onde a extrema-direita tem mais de 20%
o governo, veis, com muito por onde correr mal. Há nas intenções de voto – como para a extre-
quem diga que Sánchez prossegue sobre ma-esquerda. Não tenhamos dúvidas: não
mas perder gelo fino – parece-me mais que corre des- há puros e impuros, a ameaça pode vir dos
o país calço sobre brasas. dois lados. manjos@visao.pt

12 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


James Crawford Escritor e historiador

As fronteiras são um
sistema antigo para lidar com
as consequências de guerras
religiosas. Não estão feitas
para lidar com a globalização,
a internet e as alterações
climáticas. Daqui a 50 anos,
haverá um movimento de
massas para zonas habitáveis
— POR SARA RODRIGUES
A
A pergunta “O que é uma frontei-
ra?” acompanhou o escritor e his-
toriador escocês durante décadas.
A queda do Muro de Berlim, na-
quela noite de novembro de 1989,
deixou James Crawford, hoje com
um substituto dessa linha, ainda
teremos de tentar explicar porque é
que está lá.
Que tipo de fronteiras existem?
O que temos certamente, nos úl-
timos 20 anos, é um aumento das
fronteiras físicas. O Muro de Ber-
lim caiu quando eu tinha 11 anos.
Essa estrutura pela qual, de certa
forma, estava um pouco obceca-
do, porque parecia que não dividia
apenas uma cidade mas o mundo,
caiu naquela noite de novembro
de 1989. Falando das histórias das
fronteiras, dizemos que o muro
caiu naquela noite e, embora isso
não seja verdade, o que o muro
ser, porque assumem a forma que
se quiser. Podem ser, até, uma sim-
ples linha que nem se assinala no
mapa. Se olharmos para a maneira
como são legalmente feitas, vemos
que, em primeiro lugar, há um tra-
tado entre dois países e só depois
vem o processo de a marcar carto-
graficamente e a maneira como é
construída. Pode ser uma vedação
ou um muro de oito metros
de altura, mas é sempre o símbo-
lo de uma vontade política. Apesar
disso, sabemos que não impede
as pessoas de tentar trespassá-la,
como acontece entre o México e os
EUA ou no Norte de África para
45 anos, obcecado pela ideia de que significava mudou completamen- a Europa. Pode dificultar a ação,
a construção de betão, mais do que te. Antes de ter caído, de ter sido mas não impede.
uma estrutura física, é a história derrubado fisicamente, caiu porque A ideia de que as fronteiras são
que contamos sobre ela. Depois de se quebrou na mente das pessoas, fixas ou imutáveis é ficção?
estudar as origens das fronteiras, não havia mais uma barreira ali. Sim. Se olharmos para a história
fez uma viagem pela sua configu- Quando o Muro de Berlim desapa- das fronteiras (e é isso que tento
ração atual e escreveu O Poder das receu, existiam 12 muros frontei- fazer no livro), no momento em
Fronteiras – Como Constroem, riços, hoje são 75. Pensou-se, na que se traça uma linha, a ideia é a
Destroem e Definem o Nosso Mun- altura, que seria o início da dimi- de que ela estará lá para sempre e
do (Saída de Emergência, 366 págs., nuição das fronteiras, por causa da nunca mudará. Mas o que aconte-
€19,90), recentemente lançado Cortina de Ferro, mas na verdade, ce na realidade é que as fronteiras
entre nós. a tendência, principalmente desde estão em constante movimento e
A pandemia, também ela uma o início dos anos 1990, é o cresci- um dos melhores exemplos está
barreira que nos impôs obstáculos mento de muros. nos EUA.
até dentro de casa, interrompeu Para que servem as fronteiras Se recuarmos a 1819, a frontei-
o périplo que James Crawford fez e de hoje? ra entre o México e os EUA não
que passou pelos EUA, pelo México, E interessante verificar como incluía 800 mil metros quadrados
pela Palestina, por Espanha ou pelo as fronteiras mudaram. As que que são hoje dos americanos. Além
Norte de África. Apesar do entusias- existem hoje têm, em termos de disso, no tratado assinado entre
mo de décadas anteriores, o escritor formação e de construção, con- os dois países, estava escrito que
diz que a globalização e a internet ceptualmente, cerca de 350 anos, os EUA renunciariam a todas as
não tornaram os Estados-nação e sendo que esse sistema de frontei- reivindicações sobre as terras a sul
as fronteiras nacionais irrelevantes, ras surgiu de uma resolução de paz e a oeste dessa linha de fronteira.
mas há um desafio que se avizinha: depois de uma guerra religiosa que Essa promessa durou pouco mais
as alterações climáticas podem fazer destruiu a Europa, de uma divisão de 30 anos. A América entrou em
alterar várias linhas da cartografia na igreja e do crescimento do pro- guerra com o México e empurrou
mundial. E os primeiros refugiados testantismo perante o catolicismo a fronteira para a sua posição atual
climáticos virão da Oceânia. e a necessidade de ter limites e agora age como se tivesse estado
O que é, afinal, uma fronteira? geográficos. A partir desse acordo sempre lá.
De diferentes maneiras, é isso que de paz, apareceu a ideia de que o Porque é que uma linha num
o livro tenta interrogar. Em última monarca deveria decidir que reli- mapa tem tanto poder?
análise, o que pretendo dizer é que gião era praticada no seu território. Penso que é uma forma simples
toda a história de uma fronteira Hoje em dia, as fronteiras ser- de mostrar o que é de cada um. Há
tem de ser a história que conta- vem menos para dividir nações e uma frase de um escritor e poeta
mos, porque não existe nenhuma muito mais para mais lidar com norte-americano, Robert Frost, que
fronteira política que seja natu- fluxos migratórios. Na verdade, diz que “as boas cercas fazem bons
ral. Sempre que se tenta demarcar para vizinhos”. Mas quem decide o que
o local de onde nos movemos de dividir os ricos dos mais pobres. é uma boa cerca? Uma fileira de
um território para outro, temos de As fronteiras, particularmente árvores que permite conversar com
ter isso em conta, que existe uma os muros que se vão construindo, o vizinho ou uma vedação enor-
razão para isso. A razão pela qual têm como objetivo canalizar os me de onde não se consegue vê-lo
um centímetro além de uma linha migrantes. porque o que se quer é privacida-
BRODIE CRAWFORD

deixa de ser um território, uma na- É por isso que são uma expressão de? A Humanidade é tribal, gos-
ção, um país, e passa a ser outro. E política? tamos de pertencer, mas também
mesmo que se utilize, por exemplo, As fronteiras são sempre uma ex- queremos definir-nos em oposição
um rio ou uma cordilheira para pressão política. Aliás, só podem aos outros.

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 15


A história mais antiga que se co- O Muro de Berlim uma saída. Não há melhor exemplo
nhece sobre fronteiras foi entre do que este que nos diga que as
duas cidades-Estado da Mesopotâ- é um símbolo fronteiras não são imutáveis, estão
mia, há 4 500 anos. Conta-se que da fragilidade em constante movimento: Israel
o pai de todos os deuses traçou ali tenta constantemente anexar mais
uma linha, uma fronteira divi- das fronteiras território à Palestina.
na preexistente a todos nós e que e de esperança Diz no livro que uma fronteira
sempre lá esteve. Claro que isto, nunca é simplesmente uma
simplesmente, não é verdade... na Humanidade. linha, uma marca ou um muro.
As fronteiras vão sobreviver Naquela noite, Primeiro, é uma ideia. O povo
ao próximo século? ucraniano está a defender
Há uma crise nas fronteiras, embo- a História o seu território para proteger
ra isso não signifique que vão desa- mudou o seu propósito de vida?
parecer, mas que vão ser colocadas A situação na Ucrânia parece ter
sob tanta pressão que algumas irão rapidamente, sido motivada por uma busca
romper. Estamos naquele momen- décadas muito pessoal de Vladimir Putin,
to em que a prevalência física é, que passou muito tempo nos
na verdade, um sintoma de rutu- de separação arquivos do Kremlin durante a
ra, dado que as fronteiras são um caíram por terra pandemia, a examinar mapas
sistema antigo para lidar com as antigos e a contemplar a extensão
consequências de guerras religio- mesmo antes da mãe Rússia, e decidiu que a
sas. E não estão feitas para lidar de o muro ser Ucrânia nunca tinha existido, que
com a globalização, a ascensão da nunca foi um lugar e um povo
internet e as alterações climáticas. desmantelado separados. É mais uma guerra
O clima é hoje o verdadeiro disrup- impulsionada por uma história.
tor das fronteiras. Daqui a 50 anos, Uma narrativa que Putin meteu na
haverá um movimento de massas cabeça, de que a Ucrânia não existe,
para zonas habitáveis. e que tenta passar para todos.
Tuvalu vai ser a primeira Tem em casa um pedaço do Muro
nação a ser consumida pela tive de me ir embora. Aquilo a que de Berlim que comprou no eBay.
subida do nível do mar. Serão, assistimos durante a pandemia foi Qual o significado?
provavelmente, os primeiros a um encolher cada vez maior das É difícil dizer o que significa por-
refugiados climáticos. Um país fronteiras por causa dos confi- que não sei se é verdadeiro, aliás,
pode manter a sua condição de namentos. Se estávamos doentes, suspeito que não é. Mas, ao mesmo
Estado, mesmo quando perde o tínhamos de ficar fechados no tempo, isso não me apoquenta,
seu território físico? quarto sem poder estar, sequer, e dei comigo a segurá-lo nas mãos
Esse é um ponto essencial. Nunca com as outras pessoas da casa. A enquanto escrevia este livro.
tivemos de lidar com o desapare- porta passou a ser um travão. Fo- O que há de tão interessante no
cimento físico de uma nação. Já ram criadas barreiras biológicas, os Muro de Berlim, diria que quase
houve países que desapareceram cordões sanitários. Desde a peste cómico, é que é uma fronteira que
por causa de guerras, outros que negra, foi a primeira vez que as agora está espalhada por todos os
reemergiram na sequência da II pessoas começaram a pensar espa- continentes, exceto talvez a An-
Guerra Mundial, mas nunca ne- cialmente sobre o território. tártica... [Risos.] Ou talvez alguém
nhum foi engolido pela água. Como olha para o conflito também tenha levado um peda-
Tuvalu fez o que apelidaram de entre Israel e o Hamas? ço do Muro de Berlim para lá...
“cópia digital do país”, ou seja, É uma tragédia global. Aquilo Podemos encontrá-lo em todos os
estão a tentar estabelecer uma que estamos a assistir no Médio tipos de lugares estranhos e inco-
espécie de soberania que não se Oriente é o que acontece quando as muns, seja nos pertences pessoais
baseia no território geográfico e fronteiras dão muito errado. Temos de alguém, nas esquinas de Nova
esperam que as leis internacionais dois povos que vivem realidades Iorque ou em museus. Quando
a confirmem. Não sei se vão con- completamente diferentes e estava a escrever o livro, encon-
seguir, mas a questão é: pode haver inconciliáveis. É o resultado de trei bocados do Muro de Berlim
uma nação sem fronteiras? Não uma enorme quantidade de linhas a servirem de pano de fundo de
temos, ainda, resposta para isto, que foram traçadas naquele que uma casa de banho em Las Vegas.
mas o mundo vai ser pressionado a é o território mais fronteiriço da Para mim, o Muro de Berlim é um
obtê-la. Terra. Há um muro de separação símbolo da fragilidade das frontei-
A Covid-19 interrompeu as que não é uma linha contígua, mas ras e de esperança na Humanidade.
suas viagens. As fronteiras uma série de intervenções com 700 Naquela noite, a História mudou
desempenharam um papel quilómetros num espaço muito rapidamente, décadas de separação
importante durante a pandemia? pequeno. caíram por terra mesmo antes de o
Foi até algo irónico porque eu esta- Foram as fronteiras que nos leva- muro ser desmantelado. Mudámos
va na Noruega para escrever sobre ram a esta terrível crise humani- a História e mudámos o guião.
fronteiras e a fronteira fechou, tária para a qual é difícil encontrar srodrigues@visao.pt

16 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


CTT CTT CTT
Correios Correios Correios
de Portugal de Portugal de Portugal
CTT Empresas
Superbrand
Portugal 2023
RR A DA R

7PONTOS
DA SEMANA
O terramoto Milei
não nasceu no vácuo
Na Argentina, há uma geração que nasceu e
cresceu sob uma economia em permanente
estado de crise, com uma inflação que, este
ano, se aproxima dos 150%, com uma moe-
da em contínuo declínio e com a pobreza a
atingir cada vez mais camadas da população.
E, no segundo maior país da América do Sul,
há também várias gerações que, ao longo das
últimas décadas, foram vendo diversos líderes
a passar pelo poder sem conseguirem evitar
o agravamento da situação, mesmo que, no
momento da sua eleição, prometessem que
eleitorado, e que lhe deram os votos de 14
milhões de argentinos, correspondendo a 55%
dos eleitores e a maior margem de vitória em
quatro décadas de regime democrático. Esse é
o enigma que só poderá ser desvendado atra-
vés do choque com a realidade. E é também o
momento em que se irá perceber, da melhor
ou da pior forma, se serão realmente peri-
gosas as pulsões autoritárias de um homem
que nunca privilegiou o diálogo com os seus
rivais. Como irá ele responder à contestação
popular, quando milhares de funcionários
iriam fazer diferente. Desde o início deste forem atirados para o desemprego?
século, milhões de argentinos assistiram a Se houve algo que estas eleições demonstra-
diversas desvalorizações da moeda, a vários ram é que numa Argentina deprimida, em
programas económicos e também a muitos profunda crise económica e social, a raiva
jogos políticos, embora sem nunca terem ao sistema político enclausurado já supera o
visto uma verdadeira renovação da classe medo de uma deriva ditatorial. Por mais que
dirigente. nos custe admitir, os argentinos preferiram
É nesta realidade que temos de procurar a o salto no escuro do que continuar numa
explicação para o terramoto político que realidade de que já estão fartos e que não lhes
ocorreu, no último domingo, na Argentina, apresenta qualquer solução.
R U I TAVA R E S
GUEDES*
com a eleição para Presidente de um ultra- A ascensão quase instantânea de um populista
liberal sem qualquer experiência política, como Milei precisa, por isso, de ser obser-
saído da esfera dos partidos tradicionais, que vada e analisada, não somente pela ameaça
se autodefine como anarcocapitalista e que futura que representa mas pelas condições
tem como programa imediato de governo que lhe permitiram alcançar o poder. Ainda
romper com o statu quo. E quer fazê-lo, logo para mais, quando veio quase do nada e até
de início, em grande e em força: extinguir o usou estratégias diferentes das de Trump ou
banco central, trocar o peso pelo dólar e, dessa Bolsonaro – ao contrário deles, não só man-
forma, deixar a moeda do país às ordens da teve distância face à religião, como, ainda por
Reserva Federal dos EUA. Mas não só: logo cima, arriscou na heresia de criticar o Papa
a seguir a ser eleito, anunciou a privatização Francisco… e o “deus” Maradona.
da petrolífera argentina, da televisão pública “Se Javier penteasse o cabelo, se não ficasse
e da agência estatal de notícias. Pretende fe- furioso, alguém o teria convidado alguma vez
char ainda a maioria dos ministérios, tornar para falar?”, interrogou-se um membro da sua
a educação e a saúde privadas e, sem rodeios, equipa, numa entrevista à Reuters. E nessa
despedir milhares e milhares de funcionários pergunta está uma parte da resposta para a
públicos. Avisa também que o seu plano de sua ascensão: o cultivo de uma imagem que
cortes orçamentais é ainda mais duro do que chamou a atenção dos programas de debates
aquele que é exigido pelo Fundo Monetário na televisão, que foi ampliado por uma eficaz
Internacional – onde já vimos isto?... equipa nas redes sociais e que, finalmente,
Sem maioria no Parlamento, nem apoios depois dos primeiros êxitos, conseguiu cap-
partidários verdadeiramente implantados turar os dirigentes da direita moderada, em
*Diretor-executivo no terreno, ninguém sabe como é que Javier busca de um quinhão no poder. A realidade,
rguedes@visao.pt Milei conseguirá levar para a frente a maio- no final, ditará a viabilidade desta experiên-
ria das propostas com que se apresentou ao cia – e o futuro da democracia na Argentina.

20 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


70 mil
NÚMERO
Mortes em excesso, na Europa, durante o verão de 2022,
devido ao calor Um novo estudo, desenvolvido pelo Instituto de Saúde
Global de Barcelona, ampliou o número de mortes durante as ondas de
calor de 2022, na Europa. Em Portugal, nesse período, terão morrido
2 mil pessoas a mais. E fica o alerta: o verão de 2023 foi ainda mais quente.

PORTUGAL TECNOLOGIA

Marcação cerrada Motim na IA


Quem acompanha o futebol já se habituou a expressões A revolução da Inteligência
como “marcação à zona” ou “marcação ao homem”, Artificial já provocou,
que tentam explicar como uma determinada equipa no mínimo, um motim...
posiciona os seus jogadores num momento defensivo, revolucionário: perante
nomeadamente nos lances de bola parada. Alguns o anúncio do despedimento
treinadores, sabemos, preferem a marcação “à zona” de Sam Altman, dos comandos
e outros “ao homem”. Se a política portuguesa fosse da OpenAI (criadora do
hoje objeto de um relato de futebol, a tarefa iria ficar ChatGPT), a quase totalidade
mais complicada para o narrador. Especialmente nos dos funcionários da empresa
encontros entre o Presidente da República e o primeiro- anunciou que se iria despedir,
ministro demissionário. A tática, nos últimos dias, é mais caso o atual conselho de
FRASE
a da “marcação mútua todo-o-terreno” entre Marcelo administração não resignasse.

“Tenho
e Costa. Com uma particularidade: as jogadas são No fim, ninguém ficará
em “bola corrida”, a maior parte, já depois do tempo desempregado: Altman foi
regulamentar e, nalguns casos, feitas com o recurso a imediatamente contratado pela
outras equipas. E o jogo vai durar, no mínimo, até março...
certeza Microsoft e, se quiser, poderá
reencontrar em breve todos

de que
os seus antigos colaboradores.

Deus vai te
iluminar, vai
te proteger.
Estou quase GUERRA

a torcer pela A pressão


funciona?
EUA-CHINA Argentina
no próximo
Quando as posições se
O regresso da diplomacia extremam e o horror toma
conta da narrativa, reduz-se
O mundo é um lugar mais seguro quando os líderes
das duas maiores potências globais aceitam conversar
jogo contra o passo para a negociação.
Mas, mesmo nos conflitos
um com o outro. E ainda mais seguro se torna quando
esse encontro é feito presencialmente, num ambiente
distendido, após longos meses de preparação, que
o Brasil” mais sangrentos, é preciso
sempre encontrar uma solução
diplomática para muitos dos
terá envolvido dezenas de membros dos gabinetes de JAIR BOLSONARO, problemas. Até no Médio
Joe Biden e de Xi Jinping. É verdade que, da reunião ex-Presidente do Brasil, Oriente, onde começam a existir
entre os líderes dos EUA e da China, saíram muito a felicitar, ao telefone, sinais para o Hamas libertar
poucas medidas com verdadeiro impacto. Mas o mais Javier Milei, após a reféns e Israel aceitar algum
vitória nas presidenciais
importante é que foram abertos novos canais de tipo de cessar-fogo. Tudo isto
na Argentina
comunicação – que poderão ser essenciais no próximo graças à pressão diplomática
ano, por causa de dois acontecimentos de importância internacional, nomeadamente
fulcral: as eleições presidenciais em Taiwan (13 de dos EUA, da China, do Qatar
janeiro) e nos EUA (5 de novembro). e de outros países.

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 21


R ---------- H O LO FOT E

Sam Altman
A demissão do “menino de ouro”
Avanço Bastidores
da Microsoft Criou a OpenAI, da demissão
O maior investidor A maioria da
da OpenAI em 2015, ao lado administração da
é a gigante de nomes como OpenAI teme que
tecnológica a empresa não
norte-americana Elon Musk. Inventou esteja a conseguir

Saída-
Microsoft, liderada o famoso ChatGPT, lidar com os
Vitória
por Satya Nadella, potenciais riscos
relâmpago que, no total, já em 2022. da Inteligência de Nadella
Sam Altman, injetou cerca de A administração Artificial e, Segurar Sam
criador da OpenAI 12 mil milhões de de certa forma, Altman foi uma
– empresa de euros na empresa temia que ele não esteja a prioridade para
Inteligência de IA – o maior tivesse travões para desenvolver-se a Microsoft,
Artificial (IA), dona investimento feito demasiado rápido. tal a rapidez
do ChatGPT –, numa organização fazer abrandar esta Uma visão que com que Satya
foi demitido na do setor. Após a arma tão poderosa. contrariava a Nadella agiu. No
passada sexta- demissão de Sam atuação do seu setor, é unânime
feira, 17, com Altman, Nadella E demitiu-o, contra líder, Sam Altman, a opinião de que
quatro dos cinco entrou em cena todas as expectativas que considerava foi a empresa
membros da e contratou-o fundamental tecnológica que
administração para liderar uma — P O R G O N Ç A LO A L M E I D A gerar receita mais ficou a
a votarem a favor nova equipa para continuar ganhar com toda
da sua saída, especializada a a desenvolver esta telenovela.
devido a falta na área. Assim,
m, a tecnologia – E a reação
de “sinceridade” impediu que o mesmo que, na dos mercados
e “transparência”. “prodígio” da IAA sua origem, este também o
A decisão caiu fosse parar a ffosse um projeto indicia: na sessão
com estrondo qualquer outro o ssem fins lucrativos. de segunda-
no mundo da tubarão da A cisão entre feira, as ações
tecnologia e concorrência. ambas as partes
a da Microsoft
gerou muita Com Altman, foi oi agudizou-se nos
a subiram mais de
polémica entre também outro meses recentes,
m 2%, renovando
os funcionários dos fundadoress com a tentativa
co máximos
da empresa. Ao da OpenAI, Greg g de Altman de históricos. Agora,
ponto de 700 dos Brockman. captar mais
ca terá um segmento
770 empregados financiamento
fin reforçado dentro
assinarem uma ec criar novos de portas no
carta em forma projetos de IA.
pro campo da
de protesto, em Inteligência
que pediam o seu Artificial, com
regresso. Mas a dois nomes de
administração peso, e pode
já apontou o concorrer com a
sucessor. Trata-se própria OpenAI.
de Emmett Shear, De acordo com os
ex-líder do Twitch. especialistas, mais
nomes poderão
sair da empresa
nos próximos dias,
para se juntarem
à Microsoft.

22 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


R ---------- R A I O -X

A quimera do lítio
O negócio global de baterias deve atingir os €370 mil milhões
em 2030. Portugal tem a nona maior reserva mundial deste metal
— POR MANUEL BARROS MOURA

Previsão de lucros gerados, em todo o mundo,


com o negócio das baterias de lítio, em 2030
VALORES EM MILHARES DE MILHÕES DE DÓLARES*

PRODUÇÃO MATERIAIS ATIVOS CÉLULAS BATERIAS


Mineração, extração e refinação Criação e desenvolvimento DE BATERIA Produção de
de materiais utilizados na de materiais que reagem Produção embalagens que
construção de uma bateria eletroquimicamente para de elementos contêm uma série
China permitir a carga e a recarregáveis de células de bateria
Embora os materiais ativos descarga das baterias de uma bateria conectadas
TOTAL $184 contribuam para a maior
receita na cadeia de valor, a Os materiais ativos Uma célula de Há dois tipos
produção de lítio tem registado reagem juntos para bateria refere-se de baterias de lítio:
margens de lucro que atingem produzir energia ao elemento NMC/NMCA, o padrão
elétrica, quando individual e na América do Norte
$37 os 65%, tornando-o o setor
potencialmente mais rentável a célula é recarregável, e na Europa, e LFP,
descarregada, depois enquanto uma o padrão na China. As
retornam ao estado bateria é uma primeiras têm uma maior
original, após série de células densidade de energia,
a bateria ser conectadas ao passo que as outras
Europa recarregada entre si têm maiores dimensões
$118
$54
*Valores não assinalados representam RECICLAGEM
$25 menos de 10 mil milhões de dólares Reutilização de
componentes de bateria
em baterias novas

$31 EUA
$62
$53 EM PORTUGAL,
$15 Resto do mundo EXISTEM OITO
$39 REGIÕES NAS
$37 $14 QUAIS SE VERIFICA
A MINERALIZAÇÃO
$11 DE LÍTIO
$34 $20
$22 $11
Serra de Arga
$11
Barroso-Alvão

Seixoso-Vieiros
TOP 9 6
OS MAIORES Canadá Almendra-Barca de Alva
RESERVAS 5 930 9 4 Massueime
DE LÍTIO Portugal China Guarda
EUA 60
POR PAÍS, 1 000 2 000
EM 2023 Argemela
8 2
VALORES Segura
EM MILHARES Brasil Austrália
DE TONELADAS 250 6 200
1 7
Chile Zimbabwe
9 300 3 310
Resto do mundo
Argentina
3 300 000 2 700

FONTE EnergyX, US Geological Survey, Público, Visual Capitalist MT/VISÃO

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 23


POLITICAMENTE
CORRETO
As culpas do PS
e o que dirá Montenegro

O
Pedro tempo tem a capacidade de limpas” à portuguesa não tiverem feito explo-
Marques nublar as histórias. Quando da-
mos por ela, já não estamos tão
dir o nosso sistema político, entretanto.
Não, o Governo não caiu porque há proble-
Lopes seguros do que vimos e vivemos. mas na Saúde ou na Habitação, nem porque
Claro que a possibilidade de teve muitos casos e casinhos, nem por causa da
mudarmos a nossa perceção sobre aquilo que extraordinária descoberta de que há pessoas
aconteceu tem muito que ver com o que se vai com mais acesso ao poder do que outras, e, cla-
dizendo e com a passagem do tempo. Quanto ro, um primeiro-ministro não lança um País no
mais tempo passar, maior será a possibilidade caos político por causa de terceiros sem que ele
de uma história se tornar outra completamen- esteja envolvido. Caiu porque a PGR o fez cair.
te diferente. Refiro-me, claro, à tentativa em Se as razões do MP, infelizmente, se en-
curso de estabelecer que não foi o Ministério tendem, não é compreensível que a oposição,
Público (MP) a demitir o primeiro-ministro. nomeadamente o PSD, caia nessa falácia – por
Consigo compreender que o porta-voz três razões. A primeira é que a tese já muito
oficioso de um setor do MP, Adão Carvalho, divulgada de que o Governo caiu por outras
— Analista político
defenda que um primeiro-ministro possa con- razões que não a atuação do MP tem um pro-
tinuar em funções quando uma procuradora- blema grave de adesão à realidade. Os acon-
-geral da República escreve, em letra de forma, tecimentos foram demasiado traumáticos, rele-
que este é suspeito de crimes graves. Por muito vantes e recentes para que seja possível que as
cínico que isto seja, um magistrado não pode pessoas comprem uma verdade alternativa. Os
dizer outra coisa. Se dissesse o contrário, esta- cidadãos podem achar o Governo péssimo e,
ria a admitir ter um poder desproporcionado e no limite, estarem contentes com a hipótese de
discricionário: o poder de demitir um primei- escolherem outro, mas sabem porque este caiu.
ro-ministro e derrubar uma maioria sem indí- Sabem mais, sabem que a vontade expressa em
cios sólidos, sem uma investigação bem condu- urnas foi desrespeitada – porque, aparente-
zida e já com provas relevantes recolhidas. mente, a lei penal foi violada. Estudos de opi-
Pois, claro, não sabemos nada do proces- nião não são eleições, não são assim tidos nem
so. Daqui a uns anos saberemos se o primei- chamados para validar se um Governo deve
ro-ministro estava envolvido numa teia de cair ou não. A credibilidade é fulcral para um
corrupção, prevaricação ou tráfico de influên- líder; ir atrás de uma narrativa falsa não ajuda.
cias e julgaremos as boas ações do MP. Ou Em segundo lugar, o PSD não pode deixar
Não, seja: quando se fizer a investigação. Pode ser de lembrar que o anterior líder, Rui Rio, foi o
o Governo que essa investigação mostre que há mesmo maior combatente de uma reforma na Justiça
uma grande conspiração. Nessa altura, não e o maior denunciador dos desmandos de
não caiu nos queixaremos dos muitos anos a investigar alguns setores do MP. Foi o PS quem mais
porque há esses crimes e celebraremos quem, apesar de ajudou a criar o caos na Justiça e, sobretudo,
problemas tão ténues indícios, derrubou um Governo.
Ou não. Talvez António Costa não seja sequer
no MP. Foi o PS que nunca quis reformar o
edifício. Foi o PS que semeou a converseta
na Saúde ou acusado, talvez não haja teia de corrupção sem sentido de “à Justiça o que é da Justiça, à
na Habitação, nenhuma a envolver governantes e ex-gover- política o que é da política”, como se não fos-
nantes, e nessa altura a Procuradoria-Geral da se a política a responsável pelo bem comum e
nem porque República (PGR) encolherá os ombros e pedirá nesse não estivesse incluído o bom funciona-
teve muitos desculpa por qualquer coisinha. Talvez alguém mento da Justiça.
casos e com responsabilidades políticas se lembre dos
Paulos Pedrosos, Miguéis Macedos, dos Tutti-
Em terceiro lugar, o PSD é um partido de
poder. Cedo ou tarde, será Governo. É evidente
casinhos, nem -Frutti, dos Manéis Salgados, dos Rios e diga que não pode deixar de dizer que a Justiça está
por causa da que se calhar será tempo de admitir que há um a trabalhar, mas não pode fazer como se não
problema com o MP. Talvez alguém recorde tivesse nada que ver com o assunto.
extraordinária que a procuradora-adjunta, Maria José Fer- O líder do PSD tem todas as razões para
descoberta nandes, escrevia no Público de 19 de novem- estar preocupado com este processo, porque
de que há bro um texto em que, mais uma vez, apontava
de forma clara os problemas de funcionamen-
muito simplesmente é o maior problema
de regime desde a normalização da nossa
pessoas com to e a mentalidade de setores que dominam democracia. No entanto, bastava que Luís
mais acesso o MP, nomeadamente o seu sindicato. Talvez Montenegro se interrogasse e perguntasse
mesmo os nossos representantes políticos para os seus botões: “O que direi eu enquan-
ao poder percebam que têm mesmo de reformar a Jus- to primeiro-ministro se todo este processo
do que outras tiça. Isto, claro, se os vários processos “mãos der em nada?” visao@visao.pt

24 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


R ---------- P E R I SCÓ P I O

Afinal, de quem foi a ideia?


Na manhã das buscas, no âmbito da operação Influencer, Marcelo
chamou Lucília Gago a Belém. Falta saber com que propósito

“Isso, o sr. primeiro-


o- “Te
“Terão de perguntar ao sr.
-ministro já esclareceu
ceu Presidente da República
Pr
que pediu para eu pedir
edir que
qu comentário público
o encontro à senhora ra terei eu feito, mas não
te
procuradora-gerall me ocorre nenhum.
da República” Se o fiz, então fi-lo
MARCELO REBELO sseguramente perante
DE SOUSA vossas excelências
ca
Presidente da República [os jornalistas]...”
ANTÓNIO COSTA
Primeiro-ministro

INDISCRETOS 15 MINUTOS DE FAMA

Costa segue regra de Salazar divulgadas. Mas uma coisa é certa: se


Marcelo chamou Lucília Gago a Belém é
Na mesma declaração em que reagiu,
porque achou uma boa ideia – ninguém lhe
quatro dias depois, às buscas e detenções,
apontou uma pistola a obrigá-lo...
no âmbito da operação Influencer, que
precipitou a própria demissão, António Costa
afirmou (a propósito da ligação a Lacerda
Machado) que “um primeiro-ministro não tem Eu é que combato a direita!
amigos”. Ora, em agosto de 1958, no âmbito Pedro Nuno Santos ficou muito
de uma extensa remodelação governamental, escandalizado, porque o concorrente na
em que substituiu ministros como Santos corrida à liderança do PS prefere a atacá-lo,
Costa ou o seu número 2, Marcelo Caetano, em vez de atacar a direita, enquanto ele se
Oliveira Salazar virou-se para os demitidos e centra no combate a essa mesma direita. E
disse-lhes: “Não posso ter amigos. Não sou nós que pensávamos que as eleições que
amigo de ninguém.” Às vezes, há lições que agora se disputam são entre Pedro Nuno Ninguém
se demoram a aprender... Santos e José Luís Carneiro e que as outras
– as legislativas, em que, então, sim, a disputa para Mayan
é com outros partidos – viriam só depois!...
Tiago Mayan, candidato
O conselheiro-comentador presidencial da Iniciativa
No programa de comentário político da CNN Liberal, em 2021, exultou, na
Portugal e da TSF, Circulatura do Quadrado, Discípula dedicada rede social X, com a vitória de
António Lobo Xavier, que também faz parte Rita Matias parece ter aprendido com André Javier Milei nas presidenciais
do Conselho de Estado, entusiasmado Ventura que, fale-se bem ou mal de nós, o argentinas. O liberal até
com as próprias palavras, descaiu-se e importante é que se fale – de preferência reservou um “coraçãozinho”
revelou que António Costa disse mesmo, em nos media. A deputada do Chega esforçou- para o político que afirma
público, que pediu a Marcelo para chamar se por despertar a atenção de quem conseguir comunicar, por via
a procuradora-geral da República a Belém. passava na Faculdade de Ciências Sociais de um médium, com o cão de
Depois, enredou-se nalguma atrapalhação e Humanas (FCSH) da Universidade de estimação que morreu (entre
– “Não sei se estavam jornalistas ou não, Lisboa e lá conseguiu capitalizar o momento, outras excentricidades).
provavelmente não” – e, prontamente após o “convite” dos estudantes para que Mayan bem avisara, em
confrontado pelo moderador, Carlos Andrade asse o local.
abandonasse tempos de confinamento, nos
– “não teria sido no Conselho de Estado?” A própria PSP, que foi picos da Covid-19, que iria
–, o ex-dirigente do CDS concluiu que o chamada, não escondeu alinhar com as narrativas mais
que interessa é saber se é verdade que a o incómododo com tanto radicais: “Come and stop me”,
ideia de chamar Lucília Gago foi de Costa. alarido. A anunciada escreveu no então Twitter,
O primeiro-ministro em exercício veio logo ime promete
queixa-crime desafiando as autoridades.
lembrar que as conversas que decorrem no alimentar a narrativa. Não parece haver travões
Conselho de Estado não são para serem — F.L./J.A.S.
S. suficientes...

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 25


---------- P R ÓX I M O S CA P Í T U LO S

Javier Milei
eleito Presidente
da Argentina
Desespero mais
forte do que
o medo do salto
no vazio
— POR MANUEL BARROS MOURA

N
em o próprio candi- didato ultraliberal durante
dato parecia estar a uma larga campanha em que
acreditar nos resul- decretou guerra à “casta”,
tados eleitorais, no como apelidava toda a classe
último domingo, 22, na sua política “oficialista”, de pe-
sede de campanha, em Buenos ronistas e antiperonistas que
Aires. “Obrigado à equipa têm governado a Argentina
que tem vindo a trabalhar desde o final da ditadura,
nos últimos dois anos para a quem prometeu correr a
transformar a Argentina e “biqueiradas no cu”. De mo-
conseguir o milagre de ter um tosserra em punho, andou
Presidente liberal libertário.” pelas ruas do país a prometer
Assim qualificou Javier Milei a cortar a eito em tudo o que
sua própria vitória na segunda considerava gastos inúteis
volta das eleições presiden- do Estado, encerrar minis-
ciais, em que obteve uns sur- térios, privatizar empresas MILEI “DIXIT”
preendentes 55,7% dos votos, estatais, escolas e hospitais,
derrotando, por uma margem baixar impostos, acabar com Algumas das tiradas mais controversas do futuro Presidente
maior do que as sondagens subvenções públicas, fechar o
previam, o candidato Sérgio Banco Central e fazer do dó-
Massa (44,3%), atual ministro lar norte-americano a moeda Acreditar que As mulheres podem
da Economia e representante oficial do país. Com um lema os políticos vão ter o direito de escolha
do peronismo. Sem qualquer de campanha tão elabora- cuidar de vocês sobre o seu corpo, mas
experiência de governação e do quanto “Viva la libertad, é como deixar o que têm no ventre
contando com o apoio de um carajo!”, o economista de 53 não é corpo delas,
partido, A Liberdade Avança, anos, que se fez conhecido do
os vossos filhos nas
que elegeu apenas 38 depu- grande público pelas tiradas mãos de um pedófilo é o de outro indivíduo
tados num parlamento com desbragadas contra a classe
257 membros e oito entre 72 política em populares pro- O Papa é o Se fosse verdade
senadores, Milei conseguiu gramas de televisão, conse- representante do Mal que as mulheres
convencer a maioria do elei- guiu convencer largas faixas na Terra. (…) É um ganham menos,
torado argentino de que, pe- de um eleitorado bloqueado imbecil, promove as empresas estariam
rante o desespero provocado pela profunda crise financeira o comunismo cheias delas
pela falta de saídas, vale a pena num país completamente en-
apostar na mudança, nem que dividado e onde galopa uma
ela possa, para muitos, parecer inflação que já ultrapassou os
Sou contra todos Se querem drogar-
um verdadeiro salto no vazio. 140% no último ano. Foram os impostos. -se, façam o que vos
“Mas qual salto no vazio? precisamente as classes mé- São um roubo que apetecer, mas não
No Inferno já nós estamos”, dias e baixas, sobretudo os se paga de maneira me peçam para
gritou inúmeras vezes o can- mais jovens, que preferiram a violenta pagar a conta
26 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023
“Milagre” Na hora da vitória,
o candidato liberal libertário
garantiu que chegou ao fim
“a decadência da Argentina”

tados, seja no Senado. Daí PROGRAMA


que, para conseguir maio-
ria para governar e aprovar
LIBERTÁRIO
legislação, terá de negociar e Estas são algumas das
convencer bastantes depu- promessas de Javier Milei
tados da ala peronista, que
continua a ter o maior grupo
parlamentar, com 107 dos ECONOMIA
257 deputados e 34 dos 72 •Acabar com
senadores. Mesmo que tente gastos improdutivos
aprovar medidas através da do Estado e diminuir
convocação de plebiscitos, o seu tamanho, deixando
como ameaçou na cam- de haver oito ministérios
panha, Milei terá de fazer •Cortar nas reformas
passar as propostas para e nas pensões,
esses escrutínios nas duas visando um “sistema
câmaras do Congresso. de capitalização privado”
“Milei tem uma debili- •Privatizar empresas
dade estrutural para poder públicas deficitárias
avançar com a sua agenda •Fechar o Banco Central
ante o poder legislativo. e adotar o dólar
Ainda por cima, numa fede- norte-americano
ração como é a Argentina, como moeda oficial
onde os governadores têm •Eliminar e diminuir
um peso extraordinário, ele impostos para “potenciar
não tem um único governa- o desenvolvimento dos
dor eleito pelo seu partido”, processos produtivos”
explicou, ao site da BBC, o •Criar concessões para
analista político argentino a exploração
Sergio Berensztein. de recursos naturais
O futuro Presidente da •Acabar com as
Argentina, que tomará posse indemnizações
no próximo dia 10 de de- por despedimento,
GETTY IMAGES

zembro, um dia antes dos substituindo-as por


novos membros do Con- um sistema de seguro
gresso, tem, pois, nas mãos no desemprego
a dura tarefa de confirmar
mudança e não hesitaram pe- vencedor no seu discurso que, com ele ao comando, SAÚDE E EDUCAÇÃO
rante o medo do desconheci- triunfal de domingo, como o país não vai dar qualquer •Proteger as crianças
do que representa eleger um se o facto de ter sido eleito salto no vazio, antes, sim, desde a conceção,
populista como Javier Milei. Presidente lhe conferisse, sair da “decadência” e iniciar abolindo o direito ao aborto,
Mesmo dados os exemplos por si só, o direito de colocar o processo de “recuperação”. mesmo em caso de violação
que, nos últimos anos, che- em marcha todo o seu con- E os sinais não poderão tar- •Eliminar a obrigatoriedade
garam do vizinho Brasil e dos troverso programa eleitoral. dar, ou Milei arriscar-se-á a da educação sexual
Estados Unidos da América. Apesar de ter contado, nesta ver a contestação sair às ruas, integral em todos
Sintomático, aliás, foi ver que segunda volta, com o apoio nomeadamente por par- os níveis de ensino
foram precisamente Donald do antigo Presidente Mau- te dos eleitores do gigante •Criar um sistema
Trump e Jair Bolsonaro algu- ricio Macri e da candidata círculo eleitoral da região de de cheques educativos
mas das primeiras personali- Patricia Bullrich, que ficou Buenos Aires, que circunda a e de cheques-saúde
dades a saudar efusivamente em terceiro lugar na primei- capital, um dos únicos que se
a vitória do último domingo, ra volta, a verdade é que isso mantiveram fiéis ao peronis- SEGURANÇA
entre as quais também esti- não garante os votos de to- mo. Terá sido em nome deles •Construir
veram o espanhol Santiago dos os 94 deputados eleitos que, no discurso de aceita- estabelecimentos
Abascal, líder do Vox, e André pela coligação Juntos por el ção da derrota, Sergio Massa penitenciários com sistema
Ventura, que acredita ser este Cambio, uma vez que mui- fez questão de frisar que “a de gestão público-privada
um sinal do que pode estar tos deles têm sido alvo das partir de agora, a responsa- •Reduzir a idade de
para acontecer em Portugal, a duras críticas do Presidente bilidade de dar certezas, de imputabilidade de menores
10 de março do próximo ano. eleito. Os cálculos dos poli- transmitir garantias sobre o •Desregulamentar o mercado
ticólogos argentinos apon- funcionamento político, so- legal de armas de fogo,
DESAFIOS E NEGOCIAÇÕES tam para que, no total, Milei cial e económico da Argenti- protegendo o uso “legítimo
“Hoje termina a decadência venha a conseguir os votos na, cabe ao novo Presidente e responsável por parte
e começa a reconstrução de um terço do Congresso, eleito e esperamos que o da cidadania”
da Argentina!”, prometeu o seja na Câmara dos Depu- faça”. visao@visao.pt

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 27


P O N TO S

Xi Jinping em São Francisco


CA R D E A I S

U
ma reunião de quatro ho- partido de desalinhamentos que enfraque-
Bernardo ras não será suficiente para çam a estratégia russa na Ucrânia e no arco
Pires resolver uma série de proble-
mas bilaterais entre os EUA e
de influência que Putin mantém no Médio
Oriente: Irão, Síria, Iémen, Iraque e, por via
de Lima a China, mas, num tempo em disso, no Hezbollah e no Hamas. Até aqui, a
que a berraria e o choque estão a impor-se China não correspondeu minimamente às
na política, é um sinal de maturidade que expectativas ocidentais, dando sinais opostos
devemos saudar. O encontro de São Fran- que acomodaram a passada do Kremlin na
cisco, à margem da cimeira da APEC, não Europa, Médio Oriente e ainda no Sahel.
nasceu do nada, tem mais de seis meses de Para a reverter em tempo útil é preciso fazer
encontros setoriais preparatórios, com idas mais: gerar mais confiança bilateral, estar
a Pequim de vários membros da adminis- disposto a cedências negociais, ter em conta
tração Biden, na tentativa de encontrarem alguns interesses da China na sua geogra-
pontos de distensão bilateral nas finanças, fia próxima, permitir algumas reformas em
comércio, segurança e defesa. Podemos, organizações internacionais, nomeadamente
por isso, apontar pelo menos três razões de comerciais e financeiras, que acomodem o
— Analista de política
contexto para que tal tenha acontecido. seu atual poder. Se esta abordagem tiver uma
internacional
A primeira resulta da leitura que sintonia transatlântica, mais consolidada
Washington faz dos termos da competi- estará, mais peso negocial terá, mais eficácia
NORTE ção tecnológica em curso e das restrições alcançará. Não é um assomo de ingenui-
No rigor do inverno nórdico, que unilateralmente impôs às exportações dade aceitar que as duas grandes potências
tal como já tinha acontecido chinesas, com efeitos em aliados demasia- do sistema precisam de um modus vivendi
aquando dos piores anos do dependentes das mesmas. É preferível mais razoável e menos destrutivo, apesar das
da guerra na Síria, a Rússia que estas dinâmicas não resultem numa diferenças que as separam. Até porque é do
incentiva corredores migra- tensão permanente que distorça o comér- superior interesse europeu, já agora, esvaziar
tórios para pressionar as
cio e os mercados, inflacionando os preços a força de Moscovo à entrada de um ano que
fronteiras da Finlândia, que
numa fase eleitoral decisiva para o futuro nos pode deixar entalados entre Trump de
reforçará o seu fecho.
dos EUA e numa outra de arrefecimento um lado e Putin do outro.
SUL
económico em quarenta anos de ascen- A terceira razão acaba por encaixar aqui,
Sem disrupções produtivas são chinesa. Não é do interesse de Pequim ou seja, em resultado da leitura que Pequim
no Médio Oriente, o barril que se acentue uma perceção de descola- faz da posição de influência que hoje tem na
desceu para mínimos nos mento comercial do Ocidente, sobretudo geopolítica do Médio Oriente, como prin-
últimos quatro meses. Para dos mercados europeus instigados a optar cipal comprador de petróleo e gás, o que
a semana, a OPEP acordará por mais investimento norte-americano a motiva a acautelar a descida do preço do
num corte acentuado da e menos chinês, mas sim contribuir para barril, a produção estabilizada e as tensões
produção, sobretudo saudita, um ambiente externo mais normaliza- militares controladas. Isto é crucial para a
aumentando os preços. As do. O encontro entre Xi Jinping e grandes recuperação económica chinesa, embora
finanças russas agradecem. empresários norte-americanos reforça este prejudique as receitas russas para financiar
princípio. Para Biden, no meio do turbilhão o brutal esforço militar que o orçamento
ESTE de conflitos na Europa e no Médio Orien- contempla para o ano. Para isso, o poderoso
Em 2022, o Sri Lanka foi o te, de uma disfuncional negociação com os ministro dos negócios estrangeiros chinês,
primeiro país asiático em vin- republicanos no Congresso e da ameaça de Wang Yi, recebeu há dias em Pequim vários
te anos a declarar bancarrota. um regresso de Trump, faz sentido gerar homólogos da região, da Indonésia e o líder
Com uma forte dependência uma imagem de confiabilidade junto da sua da Organização para a Cooperação Islâmi-
financeira da China, tem vin- plataforma eleitoral, entrando também nos ca, para alinharem esforços sobre a guerra
do a equilibrar investimentos independentes, que estarão mais sintoni- em Gaza, evitar a regionalização do conflito,
da Índia e EUA, nomeada-
zados com uma resolução pragmática das retomar a solução dois Estados. Por outras
mente no estratégico porto
tensões com a China, nomeadamente em palavras, Pequim entra no circuito regional
de Colombo.
Taiwan, capaz de não acrescentar uma nova procurando pontes com o Ocidente e com
OESTE frente calamitosa a um ambiente externo o mundo árabe, com o objetivo de elevar a
Javier Milei, o surreal eleito apocalíptico e a um interno onde a econo- sua influência diplomática para defender a
Presidente argentino, não terá mia recupera a um ritmo surpreendente. estabilidade dos seus interesses económicos
maioria no Congresso para A segunda resulta da leitura que ambos e energéticos. Nada mais normal. Acontece
lidar com outra brutal crise fazem das transformações no ambiente es- que os meios para lá chegar são do interes-
financeira. Com propostas tratégico global. Washington, assim como a se do Ocidente, em particular da Europa –
bizarras e perigosas, a sua pro- Europa, tem interesse em promover divi- energia mais barata, solução para o conflito,
paganda realça-o entre Trump sões entre Pequim e Moscovo, acentuar o desalinhamento com a Rússia. E, quando
e Bolsonaro. Vai correr bem. desequilíbrio de poder entre ambos, tirar assim é, devemos apoiar Pequim. visao@visao.pt

28 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


R ---------- FOTO S CO M H I STÓ R I A

D.R.

25 DE NOVEMBRO DE 1975

O canto do cisne da Revolução


Na unidade de paraquedistas de Tancos, a assembleia de soldados solta o grito de guerra. A ala da es-
querda radical do MFA dá o pontapé de saída de um confronto longamente aguardado. O duelo ao sol
está marcado desde que, em agosto, um grupo de nove oficiais moderados, todos “capitães de abril”,
divulgaram um documento contra a deriva revolucionária. O Conselho da Revolução está dividido,
mas as principais regiões militares (Norte, Centro e Sul) já estão nas mãos de comandantes alinhados
com os Nove. A 24, cai a última, com a substituição de Otelo por Vasco Lourenço, na Região Militar de
Lisboa. A 25, os revolucionários dos “paras” saem, rumo à capital. Dois vasos de guerra, supostamente
partidários da ala radical, fazem-se ao mar (mas nada farão). Forças do RALIS tomam posições na en-
trada norte de Lisboa, mas não vão mais longe. E os fuzileiros ficam de fora. A EPAM toma a RTP e os
“paras” o comando aéreo de Monsanto – mas estas são as únicas forças que se mantêm ativas, do lado
revolucionário. A partir dos comandos da Amadora, o líder operacional dos moderados, Ramalho Ea-
nes, joga as suas peças e os revoltosos rendem-se, um a um. No dia seguinte, os “comandos” de Jaime
Neves neutralizam a última bolsa de resistência, a Polícia Militar, na Ajuda, onde, numa escaramuça,
ocorrem as três únicas mortes de toda a crise. A Revolução perdeu. A democracia pluralista ganhou.
— PO R FI LI PE LU ÍS

30 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


R ---------- T R A N S I ÇÕ ES

PRÉMIO

João Canijo
O realizador português
recebeu na segunda-feira,
20, o prémio de carreira no
festival de cinema Cineuropa,
que decorreu em Santiago de
Compostela, Espanha. João
Canijo regressou à Galiza
depois de este festival lhe ter
dedicado uma retrospetiva
em 2011. Nesta 37.ª edição,
o Cineuropa exibiu os filmes
Sangue do Meu Sangue,
Trabalho de Atriz, Trabalho
de Ator, Fátima e os mais
recentes Mal Viver e Viver
Mal. Sobre este díptico, o
diretor do festival, José Luis
Losa, afirmou que é “uma das
experiências cinematográficas
mais imersivas” da atual
temporada.

MORTES

Rosalynn Carter
A mulher do antigo
Presidente dos Estados

D.R.
Unidos da América, Jimmy
Carter, morreu no domingo,
19. Depois de um diagnóstico
de demência em maio, a 1978-2023
sua saúde agravara-se na
sexta-feira. Foi primeira-
dama durante o único Sara Tavares
mandato do marido na Casa
Branca e a sua conselheira
mais próxima, entre 1977
Um ponto de luz longe do mundo
e 1981. É-lhe atribuída a
“profissionalização” do
Em 1994, com apenas 16 anos, foi a pri- um irmão mais velho, filhos de pais cabo-
papel de primeira-dama. meira artista a afirmar-se a partir de um -verdianos que aqui tentavam a sua sorte.
Os dois prosseguiram novo mundo que subsiste até hoje: o dos Mas a família desintegrou-se rapidamente.
um reconhecido trabalho programas de talentos, que eram então O pai rumou para outras paragens distan-
humanitário, sobretudo uma das grandes novidades no início da tes e a mãe arranjou um trabalho no Algar-
através do Centro Carter, que era das televisões privadas. Sara Tavares ve, para onde foi viver com a filha mais
criaram. venceu a primeira edição do Chuva de nova e o filho mais velho. Sara Tavares
Estrelas, na SIC, com apresentação de Ca- ficou em Almada, na zona do Pragal, com
tarina Furtado, imitando Whitney Hous- a sua ama, Eugénia, que seria uma espé-
João Lima ton e impressionando toda a gente com a cie de avó emprestada. Essa opção não foi
O atleta que participou nos sua voz e a sua qualidade de interpretação. sentida pela pequena Sara, ao longo dos
110 metros barreiras nos Esse foi um ano que marcou, com toda a anos, como um grande trauma. “Fiquei cá
Jogos Olímpicos de 1988, em clareza, um “antes” e um “depois” na vida com a minha avó porque ela estava apaixo-
Seul, morreu neste sábado de Sara Alexandra Lima Tavares. Ainda nada por mim”, resumia em entrevista ao
aos 62 anos, informou a
em 1994 participaria no Festival RTP da programa da SIC Alta Definição em 2012.
Federação Portuguesa de
Canção, que venceu com o tema Chamar A partir de 1994, muitas portas se es-
Atletismo (FPA).
a Música (letra de Rosa Lobato Faria e cancararam à frente de Sara Tavares. Aos
música de João Mota Oliveira) que a levou olhos de vários responsáveis da indústria
Suzanne Shepherd a representar Portugal na Eurovisão, em musical, ela era um diamante que nem
A atriz norte-americana, Dublin – de onde saiu com um honroso 8º sequer era preciso lapidar demasiado,
conhecida pelos papéis na lugar entre 25 concorrentes. uma verdadeira estrela pop à espera de
série Sopranos e no filme A música parecia, sem ambiguidades, dar acontecer. Em 1996, o seu primeiro disco
Tudo Bons Rapazes, morreu formas e sonhos ao seu futuro. Tudo era foi gravado com o coro gospel Shout e
na sexta-feira, 17, em Nova um mundo novo para Sara, mas ela não se nesse mesmo ano a sua voz ecoou em
Iorque. Tinha 89 anos. deixou deslumbrar demasiado. Nasceu em muitas salas de cinema na canção Longe
Lisboa, assim como uma irmã mais nova e do Mundo, da banda sonora do filme da

32 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


Disney O Corcunda de Notre Dame (seria
considerada a melhor adaptação interna-
cional do original God Help The Outcasts).
Mas desde cedo Sara Tavares mostrou que
queria ter o seu destino nas suas mãos. De
dentro para fora, mas atenta ao mundo à Cláudia Lucas Chéu
sua volta, foi construindo uma identidade Escritora,
artística própria. Esse estilo começou a encenadora e atriz.
definir-se com mais nitidez no álbum Ba- Amiga de infância
lancê (de 2005, sucessor de Mi Ma Bô, de de Sara Tavares
1999) que, com a marca da prestigiada edi-
tora World Connection, a levou para mais
perto do circuito da world music do que
de uma máquina pop à procura do próxi- Podia jurar que foi ontem
mo hit. As raízes estavam em Cabo Verde
e noutras coordenadas africanas, mas Sara A Sara. Ainda ontem estávamos a brincar com as nossas Barbies falsas
Tavares queria, com tempo e serenidade, e a comer leite em pó à colherada, diretamente da lata, até nos doer a
encontrar uma gramática própria para as barriga. Foi no telhado da minha casa no Pragal que te ouvi cantar pela
suas canções. primeira vez. Com o cabo da vassoura a fazer de microfone. Éramos
Outro ano-charneira na sua vida, agora mesmo pobres. Devíamos ter uns 7 anos e a nossa amizade, alheia aos
por más razões, foi 2009, quando lhe foi problemas que nos rodeavam, era tão alegre. Fazíamos programas de
diagnosticado um tumor no cérebro que a rádio à mesa da cozinha diminuta da minha casa e gravávamos tudo
obrigou a uma cirurgia – a sua morte, em em cassetes áudio para um dia, quem sabe, as ouvirmos juntas. Eu
Lisboa, no passado dia 19, aconteceu na apresentava os programas, tu cantavas. Como é que é possível? Ainda
sequência de uma recidiva dessa doença. ontem jogávamos à bola e esfolávamos os joelhos numa sobreposição de
Esse foi o ano do álbum Xinti (também feridas e crostas, que nos diziam fazer-nos mais fortes. Acho que nunca
na World Connection), mas foi preciso sentimos que assim fosse. Ainda hoje consigo sentir o cheiro a mofo
esperar mais oito anos por um regresso às dos sítios em que vivíamos. Incontáveis foram as tardes passadas em
gravações. Em 2017, Fitxadu era apresen- casa da tua avó emprestada, que te acolheu e amparou como podia, com
tado por Sara como o encerrar de um ciclo sopa quente, alguns mimos e ralhetes. Eu e tu vivíamos em casas sem
e o início de um novo. O disco tinha vários portas, tirando a que dava acesso à rua, e cujas divisões se separavam
convidados (a artista sempre teve muitas com cortinas. Casas pobres e escuras, com apenas uma janela que
parcerias com músicos de diversas áreas) deixava entrar a luz. Tu ainda não querias ser cantora, eu não queria
e abria-se a experiências com a música ainda ser escritora. Gostávamos era de brincar às telenovelas, ao Roque
eletrónica. No horizonte estava, agora, um Santeiro e à Tieta, e tu nunca teimaste, como muitos de nós, em fazer
novo álbum de Sara Tavares que nunca irá de protagonista. Vi-te começar a brilhar bem cedo, aos 16 anos, no
sair. Vários singles o antecipavam e o últi- programa Chuva de Estrelas. Aplaudi de pé no final da gravação desse
mo, Kurtidu, foi lançado no passado mês primeiro programa, eu e a minha mãe, ambas a rebentar de orgulho
de setembro. por ti. O País descobria a estrela que eu já conhecia desde o recreio da
Com esse percurso, Sara Tavares é vista, escola primária. A minha melhor amiga da infância, a Sara. Uma menina
hoje, como precursora da Nova Lisboa tímida e educada, com um talento e uma luz enormes. Não estou a
multicultural cantada por Dino d’Santiago. romantizar quando digo que dava para ver à distância o brilho do teu
E muitos são os artistas, de várias áreas, sorriso limpo. Graças a ti, tenho uma irmã homónima. Quando a minha
que têm afirmado, neste momento de mãe engravidou, tinha eu 10 anos, deu-me a possibilidade de escolher o
despedidas, que a cantora funcionou como nome da criança que viria a ser a minha irmã. Chamei-lhe Sara, claro. À
um entusiasmante exemplo a seguir. Um minha irmã de sangue, o mesmo
deles foi o escritor Bruno Vieira Amaral, nome da melhor amiga. Como
que também cresceu na Margem Sul, nas eram livres as nossas tardes pelas
suas redes sociais: “A mim, que tiro o que ruas do Pragal, junto ao Cristo
posso de quem está à minha volta, [Sara Rei. Passávamos o tempo como
Tavares] deu-me o exemplo de um cami- cães vadios, sem adultos para
nho, o caminho que vai do eu ao eu, um nos domesticarem as maneiras.
caminho de inteireza, de descoberta do Um dia até fizemos pastilhas
que se é. Do Pragal da avó branca a Cabo elásticas com um tubo de cola
Verde dos antepassados e das raízes, a Sara que trouxemos da escola, não
fez um caminho bonito de descoberta. imaginávamos que aquilo dava
Encontrou a voz. Encontrou-se. E isso é pedrada, nem sei qual das duas
muito. Porque há muitas Saras em muitos é que teve a ideia. Rimos tanto
Pragais que nunca encontram a voz, nunca nessa tarde inesquecível em que
se encontram, que não têm tempo, não têm uuma pessoa não sabia que não
vida, para chegar o mais longe que um ser sse pode ter 8 anos perfeitos para
humano pode chegar, à sua verdade.” ssempre. Podia jurar que foi ontem.
Pedro Dias de Almeida QQuerida Sara Tavares.

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 33


---------- N A P R I M E I R A P ES SOA

Aos 25 anos,
Nathan Martins
foi vítima de um
acidente de mota
e a vida, como a
conhecia, acabou.
Quatro anos
depois, a recuperar
de um traumatismo
cranioencefálico
grave, o jovem
continua a
superar-se e a
inspirar outros

V
ivo em Portugal há
nove anos. Tinha
20 quando deixei
São Paulo, no Bra-
sil, e fui viver para o con-
celho de Mafra, na casa da
minha mãe. Era responsável
técnico numa empresa de
transformação de plásticos,
na Venda do Pinheiro, e, ao
mesmo tempo, continuava
os meus estudos no Institu-
to Superior de Engenharia
de Lisboa (ISEL).
No dia em que fiquei
efetivo na empresa, a 12
LUÍS BARRA

de setembro de 2019, saí


do trabalho e fui para a
universidade, de mota, pela
estrada nacional. Podia ir

Nathan Martins pela autoestrada, mas pre-


feria passar pelas localida-
des e ver as pessoas e as ca-

“Estive 14 dias em coma


sas, com uma sensação de
liberdade e de proximidade
em movimento.

e disseram à minha mãe


Um automóvel que vinha
no sentido contrário entrou
na minha faixa, passou o

para se despedir
traço contínuo e foi contra
mim. Não me lembro de
mais nada.

de mim, mas a vida


Quando me socorreram,
eu já estava em coma. As-
sim que cheguei ao Hos-
pital de Santa Maria, em

tinha outros planos” Lisboa, disseram à minha


mãe para se despedir de

34 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


mim, mas a vida tinha ou- fraldas foi simplesmente Dava por mim a lógicos, ainda há margem
tros planos.
Tive um traumatismo
horrível.
No dia em que voltei
chorar e a gritar para evoluir na reabilita-
ção. Sabê-lo motiva-me
cranioencefálico grave do para casa, e já a recuperar o o dia todo, pelas bastante, e vou manter o
lado direito e uma fratura funcionamento cognitivo, dores e, sobretudo, treino cognitivo online e a
exposta no rádio esquer- a minha namorada, que me psicoterapia.
do. O capacete terá saltado tinha acompanhado até en- pela revolta. Antes Continuo de baixa, e
com o impacto e a lesão tão, terminou o relaciona- do acidente, os tratamentos e o salá-
cerebral, no hemisfério
direito, causou danos na
mento sem dar explicações.
Angustiado, eu só per-
estava à procura rio que recebia têm sido
pagos pela seguradora.
mobilidade e no equilíbrio, guntava quando é que de casa para viver Quando regressar ao local
impedindo-me de estar em voltava a andar. A ansie- sozinho ou com de trabalho, com um grau
pé ou sentado. O funcio- dade dificultava a reabi- de incapacidade, não vou
namento cognitivo não foi litação. Um dia, a médica a namorada. De poder estar muito tempo
muito afetado, mas fiquei fisiatra disse-me para não repente, perdi a de pé nem conseguir entrar
com uma hemiparesia
(paralisia parcial) no lado
fazer comparações com os
outros: “Nathan, cada caso
independência numa máquina e usar o
meu braço esquerdo acima
esquerdo do corpo. é um caso.” Aquela frase e a autonomia da minha cabeça, como
Saí do coma 14 dias de- ficou para a vida. e estava ao colo fazia. Mas sei fazer ou-
pois e, contrariamente ao No Campus Neurológico tras coisas e vou ter outra
esperado, não foi preciso Senior, em Torres Vedras, da minha mãe. função, com um horário
fazer uma traqueostomia a psicoterapia ajudou-me Ficar totalmente reduzido.
para começar a respirar
sem máquinas. Contudo,
imenso a lidar com a culpa,
os estados depressivos e
dependente dela Voltei a aprender tudo de
novo com apenas uma mão.
esperava-me um longo o stresse. No Centro de para assegurar Só uso a cadeira de rodas
caminho até poder voltar Medicina de Reabilitação necessidades para longas distâncias, que
a andar. Na altura, não tive de Alcoitão, comecei a ver são aquelas cujos obstá-
qualquer noção do que es- progressos com a fisiotera- fisiológicas ou culos ainda não conheço.
tava a acontecer, e ninguém pia, hidroterapia e terapia mudar fraldas foi Exercito-me a subir e a
me falava sobre isso. Desse
período tenho apenas al-
ocupacional. simplesmente descer os sete degraus no
exterior de casa e faço surf
guns flashes de memória. “JÁ ESTIVE NO LOCAL horrível adaptado, com a Associação
Estive internado três DO ACIDENTE” Salvador. É magnífico ir
meses e duas semanas no Tive a minha primeira ca- deitado na prancha e sentir
Hospital de Santa Maria e deira de rodas manual, leve a onda a quebrar atrás de
passei 21 dias no Hospi- e dobrável, e reduziram-me nós! O ambiente é muito
tal do Mar. Lembro-me de a medicação; fiquei apenas bom e ganhei uma nova
ficar emocionado quando com um fármaco para as família.
consegui dar o primeiro dores causadas pelo encur- Com o espaçamento
passo, com a terapeuta e tamento do nervo da perna das sessões para breve,
três auxiliares a segura- e do braço, devido à lesão vou poder fazer passeios
rem-me. Tive visitas de cerebral e ao tempo em desportivos e outras ati-
amigos e colegas de traba- que não me movimentei. Já vidades através do projeto
lho, mas essa fase acabou. estive no local do acidente e Viver Novamente. Quan-
Veio o isolamento e, a não senti nada. do contei a minha história
seguir, a pandemia. Nos Senti necessidade de num encontro promovido
quatro meses de interna- estar mais ativo e queria pela Associação e referi que
mento, nas residências da voltar a conviver. Através “cada caso é um caso”, ex-
Santa Casa da Misericórdia, da minha mãe, conheci a pressei o desejo de tatuar a
em Alcoitão, dava por mim Associação Novamente, que frase no braço e, na semana
a chorar e a gritar o dia apoia pessoas com trauma- passada, concretizei esse
todo, pelas dores e, sobre- tismos cranioencefálicos desejo!
tudo, pela revolta: “Porquê e outros danos cerebrais A lesão pode ficar para
eu?” Antes do acidente, adquiridos, e envolvi-me a vida, mas acredito que
estava à procura de casa em projetos virtuais de vou ser muito mais do que
para viver sozinho ou com partilha de histórias. sou hoje. Cada dia repre-
a namorada. De repen- Há dois anos, troquei a senta pequenas conquistas.
te, perdi a independência cadeira manual por uma Aos poucos, elas vão sendo
e a autonomia e estava ao elétrica e conquistei algu- muitas e podem trazer uma
colo da minha mãe. Ficar ma liberdade. Em outubro nova vitória. csoares@visao.pt
totalmente dependente dela do ano passado, comecei a
para assegurar necessida- andar. De acordo com os Depoimento recolhido
des fisiológicas ou mudar relatórios médicos e psico- por Clara Soares

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 35


NAPOLEÃO
BONAPARTE
O HOMEM
POR DETRÁS
DO MITO
Durante muito tempo, o fugaz imperador dos franceses,
que nos começos do século XIX fez tremer a Europa,
foi a figura histórica mais famosa, mais amada, mais
odiada e mais biografada. Em meados do século XX, Adolf
Hitler, de má memória, passar-lhe-ia à frente na lista
das maiores celebridades, mas a silhueta inconfundível
de Napoleão, com o chapéu bicorne, o cavalo branco
e a pose característica da mão enfiada numa abertura
do colete, continua a pertencer ao imaginário coletivo.
Na altura em que se estreia nos cinemas uma
superprodução dirigida por Ridley Scott sobre este
homem de destino singular e nome inesquecível, é hora
de desfazer dúvidas e ideias vagas. Vejamos quem foi,
de facto, o homem chamado Napoleão Bonaparte
— PO R LU ÍS ALM EI DA MAR T I NS

36 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


Pose típica de Napoleão
O imperador dos franceses,
com a mão direita a
descansar numa abertura
do colete, segundo a
interpretação do pintor Paul
Delaroche

GETTY IMAGES

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 37


N
Napoleão na Academia Militar
O jovem devorador de livros sonhava
já com um futuro glorioso...

Napoleão (em francês Napoléon) chamava-se na verdade


Napoleone e o seu apelido não era Bonaparte, mas sim di
Buonaparte. O imperador dos franceses durante toda a
vida falou mal francês, acusando uma pronúncia italianada
que faria rir os mais próximos, caso não o temessem. Dava,
além disso, erros de ortografia, que procurava disfarçar
por detrás de uma caligrafia indecifrável. Nada disto
admira, pois o nosso Napoleone di Buonaparte nasceu
na Córsega (onde se falavam o italiano toscano e o corso)
exatamente um ano depois de essa ilha do Mediterrâneo
ter sido adquirida pela França de Luís XV à República de
Génova. Até nisso foi bafejado pela sorte, pois se o ante-
rior estatuto da terra natal se tivesse mantido, hoje pouca
gente conheceria o seu nome.
O pequeno Napoleone veio ao mundo em Ajaccio, a
15 de agosto de 1769, dia em que se celebrava a Assunção
de Nossa Senhora e se assinalava o já referido primeiro
aniversário da Córsega francesa. A mãe estava na missa
quando sentiu as dores e foi a correr para casa. Reza a len-
da que o bebé nasceu no átrio, sobre um tapete ilustrado
com cenas d’A Ilíada. É uma versão carregada de sim- francesa e pertencente à fidalguia provinciana, pouco antes
bolismo, mas na verdade a mãe deu-o à luz num canapé. de completar 10 anos pôde frequentar a academia militar de
O recém-nascido era o segundo filho de Carlo Ma- Brienne, a leste de Paris.
ria di Buonaparte e da sua mulher Letizia, membros da
pequena nobreza local. No auge do poderio imperial O “PALHA NO NARIZ”
do filho-prodígio, Letizia seria conhecida por Madame Na escola de Brienne, o jovem corso interagia pouco com
Mère, e o bem-sucedido rebento nunca desprezaria os os condiscípulos. A sua pronúncia provocava o riso, e ele
seus conselhos. refugiava-se no isolamento e na leitura. A estratégia mili-
Mas Napoleone não era filho único – longe disso: tinha tar apaixonava-o, e, numa semana em que nevou muito na
cinco irmãos e três irmãs, sendo ele o segundo, a seguir região, sugeriu aos colegas a organização de batalhas cujos
ao primogénito José, que durante o Império seria suces- projéteis eram bolas de neve misturadas com cascalho. O
sivamente rei de Nápoles e de Espanha. Os outros manos pequeno corso transformou-se assim no herói do curso – o
foram Luciano (que muito ajudou o nosso protagonista a que não impedia os condiscípulos de continuarem a dar-lhe
dar o golpe de Estado do 18 do Brumário, que o catapul-
taria para o poder pessoal), Luís (futuro rei da Holanda),
Jerónimo (mais tarde rei da Vestefália), Elisa (que seria Assistiu com alguma
princesa de Lucca e Piombino), Paulina (futura princesa
Borghese, que haveria de ser esculpida por Canova, nua indiferença aos episódios
e reclinada, no papel de Venus Victrix) e Carolina (que se
casaria com Murat e, por essa via, seria rainha de Nápoles).
marcantes da Revolução, mas
Os pais, tinham sido apoiantes de Paolo Pasquale, o líder trocou o nome de Napoleone
independentista da ilha que se bateu contra os genoveses
e franceses. Depois de França adquirir Córsega, movidos di Buonaparte por este outro,
pelo calculismo, os Buonaparte tornaram-se colabora-
cionistas. Para o destino do pequeno Napoleone, esta
mais democrático e francês:
foi uma atitude providencial: sendo ele de nacionalidade Napoléon Bonaparte
38 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023
GETTY IMAGES
Imprensa “cor de rosa”
Quando, em 1798-1799, que faziam o bloqueio
Napoleão Bonaparte à esquadra francesa,
estava no Egito e alguém e tempos depois saía
o informou de que publicada preto no branco
Josefina o traía na sua nos jornais de Londres.
ausência, escreveu logo a As desavenças do casal
José pedindo-lhe que, na eram assim expostas à
qualidade de irmão mais curiosidade do mundo.
velho, tratasse de todos Mas nem isso afastou
os trâmites do divórcio. o arrebatado corso e a
Acontece que, por um bela crioula, e uma vez
daqueles incríveis acasos mais tudo se recomporia
de que a realidade é mais aquando do regresso do
pródiga do que a ficção, guerreiro, com uma cena
a carta do marido traído de faca e alguidar iniciada
foi intercetada por um na sala e terminada no
GETTY IMAGES

navio britânico, daqueles quarto.

a alcunha de Paille au Nez (Palha no Nariz), resultante da adotando a graça mais democrática e francesa de Napoléon
forma como ele pronunciava o próprio nome: qualquer coisa Bonaparte. Pertencia à classe então mais bem posicionada
como “Napoionê”. para subir na vida: se fosse da grande aristocracia, seria
Aos 16 anos era já oficial. Naquele tempo em que se vivia banido ou mesmo executado pela extrema-esquerda re-
mais depressa, isso era normal. Seguiu-se meia dúzia de volucionária; se fosse plebeu, não lhe teriam sido abertas
anos de vida monótona em quartéis de terras de província, quaisquer portas; ao ser o que era, tinha um futuro pro-
como Valence e Auxonne, com longas licenças na Córsega. missor, desde que soubesse agarrar as oportunidades.
Em 1789, em vésperas de o nosso jovem completar 20 Em 1793, com a patente de capitão de Artilharia, dis-
anos, rebentou a grande Revolução Francesa. Manda a ver- tinguiu-se na retomada de Toulon, o grande porto militar
dade que se diga que ele assistiu com certa indiferença a francês do Mediterrâneo, que tinha sido ocupado por in-
episódios marcantes, como a reunião dos Estados Gerais, gleses e espanhóis, no quadro das guerras de coligações de
o juramento dos deputados populares na Sala do Jogo da coroas e altares contra a “assustadora” República Francesa.
Pela, a tomada da Bastilha, a mudança forçada da família As operações do cerco foram dirigidas pelo general Co-
real de Versalhes para Paris ou a colocação do barrete frígio quille, mas foi o nosso Bonaparte quem elaborou o plano
na cabeça de Luís XVI. Mas este distanciamento da política que levou os franceses à vitória.
só ocorreu na França continental, já que, numa duas idas Pouco depois, num daqueles lances do gigantesco
à Córsega, gizou o projeto megalómano de conquista da PREC que foi a Revolução Francesa, Napoleão esteve à
Sardenha para a França, acabando por ser escorraçado pe- beira de ser guilhotinado. Aconteceu isso quando o líder
los velhos independentistas partidários de Paoli. A família jacobino Robespierre, que mandara cortar a cabeça a
Buonaparte viu-se perseguida e foi forçada a mudar-se para tanta gente, acabou também com a cabeça cortada. Da-
o continente, fixando-se em Marselha. va-se o caso de o nosso herói, na altura já aureolado de
democrata por ter expulsado os reacionários anglo-his-
SIMPLESMENTE BONAPARTE pânicos de Toulon, ser amigo do irmão de Robespierre.
De regresso a Paris, o nosso herói tudo fez por se adaptar Não conseguiu evitar algumas semanas na cadeia, mas
aos novos tempos, de matriz antiaristocrática. Deixou cair foi salvo graças à intervenção do conterrâneo Saliceti,
a partícula “di” e o “u” do nome Napoleone di Buonaparte, que estava nas boas graças dos que mandavam na altu-

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 39


ra – os chamados termidorianos, mais moderados do
que os jacobinos.
Já livre, Bonaparte recebeu ordem de marcha para um
quartel da Vendeia, onde grassava uma grande revolta
camponesa de sinal conservador. Nunca chegou, porém,
a apresentar-se na unidade, falta gravíssima em termos de
disciplina militar. Como resultado, foi afastado do Exército.
Remetido à vida civil, a sorte bafejou-o novamente
quando, em outubro de 1795, estalou uma revolta monár-
quica. Desta vez foi Paul Barras, que conhecera no cerco
de Toulon e que desde há pouco presidia ao Diretório – o
órgão que governava a França neste período de acalmia
pós-Convenção –, que se lembrou de reabilitar o oficial
expulso, reintegrando-o nas fileiras e convidando-o a
comandar as forças de repressão da revolta. Bonaparte
aceitou e saiu-se bem da incumbência, dando aos solda-
dos voz de fogo sobre os sublevados. Eis que então, de um
momento para o outro, passou de quase proscrito a herói
nacional. Muito reconhecido e aplaudido, frequentador de
círculos de oficiais mas também dos salões de damas da
sociedade, que iam ressurgindo no rescaldo dos dias mais
agitados da Revolução, veio a travar conhecimento com
a mulher que – não obstante o futuro divórcio – seria a
grande paixão da sua vida.

JOSEFINA, MEU AMOR


Então com 32 anos, mais sete do que o admirador, Ma-
rie-Josephe-Rose de Tascher de La Pagerie era uma bela
e luxuriosa crioula, natural de Martinica, viúva do conde
de Beauharnais, um aristocrata guilhotinado, e mãe dos
jovens Eugénio (futuro vice-rei de Itália por graça napoleó-
nica) e Hortense (que seria rainha da Holanda pelo mesmo
motivo). O nosso herói, magricelas, desajeitado, perdeu a
cabeça por esta mulher frívola e mundana e fez-lhe uma
corte cerrada.
Poucos meses depois de se terem conhecido, casa-
vam-se e foi então que, a pedido do noivo, Josephe-Rose
mudou de nome para Joséphine. Provavelmente, o ma-
rido tentava, com a nova identidade, apagar o passado
dissoluto da mulher... De qualquer modo, durante os 14
GETTY IMAGES

anos que passariam juntos, seriam mutuamente infiéis,


comportamento recorrente que originava cenas de choro,
arrependimento e perdão.
Antes, a crioula era amante de Paul Barras, presidente do
Diretório e protetor de Bonaparte. Padrinho do casamento,
Barras ofereceu ao noivo um presente que o encheu de das raríssimas repúblicas então existentes e favorecia uma
satisfação: o generalato e o comando do Exército de Itália. potência reacionária.
Até então, a França republicana limitara-se a defender
o território dos ataques das potências coligadas contra ela. NO PAÍS DOS FARAÓS
Agora passava-se à ofensiva – e seria o herói desta nossa Tão fortalecido saiu Bonaparte desta campanha que logo
história a protagonizar o passo em frente. As batalhas de começou a germinar no seu cérebro visionário uma ideia
campanha de Itália – Montenotte, Dego, Mondovi, Lodi, mirabolante. Atraído, desde as leituras de juventude, pelos
Bassano, Arcole – traduzir-se-iam em outras tantas vi- brilhos e as cores do Oriente, lembrou-se de propor ao Di-
tórias do tricolor francês contra inimigos piemonteses, retório a conquista do Egito. Defendia a ideia de que aquela
austríacos, genoveses e venezianos. As outras potências seria uma forma de atacar de flanco os interesses ingleses na
passaram a temer uma França exultante e autoconfiante. rota da Índia. O plano acabou por ser aceite. Munido de fun-
Foram os campos de batalha italianos que tornaram co- dos suficientes para preparar um Exército e uma esquadra,
nhecido o genertal Bonaparte. Bonaparte, que era visionário em várias vertentes, resolveu
Porém, as consequências imediatas da campanha de Itá- levar consigo um numeroso grupo de sábios, incumbidos de
lia, que terminou com a rendição da coligação antifrancesa estudar in loco os vestígios da antiga civilização dos faraós.
através do tratado de Campoformio, foram paradoxais. O país do Nilo pertencia, então, formalmente ao Império
Entre as disposições estipuladas figurava o fim da antiga Otomano, mas na realidade era independente, governado
República de Veneza, em proveito do império austríaco pelos mamelucos, uma casta militar que provinha de antigos
dos Habsburgos, ou seja: uma república extinguia outra escravos turcos.

40 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


Para tomar o poder,
preparou e levou à prática
um golpe de Estado
– o 18 de Brumário –, que
se tornaria o protótipo
de todas as posteriores
ações deste tipo
horrores sob o efeito de um clima adverso, das doenças,
da falta de comunicações com a pátria e dos ataques de
mamelucos, turcos e ingleses. Não restava aos homens
abandonados por Bonaparte senão renderem-se aos in-
gleses, e foi o que fizeram em 1801, comprometendo-se
os vencedores a transportá-los a casa em navios da Royal
Navy. Mas já então por essa altura acontecimentos muito
importantes tinham ocorrido na retaguarda: o protago-
nista desta verídica história era já o homem-forte, para
não dizer o ditador da França...
GETTY IMAGES

FINALMENTE, NO PODER
Para tomar o poder, o laureado general Bonaparte preparou
e levou à prática – logo três semanas depois da chegada do
Egito – um golpe de Estado, que se tornaria o protótipo de
Egito e Trafalgar Bonaparte junto da esfinge,
durante a campanha no país dos faraós (em cima),
todas as posteriores ações deste tipo. Ficou conhecido por
e um momento da batalha naval, cujo desfecho golpe do 18 de Brumário, por ter ocorrido nessa data do
barraria à França os caminhos do mar calendário republicano, correspondente a 8 de novembro de
1799. Aproveitando uma conjuntura favorável, uma vez que
o regime do Diretório estava corroído pela inflação, pelas
Para despistar a inteligência inglesa, Bonaparte fez constar, dificuldades militares em França, na Alemanha e de novo
à partida do porto de Toulon, que o objetivo da campanha na Vendeia, e ainda as constantes conspirações da direita
era a conquista de Gibraltar. No caminho, a expedição tomou monárquica e da esquerda jacobina, Bonaparte, depois de
Malta aos Cavaleiros Hospitalários. À chegada ao Egito, os ter feito pender para o seu lado a maioria dos diretores
franceses derrotaram os mamelucos na Batalha das Pirâ- (nomeadamente Barras e Sieyès), induziu os órgãos legisla-
mides. “Soldados, do alto destas pirâmides, 40 séculos vos tivos, o Conselho dos Anciãos e o Conselho dos Quinhentos
contemplam”, bradara Bonaparte na arenga às tropas. Mas (câmaras alta e baixa do Parlamento), a transferirem-se de
o almirante britânico Nelson infligiu aí uma pesada derrota Paris para Saint-Cloud, nos arredores, longe do campo de
à esquadra francesa na baía de Abukir. atuação dessa poderosa força política de França que é “a
A partir desse momento, a campanha do Egito estava per- rua”, ou seja o povo enfurecido. Resumindo: ali cercou as
dida para os franceses, que, sem navios, nem sequer podiam câmaras por forças militares que lhe eram favoráveis, fez
regressar a casa. Mas o nosso herói corso não quis dar logo debandar os deputados e forçou alguns dos que restavam,
o braço a torcer e lançou-se em campanhas militares, sem ameaçados pelas baionetas, a aprovarem a criação de um
verdadeiro objetivo, contra forças do Império Otomano, Consulado provisório de três membros, chefiado por ele,
na Palestina e na Síria – isto enquanto os sábios que levara Bonaparte (com o título de primeiro cônsul), e composto
consigo procediam a estudos de egiptologia no vale do Nilo. ainda pelos ex-diretores Sieyès e Ducos. Em 1802, o nosso
A recolha de dados preciosos sobre a antiga civilização dos herói proclamar-se-ia cônsul perpétuo e transformar-se-ia
faraós acabaria por ser o único saldo positivo desta campa- em ditador da França.
nha louca e aventureira. O regime que ele fundou nesses finais de 1799 – o Con-
Incapaz de encarar a derrota, o fogoso Bonaparte optou sulado, antecâmara do Império – era um poder forte que
por abandonar o Exército no Egito, sob o comando de Kléber, consagrava o triunfo da burguesia sob o signo da lei e da
e regressar a França, num navio que conseguiu atravessar ordem. O Consulado centralizou a administração, fundou
o Mediterrâneo escapando às patrulhas navais britânicas. o Banco de França, criou os liceus, rasgou estradas, cons-
Vinha furioso com os zunzuns sobre a infidelidade de Jo- truiu pontes e portos, reforçou o sistema fiscal, outorgou
sefina e com notícias sobre derrotas francesas na Itália e na o Código Civil e instituiu a Legião de Honra como única
Alemanha, ocorridas durante a sua ausência. Era demais para condecoração nacional. O modelo continua a ser uma
um ego tão dilatado – e ao desembarcar em Fréjus divul- referência para a direita musculada, rejeitando simulta-
gou relatórios militares que se referiam a vitórias no Egito. neamente os velhos privilégios aristocrático-feudais e as
O embusteiro foi recebido em Paris como um triunfador. investidas da esquerda.
Mas, se formos objetivos, não poderemos deixar de o con- Esta estabilidade política não trouxe, contudo, a paz.
siderar um biltre. O Exército que deixara no Egito padecia Desde 1792 que a França vivia em guerra, e em guerra

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 41


continuaria a viver. Mesmo assim, depois da vitória sobre
os austríacos em Marengo, no Norte de Itália, sobreveio
um breve período de paz entre os dois principais conten-
dores, que eram a França e a Inglaterra, oficializado pelo
Camaradas de Toulon
Tratado de Amiens. Mas foi sol de pouca dura, já que não
passaria de uma trégua de um ano. Foi durante o cerco de terá comentado. Napoleão
Um dia, em fevereiro de 1804, o guerrilheiro monár- Toulon que o então capitão apreciou o dito, fez dele seu
quico Cadoual foi detido e executado, sob a acusação de Bonaparte conheceu secretário e ficaram amigos.
estar a planear um atentado contra o primeiro cônsul. A Andoche Junot, um Depois do fracasso
polícia julgou saber que um príncipe de sangue real exi- dos seus futuros da invasão
lado aguardaria pelo sucesso desse atentado para entrar generais (e de Portugal,
em França e levar a cabo a restauração da dinastia dos embaixador e que Junot
comandante comandou,
Bourbons. Que príncipe seria esse? Bonaparte “decidiu”
de um Exército e de outros
(é o termo) que se tratava do duque de Enghien, que vivia
invasor de insucessos
no pequeno estado alemão de Baden. Logo foi organi- Portugal, como militares,
zado um comando francês que invadiu Baden, prendeu poderá ler-se aqui o duque
o duque e o levou para Paris, onde o fuzilou no fosso do nestas páginas). de Abrantes
castelo de Vincennes. A Europa ficou horrorizada e, dentro Conta-se que Junot, (título atribuído
de portas, mais ninguém se atreveu a levantar um dedo então sargento, estava a pelo imperador e não
contra Bonaparte. escrever um bilhete quando reconhecido em Portugal)
Por esse tempo, muitos bonapartistas começaram a a explosão de um projétil seria tomado pela demência
pensar que o Consulado tinha de dar garantias de conti- inglês cobriu o papel de e suicidar-se-ia, em 1813,
nuidade e que era arriscado fazer depender todo o regime terra. “Veio mesmo a calhar, deixando viúva a futura
de um só homem. O ideal, diziam, era que fosse fundada para fazer secar a tinta”, memorialista Laure Junot.
uma dinastia que garantisse a transmissão do poder sem
sobressaltos.
A ideia fez o seu caminho e triunfou. A 18 de maio de
1804, foi proclamado o império, na pessoa de Napoleão
Bonaparte e dos sucessores, na linha masculina e primo-
génita. A 2 de dezembro decorreu a pomposa coroação, na e, como potência mais rica das que se opunham à França,
catedral de Notre-Dame de Paris. Os trajos do antigo Palha financiava e liderava as coligações.
no Nariz e da voluptuosa Josefina inspiravam-se nos da Já em 1803 o primeiro cônsul da França estabelecera em
Roma Imperial – como, aliás, foi moda dominante nesta Bolonha, na costa do canal da Mancha, um acampamento
época, a cujas artes decorativas damos o nome de Estilo militar com 120 mil homens, a aguardarem a ordem para
Império. O Papa Pio VII foi chamado a estar presente na um desembarque na Grã-Bretanha. O ataque à grande ilha
cerimónia, mas não passou de um mero espectador, pois nunca chegaria a concretizar-se, e em 1805 o imperador
foi o corso que colocou a coroa na própria cabeça e na de Napoleão pôs de parte a ideia de atacar diretamente a Ingla-
Josefina. O filho de Carlo e de Letizia alcançava os pínca- terra e desviou para sueste, rumo a Viena, os soldados que
ros do seu percurso excecional. Deixava de ser Bonaparte tinham estado acampados em Bolonha. E estes, depois de
e passava a ser conhecido, tal como os monarcas, pelo a praça de Ulm se lhes ter rendido, seguiram em frente na
nome próprio – Napoleão. perseguição dos austríacos.
As coisas pareciam correr de feição para Napoleão e para
SOMBRAS DE TRAFALGAR E SOL DE AUSTERLITZ a França quando eis que, no dia seguinte à vitória de Ulm,
Rompida a paz de Amiens, a Inglaterra aliciou a Rússia e a 21 de outubro de 1805, ocorria junto da costa sudoeste da
a Áustria para uma nova coligação contra a França. Note- Espanha, perto de Cádis, um acontecimento destinado a
-se que a Inglaterra não era uma grande potência militar mudar o curso da guerra: a Armada britânica, comandada
terrestre, fazendo assentar o poderio bélico na poderosa por Nelson, esmagava uma força naval franco-espanhola (a
Marinha de Guerra. Mas, se não possuía muitos soldados, Espanha tornara-se entretanto aliada da França). Foi a famosa
era senhora de um vasto império colonial, tinha minas de Batalha de Trafalgar, em que Nelson perdeu a vida, mas que
carvão e de ferro, desenvolvera a Revolução Industrial representa a página mais gloriosa da História naval do seu
país. Daí em diante, Napoleão, quase privado de Marinha de
Guerra, ficou “prisioneiro” na Europa, incapaz de combater
os inimigos insulares noutros teatros de operações.
O Papa Pio VII foi chamado Apesar das más notícias, prosseguiu a campanha militar
a estar presente na sagração contra os austríacos. A 13 de novembro, entrou em Viena e, a
2 de dezembro, obteve a mais famosa – e fácil – das vitórias:
de Napoleão, na catedral de Austerlitz. Estava um dia chuvoso, mas na hora do triunfo as
nuvens afastaram-se e nasceu a lenda do “sol de Austerlitz”.
Notre-Dame de Paris, mas Este episódio de guerra foi encerrado com o tratado de paz
como mero espectador, uma de Presburgo, que reduziu a fanicos a coligação adversa.

vez que Napoleão se coroou HUMILHAÇÃO ALEMÃ


Napoleão estava imparável. Em 1806, ocupou Nápoles,
a si e a Josefina cujo trono deu ao irmão José. A seguir, erigiu a Holanda em

42 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


GETTY IMAGES
reino, que ofereceu ao irmão Luís, e retalhou a Alemanha, Sagração de Napoleão Talvez a mais conhecida das
criando a Confederação do Reno, formada por pequenos obras de David, este quadro, pintado em 1807, representa
estados-satélites da França; deu assim a machadada final no o momento em que Napoleão, já autocoroado imperador,
se prepara para coroar Josefina
antigo Sacro Império Romano-Germânico. No final do ano,
lançou-se na guerra contra a Prússia, que destruiu numa
campanha rápida: invadiu o Saxe e venceu a Batalha de Iéna.
Quando entrou em Berlim, já o tíbio Frederico Guilherme aliança matrimonial com uma antiga casa real, como era
III se refugiara na Prússia Oriental, junto do novo aliado, o a dos Habsburgos.
czar Alexandre I da Rússia. A loira Maria Luísa, então com 19 anos, era filha de
A derrocada da Prússia impressionou muito a Europa. O Francisco I da Áustria e de Maria Teresa de Nápoles e Sicí-
que era feito da poderosa máquina de guerra que Frederico lia, e foi irmã da rainha de Portugal e imperatriz do Brasil,
II, no século anterior, afinara até à perfeição? Os Exércitos Maria Leopoldina, mulher de D. Pedro IV de Portugal e I do
de Napoleão internaram-se na Prússia Oriental e, no inverno Brasil. Napoleão nunca teve um sentimento forte por ela,
de 1806-1807, travaram uma guerra confusa contra as tropas e esta indiferença devia ser recíproca. O casamento teria
russas e o que restava das prussianas. A Batalha de Eylau lugar em março desse ano de 1810. Napoleão e Maria Luísa
teve um desfecho indeciso, e só no verão, em Friedland, viriam a ter um filho, também batizado Napoleão, nascido
o imperador dos franceses bateria claramente o Exército em 1811 e intitulado pelo pai rei de Roma. A Aguiazinha
russo. Napoleão e Alexandre I assinara, num pavilhão er- (L’Aiglon) morreria com 21 anos.
guido sobre uma jangada ancorada a meio do rio Niemen,
o tratado de paz de Tilsit, no âmbito do qual o corso que O DESASTRE RUSSO
falava mal francês desenhou, com os despojos da Prússia, o A invasão napoleónica da Rússia foi precedida de um se-
reino da Vestefália, que deu ao irmão Jerónimo, e, com os gundo encontro (depois do de Tilsit) entre o imperador
territórios polacos antes submetidos ao domínio prussiano, francês e o czar russo, desta vez em Erfurt, na Alemanha
criou o Grão-Ducado de Varsóvia, cuja coroa ofereceu ao ocupada pela França. Abalado com os insucessos na Pe-
rei da Saxónia. . nínsula Ibérica (ver Portugal na Tempestade) e receoso de
Porém, a Inglaterra continuava a ser a sua bête noire. um ataque por parte da Áustria, que pretendia vingar-se
Meses antes de Tilsit, Napoleão instituiu um bloqueio aos da derrota de Austerlitz, Napoleão esforça-se por reforçar
navios britânicos, impedindo-os de entrar nos portos conti- a aliança com a Rússia, ligação, aliás, muito impopular
nentais europeus, tentando assim asfixiar economicamente neste último país.
o inimigo insular. O certo é que as esperadas hostilidades entre a França e
Em janeiro de 1810, Napoleão decidira divorciar-se de a Áustria rebentaram mesmo, e Napoleão viu-se a braços
Josefina e casar-se com Maria Luísa de Áustria. Não terá com uma campanha difícil, em que só conseguiu obter
sido uma decisão pessoal fácil, já que o nosso herói nunca uma vitória de certa importância na Batalha de Wagram,
terá deixado de amar a crioula, mas, por um lado, esta não em julho de 1809, depois de dois recontros de desfecho
lhe dava um herdeiro do trono e, por outro, seduzia-o a indeciso, em Aspern e Essling. Os austríacos, que tinham

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 43


Versão de Ridley Scott Algumas cenas da
superprodução cinematográfica agora estreada, em
que o papel de Napoleão é desempenhado por Joaquin
Phoenix e o de Josefina por Vanessa Kirby

retirado ensinamentos da derrota de Austerlitz, bateram- mês na cidade, governando o império a partir do Kremlin,
-se bem – e conta-se que, quando estava a negociar o com correios a cavalgarem pelas estepes – teve de se render
casamento com Maria Luísa, Napoleão respondeu a um à evidência de que, impossibilitado de concluir um tratado de
conselheiro que lhe fizera apreciações depreciativas sobre paz e sem forças para rumar com o Exército até à então capital,
a Áustria: “Vê-se que não esteve em Wagram...” A nova São Petersburgo, apenas lhe restava a alternativa da retirada.
derrota, saldada pelo Tratado de Schönbrunn, custou a Essa retirada foi um calvário. O “general inverno” flage-
Viena vários territórios e mais de três milhões de súbditos, lava as tropas em debandada, o mesmo fazendo grupos de
mas garantiria a aliança matrimonial. combatentes de Kutuzov e guerrilheiros cossacos. O resul-
Foi então que se precipitou o choque com a Rússia e tado foi uma enorme mortandade, cujo ponto culminante
se desencadeou a mais fatal das campanhas napoleónicas. se fixaria na passagem do rio Beresina.
Em abril de 1812, Alexandre I, arvorando-se em defensor No início de dezembro, constando-lhe que teria havido
dos nacionalismos e embebido na ideia recorrente de que em Paris uma tentativa de golpe, encabeçada pelo general
a Rússia tem a missão histórica de salvar a Europa, enviou Mallet (que, aliás, seria preso e executado), o imperador de-
a Napoleão um ultimato a exigir a retirada das tropas cidiu partir a grande velocidade para França. Sentou-se num
francesas da Prússia. O Exército francês, de 600 mil ho- trenó, envolvido no seu capote cinzento e escoltado por uma
mens (muitos deles compatriotas nossos, pertencentes à guarda fiel, rumo às bases mais seguras da Prússia Oriental
Legião Portuguesa), fez exatamente o oposto, pondo-se e alcançando depois Paris. Era a segunda vez – depois do
em marcha para leste, e, em junho, atravessou o Niemen Egito, em 1799 – que abandonava o campo de batalha, dei-
e entrou na Rússia – 129 anos antes, quase dia por dia, de xando as tropas para trás.
Hitler invadir também o vasto país. À campanha da Rússia apenas sobreviveram 30 mil dos 600
A marcha até Moscovo duraria mais de dois meses, mil homens inicialmente envolvidos. Napoleão não previra o
sempre com as tropas russas a recuarem à frente das na-
poleónicas. Só a 17 de agosto se travaria, em Smolensk, uma
batalha que Napoleão venceu. Foi então nomeado para o
comando do Exército russo o prudente general Kutuzov,
A retirada da Rússia foi um
que, pressionado pelo czar e pelos cortesãos, deu aos in- calvário, com o que restava do
vasores uma batalha que não pretendia: foi o sangrento
recontro de Borodino, que fez 57 mil mortos e em que a “Grande Exército” napoleónico
vitória é reclamada pelos dois lados. Enquanto os sobre-
viventes russos recuavam em boa ordem, os franceses,
(de que faziam parte muitos
sofrendo com as dificuldades de abastecimentos, devido à soldados portugueses) a
grande distância da retaguarda, entravam em Moscovo para
depararem, surpreendidos, com uma cidade em chamas. ser fustigado pelo “general
O incêndio correspondia a um sentimento de autodes-
truição como alternativa à entrega da Rússia ao invasor.
Inverno” e pelas investidas dos
Impressionado, Napoleão – que se manteve mais de um guerrilheiros cossacos
44 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023
O Napoleão
de Ridley Scott
Do ponto de vista ficcional, Protagonizada por Joaquin
convenhamos, Napoleão Phoenix e por Vanessa
é bastante apetecível. Até Kirby, no papel de Josefina,
Stanley Kubrick escreveu a versão de Ridley Scott
um argumento para um – o filme estreia-se nesta
filme que nunca chegou a quinta, 23, nas salas portu-
fazer – supostamente, Ste- guesas – retrata a ascensão
ven Spielberg andará às vol- e a queda de Bonaparte.
tas com ele. Existem, aliás, Começa com a Revolução
registos de declarações do Francesa e termina com a
autor de 2001, Odisseia no morte no exílio, na ilha de
Espaço, que nos ajudam a Santa Helena. O último fim
perceber o interesse pela de semana – à medida que
figura. “As batalhas napoleó- surgiam as primeiras críticas
nicas são lindas. São como ao filme, cinematográficas e
se fossem ballets, grandes históricas – foi pródigo em
e letais… Todas refletem um respostas ríspidas e napo-
brilho estético, que não exi- leónicas por parte de Ridley
ge uma mente militar para Scott: “Os franceses nem de
apreciá-las”, disse Kubrick. si próprios gostam.” – S.B.L.
D.R.

desastre, porque, habituado a batalhas rápidas e fulgurantes, sua carreira, vendo-se forçado a combater contra russos,
como Austerlitz e Wagram, não convivia bem com as táticas de prussianos, austríacos e ainda suecos, além de uma força
guerrilha. Mas, tal como já acontecera aquando da campanha da Saxónia. A retirada dos franceses, que contabilizaram
egípcia, o nosso herói fez correr versões “revistas” dos aconte- 65 mil mortos (na maioria adolescentes, pois eram agora
cimentos e foi recebido em Paris com subserviência e lisonja. estes a espinha dorsal de um Exército outrora composto
por veteranos), transformou-se numa debandada. No
VENTOS ADVERSOS, EM 1813 E 1814 princípio de novembro, Napoleão atravessou o Reno para
No tabuleiro da guerra, Napoleão estudava freneticamente oeste flagelado por forças da Baviera, antes sua aliada.
movimentos de peças. A Inglaterra continuaria a combatê- Atingida na asa por diversos grãos de chumbo, a Águia
-lo só na Península Ibérica ou desferiria um ataque noutro estava em queda. Mesmo assim, a coligação adversa pro-
ponto? E o que pensar da Áustria? E da Rússia? E da Prússia? pôs-lhe manter o trono imperial e as fronteiras francesas
Este último reino, e a Alemanha em geral, não tinham do Tratado de Luneville (de 1801), que incluíam a Bélgica,
esquecido a humilhação de 1806, e a intelectualidade ger- a Renânia e um pouco da Itália. Incapaz de ceder um só
mânica, apoiante de políticas reformadoras em curso, re- milímetro, ele recusou.
jubilou com o desastre napoleónico na Rússia, país que se Entretanto, o império que construíra desmoronava-se.
aproximara da Prússia. A aliança franco-prussiana estava por A Confederação do Reno desfez-se, a Holanda sublevou-
um fio, e não surpreendeu que, em março de 1813, Frederico -se, a Itália agitava-se, a Ilíria foi abandonada, Portugal e
Guilherme, coligado com o czar, tenha declarado guerra à a Espanha estavam perdidos, o Grão-Ducado de Varsóvia
França. Napoleão resolveu antecipar-se e, à frente de um era ocupado pelos russos, a Saxónia, a Baviera e a Ves-
Exército de 145 mil homens, invadiu a Prússia e bateu os tefália passaram para o outro lado... Nos finais de 1813,
russo-prussianos em Lützen e Bautzen. A seguir, poderia ter os inimigos estavam à porta e iria começar a Campanha
perseguido e esmagado os adversários, mas preferiu aceitar de França de 1814, durante a qual Napoleão obteve ainda
a mediação austríaca e assinar, em Pläswitz, um armistício algumas vitórias desesperadas, uma delas em Brienne, nas
válido por pouco mais de um mês. Mas, entretanto, a Áus- vizinhanças da escola militar onde estudara em jovem.
tria (então já governada pelo famoso chanceler Metternich) Os êxitos pontuais iam protelando a quase inevitável
rompia a neutralidade e juntava-se aos aliados russo-prus- derrota final. O seu destino estava traçado. Em março,
sianos. Num encontro que teve com Metternich, em Dresden, quando tentava cortar as ligações dos Exércitos inimi-
Napoleão disse ao chanceler austríaco algo de semelhante gos com a retaguarda no Reno, foi surpreendido com
ao que viria a ser proferido por Hitler, em abril de 1945: “Eu um ataque a Paris, que acabaria por se render após um
posso perder o meu trono, mas enterrarei o mundo inteiro desesperado esforço de defesa. A ocupação de Paris, por
nas suas ruínas!”. O encontro não deu em nada, e o prazo forças russas, seria, porém, relativamente benigna: o czar
do armistício esgotou-se. Ia começar a decisiva campanha Alexandre era um francófilo e gabava-se de falar francês
do verão e do outono de 1813. melhor do que Napoleão, o que certamente era verdade...
Depois de uma derradeira vitória sobre os austríacos em O imperador, que estava fora da cidade, arengou aos 70
Dresden, no fim de agosto, Napoleão travou, em meados de mil soldados com que ainda contava, exortando-os a irem
outubro, em Leipzig, a Batalha das Nações. Foi a maior da libertar Paris – e estes ainda se entusiasmaram com a

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 45


ideia de mais um grande voo da águia. O herói deste conto
verídico foi, no entanto, surpreendido com uma tomada
de posição dos seus marechais, que lhe fizeram ver que
à população da capital repugnava um ataque do próprio
imperador à cidade.

“IMPERADOR” DA ILHA DE ELBA


Impotente para induzir os principais companheiros de
armas a mudarem de ideias, o homem a quem fora posto
na pia batismal o nome de Napoleone di Buonaparte re-
signou-se e abdicou do trono imperial na pessoa do seu
filho, o pequeno rei de Roma, de 3 anos, que, entre 22 de
junho e 7 de julho de 1814, foi – apenas formalmente –
imperador dos franceses. E isto porque uma forte corrente,
liderada pelo intriguista Talleyrand (que foi sucessivamente
republicano, bonapartista e monárquico) formou por esses
dias um governo provisório e manobrou para a dinastia
dos Bourbons regressar ao poder. Essa corrente triunfou,
e o irmão mais velho de Luís XVI (morto na guilhotina em
1793) foi aclamado com o nome de Luís XVIII. A popula-
ção, cansada de mais de duas décadas de guerras, parece
ter maioritariamente aceitado a Restauração e o regresso
da velha ordem.
Napoleão, esse, foi constrangido a partir para o exílio da
ilha de Elba, então uma dependência do Grão-ducado da
Toscana. Antes de partir, Napoleão ainda tentou suicidar-se
com um preparado à base de ópio, mas a mistela não se
revelou suficientemente letal e ele sobreviveu.
O exílio em Elba nada teve de terrível. Por generosa in-
sistência do czar Alexandre, o ex-imperador dos franceses
governava a pequena ilha mediterrânica como soberano,
rodeado de uma corte de quatro centenas de pessoas.
Mas isto era pouco para um homem que, durante quase
duas décadas, mandara nos destinos da Europa, e come-
çou a germinar na sua cabeça a ideia de voltar a França. O
ambiente neste país não era dos melhores, visto que Luís
XVIII entregara o poder a uma fação de ultras, liderada pelo
irmão, o futuro Carlos X. Muitos aristocratas, regressados
de um exílio que remontava aos tempos da Revolução,
Maria Walevska
readquiriam força e a burguesia receava a devolução à Durante a campanha de fosse recriado o reino da
grande aristocracia e à Igreja dos bens estatizados na era 1806-1807, Napoleão Polónia, o que não se
revolucionária. A reação parecia triunfar. Por outro lado, conheceu uma verificou.
durante os trabalhos do Congresso de Viena, que estava polaca chamada Napoleão não
reunido na capital austríaca sob a presidência de Metternick Maria Walevska, tinha sorte com
para redesenhar os contornos da Europa pós-napoleóni- casada com a fidelidade
ca, levantavam-se já vozes a preconizar que o imperador um príncipe das mulheres,
derrubado fosse enviado para um local mais distante da feudal muito mas a polaca
Europa. E Napoleão, se bem o pensou, melhor o fez: ao fim mais idoso. parece ter
de 300 dias de permanência em Elba, iludiu a vigilância Envolveram- sido uma
naval britânica, embarcou com um grupo de fiéis no navio se e tiveram exceção, não
Inconstant e rumou ao Sul de França, desembarcando a 1 um filho, aliás o abandonando
de março de 1815, em Port Juan, na Côte d’Azur. o primeiro de cuja mesmo na desgraça.
A partir daí, começou a subir em direção a Paris, numa paternidade o imperador Quando, mais tarde, foi
marcha que duraria 20 dias, primeiro acompanhado por nunca duvidou. Quando deportado para a ilha
pouca gente, mas com a comitiva de populares espontâ- soube que a amante de Elba, a imperatriz
neos a engrossar a toda a hora. O jornal oficial Le Moniteur estava grávida, o corso Maria Luísa recusou-se a
ficou louco de alegria, pois acompanhá-lo, mas Maria
noticiava: “O ogre da Córsega acaba de desembarcar no
receava ser incapaz de Walevska foi visitá-lo, e só
golfo Juan.” Menos de três semanas depois escrevia: “Sua
procriar. Maria Walevska foi não ficou por receio do
Majestade Imperial entrou ontem no Palácio das Tulherias,
repudiada pelo marido, mas escândalo que tal atitude
rodeada dos fiéis súbditos”... alguns patriotas polacos pudesse gerar. Morreria
viram nesta ligação uma nova, com 28 anos, em
ÚLTIMO VOO E QUEDA
oportunidade para que Paris.
Napoleão regressava ao poder, num insólito movimen-
to que pôs de novo em debandada os Bourbons. Mas se

46 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


O Memorial de Santa Helena,
escrito por Las Cases, na ilha
do exílio do ex-imperador,
desfez a imagem ditatorial
de Napoleão e construiu
o mito do herdeiro
da Revolução Francesa
se seguiu a Waterloo e – tal como no Egito e na Rússia –
partiu à desfilada para Paris, onde o povo clamava para
que não abdicasse e a Câmara dos Deputados o incitava
a fazê-lo. A 22 de junho abdicou mesmo, consciente de
que as classes possidentes lhe haviam retirado o apoio e
de que os soldados de que dispunha não eram suficientes
para levar de vencida os inimigos no campo de batalha.
Mas qual será o destino deste homem singular? Dificil-
mente lhe dariam uma nova ilha de Elba para se entreter
a governar. Pensou ainda em embarcar clandestinamente
para os Estados Unidos da América ou para o México, mas
a ideia da fuga era-lhe repugnante. Optou por se entregar
aos ingleses, pensando que os arqui-inimigos lhe conce-
deriam asilo político. Após negociações, subiu a bordo do
navio Bellerophon, ancorado em Rochefort, e entregou-se
ao comandante Frederick Maitland.
No entanto, enganou-se quanto à atitude dos ingle-
GETTY IMAGES

ses. Londres decidira que Boney (como lhe chamavam


em Inglaterra) seria levado para a ilha de Santa Helena,
uma possessão britânica no meio do Atlântico Sul, onde
permaneceria prisioneiro à guarda do governador, o im-
Batalha de Waterloo O último capítulo da saga placável Hudson Lowe.
bélica napoleónica, visto pelo pintor francês de A estada do corso em Santa Helena – que duraria até
origem alemã Charles de Steuben à morte, em 5 de maio de 1821, com 51 anos, presumivel-
mente de cancro no estômago – tem sido tema de muitos
livros. As fontes dessas obras são os escritos de alguns dos
que o acompanharam no exílio, como Bertrand, Montho-
o Império viria a ter, durante os famosos Cem Dias, uma lon ou Gourgaud, mas sobretudo do famoso Memorial
segunda vida, Napoleão era agora um homem diferente – de Santa Helena, publicado pelo marquês de Las Cases,
menos autoritário, mais liberal, mais de esquerda. O que logo em 1823, e que constituiu um êxito retumbante.
não o impediu de se ver adulado por muitos vira-casacas. E No Memorial, praticamente ditado por Napoleão a Las
sentia sobre a cabeça a espada de Dâmocles das potências Cases, no decorrer de longas sessões de trabalho na re-
inimigas, que continuavam a deliberar no Congresso de Viena. lativamente modesta mas ampla Longwood House, onde
De novo ameaçado militarmente, agora na atual Bélgica, foi fixada a residência do prisioneiro, toda a carreira do
Napoleão ainda derrotou os prussianos em Ligny, a 16 de nosso self-made man é narrada numa ótica glorificadora.
junho desse fatídico ano de 1815, mas, dois dias depois, a 18, Napoleão é apresentado não como um tirano, que pôs
travou-se nos arredores de Bruxelas a Batalha de Waterloo, e dispôs na Europa, distribuindo majestáticas benesses
que selou em definitivo o destino de Napoleão. De longe a pela própria família, mas como um herdeiro da Revo-
mais famosa das protagonizadas pelo nosso homem, teve um lução Francesa.
desfecho adverso para ele e foi a única em que defrontou di- Em França, a restauração bourbónica duraria até 1830.
retamente os ingleses de Wellington, o general que expulsara Neste ano, uma revolução guindaria ao trono Luís Fili-
os franceses da Península Ibérica. Quando, no termo de um pe de Orleães. Regressavam liberdades escamoteadas, a
dia de combate, esperava a chegada dos reforços comandados bandeira voltava a ser a tricolor e Napoleão, duas décadas
por Grouchy, quem irrompeu pelo campo de batalha foram depois de morto, era reabilitado. Os seus restos mortais
os prussianos de Blücher, que fizeram pender a balança para seriam repatriados em 1840 e sepultados no imponente
o lado da coligação antinapoleónica. O desfecho seria a ocu- túmulo do Hotel des Invalides. O derrotado acabou por
pação de Paris por tropas prussianas (a primeira ocupação ser um vencedor, a sua figura é uma das mais famosas da
alemã da cidade, prelúdio da de 1940-1944) e a assinatura História e o seu nome é conhecido por toda a gente. “De
de um tratado, que reduzia a França às fronteiras de 1790. que cor é o cavalo branco de Napoleão?”, perguntava-se
Mais uma vez incapaz de conviver com a derrota, Napoleão ainda não há muitas décadas às crianças, numa daquelas
Bonaparte deixou para trás os soldados, logo na noite que lengalengas infantis que nunca esquecem... visao@visao.pt

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 47


PORTUGAL
NA
TEMPESTADE
Por três vezes, Napoleão
ordenou a invasão do nosso país
por tropas francesas
— PO R LU ÍS ALM EI DA MAR T I NS

E
m novembro de 1806, Napoleão ordenou
aos países da Europa Continental que
fechassem os portos aos navios ingleses.
Isto levantava um problema a Portugal,
pois desagradar à Inglaterra equivalia a
perder o contacto com a imprescindível
colónia do Brasil (bastaria a Royal Navy
fechar a barra do Tejo) e incorrer na ira da França levaria
à invasão por terra.
E levou mesmo. A invasão, comandada por Junot, con-
sumou-se no outono de 1807. Quando chegou a Lisboa, o
general francês soube que a Corte portuguesa embarcara
na véspera, 29 de novembro, para o Brasil. Do alto de San-
ta Catarina, ainda avistou a frota a afastar-se; a partir de oportunidade. A nova invasão principiou em 10 de março
então, passou a dizer-se de alguém nas mesmas condições de 1810, quando um Exército, comandado pelo marechal
que “ficou a ver navios”. Soult, entrou por Chaves. As populações da região de Boticas
Na primavera de 1808, após meses de governo de Junot enterraram as garrafas de vinho, para evitar que caíssem
em Lisboa, os ventos mudaram. À paz podre sucedeu-se nas mãos dos soldados invasores; quando, passado o peri-
o formigueiro da agitação na Península Ibérica. Napoleão, go, as desenterraram, gostaram do sabor do vinho e assim
que tinha aprisionado Carlos IV de Espanha, cometeu o nasceu na zona o costume de enterrar as garrafas – ou seja,
erro de elevar ao trono do país vizinho José Bonaparte, seu o “vinho dos mortos”.
irmão. O povo espanhol pegou então em armas e o próprio No final do mês, as tropas de Soult entraram no Porto e
Exército enfrentou e derrotou o ocupante, na Batalha de saquearam a cidade. O povo tentou passar em massa para
Bailén, a 19 de julho. O exemplo da contestação espanhola o lado de Gaia, mas a ponte, assente em barcas fundeadas
não tardaria a ser seguido do lado de cá da fronteira. no rio Douro, não aguentou o peso e quebrou-se; houve
Este ano de agitação ibérica deu tempo aos ingleses quatro mil mortos. A 12 de maio, os franceses seriam derro-
para organizarem o que ainda hoje consideram o seu tados pelas tropas anglo-lusas comandadas por Wellington
melhor Exército de sempre. A 1 de agosto de 1808, os e retiraram pela fronteira de Montalegre.
“casacos vermelhos” desembarcavam a sul da Figueira Uma terceira invasão, comandada pelo general Masséna,
da Foz. Daí, avançaram rumo a Lisboa, a eles se juntando entrou em julho de 1810 pela Beira Alta. Depois do combate
tropas portuguesas. do Côa, Masséna capturou Almeida e chegou em setembro
Uma força francesa, comandada por Delaborde, partiu ao Buçaco, onde se travou, a 27 de setembro, uma batalha de
então ao encontro dos anglo-lusos, e o primeiro recontro consideráveis dimensões. A vitória coube aos anglo-lusos,
ocorreu no dia 17, na Roliça, onde os aliados obtiveram mas não impediu o avanço dos franceses para Coimbra,
uma vitória difícil. Um segundo choque, de maiores di- que foi saqueada. A tropa napoleónica seria, porém, contida
mensões, deu-se quatro dias depois, no Vimeiro, com mais a sul, nas fortificações que defendiam a capital por-
novo triunfo anglo-luso. A tropa francesa deixava de ter tuguesa. Tratava-se das Linhas de Torres Vedras, uma série
condições para ocupar Portugal.
Junot viu-se, pois, forçado por Wellington a assinar
a Convenção de Sintra. Pelos termos estipulados, os in-
vasores tiveram de regressar a França, mas os ingleses O Maneta era um general
ofereceram-lhes transporte marítimo e deixaram-nos
levar de Portugal o produto dos saques. Mas eles próprios,
francês chamado Loison,
ingleses, ficaram por cá, aproveitando-se da ausência da que ficou na memória
Corte para instituírem uma espécie de protetorado.
Napoleão resolveu, então, investir numa segunda popular pela crueldade

48 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


JOSÉ CARLOS CARVALHO
Embarque da Corte portuguesa e as Linhas de Torres
As chamadas Invasões Francesas representaram, de
algum modo, o epílogo do velho Portugal absolutista

de fortins erguidos, sob a direção dos ingleses, no alto


dos montes da Estremadura. Masséna retrocedeu para
Santarém e ordenou, já em 1811, a retirada. Só durante
esta terceira invasão, morreram de fome e de doença 25
mil invasores e 50 mil portugueses.
Independentemente da atuação dos Exércitos anglo-
-lusos, o povo protagonizou, durante as invasões, múl-
PALÁCIO NACIONAL DE QUELUZ | © PSML

tiplas ações de resistência. Muitos infelizes iam... “parar


ao maneta” – literalmente, porque o Maneta era um
general francês chamado Loison, que ficou na memória
popular pela crueldade.
Mas nem todos os portugueses combateram, ou
hostilizaram sequer, o ocupante napoleónico. Milhares
lutaram mesmo sob a bandeira tricolor nos campos de
batalha da Europa, integrados na Legião Portuguesa ao
serviço de Napoleão. visao@visao.pt

EDIÇÃO MENSAL
GRATUITA,
EXCLUSIVA PARA
INVISUAIS

Porque
é bom ler
Com o apoio de:

Papel fornecido por:

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 49


Para mais informações: frc6@sapo.pt ou ligue 913 998 221
50 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023
O ASSALTO
DOS “NARCOS”
AO PORTO
DE SETÚBAL
Um comando narcotraficante português
armado sequestrou um vigilante
e invadiu o porto de Setúbal para
recuperar uma carga de cocaína
da América do Sul. A VISÃO conta
como tudo se passou. As autoridades
estão alerta após o episódio
de violência. Sem pistas, o processo
foi agora arquivado
— P O R J O Ã O A M A R A L S A N TO S

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 51


A
A experiência de 25 anos na segurança
ensinara Luís D. (nome fictício) a não
se deixar maçar pela marcha lenta
dos ponteiros do relógio. Colocado
naquele posto há menos de duas
semanas – em substituição de um
colega de baixa médica –, o vigilante
rapidamente se habituara ao silêncio
das noites, somente interrompido, em
intervalos regulares, pelo murmúrio
distante das ondas do mar. As madru-
gadas à guarda do principal terminal
de contentores do porto de Setúbal
decorriam solitárias e monótonas. Se
fosse no início da carreira, talvez Luís fes”, acrescentou, num tom que quase Eram quatro assaltantes no total,
D. pensasse em entreter-se à conversa lhe soou cordial. O segundo, todavia, com as identidades protegidas por
com as almas perdidas de marinheiros não parecia estar para brincadeiras. máscaras cirúrgicas nos rostos, gorros
e piratas. Hoje, o homem de 50 anos, “Abre a cancela! Como é que se abre a ou chapéus na cabeça e luvas pretas
profissional maduro e experiente, cancela?”, perguntou-lhe, num registo nas mãos. Eram todos portugueses.
preferia enxotar a imaginação para excessivamente agressivo. “Se ele não “Tenho a certeza!”, descreveria a única
longe, e manter-se desperto e alerta disser qual é o botão certo [para abrir testemunha ocular.
durante aquela maratona noturna de a cancela], dá-lhe um tiro!”, atirou Saíram todos dos veículos, incluin-
oito horas. ainda ao parceiro. Luís D., pálido de do Luís D., que, durante este intervalo,
No dia 3 de abril de 2022, porém, pânico, fez tudo o que lhe pediram, continuava na mira da arma de fogo.
o turno não seria igual aos outros. sem questionar. Pensava, por esta A partir desse momento, tudo se pas-
Eram 3h39 quando dois veículos – altura, que iria morrer ali. sou muito rápido. Um dos assaltantes
uma carrinha de mercadorias branca O vigilante seria depois obrigado usou uma escada metálica extensível
(com matrícula portuguesa) e um a entrar na carrinha e a acompanhar para chegar a um dos contentores,
carro preto, de alta cilindrada (com os homens armados. Com via aberta, que se encontrava no segundo piso, a
matrícula estrangeira) – guinaram em a coberto de uma noite sem luar, o três metros do solo. Com um alicate,
direção ao terminal, estacando fren- grupo avançou pelo interior do ter- cortou facilmente o selo e abriu as
te à cancela, mesmo junto ao posto minal de contentores, ziguezagueando duas portas pesadas. Os outros man-
do vigilante. Luís D. não teve tempo por centenas de metros, sem qual- tinham-se a vigiar ao redor.
para reagir. Dois homens mascarados, quer hesitação, parando perto de um As caixas que não interessavam fo-
vestidos de preto da cabeça aos pés, conjunto de contentores de 40 pés, ram imediatamente lançadas ao solo.
dirigiram-se rapidamente ao traba- que tinha sido descarregado e leva- Centenas de bananas frescas ficariam
lhador. O primeiro apontou-lhe uma do para aquele local apenas três dias por ali espalhadas pelo chão. Em pou-
pistola Glock ao nariz. “Está calado! antes. “Foram sempre em frente… Era cos minutos, o grupo encontrou o que
Dá cá o telemóvel e não faças mo- como se soubessem exatamente para procurava. E, numa dança coreografa-
vimentos bruscos... Não te fazemos onde teriam de ir”, diria Luís D., horas da, os quatro assaltantes logo come-
mal”, disse-lhe. “Só viemos buscar mais tarde, aos inspetores da Polícia çaram a transferir, do contentor para
uma encomenda para os nossos che- Judiciária (PJ). a carrinha branca, pequenos pacotes

52 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


narcotraficante, acionado por uma
organização criminosa, com vista a re-
Sem metadados
cuperar cocaína”. “Alguma coisa deve A PJ queria investigar telefonemas
ter corrido mal, na fase da chegada feitos pelos “narcos”, mas chumbo
[da droga] à Europa, e foi necessário da lei dos metadados empurrou
ir buscá-la daquela forma. É difícil investigação para beco sem saída
apurar as quantidades, mas estaremos
a falar, no mínimo, de 600 quilos [de
cocaína], que podiam valer até dez O vigilante Luís D. garantiu à Polícia
milhões de euros, mais coisa, menos Judiciária que, durante o assalto ao
porto de Setúbal, um dos quatro
coisa. Mas até podia ser mais...”, diz.
elementos do grupo criminoso
“Foi a primeira vez que algo do género
manteve comunicações por telemóvel.
aconteceu em Portugal”, destaca ainda Sem mais pistas, esta informação
a mesma fonte. levou as autoridades a “apostar tudo”
O assalto terminou com um peque- nesta linha de investigação, apurou a
no diálogo entre o homem da pistola VISÃO. A PJ solicitou às operadoras
e o vigilante. “Ficas aqui 30 minutos e de telecomunicações (Altice/MEO,
só depois é que voltas para a entrada, Vodafone e NOS) a “preservação
OK?”, ordenou-lhe o assaltante. “Não dos dados de tráfego”, registados
me levem o telemóvel”, implorou. nas antenas daquela área, por 90
“Deixamo-lo na portaria”, assegurou- dias, período que os investigadores
-lhe. Dez segundos depois, o comando calcularam ser suficiente para
narcotraficante desapareceu, deixando aceder às “chamadas e mensagens
para trás uma nuvem de poeira no recebidas e efetuadas (…) no período
ar. O vigilante ficou sozinho no lo- compreendido entre as 3h30 e as
cal do assalto, em estado de choque. 4h20” daquele dia.
O silêncio regressaria, gradualmente, A estratégia, porém, viria a ser
ao porto de Setúbal, à medida que bloqueada. Três semanas depois
o som dos motores se ia afastando. dos acontecimentos, o Tribunal
O sequestro tinha chegado ao fim. Constitucional (TC) chumbou a lei dos
metadados, que previa, precisamente,
Luís D. podia respirar de alívio.
a possibilidade de estas informações
– que incluem a identificação do
O CRIME: VELOZ E PERFEITO
equipamento utilizado, assim como da
O assalto não demorou mais de sua localização, ou o conhecimento
25 minutos. Eram 4h03 quando os da origem, do destino e da duração
de formato retangular. O esforço em dois veículos se evaporaram, a alta do telefonema – serem conservadas
contrarrelógio provocou um pequeno velocidade, pela Avenida Baía de Se- até um ano, com vista à eventual
desentendimento, na sequência dos túbal, em direção à saída da cidade. utilização na investigação criminal. Os
lamentos de um dos criminosos, já A boa qualidade das imagens de vi- juízes do Palácio Ratton concluíram
cansado daquela tarefa. “A ganza dá deovigilância permitiu perceber como que guardar informações de todas
cabo de ti!”, respondeu-lhe um dos tudo se passou... as pessoas restringia “de modo
colegas, irritado. “Tens de ajudar!”, Mesmo sob ameaça, Luís D. não desproporcionado” os “direitos à
disse o homem da pistola a Luís D., esperou muito, dirigindo-se para reserva da intimidade da vida privada
colocando um ponto final na alterca- e à autodeterminação informativa”,
ção. O vigilante, até então mero espec- podendo “atingir sujeitos relativamente
tador, seria coagido a engrossar a fila e aos quais não há qualquer suspeita
a participar no trabalho de equipa. “Era de atividade criminosa”. Ora, este
um material duro, embrulhado numa acórdão, datado de 19 de abril, deitava
película verde ou azul, como aparece por terra a única pista do caso.
nos filmes”, diria a vítima à polícia. A notícia seria recebida, nos gabinetes
Luís D. relatou ainda que os assal-
tantes “retiraram [do contentor] uns
“Viemos buscar da Rua Gomes Freire, com “surpresa” e
“irritação”, sabe a VISÃO.
30 pacotes daqueles, mais ou menos” uma encomenda A Assembleia da República ainda
aprovou novo projeto-lei sobre
e garantiu que, quando terminaram, a
zona de cargas da carrinha branca – para os nossos esta matéria (com os votos a favor
de PS, PSD e Chega e contra de
com capacidade para 1 500 quilos de
carga útil (de acordo com as referências
chefes”, disse todos os outros partidos), mas a

da própria marca) – “estava comple- o assaltante decisão continua nas mãos do TC,
que, entretanto, voltou a receber
tamente cheia”.
A investigação não tem dúvidas. ao vigilante, o documento de Marcelo Rebelo
de Sousa, decisão justificada pelo
À VISÃO, fonte próxima do pro-
cesso confirma que “este episódio
enquanto lhe Presidente por “razões de certeza
jurídica”.
foi protagonizado por um comando apontava a pistola
23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 53
a portaria o mais rápido que pôde.
Ainda com as mãos a tremer, procu-
rou o seu telemóvel, que encontraria
descartado no caixote do lixo. Tinham
passado apenas sete minutos desde
que o assalto terminara, quando o
vigilante conseguiu contactar o seu
supervisor, relatando-lhe tudo o
que acontecera. A Polícia Marítima
foi contactada pelo responsável pela
segurança do porto de Setúbal, des-
locando-se prontamente ao local. Aos
primeiros raios de sol, dois inspetores
da PJ entraram em cena para assumir

GETTY IMAGES
a investigação.
As autoridades não demoraram
a estabelecer as ligações com o nar-
cotráfico internacional. O contentor
O (mau) exemplo da Bélgica violado tinha sido transportado num
navio denominado Cala – que, se-
No mês passado, um comando de narcotraficantes holandês – na posse de três manalmente, faz a ligação comercial
armas de guerra prontas a disparar – foi travado pela polícia belga, quando marítima entre a Colômbia e a Costa
já circulava no centro de Antuérpia, numa operação com vista a recuperar Rica e o porto de Setúbal –, o qual
cocaína que tinha sido apreendida na véspera partira do porto de Moín, na Costa
Rica, com uma carga de bananas que
No dia 16 de outubro, a polícia armazém localizado na zona de tinha Espanha como destino final.
belga encontrou 7,7 toneladas de Ijzerlaan, no centro da cidade – onde O histórico não deixava margem para
cocaína no interior de um contentor a cocaína estava, de facto, guardada dúvidas e o caso seria entregue nas
carregado de farinha de soja, que –, quando foi travada por uma equipa
mãos da Unidade Nacional de Com-
chegara, nessa mesma manhã, de intervenção rápida da polícia
bate ao Tráfico de Estupefacientes
ao porto de Antuérpia, vindo da de Antuérpia. Os sete homens que
Serra Leoa. O segundo maior porto seguiam no veículo – com idades entre
(UNCTE) da Polícia Judiciária, nas
da Europa (apenas atrás do de 22 e 35 anos, todos de nacionalidade
horas que se seguiram.
Roterdão, nos Países Baixos) é, há holandesa – não tiveram tempo de No processo, que a VISÃO consul-
muito, visto como a principal porta reagir. O comando seria detido sem tou, a investigação concluiu que os
de entrada de cocaína na Europa oferecer resistência. Na sua posse, quatro indivíduos tinham “informação
– foram ali apreendidas, em 2022, tinham três armas de guerra prontas a prévia” da localização do contentor no
110 toneladas do estupefaciente, o disparar. interior do terminal e que atuaram
que corresponde a 40% de toda a Os momentos da detenção seriam com “a intenção de retirar do aludido
cocaína localizada, pelas autoridades, filmados por vídeo amador e [contentor] produto estupefaciente
no continente. Analisando as divulgados pela comunicação social. [cocaína] proveniente da América do
estimativas locais – que indicam que “As intenções dos suspeitos e Sul”. A PJ não tem dúvidas de que “a
os narcotraficantes conseguem fazer para onde se dirigiam terão de ser organização criminosa não logrou
passar 90% da cocaína que chega determinadas pela investigação. Temos retirar o produto estupefaciente como
a Antuérpia –, percebe-se o porquê de determinar se existe uma ligação previamente planeado, o que motivou
de esta operação não ter alterado, entre estas detenções e a grande o assalto subsequente às instalações”
de forma assinalável, o quotidiano do quantidade de droga intercetada, do porto de Setúbal. À VISÃO, fon-
porto. ontem, no porto de Antuérpia”, te próxima do caso recorda que “já
Os “donos da droga” terão recebido declarou, aos média, Kato Belmans, tinham sido registados assaltos na-
informações sobre o local onde porta-voz do Ministério Público quele local”, mas refere que “nunca
a cocaína apreendida estava local. Os jornais belgas, por sua vez,
tinha acontecido um assalto com
armazenada e, pouco mais de 24 seriam menos prudentes nas palavras.
estas características e esta violência”.
horas depois, um comando de Apoiados por fontes da investigação,
narcotraficantes, fortemente armado, apresentaram o caso como “a prova”
“Tínhamos detetado outras situações,
seria acionado por uma organização da “crescente e contínua pressão dos pessoas que saltaram ou destruíram a
criminosa para recuperar a totalidade narcotraficantes” sobre a cidade e o cerca exterior, mas nunca assim, com
ou, pelo menos, parte dessa carga – porto de Antuérpia – preocupação recurso a arma de fogo e este nível de
que poderia render algo como €200 que tem dominado os responsáveis profissionalismo”, afirma.
milhões, segundo as autoridades. daquele país. A União Europeia Os assaltantes deixaram pistas para
Graças a uma dica, a polícia pôde declarou formalmente guerra ao trás, mas todas se revelariam inconse-
reagir, colocando-se no terreno para fenómeno. Hoje, o caso do porto quentes. A escada metálica extensível
frustrar estas intenções. A carrinha de Setúbal, relatado nestas páginas, ficou esquecida junto aos contentores,
preta dos narcotraficantes já seguia, justifica a pergunta: o (mau) exemplo o que permitiu aos especialistas da
a alta velocidade, em direção a um da Bélgica já chegou a Portugal? Polícia Científica da PJ descobrirem
duas impressões digitais diferentes – e

54 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


derrota da investigação –, os carros
e as respetivas matrículas passaram
a ser as únicas pistas disponíveis.
O SUSPEITO ACIDENTAL DE GAIA
A Polícia Judiciária tinha na sua posse
imagens da carrinha branca em dois
locais distintos – na loja de bricolage
e no porto de Setúbal. A matrícula
estava registada em nome de Carlos
M. (nome fictício), de 60 anos, resi-
dente em Sandim, no município de
Vila Nova de Gaia. A PJ confirmou
rapidamente que aquele homem era,
de facto, proprietário de um veículo
da mesma marca, com o mesmo mo-
delo e a mesma cor. Não havia quei-
xa de a viatura lhe ter sido roubada.
A PJ colocou-se, então, no terreno,
com inspetores a quem foi pedido
que fizessem vigilância “discreta” e
“apertada” ao agora principal suspeito.
Carlos M. seria, dias depois, chamado
para interrogatório pela polícia.
Contudo, as informações recolhi-
das voltaram a fintar a investigação.
A PJ esclareceu, facilmente, que Carlos
M. nada tinha que ver com o caso. Mas
como se viu envolvido um cidadão
comum, sem cadastro criminal, num
processo de tráfico internacional de
droga? A explicação é mais trivial do
que interessante: Carlos M. tinha co-
locado, há três meses, a sua carrinha à
venda, publicitando o negócio em vá-
que não correspondiam ao vigilante –, rios sites de comércio automóvel, com
mas que não serviram para identificar fotografias em que se via a matrícula
nenhum dos suspeitos, após consul- do veículo. Os narcotraficantes apro-
tadas as bases de dados nacionais e veitaram a oportunidade para duplicar
internacionais. Foram ainda encon- a placa, e confundir as autoridades.
tradas duas pegadas, impressas nas A carrinha de Carlos M. encontrava-
caixas de cartão das bananas, mas, -se, na verdade, a aguardar por repa-
também aqui, a pista não levou a lado ração, parada há quase 15 dias, numa
nenhum. oficina no Norte do País. Por sua vez,
A esperança ainda renasceu, ho- a matrícula da viatura ligeira também
ras depois do assalto, quando a PJ envolvida no assalto ao porto de Se-
confirmou que aquela escada tinha túbal tinha sido roubada em Málaga,
sido comprada, dois dias antes, numa Espanha, algumas semanas antes, e
conhecida loja de bricolage, não pertencia a um carro de outra marca
muito distante do porto de Setúbal. e de outro modelo, cujo proprietário
Consultadas as imagens de video-
vigilância da superfície comercial,
“[Um assalto tinha morada nos Países Baixos.
Sem alterações no espaço de ano
foi possível observar um homem, assim] nunca e meio, já em setembro deste ano, a
entre os 30 e os 40 anos, robusto,
de máscara cirúrgica no rosto, a tinha acontecido Polícia Judiciária respondeu ao De-
partamento de Investigação e Ação
comprar aquele objeto com a ajuda
de um funcionário da loja, e depois
(...) com esta Penal (DIAP) de Setúbal, sugerindo
“o arquivamento do caso, salvo al-
ao volante da carrinha branca que violência (...) e este guma alteração ou novidade”. Fonte
viria a estar envolvida no assalto.
O suspeito, no entanto, nunca seria profissionalismo”, da investigação lamenta, à VISÃO,
este desfecho: “As coisas poderiam
identificado. Sem acesso aos meta-
dados das telecomunicações daquela
diz fonte da ter sido diferentes.” O crime, para já,
saiu impune. Será este o ponto final
noite (ver caixa na pág. 53) – outra investigação do caso? jsantos@visao.pt

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 55


FRANCISCO SEIXAS DA COSTA
Tem 75 anos e quatro décadas de vida
diplomática. Representou Portugal
em Oslo, Luanda, Londres, na ONU,
na OSCE, na UNESCO, em Brasília e
em Paris, e foi secretário de Estado
dos Assuntos Europeus, no governo
de Guterres, quando negociou vários
tratados. Contador exímio de histórias,
que incluem muitas das figuras que
marcaram os últimos anos na Europa e
no mundo, publica neste mês um livro
de memórias. Mote para uma conversa
solta sobre o poder, os radicalismos
e os perigos destes dias

Há um esgotamento
de soluções por
parte dos partidos
moderados.
E há um cansaço
das caras
— P O R M A FA L D A A N J O S E R U I TAVA R E S G U E D E S T E X T O
LU Í S BARR A FOTOS

56 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 57
A
Em casa “Já doei milhares de
livros à Biblioteca Municipal
de Vila Real, mas continuo a
comprar mais, de uma forma
obsessiva”

a atualidade. Mas leio as coisas mais


diversas...
Por obrigação ou por curiosidade?
Por curiosidade. Ainda no outro dia
fui a um alfarrabista e vim carregado
de livros. A minha mulher fica doida,
porque, no quarto, já tenho mais de
100 livros uns em cima dos outros.
Já doei milhares de livros à Biblioteca
Municipal de Vila Real, mas continuo
a comprar de uma forma obsessiva
e, como sempre, um bocadinho mais
do que aquilo que consigo ler. Mas, lá
está, é tudo fruto da tal curiosidade
que me move.
Além de ler, também continua
sempre a escrever?
Todos os dias! O meu blogue não para
desde o dia 2 de fevereiro de 2009.
Não tenho qualquer pretensão literá-
Antes que se esqueça, Francisco ria. Seria completamente incapaz de
Seixas da Costa pôs em livro as suas escrever um romance, mas escre-
memórias recolhidas ao longo de ver uma crónica leve, uma nota de Guerra Colonial, não acreditávamos
quase 40 anos de vida diplomática. quotidiano é diferente. E é isso que é no regime. O 25 de Abril foi assim
A sua memória continua, no en- um bocadinho este livro: uma espécie uma espécie de libertação, no sentido
tanto, prodigiosa. Nesta conversa de arquivo do quotidiano. Chego a de dizer: “Olha, agora, tudo passa a
distendida com a VISÃO, atraves- casa e vejo que morreu fulano; então, ser possível.” Mas a nossa perspetiva
sou tempos e geografias diferentes, lembro-me de uma história que se das coisas vai evoluindo. Nessa época,
partilhando histórias, curiosidades e cruza com a dele e parto para a escrita. por exemplo, tinha algumas dúvidas
episódios, juntando a sua perspetiva E faço tudo de cabeça, com aquilo de sobre a democracia burguesa, coisa
sobre a evolução da política nacio- que me recordo. Não tenho aponta- com que hoje estou 1000% reconcili-
nal e internacional. Sobre os dias de mentos nem arquivos. Só uso a inter- ado, e farei tudo para que ela persista
hoje, porém, o tom foi pessimista. “Se net para confirmar datas. e se mantenha [risos]. Recordo tam-
calhar é da idade, mas acho que esta Não tem arquivos nenhuns? bém que, nos primeiros dias, estáva-
deriva autoritária e securitária é algo Nada. Só umas fotografias e pou- mos com imensas dúvidas, olhando
inelutável”, sublinha. co mais. Geralmente, as pessoas que para as caras da Junta de Salvação
Desde que deixou de ser embai- passam pelas embaixadas guardam Nacional. Portanto, não sou capaz
xador no ativo, tem mantido uma textos que produziram, os telegramas de dizer que o 25 de Abril foi o dia
intensa atividade como comenta- que enviaram. Eu não tenho absoluta- mais feliz da minha vida. Foi um dia
dor. O que o move? mente nada. profundamente agradável, mas nunca
É uma boa pergunta, até porque já Vamos fazer agora um salto no tive a noção de, naquele momento,
tive várias oportunidades para parar tempo. Recuar 50 anos, ao tempo estar a viver uma data absolutamente
completamente e não fazer rigorosa- em que era oficial miliciano fundacional. Só mais tarde é que per-
mente mais nada. Mas, conhecendo- no dia 25 de abril de 1974. Que cebemos a rutura que representou.
-me, a sensação que tenho é que parar memórias guarda desse dia e Mas foram momentos marcantes…
é morrer. E eu continuo a ter sempre dessa época? Como volto a dizer, a sensação que
uma grande curiosidade sobre tudo, Eu não tinha atividade política muito tenho desses anos 1972-73 era a de um
estou sempre à procura de novas ativa antes do 25 de Abril. A sensa- mal-estar na sociedade portuguesa, na
coisas. Não procuro visibilidade, mas ção que guardo era a do profundo vida quotidiana, e o 25 de Abril foi a
alimento, sim, a capacidade de me mal-estar em que se vivia. Mesmo maneira de contribuirmos para tentar
continuar a surpreender, todos os nós, na tropa, não acreditávamos na mudar qualquer coisa, mesmo sem
dias. E, para poder comentar, tento percebermos bem até onde é que po-
manter-me constantemente informa-
do. Nesta área do internacional, desde
Custou-me muito a díamos ir. Alguns pensaram em ir bas-
tante longe, outros ficaram mais perto.
que tenhamos um quadro de refe- Cimeira das Lajes, Eu, se calhar, durante algum tempo,
rência básico, a atualização torna-se pensei em ir mais longe e, depois, re-
relativamente mais fácil. em 2003. Foi o conciliei-me com a necessidade de as
Portanto, devora jornais pela momento em que me coisas terem um certo limite ao nível
manhã? Em papel ou em digital? da própria rutura no País.
Continuo a ler alguns jornais em pa- senti mais distante É nessa época que entra na
pel, mas rendi-me ao digital. Eu sou
um dependente quase obsessivo do
de uma posição do carreira diplomática?
Foi um puro acaso. Ia a descer a Ave-
meu iPad, onde vou acompanhando governo português nida Infante Santo e encontrei um tipo

58 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


Há um
desrespeito
quase crónico
de Israel pelas
resoluções das
Nações Unidas. E
o secretário-geral
não pode deixar
de o lembrar,
mesmo que isso
vá desagradar ao
mundo ocidental
que era diplomata e que me desafiou dade de fazer uma carreira decente. O para os estudantes da comunidade
a fazer o concurso para o Ministério facto de sempre ter trabalhado bas- portuguesa, a criar um leitorado em
dos Negócios Estrangeiros (MNE). Eu tante e ser reconhecido nesse trabalho Paris e, de um dia para o outro, ter de
já escrevia sobre política internacional, foi o meu caminho para a salvação, dizer que vamos tirar professores a 2
para A Voz de Trás-os-Montes, uns para utilizar uma expressão religiosa. 700 alunos, vamos reduzir consula-
artigos longos, hoje impublicáveis. As- Isso e o facto de ter sido sempre leal dos, não vamos nomear os leitores que
sinava a revista francesa L’Express, in- ao longo dos tempos – e o MNE teve queríamos… e ter de dizer isto – não
teressava-me pelos assuntos do mun- vários tempos, embora nunca de ru- diria com a mesma cara, mas – com a
do, mas não tinha qualquer interesse tura uns com os outros. Se há algo que mesma lealdade foi muito difícil. Foi
em seguir a carreira diplomática. Fiz o caracteriza o MNE é a sua continuida- profundamente desgastante. Vim-me
concurso como uma espécie de teste a de. Eu tive 21 ministros dos Negócios embora de Paris, aos meus 65 anos,
mim mesmo, para saber se conseguia Estrangeiros, mas nunca senti mudan- com um sentimento de alívio, porque
ser aprovado, e depois logo se via. ças muito radicais entre eles. aquilo estava a ser extremamente
O que fazia nessa época? Quais foram os momentos penoso.
Estava a cumprir o serviço militar, co- que mais o marcaram como O momento mais difícil para
locado na Junta de Salvação Nacional, diplomata? um diplomata é quando tem de
onde era adjunto do general Galvão O período mais dramático e desafiante defender coisas com que não
de Melo, que era o membro mais à foi quando era embaixador em Angola concorda?
direita daquele órgão. Fazia a ligação durante a guerra civil, numa época em Sim, e devo confessar que me custou
com a Comissão de Extinção da PIDE. que as relações eram muito más entre muito a Cimeira das Lajes, em 2003.
E foi nessa altura que fiz e passei no os dois países, por causa das movi- Foi o momento em que me senti mais
concurso para diplomata. Na épo- mentações da UNITA em Lisboa e de distante de uma posição do gover-
ca, era funcionário da Caixa Geral de uma falta de perceção das autoridades no português, apesar de não ter de
Depósitos, desde 1971, e o meu destino angolanas sobre a circunstância de nós fazer proclamações públicas sobre
normal, após a tropa, seria regressar não podermos limitar a atividade dos o assunto. As Lajes, em 2003, foi o
para a Caixa, que até pagava melhor portugueses que eram a favor da UNI- momento em que me senti comple-
do que o MNE. Mas já não voltei… TA. Representar um País num quadro tamente dissociado daquilo que era a
Foi um encantamento de tensão permanente 24 sobre 24 matriz normal da posição portuguesa,
instantâneo? horas era complicado. que é atlantista, que é pró-NATO, que
Nos primeiros dois a três anos, tive a Foi mesmo o pior? é uma relação com os EUA, mas que,
sensação de que não pertencia bem Pensando melhor, talvez o tempo mais naquele momento, ultrapassou a linha
àquilo. Parecia ser um corpo estra- complicado da minha carreira tenham vermelha daquilo que era a soberania
nho, numa casa muito conservadora. sido os últimos dois anos, em Paris, nacional e, mais do que isso, a linha
Felizmente, o 25 de Abril trouxe a durante o resgate da Troika. Já tinha vermelha daquilo que era algum res-
abertura a uma nova geração social. O passado por situações semelhan- peito pela verdade.
concurso de 1975 é o primeiro em que tes, como intervenções do FMI, mas E qual o episódio mais divertido
entram mulheres. E nós sentimos essa nunca senti, na minha vida, um tempo que guarda? Há um que conta
mudança. tão dramático. Representar Portugal no livro, sobre um discurso que
Acabou por se aculturar… num quadro em que, um ano antes, teve de prolongar durante longo
Sim, e acabei por conseguir superar as estávamos a aumentar os consulados, tempo para evitar um incidente
hesitações que tive sobre a possibili- a aumentar o número de professores diplomático…

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 59


Isso foi durante uma cerimónia no
Real Gabinete de Leitura, no Rio de
O regresso de Trump É preciso perceber a história das Na-
ções Unidas. O secretário-geral só tem
Janeiro, para condecorar a professora ao poder será um força quando o Conselho de Seguran-
Cleonice Berardinelli. O problema foi ça lhe dá essa força, quando os cinco
que as condecorações tinham ficado abalo sísmico na membros permanentes lhe dão essa
esquecidas no hotel. Portanto, tive de geopolítica mundial. força. Ora, quando um desses mem-
discursar o tempo necessário para bros está envolvido num conflito, o
que alguém as pudesse ir buscar. Mas Não sei como é que secretário-geral fica de mãos comple-
isso é uma coisa que nós aprendemos
a fazer. Tenho outro episódio que,
o mundo se vai tamente atadas. É preciso perceber-
mos uma coisa: as Nações Unidas são
inclusivamente, pode ser visto como reconciliar com essa a tutela dos palestinianos; portanto, o
uma grande irresponsabilidade, que
foi quando resolvi juntar num mesmo
América Guterres está ali a representar a parte
frágil naquele processo. O seu direi-
jantar, em Oslo, os representantes to a serem protegidos é tão grande
dos serviços de inteligência dos EUA, secundários, cruzamo-nos com muitas como o direito dos israelitas a serem
de França e da União Soviética. Eu pessoas, mas não estamos na linha da protegidos. Pode dizer-me que houve
tinha-os conhecido isoladamente e frente. Tenho algumas boas memórias. um ataque que veio dos palestinianos
convidei os três para jantar, sem lhes O Chirac era uma figura interessantís- contra os israelitas. É verdade, mas
dizer quem iria estar lá. Quando eles sima para observar, assim como o Lula. há milhões de pessoas que não têm
começam a entrar e a verem-se uns Cruzei-me com o Arafat e o Shimon rigorosamente nada que ver com isto e
aos outros… ficaram sem saber se eu Peres, mas, digamos, numa perspetiva que estão a ser vítimas de uma injusti-
estava a gozar com eles. de quem está no segundo balcão; não ça histórica, ao longo de décadas, e de
A diplomacia exige mesmo sou o interlocutor principal. Já não co- quem as Nações Unidas são a tutela.
muita… diplomacia? nheci o Mitterrand, mas ainda estive em Portanto, enquanto diplomata,
As pessoas, às vezes, têm uma ideia da reuniões com o Helmut Kohl, com o Bill como viu as declarações de Guter-
vida diplomática que não corresponde Clinton, com o Tony Blair. São figuras res nas Nações Unidas?
à realidade. Veja-se, por exemplo, os interessantes, e pressente-se que alguns Vi-as como um ato de dignidade e
tão falados jantares. Imagine-se o que são atores efetivos da política, mas não de coragem. Quando foi a Guerra
é quando se sentam pessoas desin- tenho assim figuras muito marcantes. do Iraque, em que os EUA têm uma
teressantes ao nosso lado e temos de O que tinha Mário Soares atitude contrária ao direito internaci-
aguentar uma hora e meia de conver- de especial? onal, Kofi Annan foi tão longe quanto
sa. Os cocktails, então, são terríveis. A capacidade de cheirar o tempo e de achou que devia ir. Guterres teve a
Como se consegue ter conversa perceber o futuro e de saber como coragem de ir mais longe, e achei isso
para todo o tipo de pessoas, que se estar. Ao longo do tempo em que estive de uma grande dignidade. Não o fazer
encontra nos jantares e nos ditos com ele, em várias circunstâncias e em seria contrariar, aliás, todas as mais de
cocktails? vários cenários, Mário Soares estava 60 resoluções que as Nações Unidas
Uma vez, numa exposição em São sempre bem, estava sempre à vontade emitiram antes, a condenar Israel.
Paulo, fui abordado por uma senhora. e tinha a perceção certa das coisas, da A questão é muito simples: todas as
Quando lhe perguntei quando é que relação com as pessoas e do sentimen- resoluções do Conselho de Segurança
ela tinha ido para o Brasil, respon- to das coisas – mesmo não falando sobre Israel foram aprovadas pelos
deu: “Vim para cá depois dessa data inglês, que era um handicap que ele EUA. Todas! Ora, os EUA recusam-se
nefasta que foi o 25 de Abril. Eu e o tinha. Foi uma pessoa impressionante. a pressionar Israel para cumprir essas
meu marido perdemos tudo em An- E António Guterres? mesmas resoluções. Há, aqui, um
gola, viemos para aqui e ele morreu a O seu crescimento foi o que mais me desrespeito quase crónico de Israel
trabalhar, e eu nunca perdoarei a esses impressionou. Ele era, para mim, uma pelas resoluções das Nações Unidas. E
bandidos que fizeram o 25 de Abril.” personagem desconhecida, até poucos o secretário-geral não pode deixar de
Numa situação destas, como embai- meses antes de entrar para o governo. o lembrar, mesmo que isso vá desa-
xador, eu não posso responder nada Conhecia-o de vista e, depois, vejo-o gradar ao mundo ocidental e mesmo
a esta senhora. Porque eu sou o em- crescer, de uma forma surpreendente, indo em contraciclo com aquilo que é
baixador dela e sou o embaixador das com os seus pares, precisamente por- a onda de repúdio do ataque terrorista
pessoas que também foram traumati- que sabia tudo o queria dizer. Fiquei do Hamas, no dia 7 de outubro.
zadas pelo 25 de Abril, e a experiência muito impressionado nas negociações Subscreve, por isso, a expressão
pessoal dela é uma coisa que tenho de da chamada Agenda 2000, em que ele do “vácuo”?
respeitar. Eu não lhe posso dizer: “Mi- discutia tudo com um detalhe, que, às É evidente que esta situação não nas-
nha senhora, no 25 de Abril, estava na vezes, até deixava os outros chefes de ceu no vazio. Estamos numa situação
tropa e foi fantástico.” Não posso. governo sem saber o que dizer. Conhe- de décadas de injustiça, que obvia-
Quais foram as figuras mais mar- cia todos os dossiers, envolvia-se nas mente, em alguns casos, leva a uma
cantes que conheceu durante o coisas pessoalmente, e isso, para mim, acomodação e, noutros casos, leva a
seu longo percurso? foi uma experiência surpreendente. uma radicalização. Nada justifica nada,
A figura que mais me impressionou, Como vê o seu papel agora nas mas o facto de não justificar não sig-
nos seus vários tempos e nas suas Nações Unidas e as críticas que nifica que não se explique. E este é um
várias encarnações, foi Mário Soares. recebeu por causa da guerra ponto essencial: se eu disser que Israel
Mas nós, diplomatas, somos atores Israel-Hamas? tem direito às suas fronteiras inter-

60 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


Memórias “A figura que mais
me impressionou, nos seus
vários tempos e nas suas várias
encarnações, foi Mário Soares”

A solução está nos EUA?


Os EUA vivem completamente de
mãos atadas, porque são reféns do
lobby judaico-americano, que, de
certa maneira, controla quer o Partido
Democrata quer o Partido Republica-
no. A verdade é que Israel vive numa
impunidade eterna há muitos anos,
e o mundo compra a versão de que
Israel é a vítima nesta história.
Não acha que essa imagem está
a mudar agora, com os relatos
que nos chegam diariamente
dos bombardeamentos em Gaza?
É verdade que um horror não pode
justificar outro. O horror de 7 de
outubro não pode ser justificado por
este horror agora. Estava a olhar para
aquelas imagens dos hospitais e pensei
nacionalmente reconhecidas, estarei a E qual é a outra solução? que nós esquecemos que há ali doen-
ser adversário de Israel, porque Israel Eu não sei qual é a outra solução e tes. E não são doentes normais, com
não aceita essas fronteiras. devo dizer que já cheguei à conclusão uma apendicite. Não, são os doen-
Estava em Gaza quando Yitzhak de que, em relação a algumas ques- tes dos ataques na véspera. Em que
Rabin foi assassinado, não foi? tões, se calhar, não é preciso haver medida é que isto consegue comover
Foi na última visita de Estado de Má- soluções. Nalguns casos, a única a comunidade internacional? Em que
rio Soares, uma semana depois de o maneira é manter as coisas num baixo medida é que Israel vai pagar um pre-
governo de Guterres ter tomado pos- grau de intensidade dos conflitos. É o ço na sua imagem internacional? Não
se. Eu era o único membro do governo que acontece, por exemplo, no Chipre, sei. Uma coisa tenho por certo: Israel
presente. Fomos, primeiro, a Jerusa- onde está uma missão de paz da ONU nunca se importou muito com a sua
lém e estivemos com Shimon Peres há dezenas de anos. As condições para imagem internacional; Israel nunca fez
e com Yitzhak Rabin. Depois, fomos a existência dos dois Estados pres- grande diplomacia pública.
para Gaza, onde jantámos com Arafat. supunham alguma confiança mú- Porquê?
Foi nesse momento que nos informa- tua, que agora foi abalada. O Hamas Provavelmente, vou pagar por dizer
ram de que Yitzhak Rabin tinha sido percebeu que a questão palestiniana isto: porque Israel sempre considerou
assassinado, por um judeu radical. A estava a ficar adormecida na sociedade que tinha as costas quentes, nomea-
visita acabou ali e saímos para o Egito, internacional e quis, por isso, rea- damente quer dos EUA quer de certos
por Rafah. Lembro-me de que, logo brir a ferida – e conseguiu-o. Depois setores da opinião pública europeia
nesses dias, Shimon Peres teve a visão da ferida aberta, a única solução que – o que lhe permitiu fazer, ao longo
de não isolar Arafat e, através de mim, existe é o ódio, dos dois lados. A re- do tempo, várias coisas que, de certa
que representava a União Europeia, alidade agora é: esta geração israelita maneira, chocaram muita gente, mas
pediu-nos para os ajudarmos a apoiar não se vai esquecer disto, e as gerações que nunca foram suficientes para criar
a melhoria de vida em Gaza. Isto fazia futuras palestinianas também não se um movimento de opinião pública
parte do espírito dos Acordos de Oslo vão esquecer dos anos de humilhação com eficácia prática.
e da perceção de que a radicalização que sofreram, nem desta resposta que Estava em Nova Iorque no 11 de
em Gaza era uma espécie de bomba- agravou ainda mais a situação. Setembro. Sentiu que aquilo era,
-relógio – que o Hamas acabou por de alguma forma, um momento
aproveitar. de viragem e que podia marcar,
Como é que se sai daqui, agora As maiorias por exemplo, o início do declínio
que a bomba voltou a explodir?
Vou dizer uma coisa que é
absolutas do império americano?
Deixem-me contar uma história cu-
politicamente incorreta: não acredito são sempre riosa, recente, que explica muito do
na solução dos dois Estados, não que vivemos hoje. Há três anos, um
porque não seja a ideal mas porque sobranceiras, chinês disse-me: “Concorda que nós
acho que não é exequível. Até por uma
razão muito simples: Israel nunca
mesmo que não tivemos nada que ver com o 11 de
Setembro?” Vocês, com o 11 de Setem-
admitiria que um Estado palestiniano digam o contrário. bro? “Claro que não”, respondi. “Pois,
tivesse todas as componentes de
soberania de um Estado normal,
Nota-se isso. E a mas nós fomos os grandes beneficiá-
rios do 11 de Setembro”, explicou-me.
como um exército, aviação e marinha. permanência no “Os EUA deixaram de olhar para nós
O discurso dos dois Estados é um durante 20 anos.” Ou seja, depois do
mantra com que o mundo ocidental poder por muito ataque às Torres Gémeas, a China teve
se absolve do facto de nunca ter tempo cria vícios 20 anos de crescimento, no silêncio.
encontrado outra solução. De certa maneira, o 11 de Setembro fez

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 61


focar a atenção americana no Médio
Oriente e desfocar da China. Agora,
estamos a assistir ao retomar da aten-
ção da América sobre a China.
Assistiu à ascensão, queda e
ressurreição de Lula da Silva.
Como olha hoje para ele?
Lula é um político de outro tempo. É
um político do tempo do seu sucesso
e está a tentar capitalizar esse passado
para o presente, até no plano interno.
Mas, no plano internacional, vai rapi-
damente perceber os seus limites. Ele
tem alguém que o impulsiona, que é o
Celso Amorim, o seu antigo ministro
dos Negócios Estrangeiros e o criador
da política externa brasileira lulista.
Mas este Lula nunca será o mesmo do
passado. E o seu sucesso vai depender
da política externa do Brasil. tocrático, mas a Rússia formalmente sas: 1) que, depois do que tinha acon-
Mas o que é que o move? era uma democracia, havia partidos, tecido no Afeganistão, os americanos
Acho que o Lula é um homem sincero havia uns jornalistas liquidados… e o estão humilhados e são incapazes de
na sua dimensão social e de querer Ocidente, com uma lógica paternalista, promover uma ação; 2) e que tinha a
ficar na História do Brasil. Ele tinha encolhia os ombros e dizia “ah, aquilo Europa refém do gás. Estes dois ele-
uma frase que o Fernando Henri- é assim”. As pessoas não se deram mentos levam-no a arriscar, pensan-
que Cardoso detestava, quando dizia conta de que era uma deriva irreversí- do – uma coisa extraordinária – que
“nunca antes na História deste país…”. vel. Quem se deu conta foram os seus aquilo colapsaria em 48 horas.
Mas ele tem a consciência de que vizinhos. Eu era sensível à noção de E pensando que as lideranças
nunca antes na História daquele país que o alargamento da NATO se fazia na Europa eram fracas…
um sindicalista sucedeu a um bem- sem diálogo com a Rússia, mas hoje, Ele ajudou a torná-las mais fortes,
-sucedido professor universitário com olhando a deriva interna da Rússia e a conseguiu isso. Não percebeu que o
prestígio internacional e conseguiu consequência última que foi a invasão nacionalismo ucraniano era forte o
trazer um outro Brasil para o palco. da Ucrânia, entendi as preocupações suficiente para fazer das fraquezas
Vamos ver se conseguirá ultrapassar o de segurança de alguns países que forças e resistir. É um erro brutal de
aspeto negativo que está ligado à sua estão ali perto. Afinal, tinham razão. A Putin, que só não paga porque aquilo é
passagem – as questões do proces- invasão da Ucrânia traduz uma coisa uma ditadura.
so judicial não estão desligadas do fundamental: a Rússia abandonou o E como vai acabar esta guerra?
que foi um ciclo de corrupção que se terreno do diálogo. É a última janela Sei que não é muito popular dizer isto,
passou no tempo de Lula e de Dilma da oportunidade que Putin vê no sen- mas acho que tem de haver algum
Rousseff; no mínimo, houve alguma tido de evitar o deslize do país para o compromisso.
complacência quanto ao modo como campo ocidental, pensando duas coi- Ou seja, a Ucrânia vai ter
fundos públicos foram utilizados para de ceder território?
financiar campanhas, etc.. Lembro-
-me de que cheguei ao Brasil quando Estou muito Não sei como vamos sair daqui sem o
mínimo de compromisso nessa maté-
começou o Mensalão, e o Lula tinha
70% ou 80% de popularidade.
pessimista em ria. Ou então ter um conflito conge-
lado, como as Coreias, Chipre, sem
Outra personagem é Putin,
que, no livro, é referido várias
relação aos resolução e que se mantém durante
muito tempo, normalmente com uma
vezes, mas não tem uma única vários dossiers; buffer zone e uns incidentes aqui e ali.
entrada especial. Terá sido reflexo Mas qual é a narrativa ucraniana para
de a Europa não lhe ter dado se calhar, é isso? É muito difícil para um homem
importância?
Putin é uma personagem que surge da idade e do como Zelensky titular qualquer tipo
de compromisso que inclua uma ce-
silenciosamente… A Rússia sofre um
processo de humilhação por ter per-
tempo, mas dência territorial.
E como é que a Europa lida com
dido a Guerra Fria. Há um disfarce no acho esta deriva isso? Porque a perspetiva de a
primeiro tempo, porque havia um diá- Ucrânia integrar a União Europeia
logo com o Ocidente, mas a população autoritária e está a ser acelerada.
pressentiu que foi derrotada. Putin
aparece para tentar resgatar essa hu- securitária algo E também na NATO… Há uma con-
versa de que se fala pouco, mas temos
milhação através da afirmação de um
nacionalismo autoritário. O Ocidente,
inelutável no de perceber o que serão os impactos
da Ucrânia na União Europeia, para
durante muito tempo, viu-o como
uma personagem mais ou menos au-
tempo imediato países de pequena e média dimensão
como Portugal. O país mais afetado

62 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


Médio Oriente “O discurso
dos dois Estados é um mantra
com que o mundo ocidental se
absolve do facto de nunca ter
encontrado outra solução”

será a França… A França ganhava, a


certa altura, 25% dos fundos da Política
Em política, o tempo países. Foi a forma de desbloquear e
não deixar isto nas mãos dele, porque
Agrícola Comum (PAC) e, como repre- dá sempre uma valores mais altos se levantavam.
sentava cerca de 42% do orçamento
comunitário, o país ganhava 11% do
justificação para as Mas como é que a Europa con-
segue conviver, no seu seio, com
orçamento comunitário com a PAC. cambalhotas. Estava países que não cumprem o básico,
Com a entrada de outros parceiros, aquilo que nos devia unir em tor-
será altamente prejudicada. E é preciso a ouvir o discurso no do cumprimento de um con-
perceber que os maiores beneficiários
da política de coesão europeia são as
do líder do PP a junto de princípios fundamentais?
Vivemos, na União Europeia, com o
zonas pobres dos países ricos. reler tudo aquilo problema eterno da compatibilização
Durante a Presidência portuguesa
de 2000, quando Jörg Haider
que o Sánchez tinha das ordens constitucionais nacionais
e a ordem europeia. Supostamente,
entrou para o governo austríaco, dito e o que fez… os países, ao entrar, subordinam a
uma Europa a 15 fez uma espécie sua ordem à europeia. Mas o cidadão
de cordão sanitário. Avançamos É extraordinária comum pede responsabilidades
20 anos, e já não existe esse cordão a capacidade não aos políticos europeus mas aos
sanitário em relação à extrema- nacionais. E estes têm de “entregar”
direita? do eleitorado de perante a sua própria opinião
Aquilo que o governo fez ao trazer
o Haider para o poder é, hoje em
conviver bem pública. Por isso, a dimensão nacional
ainda prevalece e há uma certa
dia, uma banalidade. Na altura, com quem disse complacência. E parece-me que a
foi chocante. As pressões para o tendência será cada vez maior.
isolamento da Áustria eram imensas. o contrário no dia E também porque não consegui-
Quando houve a transição para a anterior. Isso dá um mos expulsar estes países, não há
presidência francesa, os franceses mecanismos para isso.
libertaram-se do assunto, criando uma álibi para as pessoas Não há. Estavam pensados para um
comissão ou grupo de trabalho para
tratar do assunto. Mas isso influenciou
renegarem o que caso isolado. Parece que estou muito
pessimista em relação aos vários dos-
o Tratado de Nice, com a noção de que disseram siers; se calhar, é da idade e do tempo,
podia haver um país e todos os outros mas acho que esta deriva autoritária e
contra. Mas não é só um país… porque, Não tenho a mínima dúvida de que é securitária é algo inelutável no tempo
se aparecer um país, há sempre dois essa a deriva, particularmente se Mari- imediato. Sempre pensei que a globa-
ou três que têm medo que a provisão ne Le Pen ganhar em França. A França, lização e todas as vantagens tornas-
lhes seja aplicada, e não deixam que já de si, tem uma frágil relação com a sem os países irremediavelmente mais
esse seja isolado. Não estávamos a Alemanha no que era o eixo franco- abertos, mas pressentimos que aquilo
contar com a evolução da Hungria, da -alemão propulsor da União. Marine que o Stiglitz dizia sobre os descon-
Polónia… Acho que o que se passou Le Pen pode surpreender-nos e fazer tentes da globalização veio mais cedo.
na Europa é incontrolável por via como Meloni, e não pôr em causa os Agora, estamos a assistir à
europeia, devo confessar. fundamentos da UE, mas claramente desglobalização.
Hoje, temos 15 em 27 países da não é a mesma coisa… O ideal europeu Ficou muito claro com o discurso de
União Europeia onde a extrema- está, neste momento, sob forte pressão. Trump, quando ganha as eleições – é
direita tem mais de 20% nas E, neste contexto, como vê a pro- o discurso da desglobalização do país,
intenções de voto. ximidade de António Costa com que se pensava que era maior ganha-
E, com a questão das migrações, vai Viktor Orbán? Em 2020, defendeu dor com ela. Quando ele começa a
piorar. Nós vivemos num país onde que o Estado de direito não devia mostrar que, afinal, tem a capacidade
o crescimento que as sondagens dão ser critério para a atribuição de de travar a globalização, é uma onda
à extrema-direita deriva de questões fundos europeus. E fez uma pa- de protecionismo que se espalha.
mais internas, como o mal-estar, a ragem na Hungria, para se sentar E, depois, veio a pandemia, que
corrupção ou a dissociação com os fins lado a lado com Orbán, que fazia ainda ajudou mais.
últimos do Estado… E estamos sempre anos, na final da Liga Europa. Isto Sim, exatamente. E Biden não des-
a procurar descodificações, talvez não é ir longe demais no cinismo montou muito daquele protecionis-
porque os partidos mais moderados da realpolitik? mo, porque tem a noção do reforço da
são incapazes de encontrar soluções. A Talvez. Devo dizer que também fiquei indústria nacional.
extrema-direita não existiria se as pes- dividido quando vi esses contactos. A Sente que, hoje, estamos
soas não sentissem os problemas; só sensação que tive, nessa altura, é que num mundo mais perigoso e
que dá respostas simplistas e populis- Costa quis dizer que, se déssemos a imprevisível?
tas para esses problemas. Orbán uma espécie de direito de veto Acho que sim. Mas fiquei muito
Não teme que uma subida de nos fundos europeus, ele era o ven- contente com o encontro de Biden
extremismo deste género afete cedor desse processo. Isto é discutí- com Xi Jinping. A coreografia é
alguns ideais da União Europeia, vel, mas, na realidade, ao não ligar os importante. Há uma ordem dita liberal
transformando numa caixa-forte fundos à questão dos direitos, Costa que os EUA titulam, e a Europa não se
uma Europa que se queria aberta estava a dar prioridade à importância importa muito com isso – viu-se nos
ao mundo? da atribuição dos fundos aos restantes últimos dois anos. A Europa fingiu que

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 63


ia ser um poder, mas não consegue.
Ficou clarinho, até nas suas próprias
No PS, há um ouvir isto –, mas a verdade é que há
grandes áreas em que há um consenso
divisões, que não há maneira de fugir sentimento de que, alargado, independentemente da
a isto. Os EUA são um fator de união, semântica. Ontem, ouvia alguém
para o bem e para o mal. O drama de de certa maneira, dizer que uma eleição de Pedro Nuno
tudo isto é se vem aí o Trump, outra António Costa secou Santos é clarificadora, e se calhar tem
vez, e Marine Le Pen. E eu não me razão, no sentido em que coloca o PS
sinto nada confortável num mundo em tudo à sua volta. numa certa linha mais clara quanto às
que essas duas realidades aí estejam.
Não é assim uma realidade tão
Faz-me lembrar o 28 diferenças em relação ao PSD. Uma
opção mais ao centro tornaria a coisa
estapafúrdia, infelizmente. de Maio, quando o mais difusa.
Não... E para fazermos futurologia,
se o Trump regressar, ele resolve a
Mendes Cabeçadas Mas, por outro lado, dava uma
alternativa para aquele eleitorado
questão ucraniana num instante, recebe o poder e mais ao centro. Tem uma prefe-
vai desiludir os europeus e fechar a rência entre os dois?
torneira, obrigando a um qualquer fica como primeiro- Inscrevi-me como militante no dia
acordo. E tem, em relação ao Médio
Oriente, uma posição ainda mais pró-
ministro, presidente seguinte à derrota do PS nas eleições
de 16 de dezembro de 2001, mas não
Israel do que teve Biden. O regresso de do conselho de faço parte de grupos dentro do PS,
Trump ao poder será um abalo sísmico
na geopolítica mundial. Não sei como
ministros e ministro nem me lembro de ter ido alguma vez
ao Rato, a não ser quando contri-
é que o mundo se vai reconciliar com de todas as pastas buí modestamente para o programa,
essa América. E será que a Europa se em 2015, na política externa. Tenho
vai unir mais? Antigamente, havia uma técnica nestes amigos nos dois lados e não tenho
A questão é: e a Europa tem as li- partidos: quem não estava no poder preferências, neste momento. A mi-
deranças certas para fazer isso? central estava no poder nas autarquias, nha opção é pensar no que será mais
Pois, esse é que é o problema. É muito e havia um poder alternativo. O facto útil para o papel do PS na sociedade
difícil. E a saída do Reino Unido tam- de o PSD ter perdido muito poder nas portuguesa.
bém debilitou a Europa, apesar de a autarquias e de o prolongamento do Mas, já que falamos de política ex-
União Europeia, na sua transição do PS no poder ter criado uma noção de terna, não será muito mais difícil
Brexit, até nem se ter portado mal. que este é o partido do poder criou hoje do que em 2015, para Pedro
Olhando para Portugal, como um deserto, em termos de figuras. O Nuno Santos, fazer uma gerin-
observa este ambiente crescente PSD tem uma conhecida propensão gonça, no meio de duas guerras,
de polarização e crispação? As para os líderes se sucederem, o que com aqueles dois partidos que
redes sociais contaminaram o dá ao partido um sentimento de tiveram posições anti-NATO?
debate público? instabilidade interna, que debilita a É completamente diferente. O PCP
Há um mal-estar que atravessa a soci- sua credibilidade. Os votos que estão e o Bloco, embora este apoiasse a
edade portuguesa. Tenho a sensação de no Chega e na IL vêm muito do PSD, Ucrânia, não são os mesmos parti-
que os dois grandes partidos não têm e resta saber se há alguma estratégia e dos que existiam em 2015. Sobre isso
uma linguagem que consiga ser trans- sentido de appeal para poder repatriar não haja a mais pequena dúvida. O
versal, e há setores que se deixaram esses votos. O discurso não funciona PCP não surpreendeu; o Bloco acho
capturar por agendas mais radicais, para as pessoas que eu conheço que que, depois, até teve uma posição
polarizadas, egoístas, corporativas. votam na IL hoje em dia, da mesma equilibrada, mas não é a mesma
Há um esgotamento de soluções por forma que há um sentimento de “é coisa. Devo dizer que, no início, tive
parte dos partidos moderados. E, por preciso partir isto tudo”, que vejo nas grandes dúvidas por razões de polí-
outro lado, há um cansaço das caras. pessoas que dizem votar Chega e que tica externa, mas depois reconciliei-
No PS, há um sentimento de que, de acham que isto só lá vai com uma -me com a Geringonça. E não teve
certa maneira, António Costa secou rutura. Tenho ouvido isso de gente grandes reações na União Europeia
tudo à sua volta. Faz-me lembrar o 28 que nunca pensei. Isto surpreendeu- graças a António Costa, que fez uma
de Maio, quando o Mendes Cabeçadas me e assusta-me. firewall muito clara entre política
recebe o poder e fica como primeiro- E para este estado de coisas interna e externa. Conseguiu um
-ministro, presidente do conselho de contribuiu alguma húbris ou balão de oxigénio para disfarçar ten-
ministros e ministro de todas as pastas sobranceria desta maioria sões que vinham do tempo anterior;
[risos]. Tive a sensação de que António absoluta? mostrou Portugal respeitador das
Costa, a certa altura, era ministro de As maiorias absolutas são sempre contas certas, porque um certo ciclo
todas as pastas… sobranceiras, mesmo que digam económico permitiu isso e também à
O Presidente disse que António o contrário. Nota-se isso. E a custa das cativações – com que nun-
Costa era o melhor mata-borrão. permanência no poder por muito ca convivi bem, porque acho que não
Alguma coisa acontecia tempo cria vícios. E, se formos respeitam a vontade do Parlamento.
e ele resolvia. escavar bem fundo as opções de Mas uma geringonça com um PCP
Sim, é isso. E, na oposição, a sensação natureza ideológica entre PSD e PS, que mostrou uma certa postura não
que se tem é que o PSD convive não encontramos grandes diferenças é a mesma coisa, e a questão inter-
mal com o afastamento do poder. – alguns amigos não gostarão de nacional, hoje, está muito mais viva

64 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


do que esteve no passado. Ninguém Conceição. Que lições aprendeu
se lembrava da NATO, era um dado desse episódio?
adquirido, e hoje as pessoas estão Bom, a última palavra ainda não está
muito mais atentas. Mas não vejo isso Memórias dada; ainda estamos no Tribunal Eu-
como mais problemático do que à “Antes Que Me Esqueça” ropeu dos Direitos do Homem. Mas
direita haver qualquer tipo de apoio (D. Quixote) reúne um conjunto as redes sociais têm a desvantagem da
de factos e episódios soltos,
do Chega a uma solução governativa. curiosos e cheios de graça, de espontaneidade. Não foi só nessa oca-
Escandalizou-me profundamente o que o próprio foi protagonista sião que eu me precipitei; todos nós
que se passou nos Açores – porque ou espectador, ocorridos nos precipitamos. Fiz um tweet rápido
foi um sinal. O facto de o partido que durante a sua atividade a quente. No Ministério, utilizava-se
foi mais votado não ter sido chamado diplomática, de 1975 a 2013 uma expressão perante um telegra-
para formar governo foi um sinal ne- ma inesperado que era dizer que se ia
gativo sobre o que pode vir a aconte- cionais. Um partido que apela, como o dormir sobre o telegrama.
cer em Portugal. Chega, aos sentimentos mais primári- Mas isso perdeu-se.
Mas Luís Montenegro já disse que, os das pessoas e que procura cavalgar E mesmo nós, que somos diploma-
se não for o partido mais votado, uma agenda de ódios e de ressenti- tas experimentados, também somos
não vai formar governo. mentos, e até no limiar da constitu- humanos.
Lembro-me sempre de que havia um cionalidade, a mim não me merece Para terminar, este livro chama-se
presidente do Vitória de Guimarães a mesma consideração. E as pessoas Antes Que Me Esqueça. Por que é
que dizia que o que é verdade hoje podem dizer o que quiserem, mas que gostava de ser recordado?
pode ser mentira amanhã… Em política, continuo a ter um grande respeito pela Há um episódio em que me mobilizei
o tempo dá sempre uma justificação história do PCP durante a ditadura. contra aquilo que eu pensava – e tem
para as cambalhotas. Estava a ouvir Mesmo em relação ao que foi o com- que ver com as touradas. Durante a
o discurso do líder do PP a reler tudo portamento do PCP em 1975, gostava negociação do Tratado de Amester-
aquilo que o Sánchez tinha dito e o que de lembrar às pessoas que já passaram dão, sou abordado por Michel Barnier
fez… é extraordinário… E é extraordiná- 50 anos e que, nestes 50 anos, nunca o e o espanhol que queria fazer uma
ria a capacidade do eleitorado de con- PCP teve qualquer atitude que pudesse declaração sobre a diversidade cultural
viver bem com quem disse o contrário pôr em causa a democracia. O Bloco para proteger a possibilidade de fazer
no dia anterior. Isso dá um álibi para as é uma deriva de setores de extrema- touradas. E eu disse: “Detesto toura-
pessoas renegarem o que disseram. -esquerda que se reconciliaram e re- das, mas claro que estou convosco.”
E como vê a situação em Espanha? presenta alguns nichos de opinião que Porque sabia que a posição portuguesa
A mim assusta-me uma Espanha vai a alguns exageros com que eu não maioritária era essa, embora, se pudes-
partida. Se amanhã a Catalunha for in- estou de acordo, mas respeito muitas se votar, num segundo acabava com
dependente, Portugal passa a ser o ter- das posições que o partido tem. as touradas. Não estamos ali por nós
ceiro Estado da Ibéria. Gosto de uma Apesar de ser um diplomata próprios; temos de representar o País e
Espanha una e tensa; era bom que as experimentado, acabou por ser o sentimento da ordem democrática.
tensões se mantivessem em termos pa- condenado num processo de Está ao serviço da nação.
cíficos. Dito isto, acho muito perigosa difamação interposto por Sérgio Fui funcionário público por 47 anos. O
esta situação, porque considero muito meu avô também foi; o meu pai foi 52
perigosa a absolvição e a amnistia dada
a quem procurou ter uma atitude sepa-
O PCP e o Bloco anos funcionário público. E eu nunca
tive um lápis do meu pai – ele recebia
ratista. E acho um bocadinho obscenas não são os mesmos caixas de material –, porque o lápis
as ligações a partidos que mostraram era do Estado. Gosto muito da expres-
estar recheados de pessoas crimi- partidos que são “servidor público”. E da ideia de
nalmente acusadas de ligações a atos
terroristas. Seja ou não seja verdade, a
existiam em 2015. continuidade que há no Ministério dos
Negócios Estrangeiros. No dia em que
sensação que dá é que Pedro Sánchez Uma geringonça Passos Coelho tomou posse, eu tinha
juntou tudo aquilo ao molho para per-
manecer no poder.
com um Partido uma intervenção grande marcada, e
perguntaram-me se queria adiar, e
Mas Sánchez também diz que faz Comunista que eu disse que não. Contei isto ao Paulo
isto para impedir que o Vox chegue Portas, 15 dias depois. “Conclusão,
ao poder. Onde deve estar a linha mostrou uma nós somos irrelevantes, não é?”, disse
vermelha? certa postura ele [risos]. Respondi: “Não, não é, mas
É verdade. Mas eu não equiparo a ex- eu tinha a certeza de que não seria
trema-esquerda à extrema-direita. Não não é a mesma diferente o que ia dizer, sobre política
equiparo o Bloco e o PCP ao Chega. O
PCP e o Bloco são partidos constitucio-
coisa, e a questão europeia, política africana, relações
com os EUA.” E isso é muito confortá-
nais, que mantêm uma leitura huma- internacional, hoje, vel. No MNE, há mesmo uma certa so-
nista da vida em relação ao racismo, à
xenofobia, aos direitos das mulheres, às está muito mais viva berba: tratam-se os outros ministérios
como os “ministérios setoriais” [risos].
questões essenciais do que é uma so- do que esteve no Não sei se há uma política externa; nós
ciedade democrática e moderna e que temos é uma diplomacia reiterada.
não põe em causa os direitos constitu- passado nropio@visao.pt

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 65


OS REFÉNS
DO TERROR
Com ou sem cessar-fogo e com negociações mais
ou menos demoradas para trocar prisioneiros, Benjamin
Netanyahu, chefe do governo de Israel, e Yahya Sinwar,
líder do Hamas em Gaza, estão condenados a perder o
conflito iniciado a 7 de outubro. O primeiro, desacreditado
como nunca; o segundo, porque pode ter os seus dias contados
— POR FILIPE FIALHO

Duo Os destinos de Yahya


Sinwar (à esq.) e de Benjamin
Netanyahu estão cada
vez mais interligados
U
Protestos A maioria dos israelitas
já não tem qualquer confiança
em Netanyahu e aponta-o como
“principal responsável” pelo fracasso
de segurança do mês passado

seu ídolo, três anos mais velho, em En-


tebbe, no Uganda, durante um famoso
raid de forças especiais israelitas para
resgatar os reféns de um avião desvi-
ado pela Frente Popular de Libertação
da Palestina.
Bibi fica definitivamente conven-
cido de que os árabes em geral, e os
palestinianos em particular, jamais
desistirão de destruir Israel. E de que
estava certo ao seguir uma carreira
política, contrariando o pai, Benzion
Netanyahu, académico sionista que
criou uma enciclopédia hebraica e era
Um dos génios maiores da diplomacia, um profundo conhecedor da Inqui-
o francês Charles-Maurice de Talley- sição e das comunidades judaicas na
rand, no início do século XIX, afirmou Península Ibérica, que o acusava de ser
que tudo pode ser feito com baionetas, o casmurro da família.
“exceto sentarmo-nos sobre elas”. É
natural que o primeiro-ministro isra- ALVO PRIORITÁRIO
elita e o principal líder do Hamas na Com 61 anos, 23 deles passados nas
Faixa de Gaza conheçam a citação do masmorras de Israel, Yahya Sinwar é o
estadista francês. Há muito que ambos chefe do Hamas em Gaza e considerado
lidam com a força das armas. um “cadáver ambulante” (“dead man
Benjamin (Bibi) Netanyahu integrou walking”) pelo governo de Telavive,
a principal unidade de tropas especiais que o aponta como alvo prioritário a
do seu país, a Sayeret Matkal. A 8 de abater, por ser o grande responsável
maio de 1972, um Boeing 707 da com- pelos atentados de 7 de outubro. Tal
panhia aérea belga Sabena, com uma como Netanyahu, este filho de refugi-
centena de passageiros e tripulantes a ados nascido em Khan Younis, no Sul
bordo, aterrou no aeroporto internaci- de Gaza (então sob controlo egípcio),
onal Ben Gurion (entre Jerusalém e Te- aprendeu cedo a mexer em armas.
lavive). Quatro piratas do ar ameaçavam As atividades extracurriculares não o
explodir a aeronave caso não fossem impediram de se licenciar em Estudos
libertados 315 prisioneiros palestinia- Árabes e de participar ativamente nos
nos em Israel. O governo local, liderado movimentos integristas, nomeada-
por Golda Meir, deu imediatamente mente o Mujama al-Islamiya (Centro
ordens para mobilizar todas as forças Islâmico), chefiado pelo influente xeque
de segurança e os melhores soldados. tetraplégico Ahmed Yassin. O seu en-
Em menos de 30 horas, uma equipa volvimento em atividades subversivas
de 16 comandos da Sayeret Matkal, fa- fez com que fosse um dos protagonistas
zendo-se passar por técnicos de manu- da primeira Intifada (Insurreição), nos
tenção, conseguiu resolver o problema: territórios palestinianos. Com a anu-
dois sequestradores foram abatidos, os ência de Yassin (assassinado em 2004),
outros dois foram detidos (duas mu- ganhou estatuto no Hamas e criou uma
lheres) e os restantes ocupantes do voo milícia especial para detetar e neutra-
571 saíram quase todos sãos e salvos –
três ficaram feridos e um acabou por
falecer. A Operação Isótopo fez ainda
uma outra vítima, sem gravidade: Bibi
Sinwar esteve preso
Netanyahu foi igualmente baleado no em Israel durante
ombro, devido aos disparos de um seu
camarada de caserna. quase 23 anos, mas,
Nada que o impedisse de prosseguir
uma brilhante carreira militar, iniciada
paradoxalmente,
em 1967, que só terminaria em 1973, foram os seus
quando emigrou para os EUA, onde
viria a formar-se em Gestão e Ciência inimigos que lhe
Política, no Massachusetts Institute of
Technology (MIT) e em Harvard. Nes-
salvaram a vida
se período, em terras americanas, um quando teve um
acontecimento traumático mudaria a
sua vida: a morte do irmão Yonatan, o abscesso cerebral
68 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023
David Meidan
Negociador
em bolandas
Já poucos acreditam num final feliz
para a maioria dos reféns na posse
do Hamas ou para a martirizada
população de Gaza

Aos 68 anos, e após passar metade da


vida em jogos militares e de mistério, David
Meidan é um indivíduo bastante ocupado.
Antigo oficial da mítica unidade 8 200
(informações, contraespionagem e ciber-
guerra) e também da Mossad, quase todos
os dias fala ao telefone com familiares dos
israelitas que foram sequestrados, a 7 de
outubro, pelo Hamas. “Se esperarmos muito
tempo, ou até ao final desta guerra, muitos
dos reféns já não estarão vivos”, afirmou,
há um mês, ao diário Haaretz. Meidan sabe
muito bem do que fala. Em 2011, com plenos
poderes e mandatado pelo governo de
Telavive, foi um dos principais artífices da
libertação de Gilad Shalit, o soldado que o
Hamas capturou e manteve sob cativeiro,
durante cinco anos e quatro meses, na
Faixa de Gaza. Agora, é pouco provável
que o antigo negociador e atual empresário
de segurança, nascido no Cairo e fluente
em árabe, volte a repetir a façanha. Alguns
dos seus interlocutores de há mais de uma
década foram abatidos – nomeadamente
FOTOS: GETTYIMAGES

Ahmed Jabari, um dos comandantes das


brigadas Al-Qassam (o braço armado do
Hamas) –, e não é de esperar que haja
qualquer final feliz. Gilad Shalit foi trocado,
em outubro de 2011, por 1 027 prisioneiros
palestinianos, e outra das personalidades
centrais nesse processo, a par de David
Meidan, foi o ativista dos direitos humanos
Gershon Baskin. Sem prejuízo dos bons
ofícios do Qatar ou do Egito, enquanto
potências mediadoras, Baskin também não
está otimista e, no mês passado, cortou
relações e criticou publicamente um velho
conhecido, Ghazi Hamad, o porta-voz e um
dos principais líderes políticos do Hamas,
exilado em Beirute: “Como se atreve a pedir
que haja um milhão de ataques como o de
7 de outubro? Aos bom-
bardeamentos de Israel
em Gaza, contra civis
inocentes, eu chamei
crimes de guerra!”
Inferno O conflito já fez
mais de 14 mil vítimas
civis e Gaza é hoje
um campo de ruínas

lizar colaboracionistas ou “agentes ao grades: “Nós sabemos que Israel está interessado. Continuou a falar do dia
serviço dos sionistas”. À frente desta sentado em cima de 200 ogivas nucle- em que sairia em liberdade. Respon-
célula, conhecida por Al Majd (A Gló- ares e que tem as forças armadas mais di-lhe que isso nunca iria acontecer.
ria) e que serviria depois para fundar avançadas da região. Nós sabemos que Disse-me que havia até uma data e que
as brigadas Al-Qassam, conquistou o não dispomos da capacidade para des- Deus a conhecia.”
título de “carniceiro de Khan Younis”. mantelar Israel.” O talento do homem Não foi necessária nenhuma profe-
A fama tem custos. Em 1989, após que montou a estrutura de segurança cia, nem qualquer intervenção divina.
executar dois israelitas e uma dúzia do Hamas ficava bem demonstrado. A 18 de outubro de 2011, Yahya Sinwar
de compatriotas (um deles decapitado Ninguém sabe ao certo a motivação voltava à sua terra natal, após ele e 1 026
e outro enterrado vivo), Yahya Sinwar para tais declarações. Todavia, há um outros palestinianos serem trocados
foi uma vez mais detido e recebeu uma incidente que pode, ou não, justificá- pelo soldado Gilad Shalit, capturado
sentença exemplar: quatro penas de -las. Em 2004, Sinwar foi acometido cinco anos antes por um comando do
prisão perpétua. de problemas de visão e de violentas Hamas (que alegadamente incluía um
Não se conformou e tentou evadir- enxaquecas. Diagnóstico do pessoal irmão seu, Mohammed, então oficial
-se diversas vezes, sempre em vão. Foi clínico que o assistiu na prisão: absces- das brigadas Al-Qassam e dado como
a partir desse momento que concen- so cerebral. “Se tivesse rebentado, ele morto três anos mais tarde).
trou a energia numa outra forma de já cá não estaria. Os médicos israelitas Quando Yahya Sinwar voltou a ins-
resistência: “De [Vladimir] Jabotinsky, salvaram-lhe a vida”, afirmou, a 27 de talar-se em Gaza, o movimento de re-
a [Menachem] Begin e a [Yitzhak] Ra- outubro, a um canal televisivo, Yuval sistência islâmica era já dono e senhor
bin – ele passou a ler todos os livros Biton, o brigadeiro e dentista que, nesse do enclave, após ganhar as legislativas
sobre as figuras mais proeminentes ano, era também responsável pelos ser- de 2006 e expulsar do território os
de Israel (...) Da base até ao topo, quis viços de informação nas penitenciárias nacionalistas laicos da Fatah – parti-
aprender connosco”, recordou ao Fi- do país. A história não é nova e já fora do criado pelo histórico Yasser Arafat
nancial Times Micha Kobi, ex-agente contada, em 2017, pelo diário Times of –, na sequência de uma brutal peleja
dos serviços secretos domésticos (Shin Israel, citando Orit Adato, a general e entre palestinianos que fez centena
Beth), que o interrogou nesses tempos e primeira mulher a liderar o sistema e meia de mortos. Ou seja, com uma
o ouviu gabar-se dos crimes cometidos. prisional. aura renovada, ele integra de imediato
Em simultâneo, impõe-se como líder o politburo do Hamas e encarrega-se
incontestável dos detidos e promove PEQUENO HITLER de fazer a ponte com o braço armado da
várias greves de fome, a reivindicar Num perfil que a agência Bloomberg organização, atuando como se ocupasse
melhores condições nas celas e nos traçou recentemente a Sinwar, revela- as pastas da Defesa e da Administração
refeitórios. -se um dado adicional: Israel tentou Interna. Do lado de Israel, com Gaza
Cumpridos 15 anos de cárcere, o fazer chantagem e seduzi-lo politica- sob um bloqueio total, debatia-se até
dirigente do Hamas aceitou ser entre- mente, após a intervenção cirúrgica. que ponto o antigo ilustre prisioneiro
vistado por um canal israelita e, num Quem o afirma é uma outra oficial dos era uma ameaça credível: “‘Ele não
hebraico quase sem sotaque, apelou a serviços secretos, Betty Lahat: “Pensei pretende regressar às atividades pe-
uma “trégua” e reconheceu a superiori- que poderia convencê-lo e colocá-lo rigosas, ele já se esqueceu de como se
dade do Estado que o colocou atrás das do nosso lado, mas ele não se mostrou prepara um ataque terrorista.’ Tentei
explicar-lhes que estavam enganados.
(...) Hoje, em Gaza, o Hamas é Sinwar”,
disse Michael Milshtein, antigo opera-
cional dos serviços secretos militares
(Aman), à Bloomberg, recordando as
discussões que teve.
Em rigor, convém explicar que o ca-
rismático Sinwar nunca deixou de estar
sob estreita vigilância dos serviços de
informações israelitas. Em 2014, duran-
te o conflito militar também designado
de Operação Margem Protetora, que
ocorreu entre julho e agosto desse ano
e custou a vida a mais de dois milhares
de civis em Gaza, todas as casas da fa-
mília de Sinwar foram bombardeadas.
Ele, como de costume, escapou ileso
e, poucos meses depois, mostrava-se,
pela enésima vez, implacável com quem

Marketing Em 2011, Netanyahu


aproveitou-se do facto de 79% dos
israelitas defenderem a troca do
soldado Shalit por 1027 prisioneiros
palestinianos

70 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


Chefes do Hamas
Quem são os principais líderes
do movimento de resistência islâmica,
criado em dezembro de 1987

ISMAIL HANIYEH
O GUIA SUPREMO
Desde 2017 que é
o responsável pelo
gabinete político
(Politburo), órgão
executivo do movimento
(composto por 15
elementos). Nascido há 61 anos num
campo de refugiados a sul da cidade
(Al-Majdal, atual Ashkelon), onde
sempre viveram os seus antepassados,
Haniyeh aderiu aos movimentos
islâmicos na universidade de Gaza
e formou-se em Literatura Árabe.
Durante a primeira Intifada (1987-
1993), esteve detido por subversão e
torna-se um dos principais assessores
do xeque Ahmed Yassin, fundador do
Hamas. Entre 2007 e 2014, liderou o
governo de Gaza. Tem 13 filhos e vive
exilado em Doha, no Qatar.
colaborava com Israel ou desafiava o contados. Menos de 24 horas depois,
seu poder. Que o diga Mahmoud Ish- em conferência de imprensa, Benjamin KHALED MASHAL
tiwi, comandante do Hamas acusado Netanyahu veio dizer quase o mesmo: O ETERNO EXILADO
de homossexualidade e corrupção, “Sinwar não se preocupa com o seu Filho de agricultores
entretanto executado. povo e atua como um pequeno Hitler e de ativistas que
Em 2017, Sinwar e Mohammed Deif no seu bunker.” Palavras que não ser- combateram a
presença britânica na
(o líder das brigadas Al-Qassam) são vem de consolo aos habitantes de Gaza Palestina, nasceu há
já os principais inimigos públicos de nem aos familiares dos reféns do Ha- 67 anos na Cisjordânia
Israel. Ambos aprenderam a sobre- mas. Estes últimos acusam o primeiro- ocupada por Israel e emigrou
viver às investidas da Aman, do Shin -ministro de ser incapaz de garantir a com a família para o Kuwait, onde se
Beth e da Mossad e parecem ter uma segurança dos cidadãos e de já não ser envolve nos movimentos islâmicos
e se licencia em Física. É um dos
capacidade inigualável de liderar a re- um governante fiável. De acordo com fundadores do Hamas e assume a
sistência islâmica nos túneis de Gaza. uma sondagem realizada este mês pela liderança política do movimento entre
A forma como um e outro planearam Universidade Bar-Ilan, apenas 4% dos 1996 e 2017. Alvo privilegiado dos
os massacres de 7 de outubro, apa- israelitas confiam em Netanyahu e um serviços secretos israelitas, sobrevive
rentemente sem intervenção direta outro estudo de opinião, divulgado pelo a um atentado rocambolesco em Amã,
do Irão, do Hezbollah ou dos seus canal televisivo 13, revela que 44% da em 1997. Um veneno em spray, lançado
por um agente da Mossad, deixa-o
camaradas no exílio – casos de Ismail população o aponta como “principal em coma, mas a rápida intervenção
Haniyeh e de Khaled Mashal –, e têm responsável” pelo maior fracasso de do então rei Hussein da Jordânia e
conseguido alimentar este conflito que segurança na História de Israel. Apesar de Bill Clinton obrigou o governo
já supera os 14 mil mortos é a prova de das pressões internacionais, dos EUA de Benjamin Netanyahu a entregar
que devem ser levados muito a sério. A à China, Netanyahu diz que o seu país o antídoto salvador. Vive há mais de
uma década em Doha, após ter estado
4 de novembro, o ministro da Defesa trava agora uma guerra pela “segunda exilado em Damasco, a capital síria.
de Israel, Yoav Gallant, garantiu aos independência” e rejeita um cessar-fo-
seus compatriotas que, mais cedo ou go e a libertação dos 5 500 prisioneiros MOHAMMED DEIF
mais tarde, os dias de Sinwar estavam palestinianos exigida pelo Hamas. Sin- O COMANDANTE
war, por saber que o tempo joga a seu BRUTAL
favor, aposta na mediação do Qatar e
Para Netanyahu do Egito para beneficiar de eventuais
Tal como Haniyeh,
Yahya Sinwar e outros
pausas humanitárias e de uma troca
e as forças de parcial de prisioneiros. Afinal, ele sabe
dirigentes históricos
do Hamas, passou pela

segurança israelitas, na perfeição que a doutrina Dahiya – a


estratégia militar israelita que consiste
Universidade Islâmica
de Gaza, onde se formou em

o líder do Hamas no uso indiscriminado da força para


Engenharia. Nascido há 58 anos no
campo de refugiados de Khan Yunis
derrotar e dissuadir os inimigos de Te-
em Gaza está lavive (cujo nome se deve a um bairro
(no Sul do enclave), o comandante do
braço armado do Hamas (as brigadas

condenado e já não de Beirute) – não é sustentável muito


mais tempo e que nenhuma baioneta
Al-Qassam), desde 2002, sobreviveu
a várias tentativas de assassínio –

consegue comunicar garante um futuro político ao “cas-


incluindo ao bombardeamento que lhe
matou a mulher e dois filhos, em 2014.
murro” que já leva 17 anos no cargo de
com o exterior primeiro-ministro. ffialho@visao.pt
Terá sido ele e Sinwar que planearam
os atentados de 7 de outubro.

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 71


MARKUS VILLIG
“LISBOA TEM
CAPACIDADE PARA
CINCO VEZES MAIS
TROTINETES”
Nasceu na Estónia há quase 30 anos, quando o
país ainda aprendia a dar os primeiros passos
da independência. Viveu o boom tecnológico
de Talin, no virar do século, e soube aproveitá-
lo. Aos 19 anos, criou a Bolt. E, aos 29, Markus
Villig mantém o sonho de mudar o mundo – uma
cidade de cada vez, mesmo sabendo que isso
vai chocar com a forte cultura do automóvel
— P O R G O N Ç A LO A L M E I D A T E X T O E J O S É C A R LO S C A R VA L H O F O T O S
D
Desistiu da faculdade em Tartu, na
Estónia, poucos meses depois de
ter entrado. Na altura, com 19 anos,
convenceu os pais a abandonar os
estudos, porque tinha a “oportu-
nidade de uma vida” à frente dos
olhos. Hoje, é dono de uma empresa
avaliada em 7,4 mil milhões de euros
(dados de janeiro de 2022). Sobre um
regresso aos estudos: “Talvez um dia”,
responde com ironia à mistura. Em
2013, quando fundou a Bolt – na al-
Irmão mais novo de um enge-
nheiro de software, que trabalhou na
Skype – empresa de videochamadas
criada também na Estónia, em 2003,
comprada pela Microsoft anos depois
–, dedicava grande parte do seu tem-
po a ler sobre tecnologia ou a jogar
xadrez, paixão que mantém até aos
dias de hoje. Há alguns meses, mar-
cou encontro com Magnus Carlsen,
número um, no ranking mundial da
modalidade, desde 2013. O resulta-
leias – o mais procurado dentro do
grupo –, a empresa estónia fundou
o serviço Bolt Food, funcionando
de forma semelhante ao Uber Eats.
Ambas servem para entregas de co-
mida em casa dos clientes, através
da parceria com os restaurantes. A
tecnológica fundada na Estónia tem
ainda mercearias online, para entrega
de alimentação e produtos para casa,
aluguer de automóveis, bicicletas e
trotinetes elétricas. A sua aplicação
tura, chamada Taxify –, Markus Villig do: “O objetivo era durar mais do está disponível em mais de 45 países e
queria tentar mudar o mundo. Dez que o Bill Gates [risos].” Conseguiu, 200 cidades espalhadas pelo mundo.
anos depois, o estónio de 29 anos diz Villig foi derrotado após 15 jogadas, Desde cedo, Villig percebeu que
que a sua missão “está só a começar”. enquanto o fundador da Microsoft tinha de chegar onde a Uber não
“Éramos uns miúdos de 19 anos durou apenas 10. chegava. Focou-se na operação na
quando lançámos a empresa, num Europa, desde o mar Negro até ao
país pequeno como a Estónia, e agora NO INÍCIO, ERAM OS TAXISTAS oceano Atlântico, mas juntou-lhe uma
lideramos uma das maiores tecnoló- A Bolt começou por ser uma empresa outra geografia “com um potencial
gicas de sempre na Europa”, começa que trabalhava com os taxistas da Es-
por dizer à VISÃO, na entrevista feita tónia, mas rapidamente evoluiu para
a partir do escritório da Bolt, empresa uma outra coisa. Quatro anos antes,
rival da Uber, em Lisboa. “Não esta- em 2009, tinha nascido a Uber, nos
mos apenas a fazer história no mundo Estados Unidos da América. E tal
da tecnologia, mas também na forma
como as cidades se organizam e se
como Travis Kalanick e Garrett Camp
– fundadores da empresa norte-a-
“Éramos uns
constroem nas próximas décadas.” mericana –, também Markus Villig miúdos de 19 anos
É um dos filhos da independência
na Estónia. Nasceu em 1993, dois anos
considerava que existia uma lacuna
enorme na mobilidade das grandes quando lançámos
depois do colapso da União Soviética
e cresceu numa altura de forte expan-
cidades. As pessoas tinham de estar
novamente no centro da equação,
a empresa e
são económica e tecnológica em Talin, abandonando a ideia de que as ruas agora lideramos
capital do país, onde a partir de 2000
todas as escolas tinham computadores.
eram construídas para acomodar o
maior número de carros possível. uma das maiores
Quando era criança, queria ser cien-
tista, mas desde que aprendeu código,
As comparações com a sua maior
rival, a Uber, são inevitáveis. Atual-
tecnológicas de
já em adolescente, mudou de ideias. mente, para além do setor das bo- sempre na Europa”
74 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023
Markus Villig, CEO da Bolt, no
escritório da Bolt, na Avenida da
Liberdade, em Lisboa, inaugurado
em janeiro de 2023

A BOLT EM o trânsito”, começa por defender o


empresário. “Em Lisboa, por exem-
PORTUGAL plo, há cerca de 600 mil carros por
OS NÚMEROS DA OPERAÇÃO dia”, acrescentando: “Acho que devia
DA EMPRESA NO PAÍS haver muito mais trotinetes [em Lis-
boa]. Pelo menos devia haver cinco
vezes mais do que agora.” No verão,

50
circularam por Lisboa 8750 trotine-
tes, ou seja, se o número aumentasse
em cinco vezes, representariam 43
700 trotinetes na cidade – mais sete
CIDADES
Serviço de boleias está presente
vezes do que o número permitido em
em 50 cidades portuguesas Madrid, por exemplo.
Carlos Moedas, presidente da Câ-
mara de Lisboa, anunciou novas regras
para a utilização de trotinetes no início
deste ano. Os velocípedes ficaram limi-

8 000
tados a 20 km/h, passou a ser proibido
o estacionamento em praças, passeios
e estações de metro e em sentido con-
trário ao trânsito. Para além das regras
TROTINETES
de utilização, Moedas quis implemen-
Existem mais de 8 000 trotinetes
elétricas da Bolt por todo o País
tar um limite ao número de trotinetes
que circulam na cidade. Cada uma das
cinco operadoras presentes tem um
enorme”: África. Tem operação em máximo de 1 750 trotinetes na época
11 países diferentes, como na África alta e 1 500 na época baixa. Em janeiro,

3 000
do Sul ou em Moçambique. explicou a CML através de comunica-
Em Portugal, “um dos melhores do: “Se a trotinete não for estacionada
mercados em termos globais” para no local devido, o utilizador não con-
a empresa, abriu “o maior escritório segue desligar o serviço.”
BICICLETAS
regional da Europa”, em janeiro deste Na capital portuguesa, a Bolt tem
A Bolt tem mais de
ano, com cinco andares, no coração da 3 000 bicicletas elétricas
os seus serviços disponíveis. O de bo-
capital. “Esta é a décima vez que venho disponíveis em Portugal. A maioria, leias, a que se juntam o das entregas
a Lisboa. Já me rendi aos pastéis de no Porto e em Lisboa em casa, dos alugueres de viaturas,
nata e ao peixe”, remata o empresário, das trotinetes e bicicletas elétricas
de passagem pela cidade a propósito e dos mercados online. A cidade é
da edição deste ano da Web Summit. um dos focos de Markus Villig para

25 000
fazer crescer o negócio. Até porque,
TROTINETES EM LISBOA? HÁ no primeiro semestre deste ano, o
ESPAÇO PARA CINCO VEZES MAIS número de viagens realizadas cres-
Várias cidades europeias estão a banir ceu 50%, face ao mesmo período do
MOTORISTAS
ou a restringir o uso de trotinetes elé- ano passado, de acordo com os da-
Atualmente, a tecnológica tem
tricas, como é o caso de Paris, devido mais de 25 000 condutores
dos enviados pela empresa. A juntar
à desregulação da sua utilização. A registados na sua aplicação aos 150 trabalhadores do “hub” na
capital francesa foi a primeira a abrir para o serviço de boleias Avenida da Liberdade, em Lisboa, a
as portas a este tipo de velocípedes, – muitos deles têm as suas empresa conta com mais de 25 000
em 2018, e foi também a primeira a próprias empresas, que prestam condutores e 9 000 entregadores de
excluir as 15 000 que restavam. Um serviços à Bolt comida e mercadorias registados na
referendo, feito em abril deste ano, aplicação, por todo o País.
não deixou dúvidas: 90% dos pari- O CEO da Bolt defende uma maior
sienses quiseram banir as trotinetes regulação no uso tanto de trotinetes
desta cidade. Em Madrid, o executivo como de bicicletas, mas de forma a

9 000
abriu um concurso para apenas três coexistirem na cidade com os carros
empresas poderem operar na capital e os peões. “É claro que precisam de
espanhola, durante três anos, e com ser reguladas de forma inteligente.
um limite de 2 000 trotinetes cada. ENTREGADORES O grande pedido dos nossos clientes
A Bolt ficou de fora. Para além dos motoristas vai no sentido de arranjarmos mais
“Acho a ideia de limitar o núme- parceiros da Bolt, existem ainda parques e estamos a trabalhar para
ro de trotinetes horrível. (…) Porque cerca de 9 000 dedicados isso. O ideal seria haver um estacio-
queremos que as pessoas usem menos às entregas em casa, seja namento a cada 50 metros”, remata.
trotinetes e bicicletas? A alternativa de refeições ou de produtos “Lisboa, como a grande maioria das
é usar o carro, e isso é péssimo para de mercearia grandes cidades, tem problemas de

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 75


Bolt quer
estrear-se nos
lucros uma
década depois
Entrada em bolsa
pode acontecer em 2025

Desde que a empresa foi criada,


em 2013, nunca conseguiu
apresentar lucros, devido aos
constantes investimentos que
têm sido feitos ao longo destes
anos, explica o CEO, Markus
Villig. Agora, dez anos depois
de ter sido lançada, a tendência
pode alterar-se.
“Este ano, vamos fazer outro
esforço importante a caminho
do break-even, enquanto
continuamos a balançar o
crescimento e o nosso caminho
rumo à rentabilidade”, explica
Villig, em entrevista à VISÃO.
“No ano passado, os negócios
de todos os setores enfrentaram
ventos contrários significativos, mobilidade. Sabemos que a área dos A CIDADE PERFEITA
incluindo a inflação, a subida transportes e da mobilidade nas cida- E O CORTE DE CICLOVIAS
das taxas de juro e a previsão des está ‘claramente avariada’. Existem Depois da polémica em torno da
macroeconómica incerta.” 215 milhões de carros na Europa que ciclovia na Avenida Almirante Reis,
Em 2022, a empresa registou estão estacionados, a ocupar espaço, em Lisboa (Moedas prometeu na
receitas na ordem dos 1,3 mil sem serem usado, em 95% das vezes. campanha eleitoral eliminá-la, numa
milhões de euros, um valor É um desperdício enorme”, diz Villig, entrevista ao jornal Público, mas aca-
recorde, mas foram insuficientes questionando: “Porque precisamos bou por mantê-la), agora a ciclovia da
para fazer com que se estreasse logo de carros? Porque não optar Avenida de Berna começou a ser, de
nos resultados positivos. Nesse antes por trotinetes ou bicicletas? Eu facto, removida – para alterações da
ano, o prejuízo foi de 72 milhões sempre quis usar a tecnologia para configuração da via, de acordo com
de euros. tornar o mundo num espaço melhor o executivo.
Até agora, a prioridade de Villig para todos.” Questionado sobre essa alteração,
nunca foi entrar em bolsa. Mas Markus Villig diz que a solução é a
uma IPO (Oferta Pública Inicial, oposta: “Mais ciclovias.” “Eu perce-
na tradução para português) bo que no curto prazo, em termos
está na calha para daqui a dois políticos, pode ser difícil fazê-lo
anos, em 2025, porém “a decisão “Acho que (…), pode haver pressões (…), mas
final vai depender das condições daqui a dez anos vai ser bom para
de mercado na altura”. Copenhaga e toda a gente haver mais bicicletas
Na última ronda de
financiamento, a empresa
Amesterdão estão e ciclovias.”
“Se olharmos para os melhores
conseguiu arrecadar
628 milhões de euros,
muito perto dessa sítios no mundo para andar de bici-
cleta, cidades como Copenhaga [na
impulsionando a sua avaliação ideia [de cidade Dinamarca] e Amesterdão [nos Paí-
de mercado para os €7,4 mil
milhões. Essa última ronda
perfeita]. São ses Baixos] são exemplos”, adianta.
E são essas cidades que Villig con-
foi liderada pelos fundos de
investimento norte-americanos
desenhadas para sidera estarem muito perto do ideal
de cidade perfeita. “Não são cidades
Fidelity e Sequoia Capital. Nas as pessoas. Lisboa desenhadas para os carros, mas
rondas anteriores, outros nomes
sonantes, como a gigante está ainda longe, sim desenhadas para as pessoas.”
E Lisboa, onde fica nesse ranking?
chinesa de tecnologia Didi ou a
alemã Mercedes-Benz, também
mas na direção “Lisboa está ainda longe desse ideal,
mas está a ir na direção correta.”
se juntaram. correta” galmeida@exame.pt

76 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


ISTA R
REV EC

O
ME
NDADA VISÃO
JÚNIOR,
A VISÃO DOS MAIS
NOVOS
Campanha válida até 30 de novembro de 2023 na versão impressa e digital, salvo erro tipográfico.

Assine a VISÃO Júnior, uma forma leve


e divertida de aprender, com a qualidade da Visão
ASSINAR:
PAPEL 12 EDIÇÕES €40,80 €20,50

Aceda a loja.trustinnews.pt ou ligue 21 870 50 50


Dias úteis das 9h às 19h. Custo de chamada para a rede fixa, de acordo com o seu tarifário. Indique o código promocional COCFZ
Boa vizinha Luísa
Gomes chegou
a Carnide só com
sacos de roupa.
Quando morou
na rua, tinha medo
da violência
e dos roubos;
desde que tem
uma casa, até
deixa a janela
aberta

Felizes os
que têm teto
78 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023
Foram sem-abrigo, dormiram ao deus-dará, caídos
como as folhas das árvores. Mas deram a volta,
e os seus testemunhos são exemplo de como uma casa
devolve a dignidade e a possibilidade de reinserção
na sociedade. No final do ano passado, Portugal
contabilizava quase 11 mil pessoas em situação
de sem-abrigo, um aumento de 78% em quatro anos
— P O R S Ó N I A C A L H E I R O S T E X T O E J O S É C A R LO S C A R VA L H O F O T O S

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 79


E
Em casa, Luísa Gomes gosta de ouvir música e
variada, do rock dos Rage Against the Machine
ao “rap tuga” de Dillaz ou às canções-poema
de Bárbara Tinoco. “Boa tarde, vizinha!”, diz,
acenando à senhora que mora por cima, com
quem tem ganho familiaridade.
Há dois anos, mudou-se para um T1 em
Carnide, todo remodelado, numa casinha tér-
rea neste bairro lisboeta, tão parecida com as
da aldeia. “Só podia estar a sonhar”, lembra-se
de ter pensado quando abriu a porta e viu a sala
com kitchenette, muito minimalista, a casa de
banho com arrecadação e a suíte. Consigo, levava
apenas sacos cheios de roupa; o resto estava lá:
máquinas da loiça, da roupa e de secar, micro-
-ondas, termoacumulador, frigorífico, armários
“à brava”, sofá-cama e mobília de quarto. Por
ora, ainda lhe faltam tachos para a placa elétrica
de vitrocerâmica. E gostava de ter uma toalha
1,6
MIL MILHÕES
Pessoas a viver
em condições de
habitação inadequadas
em todo o mundo,
sendo cerca de 15
milhões despejadas
à força todos os
anos, segundo a
Organização das
Nações Unidas

100
MILHÕES
Pessoas em todo
de mesa de Natal, mais um conjunto completo o mundo sem
de pratos. qualquer tipo de
Luísa Gomes é uma inquilina de confiança, habitação, segundo
mesmo quando foi “ocupa” num prédio na Rua a Organização das
Washington, com o aval do senhor Eduardo, Nações Unidas recorda com muita clareza a chegada a Lisboa,
o senhorio, que, depois de expulsar todos os em 1975, a bordo de um avião militar.
outros sem-abrigo, lhe pediu para guardar o Aos 16 anos, deixou de estudar e casou na
edifício vandalizado. igreja, de véu e grinalda. Teve um filho – o
Sem água canalizada, Luísa e o companheiro, primeiro de quatro – e, passados seis anos,
Pedro Teixeira, tinham de acartar com garrafões divorciou-se. Começou a fazer “vida da
de cinco litros de água até ao terceiro andar, para noite” numa boîte: “Ganhei muito dinheiro,
os banhos remediados e a comida preparada mas também bebi muito álcool.” Foi uma das
numa placa elétrica, numa casa com quatro primeiras utentes do Centro das Taipas, onde
assoalhadas vazias e um closet para a roupa e fez 11 tentativas de desintoxicação.
os sapatos que não tinham. Em remissão do cancro e a receber Pres-
Com o passar do tempo, Luísa começou a ir tação Social para a Inclusão (€473), Luísa
à cantina e ao balneário de uma associação em Gomes quer acabar o 12º ano de escolarida-
Alfama, onde deixava a sua roupa para lavar e de para seguir o curso de Gestão Hoteleira e
vestia outras peças limpas. chegar a subchefe numa cozinha. Se, quando
Quando lhe foi diagnosticado um cancro morou na rua tinha medo da violência e dos
na amígdala esquerda, ficou alojada numa roubos, desde que tem uma casa até deixa a
residencial em frente ao Instituto Português janela aberta, nas noites de verão, para entrar
de Oncologia, para receber os tratamentos,
ratamentos, ar fr
fresco.
passando a ser inquilina prioritária ia do projeto
É Uma Casa, da Associação Crescer, cer, usando o OS NOVOS
N SEM-ABRIGO
método Housing First (Casa Primeiro),
meiro), desti- “Um sem-abrigo é muitas vezes invisível,
nado a pessoas em situação de sem-abrigo, ignorado. Quando sai da rua e passa a ser o
igno
atribuindo-lhes uma casa e apoio o para a sua nosso vizinho do lado, cumprimentamo-lo
noss
inclusão na sociedade. na eescada ou na rua”, constata Américo Nave,
Com lúpus e degeneração óssea, a, Luísa tam- psic
psicólogo clínico e diretor-executivo da Asso-
bém ganhou uma anemia crónica ca depois de ciaçã
ciação Crescer.
fluxos menstruais intensos, quando do dormia ao
relento no Martim Moniz e acordava ava a meio da
noite cheia de sangue. “Já roubei pensos
nsos higiéni-
cos no supermercado, não tenho vergonha de
dizer. Era uma preocupação maior or do que “O estigma é tão
comer”, assume Luísa Gomes, uma
fundadoras da associação Somos, a pri-
ma das grande que ainda há
meira dedicada às mulheres sem-abrigoabrigo quem diga: ‘Estas
em Portugal.
Nascida há 55 anos em Timor Loro pessoas não sabem
Sa’e, filha de pai português e mãe timo-
mo-
gal,
rense, Luísa foi enviada para Portugal,
viver em casas’”
AMÉRICO NAVE, psicólogo clínico e
aos 7 anos, para casa da avó paterna, a, e diretor-executivo da Associação Crescer

80 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


Nuno Jardim, diretor-geral do CASA – Cen-
tro de Apoio ao Sem-Abrigo, anda no terreno e
tem notado as diferenças: “Os jovens com em-
pregos precários que ficaram desempregados
em 2020 e 2021 entretanto já recuperaram. Na
casa dos 20 aos 40 anos, o impacto tem sido
superior, com imigrantes que chegam do Bra-
sil, Magrebe, Médio Oriente, Nepal, Paquistão
ou Bangladesh, em maior número do que era
habitual. Não estão a conseguir trabalho, nem
conseguem viajar para outro país europeu.”
Quanto aos portugueses, com o custo de vida
nos píncaros, “há pessoas a dormir em tendas,
casais incluídos, em que ambos têm trabalho,
sobretudo na área da restauração e hotelaria”,
mas no fim do dia, em vez de porem a chave
à porta, correm o fecho-éclair da tenda onde
pernoitam. A crise na habitação leva a que dia-
riamente cheguem ao CASA pedidos de ajuda
de quem não tem provisão para pagar a renda
ou o empréstimo do crédito à habitação.
Não é preciso que muito falhe para que qual-
quer indivíduo se transforme num sem-abrigo.
Especializada na intervenção comunitária Serenidade Só Uma conjugação perfeita de fatores torna a linha
com grupos excluídos e vulneráveis, a Crescer as quatro paredes muito ténue. As questões estruturais passam
do quarto deram
deu início, há dez anos, ao projeto É Uma Casa a Alexandra Peralta pelo desemprego e falta de suporte social (por
– primeiro, com sete casas na Mouraria, depois o sossego para exemplo, não ter apoio para pagar a renda ou
na freguesia de Santa Maria Maior e, mais tarde, conseguir dormir. apoio jurídico para saber os direitos face ao se-
em toda a cidade de Lisboa. Há dois anos, deixou nhorio), assim como estar institucionalizado até
O conceito é uma réplica do criado por Sam a tenda, debaixo aos 18 anos e sair da instituição sem qualquer
da ponte, e recuperou
Tsemberis, 74 anos, psicólogo clínico-comu- a guarda da filha perspetiva, ter alta hospitalar ou sair da prisão
nitário de origem grega e radicado nos EUA sem ter alojamento. As questões individuais
desde criança. Em 1992, o atual CEO do Instituto incidem sobre histórias de violência e trauma
Pathways Housing First exercia num hospital em familiar, vítimas de agressão, de abusos físicos e
Nova Iorque, no serviço de emergência móvel de sexuais, problemas de saúde mental e de com-
apoio aos sem-abrigo, aonde chegavam muitos portamentos aditivos.
dos que tinham ido parar à prisão ou aos centros “O estigma é tão grande que ainda há quem
de desintoxicação, voltando depois, novamente, diga: ‘Estas pessoas não sabem viver em casas’”,
para a rua com comportamentos aditivos asso- lamenta Américo Nave.
ciados a uma saúde mental desfeita.
Nessa altura, Sam Tsemberis delineou um QUANTO CUSTA SAIR DA RUA?
programa habitacional que também fornecia No banco, Alexandra Peralta, 44 anos, ainda
apoio clínico, em que não era obrigatório estar tem a morada da Emergência Social, no Cais
“limpo”, sóbrio ou equilibrado para ter acesso a do Sodré, mas sabe que tem de a alterar para
uma casa. Um ano mais tarde, em 1993, 84% das a rua onde mora há dois anos, no Bairro Alto.
pessoas alojadas continuavam nos apartamentos, Por agora, é premente a revisão do seu escalão
e o Housing First passou a ser o modelo para de IRS para receber mais do abono de família,
tirar as pessoas da situação de sem-abrigo mais referente à filha de 6 anos.
estudado em todo o mundo. Até ter adoecido, em 2022, com Covid-19,
Ninguém escolhe dormir ao relento, com frio, pneumonia e enfisema pulmonar, culminan-
chuva, violência e insegurança, mas são vários os
fatores externos que apagam a casa da vida de
alguns –catástrofes naturais, conflitos armados
10 773
Sem-abrigo em
do num internamento de um mês, em janeiro
deste ano, Alexandra conseguiu sempre estar a
trabalhar, mesmo quando viveu numa tenda na
entre países que levam ao êxodo, desemprego Portugal, a 31 de zona de Santa Apolónia, em Lisboa. Esteve na
causado por uma crise económica, problemas dezembro de 2022, Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral e
físicos ou mentais, falta de habitação a preços um aumento de 78% pela Santa Casa da Misericórdia a fazer aquilo de
justos e acessíveis. em quatro anos (6 044 que mais gosta – auxílio de doentes e de idosos.
Desde o final da pandemia que o perfil do sem-abrigo em 2018), Agora, desempregada, procura um trabalho
sem-abrigo nas grandes cidades, como Lisboa e dados da Estratégia durante a semana, em horário diurno, para
Porto, tem vindo a mudar. Já não são apenas as Nacional para a conseguir levar e buscar a filha à escola. Dos
pessoas em situação de pobreza, de dependência Integração de Pessoas 550€ que recebe de subsídio de desemprego,
de drogas, com problemas de saúde mental ou em Situação de Sem- paga 30% (€165) à Crescer, cumprindo uma das
associadas a casos de violência familiar. -Abrigo poucas regras do projeto que a tirou da rua. O

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 81


que sobra tem de esticar para comprar comida,
roupa e calçado para a filha, sempre a espigar,
algum material escolar, medicamentos (está a
faltar paracetamol, entre outros), dados móveis
para aceder à internet (por email, envia candida-
turas e currículos) e pagar transportes públicos.
Até aos 39 anos, em 2018, Alexandra morava
com o companheiro em Alenquer, numa vivenda
(propriedade da família dele), e tinham um carro.
Complicações pessoais e familiares levaram-na
a tribunal para pedir que a guarda provisória
da filha fosse entregue à avó paterna, para mais
tarde não ser acusada de abandono. O plano era
ir para Lisboa, “à procura de uma vida melhor”,
embora, na capital, o seu pai e a madrasta lhe
tenham virado as costas.
Dentro da tenda tinha as malas a fazerem de
mesa de cabeceira, colchões, almofadas e tapete
à porta. Debaixo da ponte, Alexandra era res-
peitada; os outros sem-abrigo diziam: “Lá vem
a mulher do trabalho.” “Sentia que estava num
parque de campismo”, descreve Alexandra, que
tinha de esconder a powerbank e o cabo USB,
carregados no emprego.
Com a ajuda da Crescer, passou para um
quarto de transição antes de se instalar numas
águas-furtadas, de onde se vê o rio Tejo, mobi-
ladas com sofá, três camas de solteiro em duas
divisões pequenas, cozinha equipada com má-
quina de lavar roupa e caldeira.
Subidos os 56 degraus íngremes da escada
de madeira estreita, a primeira vez que lá ficou seguimos. No entanto, se pensarmos quantas
Alexandra sentiu “um alívio por ter quatro pa-
redes para conseguir descansar, por saber que
podia andar despida, tomar duche, tratar do
68%
Percentagem
vezes o INEM é chamado quando as pessoas
estão na rua, quantas vezes entram no hospital
pelas urgências, quantas vezes têm problemas
cabelo e pôr creme na cara”. “Sentia-me livre.” de homens entre as judiciais de pequena criminalidade...”
Entretanto, já tem micro-ondas, edredões, pessoas em situação Em 2020, uma revisão de 26 estudos confir-
charriots para a roupa, sapateira, aparelhagem, de sem-abrigo no País, mou que a abordagem Housing First diminuiu
consola de jogos, a gata Ruca e um tríptico com em que 37% têm entre o número de sem-abrigo em 88%, aumentou a
fotografias de Nova Iorque, pendurado na parede 45 e 64 anos, dados estabilidade habitacional em 41% e melhorou a
da sala, que anda consigo desde os tempos da do Inquérito qualidade de vida dos sem-abrigo em relação aos
tenda. Mais importante de tudo, Alexandra re- de Caracterização métodos tradicionais. Os dados também mostra-
cuperou a guarda da filha, continuando a visitar das Pessoas em ram que, por cada dólar investido no programa,
a sogra aos fins de semana e nas férias. Situação de Sem- foram poupados 1,44 dólares.
Atualmente, a Crescer arrenda 140 casas para -Abrigo (2021)
depois as subarrendar, mas a voragem do mer- VIDAS PARTIDAS AO MEIO
cado imobiliário não lhe passa ao lado. Ao ofere- São várias as particularidades que levam ao
cer um ano de pagamento de rendas à cabeça, a
associação consegue algum poder negocial, sem
grandes descontos. Aliás, ultimamente, Améri-
46%
Percentagem
sucesso do método criado há 30 anos. Entre
elas, o facto de serem casas individuais, longe
dos bairros sociais, das zonas problemáticas da
co Nave tem falado com “imensos senhorios a de sem-abrigo cidade por onde os sem-abrigo já passaram. “As
tentarem rescindir o contrato, para fazerem um a receber Rendimento casas, ao serem dispersas pela cidade, permitem-
novo e aumentarem mais 100 euros”. Social de Inserção -lhes criar relações novas com os vizinhos, o
Mas como é financiado o projeto? Cada pes- carteiro, a mercearia. A equipa técnica, formada
soa custa cerca de €23 por dia, ficando €19 a por psicólogos, ajuda a pessoa a inscrever-se no
cargo da Câmara Municipal de Lisboa e o resto centro de saúde da área de residência, voltar a ter
(€4), da Segurança Social. Contas feitas pela todos os documentos pessoais em ordem e um
Crescer, cada uma destas pessoas retiradas da apoio monetário. Pequenos grandes detalhes que
rua custa €8 395 por ano. ajudam na aceleração da sua recuperação, de se
Será mais ou menos o que o Estado gasta sentirem cidadãos com direitos, como qualquer
quando moram na rua? Um valor que também outra pessoa”, explica Américo Nave.
Américo Nave gostaria de saber: “Continuamos Em Portugal, 90% de todas as pessoas que
a tentar ter esses números, mas ainda não con- entram no projeto não voltam à situação de sem-

82 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


-abrigo. Mas não basta dar uma casa; é preciso
ensinar-lhes como podem voltar a ser autó-
nomas, resolver problemas de dependência de
droga, ser incluído na vida de bairro, procurar
um emprego, retornar à vida.
“É muito comum os sem-abrigo usarem o
álcool para aguentar a rua. O uso de substân-
cias é uma estratégia para suportar o trauma
que, muitas vezes, estão a tentar não encarar”,
afirma Américo.
André Martins, 37 anos, renasceu em 2021,
palavras do próprio, ao mudar-se para um T1
com varanda, junto à Estrada de Benfica, zona
movimentada, com cafés, supermercado, merce-
aria, lojas e onde passam autocarros. Cada mola
da roupa que vai prendendo as t-shirts molha-
das no estendal simboliza uma vitória. Os dias
podem oscilar entre sofrer de ansiedade social e
não conseguir sair à rua, ou entrar em paranoia,
com mania da perseguição ao ver os revisores
no autocarro ou os seguranças no supermer-
cado. Também tem momentos em que se sente
sozinho, com necessidade de falar com alguém.
Já dormiu na rua, agora tem uma casa; depois
de anos sem emprego, tem um salário; chegou
a pesar 41 quilos e a passar fome, agora tem
comida no frigorífico. Apesar de o arroz ainda
lhe sair empapado e sensaborão, não desiste
de tentar cozinhar. “É um dia de cada vez, mas
sempre sabendo que amanhã tenho de comer”,
desabafa, no final de um dia de trabalho.
Algarvio de Bensafrim, perto de Lagos, traba-
lha há oito meses numa empresa de jardinagem.
Acorda, o mais tardar, às seis da manhã e pelas
7h15 apanha o autocarro para ir ao encontro do
colega que lhe dá boleia. “Jurava que não con-
seguia acordar de manhã cedo, mas agora vou
trabalhar contente; pareço um gaiato. Sinto-me
bem a mexer na terra, a trabalhar ao ar livre. A
minha vida, até perder o juízo, era andar a lavrar
com a minha avó.”
“Antes de a vida se partir ao meio, vim a Lis-
boa para começar a treinar no Benfica, mas os
testes acusavam só drogas”, relata André, que
dormiu num pavilhão em comunidade, durante
a pandemia, até passar para a rua, nas avenidas
da República e 5 de Outubro. Debaixo de um
telheiro, montava o colchão, mas os moradores
do prédio deitaram-lhe fora os pertences deze-
nas de vezes. André Martins dormiu tantas vezes
encolhido... protegia-se só com uma camisola, a
tapar-lhe o corpo.
Não basta dar Duas realidades
André Martins mora
Num País com quase 11 mil pessoas a dor-
uma casa; é preciso em Benfica, trabalha
numa empresa como
mirem na rua, a quantas conseguirá a Crescer
dar apoio habitacional e clínico? A milhares, na
resolver problemas jardineiro e sabe quão
duro é dormir na rua,
bitola de Américo Nave, tal como acontece nos
Estados Unidos da América, Finlândia e Canadá,
de dependência como acontece aos
novos sem-abrigo,
por exemplo. “Depende só do financiamento,
de drogas, procurar jovens trabalhadores
instalados em tendas
mais do que do número de casas ou dos valores
das suas rendas. Aos decisores políticos que me
um emprego, perguntam ‘Quanto tempo é que a pessoa fica
na casa?’, respondo: ‘Mas quanto tempo ficará
retornar à vida na rua?’.” scalheiros@visao.pt

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 83


---------- CRI S E

OS PODERES
E OS LIMITES
DE UM GOVERNO
“ZOMBIE”
Solução de Marcelo
rcelo para a demissão de Costa
ivo socialista a atingir o recorde
coloca o executivo
de tempo em queue estará com poderes limitados.
ssolução de Parlamento ainda
Apesar de dissolução
finida, alguns governantes estão
não ter data definida,
em modo de despedida. Quem já passou por
erta para o facto de os ministros
este cenário alerta
em deixar obra por concluir
não deverem
— P O R N U N O M I G U E L R O P I O E R I TA R ATO N U N E S

84 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


J
Já passaram mais de 15 dias
após o pedido de demissão de
António Costa, na senda das
buscas do Ministério Público,
que levaram à detenção, entre
outros, do melhor amigo do
primeiro-ministro e do chefe
de gabinete em São Bento. De
acordo com o guião conce-
bido por Marcelo Rebelo de
Sousa, o primeiro-ministro
ainda terá mais uma semana
em plenas funções, até o seu
governo entrar em gestão com
poderes limitados. Todavia, já
cheira a fim de regime, e há
ministros que não escondem
que se sentem com poderes
limitados, principalmente os
que tutelam os setores mais
problemáticos do Estado.
Este que parece ser um cer-
to modo “zombie”, em que se
encontra o terceiro executivo
de Costa, devido à operação
Influencer, agravou-se com a
saída de João Galamba. A ab-
sorção pelo primeiro-ministro
de assuntos importantes da
tutela do agora ex-ministro
das Infraestruturas deixa no
ar a dúvida sobre o que o PS
fará em relação a duas grandes
questões – o futuro aeroporto
de Lisboa e a privatização da
TAP. Empurrará com a barriga
até à tomada de posse de um
novo governo, em 2024, ou
deixará a sua marca, a exemplo
de decisões polémicas toma-
das por outros governos de
gestão, como foi a aquisição
do Siresp pelo executivo de
Santana e a entrega da TAP a
privados, na 25ª hora de Pas-
sos Coelho, em 2015?
Para o constitucionalista
Pedro Bacelar de Vasconcelos,
tendo “em conta que a decisão
do Presidente da República
recaiu na opção de um grande
período dilatado até às elei-

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 85


---------- CRI S E

ções antecipadas, o Governo a aceitação de uma demissão


continua no exercício pleno em data muito posterior. Na
das suas competências até ser prática, neste dia em que fala-
demitido e a dissolução da mos, as instituições estão em
Assembleia da República se funcionamento normalíssimo,
concretizar”. Porém, o passo porque não há demissão nem
dado por António Costa, no dissolução da Assembleia da
final do dia 7 de novembro, República, e permanece uma
está a limitar a atuação dos normalidade aparente, que
socialistas desde então. “Ob- visa garantir a aprovação do
viamente, a competência do Orçamento do Estado”, con-
Governo está condicionada sidera o docente universitário
pelas circunstâncias, que são e presidente da nova associa-
do conhecimento geral, e pelos ção Causa Pública – um think
poderes de controlo legislativo tank de esquerda. Ou seja: para
detidos pelo Presidente da Re- todos os efeitos, “o Governo
pública”, aponta o ex-deputado pode tomar todas e quaisquer
do PS, salvaguardando que, decisões, que tiverem de passar
“paradoxalmente, o Governo pelo Parlamento e, porventura,
até adquirirá instrumentos de que exijam maior escrutínio
governação mais vastos do que por parte do Presidente da
aqueles que detém no presen- República”.
te, com a aprovação do Orça- Segundo Pedroso, Guter-
mento do Estado para 2024”. res, assim que se demitiu, deu
Na verdade, a Lei Funda- “uma orientação de fundo
mental estabelece que o Go- aos ministros de que estes
verno ficará em gestão até sair deveriam abster-se de tomar
um novo das eleições, a 10 de decisões que impactassem o
março, mas só depois da sua futuro”. O desvio à regra só se
demissão e da dissolução do aplicaria “em casos excecio-
Parlamento, o órgão fiscali- nais ou em que já houvesse for mesmo a última, e, por isso,
zador da atividade governa- decisões tomadas. Aliás, estive fiz questão de passar um bo-
tiva – e isso espera-se que só envolvido num desses casos: a cadinho por todas as reuniões,
venha a acontecer no início de aprovação do novo cálculo de para agradecer aos sindicatos
dezembro. Nesse período, só pensões, que resultava de um os passos que conseguimos
poderão ser praticados “atos acordo já assinado na concer- dar, umas vezes com acor-
estritamente necessários para tação social. À data, mesmo do, outras vezes sem acordo”,
se assegurar a gestão dos ne- com os governantes com essa apontou João Costa, na última
gócios públicos”, de acordo orientação de autolimitação, Constitucional segunda-feira, 20.
com uma decisão do Tribunal o Presidente Jorge Sampaio No passado, decisões toma-
Constitucional, de 2002, em manteve o governo sob um definiu, em 2002, das por ministros de governos
resposta às dúvidas que o en- apertado escrutínio e estava na senda do de gestão desencadearam for-
tão Presidente da República,
Jorge Sampaio, suscitou sobre
muito vigilante”, lembra-se,
afastando a ideia de que haja
pedido de Jorge tes polémicas, ainda que te-
nham sido invocados motivos
os poderes de gestão que de- já ministros em “serviços mí- Sampaio, que o de necessidade maior. Na reta
tinha o executivo de António nimos”. governo de gestão final do executivo de Santana
Guterres, que se demitira após Contudo, o ministro da Lopes, até março de 2005,
os resultados eleitorais do PS Saúde viu a contestação no só pode tomar foi decidida a contratação da
nas autárquicas de 2001. setor, desencadeada sobretu- decisões que parceria público-privada do

ACELERAR ATÉ DEZEMBRO


do pelos médicos, diminuir,
assim que Costa se demitiu.
sejam inadiáveis Siresp (a rede de comunica-
ções de emergência e pro-
Paulo Pedroso, que estava Manuel Pizarro pouco mais fez e necessárias. teção civil do Estado), pelo
como ministro do Trabalho e até agora do que atirar para o Chefe de Estado ministro Daniel Sanches, que
da Solidariedade de Guterres sucessor uma solução para as estava com a pasta da Admi-
nesse período, faz questão de reivindicações da classe clíni- de então manteve nistração Interna. E quatro
salientar que “as duas situa- ca. Já o ministro da Educação, forte vigilância dias antes das eleições legis-
ções” – a de 2001 e a de agora
– são “distintas”. “A solução
apesar de as negociações com
os sindicatos se manterem
sobre a atuação lativas, de fevereiro de 2005,
os ministros do Ambiente,
desenhada pelo Presidente da – ainda que nas mãos do se- do executivo de Nobre Guedes (CDS), do Tu-
República é inteiramente po- cretário de Estado –, até se Guterres, lembra rismo, Telmo Correia (CDS),
lítica. Existem alguns aspetos despediu dos docentes. “Esta e da Agricultura, Costa Neves
controversos, que serão anali- será uma das últimas rondas o ex-ministro (PSD), autorizaram o abate de 2
sados pela doutrina, tais como negociais que teremos, se não Paulo Pedroso 600 sobreiros para a constru-

86 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


a marcação das legislativas, em de confusão e de manipulação
vez de uma opção que passasse política, numa fase em que
por entregar a gestão do País Governo e a Assembleia de-
a outra figura socialista, esta veriam exercer enorme pru-
não deixa de lembrar o tempo dência e reserva. Após a queda
que Costa estará em funções, do governo e a marcação de
apesar de já ter apresentado a eleições, o tempo devia ser dos
sua demissão, e o facto de, com partidos e de debate eleitoral,
o chumbo do Orçamento do e não deveria servir para fazer
estado, em outubro de 2021, política eleitoral através da
os sociais-democratas terem Assembleia e do Governo. Esse
sufragado a liderança de Rui é o risco fundamental que foi
Rio em tempo recorde. criado”, conclui.
“Acho que fazia sentido dar
algum tempo ao PS para ele PAÍS NÃO PODE PARAR
se organizar e escolher uma O Governo entra em gestão
liderança nova. Tratando-se, no início de dezembro, quan-
com o PSD, dos dois parti- do o Presidente da República
dos ‘de governo’, é importante publicar um decreto-lei com
para a democracia que os ci- a demissão do primeiro-mi-
dadãos tenham uma escolha nistro, e assim ficará pelo
clara entre duas lideranças menos até abril. Durante este
perfeitamente legitimadas. tempo, o Executivo só pode
Não penso, no entanto, que aprovar iniciativas essenciais
fosse necessário tanto tempo. – um conceito duvidoso e
No caso do PSD, antes das sujeito à interpretação dos
últimas eleições [janeiro de vários governos de gestão.
2022], não foi necessário tanto Tem sido comum, nestas
tempo”, sinaliza Miguel Poia- circunstâncias, os políticos
res Maduro, ex-ministro do alegarem que se trata apenas
ção de um empreendimento Desistentes? Desenvolvimento Regional, de de pôr em prática decisões
turístico em Benavente. Ambas João Costa e Manuel Passos Coelho, e docente uni- tomadas anteriormente, so-
as situações estiveram na mira Pizarro arriscam-se a versitário, acrescentando que correndo-se do acórdão do
chegar ao fim da legislatura
da Justiça, durante anos. sem terem conseguido, “o que determinou este calen- Tribunal Constitucional de
Uma década depois, o Go- pelo menos, resolver a dário foi, sobretudo, a vontade 2002, no qual se determinou
verno da coligação PSD/CDS, contestação nos setores de o Presidente da República – em resposta ao pedido de
liderado por Passos Coelho, que tutelam garantir a aprovação do Orça- fiscalização do Presidente
também avançou com uma de- mento do Estado. Isso levou Jorge Sampaio – que An-
cisão controversa. A 12 de no- a este prazo tão prolongado tónio Guterres não excedeu
vembro, um dia após a queda e, ainda mais problemático, as funções, enquanto chefe
no Parlamento – na sequên- à manutenção do período em de um governo de gestão,
cia de uma moção de rejeição plenitude de funções durante quando aprovou um decre-
apresentada pelo PS –, o Con- algumas semanas”. to-lei para alterar o regime
selho de Ministros aprovou a Poiares Maduro argumenta jurídico aplicável à gestão
minuta final do acordo que que “esta última circunstância, dos hospitais e dos centros de
entregava a TAP ao consórcio depois de o Presidente ter in- saúde, visto que este estava
Gateway. Na altura, a secretária formado que aceita a demissão mencionado no Programa de
de Estado do Tesouro, Isabel do primeiro-ministro, ainda Estabilidade e Crescimento
Castelo Branco, justificava a que sem a formalizar, é muito para 2002-2005, apresen-
decisão com a necessidade de problemática, não apenas do tado em Bruxelas.
se “antecipar” a capitalização ponto de vista constitucional A jurisprudência pode
da companhia aérea. – é uma forma de contornar agora ser fundamental para
a Constituição, como quase legitimar a continuação das
MAIS É DEMAIS todos os constitucionalistas negociações entre o executivo
Um dos motivos invocados mencionaram – mas sobretu- de António Costa e os seto-
por Marcelo Rebelo de Sousa, do do ponto de vista político”. res da Saúde e da Educação,
para estabelecer um prazo tão “Por um lado, o Governo está havendo hipótese de estes
invulgar até às eleições anteci- politicamente morto, demiti- temas se juntarem a outros
padas, foi a necessidade de se do, e as eleições estão marca- compromissos já assumi-
permitir ao partido do Gover- das, mas, por outro, o Governo dos pelo Governo, como o
no arranjar um sucessor para está em plenitude de funções, aumento das pensões e do
António Costa. Ainda que à di- e a Assembleia da República salário mínimo nacional (para
reita se tenha concordado com também. Isto cria riscos sérios €820), em 2024.

23 NOVEMBRO 2023 VISÃO 87


---------- CRI S E

O ministro da Saúde tem- em curso, desde alterações


-se mostrado disponível para nas leis orgânicas da Dire-
não deixar cair as negocia- ção-Geral da Saúde à extinção
ções, numa altura em que das Administrações Regionais
dezenas de hospitais enfren- de Saúde e da Administração
tam constrangimentos por Central do Sistema de Saúde,
dificuldades de preenchi- passando pela passagem de

MARCOS BORGA
mento de escalas, com mais novas competências para as
de 2 500 médicos em greve às autarquias e a massificação
horas extraordinárias. Porém, das Unidades Locais de Saúde,
os representantes sindicais que ainda não têm dirigentes
acusam desânimo. nomeados. Roque da Cunha
Acabar “com dignidade”... O secretário-geral do tem receio de que a “inca-
Sindicato Independente dos pacidade de legislar muitos
Como serão os últimos dias da relação institucional Médicos (uma das duas es- destes aspetos práticos e a
entre Marcelo e Costa? truturas que se têm sentado incapacidade de dar orienta-
à mesa com Manuel Pizarro) ções políticas e operacionais”
A relação institucional entre correrão com menor fluidez.” sublinha que “uma crise po- conduzam a “perturbações
António Costa e Marcelo No rescaldo desta troca de lítica em cima da gravíssima mais severas” no setor.
Rebelo de Sousa parece galhardetes, o conselheiro de crise no SNS não é boa para No caso dos professores,
ter-se degradado, depois Estado António Lobo Xavier ninguém”, antevendo que o sentido de urgência dimi-
da demissão do primeiro- revelou, praticamente, que a os problemas da Saúde po- nui, fruto de uma luta que se
ministro. Confrontado com a assunção pública de Costa dem ficar em banho-maria, tem arrastado por sucessivos
ida polémica da procuradora- da ideia de chamar a PGR a durante o inverno: “Se não governos. “O atual contexto
geral da República a Belém, Belém ocorreu na reunião do houver acordo enquanto o não atrasa, necessariamente,
na manhã do dia 7 de Conselho de Estado – de que Governo estiver na plenitude a resposta a estes problemas,
novembro, ao mesmo tempo o comentador faz parte. funções, só para o segundo pois ao fim de oito anos, mes-
que prosseguiam as buscas Fontes socialistas semestre de 2024 é que se mo onde se verificaram alguns
no âmbito da operação asseguram entretanto que, poderão reiniciar as negocia- progressos, estes foram cla-
Influencer, o Presidente uma vez demissionário, ções com um novo governo, ramente insuficientes, tendo
da República disse aos António Costa já não tem e isto com a evidente degra- sido até nos últimos anos que
jornalistas que a ideia tinha nada a perder e que a sua dação das dificuldades de a falta de professores – fruto
sido do primeiro-ministro: impaciência com “certas acesso dos portugueses aos da desvalorização da profissão
“O sr. primeiro-ministro já atitudes” do Presidente cuidados de saúde”. e do agravamento das condi-
esclareceu que pediu para eu pode ser tornada pública Além das dúvidas sobre as ções de trabalho dos docentes
pedir o encontro à senhora mais vezes. Num Governo carreiras dos médicos, a Saúde – se verificou e se acentuou”,
procuradora-geral”, disse de gestão, a vigilância enfrentará, no início do próxi- refere Mário Nogueira, líder
Marcelo. Costa, que nunca presidencial sobre o que mo ano, questões relacionadas da Fenprof, acrescentando
tinha assumido publicamente o executivo pode ou não com a reforma organizacional que aproveitarão as eleições
essa informação, reagiu pode fazer vai acentuar- antecipadas para “insistir jun-
mal, afirmando não se se, e Marcelo, segundo to dos partidos para que es-
lembrar de ter feito qualquer apurou a VISÃO, estará À esquerda, tes assumam compromissos
comentário público sobre o
assunto. Depois, sem criticar
“ainda mais atento” à ação
governativa, por forma a
considera-se que, claros, com vista à resolução
dos problemas, ainda que de
diretamente o Presidente, impedir que o Governo até Marcelo aceitar forma faseada”.
fez estalar o verniz... nas “ponha o pé em ramo verde”. a demissão de Além disso, será também
entrelinhas: “Em oito anos Mas o Presidente não em dezembro que a Comis-
como primeiro-ministro, deseja escalar ainda mais a
Costa e dissolver são Técnica Independente,
tenho o princípio de, nem por turbulência institucional e o Parlamento, liderada por Rosário Parti-
mim nem por heterónimos
que escrevem nos jornais,
prefere que o assunto fique
por aqui. Entretanto, do lado
o Governo tem dário, anunciará a avaliação
sobre a localização do futuro
dizer o que acontece nas das duas candidaturas à plenos poderes. aeroporto de Lisboa – uma
conversas entre mim e o sr. liderança do PS, ninguém Mas para a direita, decisão que terá de ser sus-
Presidente da República.” parece estar na disposição pensa até ao novo governo
Depois, continuou a “prática de comprar uma guerra
é isso mesmo tomar posse ou que exigi-
da chazada” e acrescentou: com Marcelo: afinal, José que a preocupa. rá um acordo com o PSD,
“No dia em que um começar
a achar que pode dizer
Luís Carneiro ainda faz
parte do Governo e Pedro
“Cria riscos sérios abençoado por Belém. Só
que, tendo em conta que a
o que o outro disse, ou Nuno Santos, dizem fontes de confusão e relação entre Marcelo e Costa
o que o outro não disse, da candidatura, “já teve de manipulação já conheceu melhores dias, o
seguramente as relações problemas que chegassem futuro da Portela arrisca-se
entre órgãos de soberania com o Presidente”… — F.L.
política”, alerta a sofrer mais um adiamento.
Poiares Maduro visao@visao.pt

88 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


ASSINE E VENHA PÔR
AS MÃOS NA MASSA

OFERTA

NO VALOR DE
€135

OFERTA DE UM WORKSHOP:
CERÂMICA, MARCENARIA OU SERIGRAFIA
Aprenda a fazer por si. Ponha as mãos na massa e torne-se um artesão. Os workshops
são constituídos por três sessões de três horas cada. A FICA Oficina Criativa é em Lisboa,
em arroios, e funciona como um espaço onde vários ofícios têm lugar.

NÃO PERCA RECEBA COMODAMENTE PORTES 8 EDIÇÕES POR €47,20


NENHUMA EDIÇÃO EM SUA CASA GRÁTIS + OFERTA FICA OFICINA CRIATIVA ASSINAR

LOJA .T R U S T I N N E WS . P T O U L I G U E 2 1 8 7 0 5 0 5 0
DIAS ÚTEIS DAS 9H ÀS 19H | CUSTO DE CHAMADA PARA A REDE FIXA, DE ACORDO COM O SEU TARIFÁRIO.
INDIQUE O CÓDIGO PROMOCIONAL COCFX

Campanha válida até 31 de dezembro de 2023 e oferta disponível após boa cobrança. A marcação das sessões é da responsabilidade da FICA Oficina Criativa
e é feita diretamente com a mesma, através do telefone +351 919 194 823 ou pelo email workshop@fica-oc.pt. Oferta limitada às vagas disponíveis.
Os workshops podem ser utilizados até 9 meses após aquisição da assinatura.
O P I N I ÃO

Devia António Costa


José
Carlos de
ter-se demitido?
Vasconcelos

1.
António Costa pediu a responsabilidade na escolha, tinha de se
demissão a (muito) quente, logo demitir. É assim? Foi assim com os seus
após conhecer o comunicado antecessores? Lembro apenas o exemplo
da PGR sobre a agora chamada do que esteve mais tempo no topo do
Operação Influencer. E logo poder, e líder incontestado do PSD, Cavaco
após essa demissão escrevi aqui ter dúvidas Silva: Oliveira Costa, o do BPN (que deu
sobre se deveria tê-lo feito, explicando milhões de contos de prejuízo ao País, e
porquê. Duas semanas corridas, conhecidas lucros a alguns amigos), foi seu secretário
as acusações aos suspeitos, e tendo o juiz de Estado; Dias Loureiro, seu destacado
de instrução decidido não haver sequer ministro; Duarte Lima, líder parlamentar
— Fundador da VISÃO do seu partido. Tem comparação possível
indícios dos crimes de corrupção e
prevaricação, tendo a deixar de ter dúvidas o que cada um deles fez com aquilo de que
À MARGEM de que, na defesa da estabilidade política Lacerda, Escária ou Galamba são acusados?
Sobre o MP e no interesse do País, Costa não devia
Sempre defendi a ter-se demitido. Com a convicção de que o 4. Mas será que Costa pediu a demissão
autonomia, que não pode decurso do tempo e do “processo” mais o esperando que Marcelo não a aceitasse?
ser irresponsabilidade nem confirmará. Sem prejuízo de compreender, Era óbvio que a aceitaria. Além de por
impunidade, do MP. MP como então disse, a sua atitude, também razões de distanciamento, se não conflito,
que desde o 25 de Abril em parte explicável pela forma como entre político, que nestes últimos dias se tem
teve à sua frente (além de
nós se faz política, oposição, certo dito agravado – o que a ambos cabe evitar –,
nos seus quadros) vários
jornalismo e comentário político – quase porque se não a aceitasse dir-se-ia que
respeitáveis, ilustres, juristas:
unânime em afirmar que era forçoso passara a (man)ter o Governo ao “colo”…
Arala Chaves foi o primeiro,
outros se seguiram, entre
demitir-se. Como era óbvio que Marcelo dissolveria
eles meus colegas de curso o Parlamento e marcaria novas eleições
e amigos. Assim, lamento 2. Para Costa, aliás, a demissão era – com alta probabilidade de ser o PS o
muito o que mais uma vez talvez, no momento, a atitude mais clara e principal prejudicado, e o PSD (sobretudo
está a ocorrer, que não se simples, a mais favorável à sua imagem e Montenegro) e o Chega serem os principais
pode imputar à instituição até ao seu futuro político. Não foi por isto, beneficiados.
em geral, mas mostra a porém, que se demitiu, antes apenas pelo
necessidade de reformar teor daquele comunicado. Mas o que creio 5. Nada disto exclui a culpa da situação
o seu funcionamento – devia ter feito era falar aos portugueses a que se chegou ser de quem no MP agiu
como a procuradora- manifestando a sua surpresa pelo resultado como agiu. Desde prender, e manter
-geral adjunta, Maria José de “suspeitos” haverem citado o seu nome presos, para interrogar, suspeitos que
Fernandes, salientou num para “desbloquear procedimentos” – o nada indicia se notificados para o efeito
excelente e corajoso texto que é nada. E sendo isto nada, garantindo não comparecessem ou destruíssem
saído no Público. Costa, como fez, não ter praticado nenhum documentação, até qualificar como crime
Ainda bem, para o MP ato criminal, ilícito ou sequer censurável, o que de clareza meridiana parece não o
e para o País, que o não se demitiria de imediato, para evitar ser, antes configurar práticas normais,
fez. Ainda mal que não uma crise política grave; mas que de não ilegais, em casos com a importância
o faça o sindicato da imediato o faria, independentemente de ser e a complexidade dos sub judice. E
classe, entrincheirado
constituído arguido ou de alguma acusação chega a ser confrangedor, inadmissível,
numa espécie de velho
formal, caso o Supremo Tribunal de Justiça considerar corrupção, prevaricação, tráfico
corporativismo. Ao
contrário do Sindicato dos
viesse a admitir a existência de qualquer de influência ou benefício indevido de
Jornalistas, cujo Conselho suspeita sobre qualquer seu procedimento. vantagem o pagamento de almoços ou
Deontológico emitiu uma jantares; ou uma autarquia receber, em
lúcida e também corajosa 3. Já houve quem dissesse que o troca de supostos favores, subsídios, aliás
recomendação sobre como primeiro-ministro, por várias razões mínimos, para um festival de música e
os média devem, ética e (incluindo erros que de facto cometeu) para a prática de desporto por jovens; ou
deontologicamente, tratar desgastado, aproveitou o pretexto para a promessa de construção de uma nova
as escutas telefónicas, se ir embora. O que não é verdade. Ou estrada num concelho que aceita nele seja
“repudiando” a forma como dissesse que a investigação recaindo sobre feita a exploração de lítio. E muito mais
alguns o têm feito. alguns dos seus mais próximos, dada a sua haveria a acrescentar... visao@visao.pt

90 VISÃO 23 NOVEMBRO 2023


Proprietária/Editora: TRUST IN NEWS, UNIPESSOAL LDA.
Sede: Rua da Fonte da Caspolima – Quinta da Fonte
Edifício Fernão de Magalhães, n.º 8, 2770-190 Paço de Arcos
NIPC: 514674520.
Gerência da TRUST IN NEWS: Luís Delgado,
Filipe Passadouro e Cláudia Serra Campos.
Composição do Capital da Entidade Proprietária: 10.000,00 euros,
Acionista: Luís Delgado (100%)

Diretora: Mafalda Anjos


Diretor-Executivo: Rui Tavares Guedes
Subdiretora: Sara Belo Luís
Editores-Executivos: Alexandra Correia e Filipe Luís
Conselheiro Editorial: José Carlos de Vasconcelos
EXAME/Economia: Tiago Freire (diretor)
Editores: Clara Cardoso (visao.pt) Filipe Fialho (Mundo), Inês Belo (VISÃO Se7e),
João Carlos Mendes (Grafismo), Manuel Barros Moura (Radar)
e Pedro Dias de Almeida (Cultura)
Redatores Principais e Grandes Repórteres: Carlos Rodrigues Lima,
Cláudia Lobo, José Plácido Júnior e Rosa Ruela
Redação: Cesaltina Pinto, Clara Soares, Clara Teixeira, Florbela Alves
(Coordenadora VISÃO Se7e/Porto), Joana Loureiro, João Amaral Santos, Luísa
Oliveira, Luís Ribeiro (Coordenador Ambiente), Margarida Vaqueiro Lopes, Mariana
Almeida Nogueira, Nuno Aguiar, Nuno Miguel Ropio, Paulo C. Santos, Rita Rato LÚCIA PILOTO
Nunes, Rui Antunes, Rui Barroso, Sandra Pinto, Sara Rodrigues, Sara Santos, Sílvia CUIDADOS CAPILARES
Souto Cunha, Sónia Calheiros, Susana Lopes Faustino e Susana Silva Oliveira
Grafismo: Paulo Reis (Editor adjunto), Teresa Sengo (Coordenadora), Conhecida pelo seu cuidado exímio e pelos seus serviços de luxo, Lúcia Piloto inicia uma
Ana Rita Rosa, Edgar Antunes, Filipa Caetano, Hugo Filipe, Patrícia Pereira nova etapa ao manter o seu serviço de excelência aliado à naturalidade e
Infografia: Manuela Tomé e Raquel Leal
Fotografia: José Carlos Carvalho, Lucília Monteiro, Luís Barra e Marcos Borga sustentabilidade de PHILIP MARTIN’S. Todos os produtos são elaborados com
Copydesk: Rui Carvalho e Teresa Machado ingredientes botânicos de origem natural e biológica, aliando a busca pela qualidade e
Secretariado: Sofia Vicente (Direção) e Ana Paula Figueiredo
Colunistas: Bernardo Pires de Lima, Pedro Marques Lopes e Joana Marques
bem-estar para oferecer eficácia ao nível do serviço e resultado, sendo a única rede de
Colaboradores Texto: Manuel Halpern, Miguel Judas, Pedro Dias, cabeleireiros que tem esta oferta.
Margarida Robalo, Sónia Graça (Revisão) e André Germano (Online)
Ilustração: Susa Monteiro
Redação, Administração e Serviços Comerciais: Avenida Jacques Delors,
Edifício Inovação 3.1, Espaço nº 511/512 2740-122 Porto Salvo
Delegação Norte: CEP – Escritórios, Rua Santos Pousada 441- sala 206 e 208,
4000-486 Porto, Telefone: 220 993 810
Marketing e Publicidade: Vânia Delgado (Diretora Comercial e Marketing)
– vdelgado@trustinnews.pt
Marketing: Joana Hipólito (gestora de marca) – jhipolito@trustinnews.pt
SWATCH
Publicidade: Telefone 218705000 (Lisboa) BIG BOLD IRONY
Maria João Costa (Diretora Coordenadora Publicidade) – mjcosta@trustinnews.pt
Tiago Garrido (Gestor de Marca) – tgarrido@trustinnews.pt
Criados para exploradores
Mariana Jesus (Gestora de Marca) – mjesus@trustinnews.pt ousados e com orgulho em
Rita Roseiro (Gestora de Marca ) – rroseiro@trustinnews.pt
Florbela Figueiras (Assistente Comercial Lisboa)– ffigueiras@trustinnews.pt
serem diferentes, BIG
Elisabete Anacleto (Assistente Comercial Lisboa) – eanacleto@trustinnews.pt BOLD incorpora uma
Delegação Norte – Telefone: 220990052 atitude, uma mentalidade
Margarida Vasconcelos (Gestora Marca) – mvasconcelos@trustinnews.pt
Carla Dinis (Assistente Comercial Porto) – cmdinis@trustinnews.pt e um modo de vida
Digital e Parcerias Hugo Lourenço Furão (coordenador) hfurao@trustinnews.pt irreverente, confiante e
Branded Content – Carolina Almeida (coordenadora) cmalmeida@trustinnews.pt
totalmente inesperado.
A VISÃO BS é a unidade de produção de conteúdos patrocinados
para parceiros da VISÃO, com coordenação do TIN Brand Studio.
Produção, Circulação e Assinaturas: Vasco Fernandez (Diretor),
Pedro Guilhermino (Coordenador de Produção) Nuno Carvalho, Nuno Gonçalves,
Paulo Duarte (Produtores) e Isabel Anton (Coordenadora de Circulação),
Helena Matoso (Coordenadora de Assinaturas)
Serviço de apoio ao assinante: Tel.: 21 870 50 50 (Dias úteis das 9h às 19h)
Custo de chamada para a rede fixa, de acordo com o seu tarifário
Impressão: Lisgráfica – Estrada de São Marcos Nº 27 S. Marcos
– 2735-521 Cacém
Distribuição: VASP MLP. Pontos de Venda: contactcenter@vasp.pt
– Tel.: 808 206 545
Tiragem média do mês de outubro: 26 550 exemplares
Registo na ERC com o nº 112 348
Depósito Legal nº 127961/98 – ISSN nº 0872-3540

APOIO AO CLIENTE/ASSINANTE
apoiocliente@trustinnews.pt LISBON
Estatuto editorial disponível em www.visao.pt
MARRIOT
HOTEL
A Trust in News não é responsável pelo conteúdo dos anúncios
nem pela exatidão das características e propriedade dos produtos
e/ou bens anunciados. A respetiva veracidade e conformidade com a
realidade, são da integral e exclusiva responsabilidade dos anunciantes
e agências ou empresas publicitárias. Interdita a reprodução, mesmo BRUNCH
parcial de textos, fotografias ou ilustrações sob qualquer meios,
e para quaisquer fins, inclusive comerciais. O Lisbon Marriott
Hotel, localizado na
Av.dos Combatentes,
ASSINATURAS acaba de lançar
Ligue já
brunches exclusivos
21 870 50 50 para degustar com a
Dias úteis – 9h às 19h
família, amigos ou numa
reunião profissional.
POR
Marshmello
Joana
Marques e os caramelos
— Humorista
da Web Summit
ELEFANTE NA SALA

E
, ao fim de oito edi- validado, desde que apresentado activistas Mike Bonanno e Andy
ções, aconteceu! Foi nos termos certos: criptomoeda, Bichlbaum fizeram-se passar por
apresentado na Web metaverso, pitch, e outros con- famoso DJ e executivo da Adidas
Summit um projec- ceitos que nos soam sofisticados com o intuito de alertar para o
to verdadeiramente ainda que não saibamos bem o desrespeito dos direitos laborais
revolucionário: o teletranspor- que são. A própria Web Summit em grandes organizações, mas
te. Só isso tornou possível que é um desses conceitos: todos isto serve também para lembrar
Marshmello, DJ norte-america- sabemos que é uma cimeira os perigos da Internet. Se a CEO
no, tenha viajado de Las Vegas, tecnológica, mas ninguém sabe de um gigantesco evento acre-
onde actuou a 15 de Novembro, para que serve. Os anos vão ditou que estava a contratar um
para o Parque das Nações, onde passando e aquilo que acontece artista internacional, como é que
discursou a 15 de Novembro, dentro da Web Summit perma- uma senhora aposentada não se
tudo isto no espaço de uma nece tão misterioso como o que há-de apaixonar por um homem
hora. Esta, sim, é a inovação que se passa na casa de banho das que diz ser ex-sargento na Síria
todos aguardávamos com ansie- mulheres. Só sabemos que há e precisar urgentemente de cinco
dade. E é melhor sentarmo-nos, muita conversa e que demora mil euros?! Em ambos os casos
porque a espera vai continuar. uma eternidade. A Web Summit o esquema é igual: de um lado,
O DJ que se apresentou em parece o cenário de uma me- uma pessoa que esconde a sua
Lisboa era falso, os visitantes gaprodução de Hollywood, em verdadeira identidade, do outro,
da Web Summit pagaram um que metade dos figurantes tem alguém que quer muito apai-
balúrdio para entrar, e depois de andar de um lado para xonar-se: seja por um militar
em vez de Smarties serviram- o outro com o ar preocupado de enxuto, seja pela ideia de que
-lhes Pintarolas. O pretenso quem tem uma startup e a outra tudo o que é digital é sinónimo
DJ fez-se acompanhar por um, metade tem de circular com o de progresso. Não estranhem,
também falso, executivo da Adi- ar ocupado de quem é investi- portanto, se para o ano figu-
das, que apresentou o adiVerse, dor. Depois há meia dúzia que rar na lista de oradores da Web
um dispositivo implantado nos de facto esbarram uns com os Summit o príncipe da Nigéria,
colaboradores da empresa, para outros e se apaixonam, tornan- esse grande empreendedor, que
controlar e rastrear o traba- do-se assim os protagonistas já facturou biliões de dólares
lho, e gerar uma moeda virtual, desta comédia romântica patro- graças às novas tecnologias.
a adiCoin, que permitira que cinada por Carlos Moedas. Os visao@visao.pt
mesmo aqueles funcionários
que não conseguem pagar uma
refeição diária passassem a viver
vidas gratificantes, sem dinheiro
físico. No final, o artista can-
tou, com uma voz diferente da
habitual, e todos os caramelos
presentes aplaudiram, provando
que qualquer esquema de escra-
vatura contemporânea pode ser

Os anos vão passando e aquilo


que acontece dentro da Web
Summit permanece tão misterioso
como o que se passa na casa de
banho das mulheres. Só sabemos
que há muita conversa e que
demora uma eternidade MARSHMELLO

114 VISÃO 1 JANEIRO 1999

Você também pode gostar