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A ciência e as humanidades: a função

renovadora da indagação histórica*

Allen G. Debus

RESUMO - Neste artigo, o Prof. Debus defende a mente enfrentamos. Aliás, chego a duvidar se as
tese de que a Hist6ria da Ciência é, essencialmente, sessões versando sobre temas como a história
uma sub-área da História, analisando as implicações das mulheres ou a cultura do índio norte-ameri-
metodol6gicas da mesma. Partindo dos trabalhos, que cano, que hoje temos em encontros de historia-
se tornaram clássicos, de historiadores da ciência co- dores, poderiam ter sido organizadas em en-
mo Duhem, Sarton, Koyré, Thorndike, Butterfleld, contros similares trinta anos atrás.
Clagett, Pagel, Kuhn, dentre outros, o autor identifica Ainda, à medida que os interesses nacionais
uma tendência que se afumaria atualmente em pes- tomaram-se globais, mais e mais historiadores
quisas mais sensíveis ao contexto cultural 'e social em passam a considerar a história mundial e áreas
que se dá o trabalho científICO, e de cunho menos téc- geográficas que antes despertavam relativa-
nico e internalista. Esta tendência apontaria para pro- mente pouco interesse. E, hoje, são poucos os
blemas metodol6gicos comuns às áreas de Hist6ria da departamentos acadêmicos norte-americanos a
Ciência e História, reforçando a recomendação do concentrarem-se exclusivamente na história dos
autor de uma maior aproximação entre ambas, que se Estados Unidos e da Europa Ocidental.
traduza inclusive no plano institucional. Os razoavelmente bons tempos em meados
dos anos 60 favoreceram a expansão dos de-
partamentos de história de muitas escolas norte-
Todos nós sabemos que as interpretações
americanas para novas áreas, que não tinham
tradicionais foram rreqüentemente desafiadas
representação anteriormente. Algumas dessas
nas 'liltimas três ou quatro décadas ... por muitas
áreas eram notadamente interdisciplinares. Uma
e variadas perspectivas. Quanto a mim, creio
delas era a História da Ciência, e será sobre ela
que as interpretações tradicionais, fundamenta-
que ora irei tratar. Meu objetivo não é simples-
das na história política, econômica e intelectual,
mente discorrer sobre o desenvolvimento desta
provavelmente continuarão a ser o alicerce de
área particular da história. É, isto sim, sugerir
nossa profissão. Todavia, enfoques revisionistas
que a História da Ciência seria como que um
exigem e continuarão a exigir que sejam ouvi-
dos. Nas 'liltimas décadas, muitos desses desa- microcosmo de um macrocosmo, isto é, a Histó-
ria em sua totalidade. Em outras palavras, gos-
fios provieram de profissionais mais jovens, que
taria de sugerir que as forças e as interpretações
procuraram desenvolver uma história capaz de
desalIando os historiadores da ciência nas 'lilti-
melhor refletir os problemas sociais que atual-
mas três décadas refletem muitos dos problemas
recorrentes a todos os historiadores neste mes-
* Palestra preparada para a lO! Mid-America Conference on mo período.
History, realizada em Lawrence, Estado de Kansas, em 23 Embora não pretenda fazer reminiscências,
de setembro de 1988.
*- Nota dos Editores: Não nos foi possível obter, junto ao au-
gostaria de dizer algumas palavras sobre minha
tor, todos os dados essenciais das referencias bibliográficas formação. Recebi o título de Mestre em História
deste artigo. Não obstante, os editores consideraram opor- "'pela Universidade de Indiana em 1949 e, como
tuna a sua publicação, pela temática abordada - uma histó- : havia .formado-me originalmente em Química,
ria da historiografia contemporânea da ci8ncia, nas suas vá- dediquei-me a pesquisas nesta área durante al-
rias tend8ncias metodol6gicas - e pela indiscutível impor-
d.ncia do Prof. Debus nesta área. Queremos agradecer à guns anos antes de voltar à escola de pós-gra-
Prof! Ana Maria Goldfarb pela cuidadosa reconstituição duação em Harvard no campo da história da
da 'lista bibliográfica e à tradutora, Yera Cecfiia Macbl.ine. ciência em 1956. Naquela época, o programa

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era semi-autÔnomo e tinha algumas conexões Isto posto, agora gostaria de concentrar-me
frouxas com o Departamento de História. Re- na Hist6ria da Ciência e suas relações com a
cebi o título de Doutor em junho de 1961 e, a Hist6ria. Embora a disciplina propriamente dita
seguir, ingressei na Universidade de Chicago, seja bastante antiga, apenas recentemente tor-
onde tenho permanecido desde então. O presi- nou-se academicamente respeitável. Até prati-
dente do departamento, que estava em vias de camente meados deste século, pensava-se que
aposentar-se, era Walter Johnson. A seu ver, o era uma disciplina adequada principalmente pa-
nócleo de qualquer programa de história con- ra os cientistas que se voltavam para o estudo
sistente deveria ser a Hist6ria dos Estados Uni- de suas especialidades no final de suas carrei-
dos. No seu entender, o Departamento não de- ras, quando seus dias de pesquisa científica ati-
veria se aventurar em períodos hist6ricos inca- va haviam tenninado. Lembro-me de que,
muns, nem desperdiçar os limitados recursos fi- quando era universitário na Northwestern Uni-
nanceiros disponíveis com um corpo docente versity e p6s-graduando em Bloomington, In-
interessado em áreas geográficas ou cronol6gi- diana, os departamentos de Química, Astrono-
cas consideradas "ex6ticas". Mas, Willian Me- mia e Matemática ofereciam cursos sobre a
Neill, que sucedeu a Johnson na presidência no hist6ria de suas respectivas áreas. Apenas His-
outono de 1961, tinha interesses bem mais am- t6ria "de verdade" era oferecida pelo Departa-
plos. Ele queria desenvolver o Departamento mento de Hist6ria, onde uma palestra inopinada
justamente com a introdução dessas áreas "e- sobre a Revolução Científica num curso sobre a
x6ticas", e encarregou-se de, pessoalmente, de- Civilização Ocidental poderia eventualmente
senvolver um programa de I:fist6ria Mundial. É ocorrer.
compreensível que ele encorajasse a contratação Estranhamente, as relações entre a Hist6ria
de professores novos e interessados em áreas da Ciência e a Hist6ria não foram suficiente-
recentes e que não haviam sido representadas mente <:lesenvolvidas pelo pequeno nómero de
no Departamento anterionnente. Eu fui contra- historiadores da ciência a princípio. George
tado na primavera de 1961, talvez não sem certa Sarton, seu iniciador, provavelmente não ficaria
reserva, uma vez que apenas um terço do meu feliz se ouvisse isso. Porém, é o que penso.
tempo era dedicado ao Departamento - e o res- Este matemático belga dedicou sua vida à His-
tante, por alguns anos, foi partilhado com o t6ria da Ciência. Fundou o periódico Isis em
programa de Ciências Físicas da faculdade. 1912 e escreveu uma enorme quantid8de de li-
Lembro-me bem das reuniões departamen- vros, artigos e resenções. Também, organizou
tais no início dos anos 60. Alguns dos estadis- encontros internacionais e manteve uma vasta
tas mais idosos advogavam acaloradamente a correspondência, o que lhe pennitiu estabelecer
necessidade de manter-se Chicago como um uma rede internacional de pessoas com interes-
bastião dos estudos históricos tradicionais. Um ses similares. Contudo, não raro, seu entusias-
membro sugeriu que as áreas ex6ticas - e ele mo levou-o a insinuar seu próprio ponto de
mencionou especificamente a hist6ria da África vista na visão dos outros.
como um exemplo - fossem deixadas para as Sarton era um positivista que reverenciava
outras universidades. Todavia, como William o trabalho de Auguste Comte. Definia ciência
McNeill pensava diferentemente, ele encorajou como um "conhecimento positivo sistematiza-
alguns dos membros mais jovens a proporem do", ao que acrescentava: "nosso principal oh-
suas especialidades para o Departamento como jetivo não é simplesmente registrar descobertas
áreas' nucleares de estudos hist6ricos. Eu fiz is- isoladas, mas, isto sim, explicar o progresso do
so numa reunião vespertina, na mesma ocasião pensamento científico, o desenvolvimento gra-
quando um dos meus colegas apresentou sua dual da consciência humana, aquela tendência
área, o Sudoeste Asiático. Ambas as áreas fo- deliberada de compreendermos e incrementar-
ram aprovadas ap6s debates consideráveis. mos nossa parte na evolução c6smica". No pri-
Cumpre lembrar que isto ocorreu no início da meiro volume de sua obra Inlroduction to the
d6cada de 60, uma década que transformou nos- History of Science (1927), ele tinha pouco a di-
sa disciplina em Chicago, assim como em mui- zer sobre o período anterior aos gregos. Alegou
tas outras universidades. Creio que estas mu- que a ciência Oriental, em grande parte, carecia
danças enriqueceram sobremaneira nossa pr0- de teoria e que, portanto, não havia motivo para
fissão. incluí-la. Como todo positivista, ele buscava

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A cieocia e as humanidades: a fu~ção renovadora da indagação histórica

uma história da ciência verdadeira, ou seja, ensinar. Os primeiros são chamados sonhadores
ciência tal como a concebemos hoje. Discipli- [•••]; os do segundo tipo são reconhecidos como
nas que antigamente integravam a visIo humana práticos e titeis. Freqüentemente, a história pro-
da natureza, e que deixaram de fazê-Io atual- vou ser a miopia do homem prático e a vindicação
mente, poderiam ser seguramente ignoradas, do sonhador "preguiçoso"; provou também que
cunhadas de "pseudo-ciências" e consideradas os sonhadores geralmente estão enganados.
apropriadas para integrarem o anedotário da O historiador da ciência lida com ambos os tipos
história; jamais poderiam merecer a considera- [.••] mas ele não está propenso a subordinar prin-
ção do genuíno historiador. A propósito, ele re- cípios a aplicações, nem a sacrificar os assim cha-
comendou que o historiador da ciência não de- mados soObadores em prol dos engenheiros, dos
veria professores, ou dos médicos (ibid.).
dedicar muita atenção ao estudo de superstição e Sarton acreditava que a Hist6ria da Ciência
magia, isto é, o irracional, porque isto não o ajuda seria a mais valiosa forma de história porque,
muito a compreender o progresso humano. A sozinha, apresentava a inspiradora estória do
magia é, em essência, retr6gada e conservadora; a progresso humano. Embora ele cresse que quem
ciência é, essencialmente, progressista; a primeira pretendia tomar-se historiador da ciência deve-
retrocede; a segunda avança. Não podemos lidar ria estudar tanto hist6ria como ciência, parece
com ambos os movimentos simultaneamente, ex- que ele também supunha que a história da ciên-
ceto para apontannos o constante conflito entre cia deveria ser uma área independente, e não
eles, mas mesmo isso não é muito instrutivo, uma apenas parte de um departamento tradicional de
vez que este conflito raramente variou ao longo hist6ria.
dos séculos. Como a insensatez humana é retr6- Em 1956, q~do ingressei no Programa de
gada, imliiável e iIimitada a um só tempo, seu es- P6s-graduação em História da Ciência em Har-
tudo é uma empresa vã. Não se deveria incentivar vard, Sarton havia falecido recentemente. Em-
a delimitação do que é indefmido, nem a investi- bora ele tivesse lecionado naquele programa du-
gação da história do que não se desenvolveu rante muitos anos, seu nome não era menciona-
(Sarton, 1920). do com freqüência. Em vez da sua obra, os pro-
Em suma, a seu ver, somente as contribui- fessores mais comumente referiam-se aos tra-
ções positivas das disciplinas fronteiriças deve- balhos de Alexandre Koyré como modelares.
riam ser estudadas. Por exemplo, a alquimia e a Este Itl6sofo da ciência, de nacionalidade russa,
astrologia póderiam ser estudadas, desde que se que viveu a maioria dos seus áltimos anos em
encontrassem relações entre elas e a quúnica ou Paris, insistiu num vínculo estreito entre a ciên-
a astrologia "legítimas" nos textos analisados. cia e o pensamento Itlos6fico. A história tam-
Já seus fundamentos conceptuais fantásticos bém era importante para ele, uma vez que ape-
deveriam ser relegados. nas através dela divisaríamos o "progresso glo-
A visão da ciência de Sarton valorizava a rioso" das idéias científicas. Como os interesses
teoria. Para ele, a matemática e as ciências ffsi- de Koyré centravam-se na astronomia e na físi-
cas altamente matematizadas eram as disciplinas ca dos movimentos dos séculos XVI e xvrr, a
mais nobres, enquanto que as aplicações práticas seu ver, a Revolução Científica não deveria ser
seriam de pouco interesse. Ele escreveu: explicada a partir nem das mudanças sociais,
nem do desenvolvimento do método experi-
Ós homens compreendem o mundo de modos mental. Para ele, a Revolução Científica foi, de
distintos [••.] alguns têm uma mente mais abstrata, certa forma, o triunfo de Platão sobre Aristóte-
e eles naturalmente pensam, em primeiro lugar, les na Renascença. Mesmo que Sarton discor-
na unidade e em Deus, na totalidade, na infmitude dasse de Koyré quanto à importância de Platão
e em outros conceitos como estes, enquanto que no nascimento da ciência moderna, ambos con-
as mentes de outros homens são concretas e co- cordariam que a temática da História da Ciência
gitam sobre a satide e a doença, o lucro e o pre- seria a ciência, e que ela era a estória do pro-
juízo. Eles inventam dispositivos e remédios; es- gresso.
tão menos interessados em saber sobre alguma Em meados deste século, parecia que o fu-
coisa do que em aplicar o pouco que já sabiam em turo da História da Ciência seria o estabeleci-
problemas práticos; tentam fazer as coisas fun- mento de programas independentes ou semi-in-
cionarem e renderem, para que possam curar e dependentes. O impacto das idéias de Koyré na

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Allen G. Debus

área resultou em alguns programas de História e pIes e absolutos e retomar ao contexto histórico,
Filosofia da Ci6ncia separados e independentes que embaralha tudo novamente. [•.•] Se a história
dos departamentos tradicionais de história e fi- pode fazer alguma coisa, é lembrar-nos dessas
losofia. Até então, poucos historiadores haviam complicações, que solapam nossas certezas, e
dado atenção a esta área. A grande exceção foi mostrar-nos que todos nossos julgamentos são
Lynn Thomdike, da Universidade de Columbia, simplesmente relativos ao tempo e às circunstân-
cuja obra monumental, de oito volumes, History cias (1965).
of Magic and Experimental Science, foi publi- Ambos, Sarton e Koyré, consideravam a
cada ao long9 de um período de 35 anos, entre História da Ciência em termos de progresso; se
1923 e 1958. Todavia, o título da obra de recorrermos à def'mição de Butterfi.eld, eles
Thomdike denunciava seu interesse particular, também poderiam ser considerados historiado-
de que a magia precederia a ciência, uma abor- res "whiggish". Todavia, como as palestras de
dagem que tomava seu trabalho menos int\;;res- Butterfi.eld em 1948 foram fundamentadas em
sante para os historiadores da ciência que se- pesquisas recentes na área, elas inevitavelmente
guiam a principal corrente de estudos da época. refletiram as mesmas interpretações whiggish
Assim, por mais importante que este trabalho que ele pretendeu evitar. Quando teve que lidar
seja, inclusive nos dias de hoje, seu valor resu- com a alquimia e o trabalho desenvolvido por
me-se em ser basicamente uma fonte bibliográ- van Helmont, um médico químico belga do sé-
fica. culo XVII, Butterfield chegou a dizer que
Bem mais influente na História da Ciência [•••] os comentadores de van Helmont do século
foi a publicação em 1949, sob o título The Ori- XX são criaturas igualmente fabulosas, e as coisas
gins 01 Modem Science, 1300-1800, das poucas mais estranhas em Bacon afiguram-se racionalis-
palestras do historiador Her6ert Butterfield, da tas e modernas em comparaçã!). No tocante à al-
Universidade de Cambridge. Estas palestras, quimia, é mais diffcil descobrirmos o atual estado
que haviam sido dadas no ano anterior, faziam das coisas, uma vez que os historiadores que se
um levantamento da então recente literatura da especializaram nesta área às vezes também pare-
área. Obviamente, Butterfield era uma persona- cem estar influenciados pela ira de Deus; afmal,
lidade eminente entre os historiadores. Já em
parece que eles, assim como os que escrevem so-
1931 ele tinha publicado um ensaio amplamente bre a controvérsia entre Bacon e Shakespeare, ou
lido denominadp "The Whig Interpretation of
sobre a política espanhola, [também] foram tio-
History", onde ele argumentava que os historia-
turados pelo mesmo tipo de insanidade que se
dores, com efeito, tomaram partido. Eles orga- propuseram a descrever.
nizaram suas histórias do ponto de vista do pre-
sente, favoreceram inequivocamente os refor- Neste caso, Butterfield certamente não
madores protestantes dos séculos XVI e XVII, e permaneceu imparcial entre "cristãos" e "mu-
definiram "progresso" a partir deste ponto de çulmanos"; estava, com efeito, fazendo um jul-
vista. Em termos políticos, eles eram culpados gamento de valores. Ainda, ele não se esforçou
de terem criado uma história "whiggish", ou em integrar a história científica e o contexto so-
seja, uma história de acordo com a ótica pro- cial. Bem mais tarde, numa palestra em Har-
gressista do partido britânico dos Whigs. Estes vard, em 1959, Butterfield repetiu sua antiga
historiadores tinham achado ser de bom alvitre idéia de que os historiadores deveriam coos-
darem um veredito, mas, ao fazerem isto, ha- cientizar-se da História da Ciência, mas sua
viam simplificado demasiadamente a rica com- história da ciência era a de cunho positivista
plexidade das suas fontes. Opondo-se a isto, que ele havia aprendido há mais de uma década
Butterfi.eld escreveu: antes. Para Butterfield, assim como para Sarton
e Koyré, a História da Ciência era uma área de
[...} não cumpre ao historiador fazer o que po- estudo iPtemalista e altamente técnica. Cwnpri-
deríamos denominar julgamentos de valores [•..}. ria aos historiadores, não aos historiadores da
Sua função é descrever; ele [deve} permanece[r} ciência, aplicá-la em questões mais amplas.
imparcial entre cristãos e muçulmanos; não [deve}
esta[r} interessado nem numa nem noutra religião, No início da década de 50, restavam ainda
exceto quando estas interrelacionam-se com vidas grandes hiatos na história da ciência. O trabalho
humanas. [•••} Ele resumirá à posição que lhe de Otto Neugebauer e seus alunos estava come-
compete quando afastar-se dos julgamentos sim- çando a preencher jilgumas das lacunas do nos-

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A ciência e as humanidades: a fuDçJo renovadora da indagaçio histórica

so conhecimento das ciências físicas no Oriente dos que estão engajados em pesquisar ativamente
Próximo anteriomlente aos gregos, enquanto a história da biologia é tão reduzido, que, quando
que a obra monumental de Joseph Needham, recebemos alguns cancelamentos antecipados,
Science and Civilization in China, prometia fomos levados a eliminar um dia adicional que es-
uma discussão inédita e exaustiva sobre as con- perávamos dedicar à biologia.
tribuições dos chineses. O estudo precedente de Desnecessário dizer que, desde então, o
Duhem, realizado em França, havia apontado a estudo das ciências biol6gicas no século XIX
importância das críticas medievais à física aris- eclipsaram as pesquisas sobre a Revolução
totélica, e suas idéias estavam sendo desenvol- Científica.
vidas por acadêmicos alemães e norte-america- Tão importante quanto o estudo da ciência
nos. Todavia, o fio da navalha da área conti;- no século XIX tem sido a compreensão de que
nuava incindindo nas ciências físicas até a época o desenvolvimento da ciência pode ser influen-
de Isaac NewtOn. Pesquisas sobre a ciência do ciado por fatores que não consideraríamos nada
s6culo XVIII eram representadas basicamente científicos. Uma das primeiras vezes que esta
por estudos sobre Lavoisier e a Revolução questão surgiu foi quando deparou-se com a
Química. Quanto ao século XIX, parece que obra de Isaac Newton. Amplamente considera-
sabia-se muito pouco. Em 1954, I. Bernard Co- do como o maior cientista de todos os tempos,
hen observou que não raro, seus bi6grafos conscientemente igno-
[•••] após ultrapassarmos a fronteira entre os sé- ravam o fato de que grande parte dos escritos
culos XVIII e XIX, não encontràmos levanta- de Newton tratam da alquimia e de outros temas
mentos de caráter geral escritos de modo a ser- que, aparentemente, têm pouco a ver com os
virem para o historiador das idéias. [.•.] Apenas o fundamentos da física clássica e o estabeleci-
futuro poderá dizer se a história da ciência sobre mento da teotia copernicana. Ainda mais sur-
o século XIX poderá ser apresentada de modo preendente era o desprezo para com Paracelso,
a tomar-se significativa para o historiador em van Helmont e seus seguidores. Os trabalhos de
geral. todos eles foram entusiasticamente discutidos
nos séculos XVI e XVII, mas foram rejeitados e
Três anos mais tarde, Marshall Clagett reu- tachados de místicos pela nova Ordem Científi-
niu um grupo internacional de estudiosos na ca de fins do século XVII. E, devido ao viés
Universidade de Wisconsin para discutirem os positivista dos historiadores da ciência, nem a
entlo atuais problemas da hist6ria da ciência. alquimia de Newton, nem o misticismo de Para-
Os trabalhos coligidos, que foram publicados celso e van Helmont eram considerados "ciên-
em 1962, constituem a melhor obra sobre a si- cia". Pensava-se que os fil6sofos mecanicistas
tuação da área 30 anos atrás. Eles pendiam exa- da Revolução Científica tinham procedido cor-
geradamente para as ciências físicas e restrin- retamente ao desconsiderá-los, e que se deveria
giam-se quase que exclusivamente ao período continuar procedendo assim.
compreendido entre a Idade Média e o século
Dentre os historiadores da ciência e da me-
XVIII. No prefácio, Claggett comentou que
dicina, Walter Pagel foi um dos primeiros a
[•.•] à ~rimeira vista, pode parecer que demQi chamar a atenção para estes personagens esque-
pouca ênfase aos desenvolvimentos no áltimo sé- cidos da hist6ria. Mas, embora seu primeiro li-
culo. A Comissão certamente concordaria com vro sobre van Helmont tivesse surgido em
isto. Contudo, cumpre destacar que tão poucos 1930, a amplitude de sua influência metodol6-
historiadores estão realizando trabalhos sérios e gica é mais recente; deu-se a partir da publica-
profISsionais sobre a hist6ria da ciência [no século ção, em 1958, de Paracelsus. Pagel reconheceu
XIX e no início do século XX], que a apresenta- a falácia de Sarton a respeito da história da
ção de uma discussão crítica de tais problemas ciência como se fosse uma escada rumo ao pr0-
seria dificOima. Também, pode parecer que negli- gresso, e argumentou que tal abordagem, "ba-
genciamos os desenvolvimentos biol6gicos em fa- seada na seleção de material a partir do ponto
vor dos avanços nas ciências ffsicas. Esta não era de vista moderno, pode prejudicar a apresenta-
nossa intenção original. Mas nossos esforços pre- ção da verdade hist6rica."
liminares para reunirmos um eminente grupo de Como, então, os historiadores da ciência
pessoas para discutir-se a biologia do século XIX deveriam proceder? Referindo-se à sua própria
foi apenas parcialmente bem-sucedida. O círculo pesquisa, Pagel sugeriu:

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Allen G. Oebua

Em vez de selecionar dados que 'façam sentido' historiadores a lidarem com um vasto corpo de
ao acólito da ciência moderna. o historiador de- textos que nunca deveria ter sido ignorado.
veria. portanto, tentar buscar sentido nos 'des- Todavia, o trabalho de Y ates ~sentava
vios' fIlosóficos, místicos ou religiosos [do traba- também perigosos efeitos colaterais. Muito im-
lho] de cientistas do passado tidos como 'sérios'- pressionada com a importância do hermetismo,
'desvios' estes que são geralmente desculpados do neo-platonismo, da magia e de outras cor-
alegando-se o espírito, ou mesmo o atraso do pe- rentes místicas da filosofia reQascentista, Fran-
ríodo hist6rico. São justamente estes ['desvios'] cis Yates tomou posições progressivamente
que estão a desafiar o historiador: desvelar a ra- mais ousadas mas fundamentadas em evidências
zão e a justiflcativa internas de sua presença na cada vez menos sólidas. Em Rosacrucian Enli-
mente do sábio e a coerência orgânica de suas ghtenment, publicado em 1972, ela chegou
idéias científicas. Em outras palavras, cumpre ao perto de insistir que toda a Revolução Científi-
historiador reverter o método da seleção científi- ca foi um desenvolvimento do misticismo e da
ca e reapresentar os pensamentos de seu her6i nos magia renascentista. Nesta obra, ela esforçou-se
seus cenários originais. Os dois domínios do em estabelecer conexões entre as origens da
pensamento - o científico e o não-científico - Sociedade Real de Londres - assim como o tra-
irão então emergir, não como simplesmente justa- balho de Descartes e Newton - e John Dee e os
postos ou como concebidos a despeito de um ou documentos rosacrucianos do início do século
do outro, mas como um todo orgânico, no qual XVII. Contudo, ao contrário do que seria' dese-
eles se reforçam e se confumam reciprocamente. jável, estas sugestões não estavam fundamenta-
Não há outro modo de compreender-se plena- das em evidências históricas substanciais.
mente o sábio. Entre os historiadores da ciência, o estudo
das pseudo-ciências engendrou muitos confli-
Pagel achava que, quando isto fosse reali- tos, principalmente quanto à interpretação mais
zado, a história da ciência e da medicina iriam adequada da obra de Isaac Newton. Como de-
"parecer muito mais complicadas do que se afi- veríamos interpretar os milhares de fólios de
guram na perspectiva usual de linhas retas do manuscritos alquímicos que ele escreveu? No
progresso. Todavia, teremos que assumir a tare- início da década de 70, Sam Westfall estava
fa incômoda de reconstituir o pensamento anti- convencido de que o misticismo hermético do
go se desejamos escrever história - em vez de século XVII era um ingrediente essencial no
best-sellers." De certo modo, foi Pagel, e não pensamento de NeWton, e de que isto "poderia
Butterfield, quem forneceu para o historiador da elevar a filosofia mecanicista relativamente
ciência um manifesto preconizando a contex- grosseira da ciência do século XVII a um plano
tualização. de sofisticação mais alto." E, num estudo mais
Não obstante a importância do trabalho de recente, Betty Jo Dobbs foi ainda mais longe ao
Pagel, é possível que sua influência tenha sido alegar que não só a maioria das obras mais im-
menor do que a da Dama Frances Yates, que portantes de Newton derivaria de suas especu-
escreveu uma série de livros relacionando a Re- lações alquímicas, como também, "de certa
volução Científica e o hermetismo. Ela atraiu forma, toda sua carreira a partir de 1675 pade-
grande atenção dos historiadores da ciência pela ria ser considerada uma longa tentativa de inte-
primeira vez quando da publicação, em 1964, grar a alquimia e a filosofia mecanicista."
de Giordano Bruno anil the Hermetic Tradi- Não é surpreendente que historiadores da
tion. Esta obra foi uma tentativa de estabelecer ciência mais tradicionais têm manifestado temor
o trabalho de Bruno como uma adesão, no s6- quanto a estes novos desenvolvimentos. Numa
culo XVI, à teoria heliocêntrica, não porque ele reunião em King's College, Cambridge, em
fosse um cientista com idéias avançadas, mas 1968, para a análise das novas tendências na
devido ao fato de que o sistema tendo o sol c0- área, P. M. Rattansi debate~a prática de uma
mo centro acomodava melhor sua visão mística história contexbJalizada e declarou que "a tare-
e "hermética" do sol e do universo. Este livro é fa dos historiadores não deve ser o isolamento
certamente um dos que mais influenciaram o de componentes 'racionais' e 'irracionais', mas,
curso da história da ciência no terceiro quartel isto sim, considerá-los como uma unidade e lo-
deste século. E, de modo geral, sua influência calizar pontos de conflito e tensão com base em
tem sido benéfica, uma vez que instigou os apenas uma exploração em profundidade." Na

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A ciência e as humanidades: a funçIo renovadora da indagação histórica

sua réplica, M&-y Hesse opôs-se à inclusão na o livro bastante elogiado de Kuhn, A Es-
área de disciplinas que, em termos modemos, trutura das Revoluções Ciensfjicas, data de
nlo seriam legitimamente científicas. As pseu- 1962; basicamente, é um estudo internalista que
do-ciências poderiam muito bem pertencer à procura explicar as revoluções científicas em
história, mas não deveriam ser consideradas termos da substituição de um paradigma cientí-
parte da história da ciência. Ela acrescentou que fico por outro. Apesar do crescente interesse em
seria essencial usarmos a ciência moderna como fatores não-éientfficos relacionados à expansão
um fiel ao pesarmos os argumentos do passado. da ciência. este livro não afetou os historiadores
Usarmos julgamentos do passado que incluís- da ciência tanto quanto se poderia supor. Ao
sem elementos não-científicos seria perda de contrário. agradou especialmente à maioria dos
tempo. Com efeito - ela concluiu - devemos ser cientistas sociais, aos fil6sofos e a outros histo-
cautelosos quanto ao que lemos ou que valori- riadores, que o usam menos como um modelo
zamos, de vez que, "ibmúnando-se ainda mais da hist6ria da ciência. do que para examinarem
um quadro, poderemos distorcer o que já enxer- os desenvolvimentos intemos de suas áreas
ganlOs." particulares de estudo.
O impasse na discussão entre Hesse e Rat- Apenas recentemente, desde o final da dé-
tansi ilustra parcialmente a tensão que existia cada de 60 e o início da década de 70. testemu-
vinte anos atrás e que persiste até hoje. Contu- nhamos um interesse crescente nas interrelações
do, o caráter das assim denomiD.adas pseudo- entre ciência e sociedade. É compreensível que.
ciências não é a única fonte de polêmicas. Pr0- neste período, esta área tomou-se muito mais
vavelmente, o debate mais acirrado no momento atraente para os historiadores e os cientistas s0-
diz respeito às relações entre ciência e socieda- ciais - muito embora sua maioria tivesse pouco
de. Há alguns anos, esta questão era relativa- treinamento. seja nas ciências. seja na hist6ria
mente pouco importante para os historiadores da ciência. Estes autores alegam que. agora. as-
da ciência, mas seu recrudescimento tomou-se pectos significativos da história científica p0-
muito mais importante para os historiadores em dem ser compreendidos. mesmo sem o conhe-
geral. Em 1968 quando Thomas Kuhn preparou cimento tecno-científico que antes parecia ser
o artigo sobre à História da Ciência para a En- essencial. E alguns estudos importantes surgi-
cyclopedia of the Social Sciences, ele comparou ram. Por exemplo, Religion mui the Decline of
as histórias da ciência "intemalistas" e "exter- Magic (1971). de Keith Thomas. é uma contri-
nalistas". No seu entender, as primeiras lida- buição monumental à nossa compreensão do
vam com questões técnicas relativas ao cresci- cenário intelectual no início da modernidade na
mento da ciência, enquanto que as últimas eram Inglaterra. Não menos importante é The World
"tentativas de estabelecer a ciência num con- Turned Upside Down (1972). de Christopher
texto cultural, o que poderia incrementar a Hill. que se baseou em estudos então recentes
compreensão tanto de seu desenvolvimento co- RObre a alquimia e os paracelcianos e logrou
mo de seus efeitos [ ... ]". Como exemplo das uma chave integradora para compreender a
últimas, ele referiu-se à obra de 1938 de Tho- Guerra Civil na Inglaterra.
mas K. Merton, Science, Technology mui So- Em The Newtonians mui the English Revo-
ciety in XVIlth Century England, que procurava lution, 1689-1720 (1976), Margaret Jacob
explicar o sucesso da ciência do século xvn na aventa que o triunfo da física newtoniana seria
Inglaterra com base, em primeiro lugar, na ên- devido. nem tanto ao valor da ciência de New-
fase de Bacon nas artes e nos processos comer- ton. do que ao fato de que os te6logos ingleses
ciais, ambos de natureza prática. e. em segundo no período da "Revolução Gloriosa". em 1688,
lugar. no campo religioso. no estúnulo do Puri- buscavam um aliado poderoso ao esposarem a
tanismo. Kuhn. inspirado pela obra de Koyré, síntese newtoniana. A seu ver. a nova ciência
argumentou que a "nova geração de historiado- seria uma rejeição explícita a todas as outras
res" era intemalista. Não s6 os estudos sobre as filosofias naturais mais antigas - não s6. ob-
tradições dos ofícios. como também a metodo- viamente. às de Arist6teles e Galeno. como
logia baconiana, seriam dispensáveis para com- também à Filosofia Química dos paracelcistas e
preenderem-se as ciências matemáticas. que, di- às obras de Hobbes e Descartes. Para ela, a ex-
ga-se de passagem, foram a ceme da Revolução plicação social para o triunfo do newtonianismo
Científica. residiria em "sua utilidade para os líderes inte-

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lcctuais da Igreja Anglicana, como um sustentá- ta1mente antagônica à natureza." Mais adiante,
culo da visão do que eles gostavam de denomi- Kubrin afirma que "a tradição revolucionma
nar 'política mundial'. O universo newtoniano - no ocidente precisa separar-se da falsa cons-
ordenado, providencialmente dirigido e mate- ciência da superioridade ocidental, que, infe-
maticamente regulado - fornecia um modelo pa- lizmente, resultou de seu florescimento no sé-
ra o estado estável e prospero, governado pelos culo XIX, se pretende ser capaz de responder às
interesses pessoais dos homens." Em suma, te- perguntas que as pessoas, e a natureza, estão
mos aqui uma explicação para o triunfo do perguntando hoje."
newtonianismo em bases totalmente divorciadas Não pretendo discorrer mais sobre estes
do valor geralmente atribuído à ciência, uma trabalhos; mas gostaria de apontar o fato de que
explicação da natureza. eles são evidências de que alguns estudiosos
A Hist6ria da Ciência continua a expandir- nesta área foram fortemente influenciados por
se. Sempre atraiu os historiadores que tentaram questões sociais contemporâneas, assim como o
assocm-Ia ao desenvolvimento da arte - e, fi- foram muitos estudiosos em outras áreas. Quero
nalmente, agora temos um especialista neste também ressaltar que, nestes últimos quinze ou
campo em Chicago. Outros relacionaram-na à vinte anos, a História da Ciência foi muito além
política... E, mais recentemente, aumentou das suas origens técnicas.
o interesse nas relações entre ela e a literatura. Estas interpretações novéis foram observa-
Um ramo da Modem Language Association é das pelos historiadores da ciência mais tradicio-
composto por estudiosos desta especialidade. nais. Numa reunião da American Association
Eu proprio, alguns anos atrás, fui consultor para for the Advancement of Science, realizada em
um novo programa em ciência e literatura que dezembro de 1979, Charles C. Oillispie, da
está sendo organizado no Georgia Instltute of Universidade de Princenton, disparou contra
Technology. Um segundo grupo - aliás, bas- aqueles que seguiam as novas tendências na
tante ativo - organiza encontros exclusivamente área. Conforme foi relatado em Science, Oilis-
sobre alquimia e literatura. pie lamentou que "a hist6ria da ciência está
A hist6ria da Ciência também não tem per- perdendo o pulso que mantinha sobre a ciência,
manecido imune às outras correntes contempo- [está] apoiando-se exageradamente na hist6ria
rAneas que influenciaram a hist6ria em geral. social e [está] brincando com estudos diletantes.
Carolyn Merchant, em The Death of Nature: [Outrossim,] ele atacou quem discutia proble-
Wamen, Ecology and the Scientijic Revolution mas científicos mas com pouca ou nenhuma
(1980), interpreta a Revolução Científica como formação científica." Conforme o repórter
a ruptura de uma antiga visão c6smica, de Menos odiosas, mas não menos problemáticas,
Orientação feminina. Bem mais radical é How são, para Gillispie, as hist6rias sociais que igno-
Sir Isaac Newton Helped Restore Law'n Order ram completamente a ciência, tais como os estu-
to the West, um trabalho de David Kubrin, que dos que tratam do papel da mulher numa deter-
registrou os direitos autoras de sua obra e mi- minada instituição científica, mas omitem qual
meografou-a em 1972 "para protegê-la de usos seria sua atividade cientffica.[•..] Outra tendên-
indevidos por interesses capitalistas." Foi dedi- cia, ele disse, é a dos estudiosos que se detêm no
cada a "meus irmãos e irmãs lutando contra que é pessoal e aned6tico: Newton e a alquimia,
o imperialismo, o racismo, o sexismo e o ecocC- em vez do movimento, a dança da cobra de Ke-
dio grassando pelo mundo afora, desde a Indo- kulé, em vez do anel de benzeno, a neurose de
china até a prisão de Ática." Kubrin, um aca- Darwin, em vez de como ele organizou suas ten-
damico bastante respeitado, tinha estudado sob dências. Alguns assim denominados estudiosos
a orientação de Henry Ouerlac, da Universidade preferem os escândalos. [...] 'Estes estudiosos',
de Comell, e envolveu-se profundamente nos diz Gillispie, 'têm um pendor justamente para o
conflitos sociais no final da década de 60. Após tipo de coisa que rigorosamente excluímos da
examinar a Revolução Científica, ele concluiu corte da ciência - o irracional, o pessoal' (Broad:
que o surgimento da ciência moderna havia sido 1980).
um desastre de grande proporções. A seu ver,
"uma sabedoria antiga [ ... ] a magia" é, "talvez, o apelo de Oillispie para um retomo aos
exalamente o tipo de sabedoria hoje necessária, valores de Koyré foram repudiados pelos histo-
especialmente ao ocidente, uma civilização to- riadores sociais, que retrucaram:

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A ciência e as humanidades: a funçio IeDOvadora da indagaçlo histórica

A história social da ciência já êstá estabelecida Mais e mais títulos de Doutor em Hist6ria
dentro da disciplina como um método legítimo de da Ciência foram concedidos nas décadas de 60
abordar-se o passado. A despeito das recentes e 70. e a maioria destes jovens acadêmicos fo-
reaç6es, especialmente as de C. C. Gillispie, a ram empregados em departamentos de história
maioria dos historiadores aceitam o fato de que as em vez de programas independentes na história
ciências precisam ser suplementadas com o estudo da ciência, ou na história e filosofia da ciência,
dos fundamentos sociais semoventes da atividade que eram mais antigos. Acredito que este fato
científica. Espera-se que os debates entre "[vi- foi instrumental para que a área abarcasse inter-
sões] internas e externas" do final da década de pretações mais relevantes para os historiado-
60 seja uma coisa do passadoI (ibid.). res... isto é. promoveu uma história da ciência
mais proxima dos estudos desenvolvidos por
Em 1956, quando do falecimento de George Yates ou Merton. do que os gerados por Neu-
Sarton. a história da ciência estava estabelecida gebauer, Sarton ou Koyré. Conseqüentemente.
como uma área pequena, mas era reconhecida ao longo da década de 70. houve um debate acir-
por um mimero crescente de pessoas como im- rado entre os intemalistas tràdicionais e os que
portante. Todavia. devido ao seu desenvolvi- buscavam um contexto mais amplo para com-
mento histórico, era encontradiça no mundo preenderem as ciências.
acadêmico mais freqüentemente na forma de
programas independentes de história ou ciência. Ao terminar minha conferência. talvez seja
Há trinta anos. a maioria dos historiadores da apropriado dizer algumas palavras sobre o que
ciência que publicaram trabalhos foram iDicial- penso sobre as relações entre a História da
mente treinados como cientistas - assim como Ciência e as Ciências Sociais, as Humanidades.
foi o meu caso. Sarton reconhecia este fato. mas e. particularmente, a História. É desnecessário
acreditava que. no futuro. o historiador da ciên- lembrar que o mundo modemo seria simples-
cia profISsional deveria ter pelo menos dois tí- mente incompreensível se não considerássemos
tulos de mestre - um em ciência ~ outro em o desenvolvimento das ciências. da medicina e
história - antes de prosseguir sua formação e da tecnologia. Elas influenciaram todas as ati-
realizar o doutoramento em história da ciência. vidades humanas. O historiador tratando da Ci-
Contudo. a influência de Koyr6. além de toda vilização Ocidental - especialmente o período
uma corrente de fil6sofos afastados da história após 1500 - não pode ignorar este fato, seDio
da filosofia e mais afins da filosofia da ciência, obterá um quadro muito pobre e distorcido do
preconizava o desenvolvimento de programas mundo em que vivemos.
independentes na História e Filosofia da Ciên- Mas. afinal, o que é a História da Ciência?
cia. Será a tradição técnica e intemalista de Sarton,
Naquela época. parecia evidente que a his- Koyr6 ou Neugebauer. ou será a tradição exter-
tória da ciência exigia uma especialização nas nalista daqueles que buscam compreender as
ciencias. o que sugeria uma distinção entre a mudan5as científicas a partir do contexto s0-
formação em história da ciência e a tida pela cial? E, com certeza, ambas as tradições, embo-
grande maioria dos historiadores. Mas. conco- ra seja o segundo grupo o que propõe as ques-
mitantemente. os historiadores tradicionais es- tões de maior interesse para os outros historia-
tavam conscientizando-se cada vez mais do dores. A meu ver, o debate entre intemalistas e
tremendo impacto da ciência e da tecnologia em extemalistas na hist6ria da ciência e na história
nossas vidas. o que motivou uma certa urgência da medicina foi, de modo geral, uma perda 'de
de aprender-se mais sobre esta área. Gostaria de tempo para todos os envolvidos. Aliás. isto já
novamente citar Herbert' Butterfleld.•• desta vez foi observado por outros. Acredito que seja
uma passagem de sua palestra "The History of verdade, não s6 porque as duas tradições estão
Science and the Study of History", de 1959: imbricadas, mas também porque precisamos de
Embora o mundô há muito saiba que a ciência e ambas as perspectivas. Queremos saber exala-
a tecnologia eram importantes, apenas recente- mente como Lavoisier procedeu experimental-
mente estas coisas passaram a comandar nosso mente, assim como gostaríamos de descobrir o
destino - aquele destino que tfnhamos aprendido efeito da religião no desenvolvimento da teoria
com nossos livros de história a considerar dema- científica do século XVII. E, certamente, o tra-
siadamente dependentes dos desígnios dos esta- balho de Frances Yates sobre a história literá-
distas. ria, ou o de Christopher Hill relacionando a po-

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Allen G. Debus

lítica da Guerra Civil Inglesa e os médicos qui- Press, 1962. Coletânea de trabalhos apresentados
micos radicais, propiciou discussões imp0rtan- na conferência internacional realizada na Univ. de
tes que estão nos ajudando a integrar as ciên- Wisconsin em 1-11/setembrolI957.
cias às preocupações mais amplas dos historia- COHEN, I. B. Some recent books on the history of
dores. Em suma, precisamos aprender não s6 science. ln: WIENER, P. P.; NOLAND, A. (eds.).
sobre os desenvolvimentos técnicos das ciên- Roots of seientific thought: a cultural pt!rspt!ctive.
cias, mas também as inter-relações entre elas New York: Basic Books, 1957. Publicado origi-
e todas as outras esferas da atividade intelec- nalmente no Journal of the history of ideas.
tual.
DOBBS, B. J. T. The foundations of Newton's al-
Alguns aventariam que seriam necessários chemy of 'The hunting of the grl!ene Iyon'. Mel-
departamentos de hist6ria da ciência indepen- bourne: Cambridge Univ. Press, 1975.
dentes. Nenhum departamento de História seria
capaz de lidar com as exigências salariais de um HESSE, M. Reasons and evaluations in the history of
programa que, em termos ideais, deveria abran- science. ln: TEICH, M.; YOUNG, R. Changing
ger todas as ciências, a medicina e a tecnologia perspectives in the history of seienel!: essays in ho-
de todos os períodos históricos. Contudo, de- nour of J. Needham. Londres: Heinemann, 1973.
partamentos independentes tendem a permane- HILL, C. The world turned upside down: radical ideas
cer altamente intemalistas e técnicos. Creio que during the english revolution. New York: The Vi-
o historiador da ciência deveria manter estreitos king Press, 1973. Trad. brasileira: O mundo de
contatos com outros historiadores para evitar os ponta-cabeça. São Paulo: Companhia das Letras,
perigos inerentes a uma abordagem exclusiva- 1987.
mente internalista. Embora não alimente ilusão JACOB, M. C. The newtonians and the english revolu-
sobre a possibilidade de que todos os historia- tion (1689-1720). Ithaca: ComeU Univ. Press,
dores irão converter-se à História da Ciência, 1976.
penso que a presença de especialistas desta área KOYRE, A. From the closed world to the infinite uni-
poderia ser ótil para outros historiadores. Pode- verse. New York: Harper Torchbook, 1958. Pu-
se estabelecer pontes com indivíduos edepar- blicado originalmente em 3 partes em 1935-1939.
tamentos interessados na História da Ciência Trad. brasileira: Do mundo fechado ao universo
dentro de uma universidade, de modo que um infinito. Rio de Janeiro: Forense/São Paulo:
pequeno grupo de especialistas poderia desen- EDUSP, 1979.
volver um programa bem mais abrangente do ____ o Etudes galiUennes. Paris: Hermano,
que o nómero de seus integrantes permitiria su- 1966.
por. Mas, enfim, a História da Ciência - embora KRUBIN, D. How Sir lsaac Newton helped restore
exija alguns requisitos relativamente especiais - law'n order to the West. 1972. Mimeo.
6 basicamente História, e deveria ser sempre KUHN, T. S. The structure of scientific revolutions.
considerada parte integrante de um departa- Chicago: The Univ. of Chicago Press, 1962. Trad.
mento de história, onde quer que ele esteja es- brasileira: A estrutura das revoluções cientfficas.
tabelecido. São Paulo: Perspectiva, 1975•.
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de ComunicaçãO Semi6tica da Pontiffcia Univenidade Cató-
dies in popular beliefs in XV/th and XVIlth century lica de São Paulo.

(Recebido em 16101191)

. Revista da SBHC, V. 5, p. 3-13, 1991

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