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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO

Turma A (coincidências) - 21 de junho 2012


Ano letivo 2011/2012
Duração: 2 horas

I – Na sequência de uma grave crise económica e financeira, e depois de terem sido tornadas
públicas estatísticas do INE que davam conta da insolvência e do encerramento de centenas de pequenas e
médias empresas incapazes de resistir à crise, só no ano de 2089, é aprovada, sob proposta do partido do
Governo (em cujo programa eleitoral, constava a promessa de tomar medidas de auxílio às empresas em
crise) a Lei n.º 1/2090, de 3 de janeiro, que adita ao Código do Emprego, entre outros, os seguintes preceitos:
«(artigo 281.º) 1 – As empresas que, por motivos de mercado, atravessem uma situação de quebra da procura dos seus serviços, poderão
reduzir temporariamente o período de trabalho dos respetivos trabalhadores. 2 – A redução do tempo de trabalho será acompanhada de uma
redução proporcional na retribuição. (artigo 282.º) Durante o período de execução da medida, a empresa não poderá aumentar a retribuição dos
membros dos seus corpos sociais, distribuir lucros ou dividendos aos sócios, ou pagar juros de“empréstimos” que lhe tenham sido feitos».

II – Alguns meses mais tarde é aprovada a Lei n.º 16/2090, de 1 de agosto, que entrou em vigor
no dia da publicação, nos termos da qual: «(Artigo único) 1 – Para efeitos do disposto no artigo 282.º da Lei n.º
14/2090, de 3 de janeiro entende-se também como retribuição a atribuição de um cartão de crédito da empresa a titulares dos
seus órgãos sociais. 2 – Consideram-se, ainda como “membros dos seus corpos sociais”, para efeitos da citada disposição da Lei
n.º 14/2090, os trabalhadores que exerçam funções de secretariado pessoal de um titular desses cargos ».

III – Após a passagem do Carnaval, o hotel «Quem fica, Paga, Lda.» situado em Faro, registou
uma acentuada quebra na procura dos seus serviços, ficando praticamente sem hóspedes, e só recebendo
esporadicamente alguns eventos. Essa quebra era mais ou menos normal naquela época do ano e depois
compensada nos meses seguintes. Porém, invocando o disposto na Lei n.º 14/90, a administração decidiu, a 1
de março, reduzir até junho o período de trabalho dos seus funcionários, com a corresponde redução na
retribuição. Além disso, querendo compensar o seu gerente BERNARDO SOARES, pelos excelentes
serviços prestados, mas não desejando desrespeitar o disposto no artigo 282.º daquela Lei, decidiu, no final
desse mês, aumentar de 1.000 para 2.000 Euros o plafond do cartão de crédito da empresa, que este poderia
livremente utilizar – e que, aliás, esgotava todos os meses.

Tendo em conta apenas os dados fictícios fornecidos, pronuncie-se quanto às seguintes questões:

1. ÁLVARO DE CAMPOS, rececionista do Hotel «Quem Fica, paga, Lda», foi um dos trabalhadores
atingidos pela redução, o que o indignou profundamente. Considera o trabalhador que a Lei não
visava este género de situações; mas a Administração do Hotel contrapõe que nada literalmente o
exclui, invocando ainda a seu favor, o facto de este regime da redução do período de trabalho dos
trabalhadores ter sido inserido numa Secção autónoma do Código do Emprego intitulada
«mecanismos de gestão» (o que sugeriria que a medida é uma decisão normal de gestão da empresa)
e não junto do já existente regime da suspensão de contratos de trabalho por motivo de crise
empresarial. Esta suspensão, por seu turno, nos termos do artigo 29.º desse Código, depende “da
indispensabilidade da medida para assegurar a viabilidade económica da empresa” – o que a administração
reconhece, em nenhum momento, ter estado em causa. Quid iuris?

2. Na sequência da entrada em vigor da Lei n.º 14/2090, os sócios do Hotel «Quem Fica, Paga Lda.»
pretendem saber se podem exigir ao gerente BERNARDO SOARES a “devolução” de 5.000 euros,
correspondentes ao aumento do plafond mensal do cartão de crédito de que este beneficiou a partir
de março de 2090, e que, desde aí, todos os meses, esgotou.
Exigem ainda de OFÉLIA EFICIENTE, secretária do gerente, 250 euros, correspondentes a igual
aumento do plafond do seu cartão de crédito (esse plafond aumentou de 50 para 100 euros), que esta
também esgotou todos os meses.
Tendo presente que, em ambos os casos, a disponibilização de um cartão de crédito da empresa era
um dever contratual, embora não com o plafond resultante do aumento realizado em março, o que
lhes responderia?

3. RICARDO REIS, sócio do Hotel «Quem fica, Paga, Lda»., “emprestou” à empresa 2.500 Euros. A
obrigação de pagamento da quantia emprestada vencia a 1 de maio de 2090, mas a Administração
recusa-se a pagar invocando o disposto no artigo 282.º do Código do Emprego. RICARDO REIS,
por seu turno, sustenta que o referido preceito apenas proíbe o pagamento de juros, não do capital
“emprestado”. Quid iuris?

4. No dia 1 de abril de 2090, a Administração do «Quem Fica, Paga, Lda.», como fazia todos os anos
por essa altura, doou cerca de 25.000 Euros a instituições de caridade do concelho de Faro. A
Comissão de Trabalhadores considera porém que tal não seria possível na pendência da medida de
redução – pois que, embora nenhum preceito do Código do Emprego o interdite expressamente, da
articulação do artigo 282.º com outras disposições que proibiam, designadamente, que uma empresa
nessa situação (i) renuncie a direitos com valor patrimonial ou (ii) se constitua como fiador de
obrigações de terceiros, resultava que tal é proibido. Terá razão?

(10 valores)
II
Comente uma, e apenas uma, das seguintes afirmações:

1 – « É verdade que ainda hoje se insiste na disputa subjectivismo vs. objectivismo. Todavia, no seu artigo 9.º, o nosso CC
optou, cautelosamente, por uma transacção entre ambas, assumindo uma posição gradualista ou (rectius) mista.»
(FERNANDO PINTO BRONZE, em Lições de Introdução ao Direito, 2001).

2 – «Mas, para além de, pela natureza das coisas, corresponder sempre a uma ruptura quanto à “lógica” do sistema, a
retroactividade das normas exprime também uma ruptura deôntica, ou de dever-ser, porque contradiz a ideia segundo a qual o
Estado deve actuar para com os cidadãos de modo que seja confiável.» (MARIA LÚCIA AMARAL, em A Forma da
República. Uma Introdução ao Estudo do Direito Constitucional, 2005).
(4 valores)
III
Responda, tão sucintamente quanto possível, a duas das seguintes questões:

1 – Diga, fundamentadamente, se a referência ao «espírito do sistema» no artigo 10.º, n.º 3 do Código Civil
revela um limite ou o critério a partir do qual o intérprete deve criar a regra ad hoc.
2 – Distinga, fundamentadamente, lacunas patentes de lacunas ocultas.
3 – Diga em que consiste uma “faculdade” identificando com que situações subjetivas ela está em (i)
oposição, (ii) contradição e (iii) correlatividade.
4 – Distinga, fundamentadamente, interpretação corretiva de redução teleológica, pronunciando-se quanto à
admissibilidade destas figuras na ordem jurídica portuguesa.
5 – Comente a seguinte afirmação: «A aplicação retroativa de uma lei que aligeire as condições de validade formal ou
substancial de um facto jurídico, corresponde a uma exigência de tratamento uniforme de situações análogas, que pode ser
aproximada ao princípio constitucional da igualdade».

(2 x 2 valores)
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
Turma A (coincidências) - 21 de junho 2012
Ano letivo 2011/2012
Duração: 2 horas

Critérios de Correção da Prova

A enumeração dos presentes critérios não esgota o quadro das respostas possíveis
ou aceitáveis em função do raciocínio desenvolvido pelo aluno e da respetiva
fundamentação.

I
Neste grupo o examinando deveria:
 Identificar na pretensão da Administração do «Quem Fica, Paga, Lda» um
problema de interpretação da L 1/2090 e, mais concretamente, do disposto no n.º 1
do seu artigo 281.º;
 Identificar o subsídio interpretativo fornecido pelo elemento gramatical,
demonstrando conhecer a “dupla função” da letra da lei, enquanto ponto de partida
do processo e limite aos resultados interpretativos que poderão ser validados a
partir dos contributos dos elementos lógicos;
 Reconhecer na referência à inserção sistemática do regime da redução do período
de trabalho uma alusão à argumentação com base no sistema externo, inserindo-o
no elemento sistemático de interpretação. Deveria ser estabelecida uma
contraposição entre sistema interno e sistema externo (adotando-se qualquer uma
das definições doutrinariamente possíveis) e avaliada a importância do segundo,
especialmente, em contraponto com o primeiro;
 Apreciar a importância do subsídio interpretativo fornecido pelo lugar paralelo
resultante do artigo 29.º do Código do Emprego;
 Apreciar o peso do subsídio interpretativo fornecido pela occasio legis, inserindo-a no
elemento histórico de interpretação. Seria também valorizada, em sede de elemento
histórico, a eventual relevância que poderiam ter os objetivos constantes do
programa eleitoral do partido a que pertencem os Deputados autores da iniciativa
legislativa que se viria a traduzir na Lei;
 Identificar, fundamentadamente, a teleologia da norma em causa;
 Qualificar o resultado interpretativo a que chegasse, com recurso à ponderação dos
subsídios interpretativos fornecidos pelos vários elementos;
 Apreciar a possibilidade de qualificação da Lei.º n.º 14/90 como lei interpretativa,
identificando na pretensão de devolução dos 5.000 euros um problema de aplicação
no tempo da lei interpretativa, aplicando o correspondente regime (cf. artigo 13.º
do CC);
 Reconhecer a dificuldade de qualificação da norma revelada pelo n.º 2 dessa lei
como interpretativa, posto que tinha conteúdo inovador, pronunciando-se quanto
ao tratamento a dar-lhe, designadamente em matéria de aplicação do tempo;
 Apreciar a possibilidade de se sustentar a presentão da administração do «Quem
Fica, Paga, Lda) na base de um argumento a minori ad maius, reconhecendo embora
não poder ser exatamente igual o tratamento a dar a pagamento de juros e à quantia
“emprestada” (posto que, este último, funcionaria como uma espécie de
“devolução”);
 Identificar na pretensão da Comissão de Trabalhadores uma referência à analogia
iuris, pronunciando-se quanto à sua procedência, nomeadamente, na hipótese de se
poder extrapolar das disposições citadas um princípio de proibição de atos que
afetem a situação patrimonial da empresa na pendência da medida de redução de
período de trabalho;
 Pronunciar-se quanto à natureza da analogia iuris discutindo, nomeadamente, se
funciona verdadeiramente na base de um raciocínio analógico, se é um verdadeiro
critério de integração de lacunas e se, a sê-lo, tem ou não consagração no artigo 10.º
do CC (ou onde está consagrado).

II
1 – No comentário o examinando deveria desenvolver, entre outros, os seguintes aspetos:
 Sentido e conteúdo das orientações subjetivistas e objetivistas de interpretação e
bem assim, críticas que lhe são dirigidas;
 Articulação desta querela metodológica com a querela que opõe o historicismo ao
atualismo;
 Apreciar se o artigo 9.º terá aderido a alguma das orientações em presença,
conhecendo as posições da doutrina e tomando também, fundamentadamente,
posição;
 Demonstrar que importância prática poderá ter a adesão a qualquer uma destas
orientações.
2 – No comentário o examinando deveria desenvolver, entre outros, os seguintes aspetos:
 Noção de retroatividade com referência às principais construções teóricas que
podem auxiliar na delimitação do conceito (teoria do facto passado, teoria dos
direitos adquiridos, etc);
 Identificação dos interesses contrapostos em matéria de aplicação da lei no tempo e
das diferentes soluções a que conduzem;
 Referência aos problemas colocados pela aplicação retroativa de uma lei e ao seu
caráter tendencialmente “avesso” aos valores do Estado de Direito;
 Explicação do regime vigente no Direito Português e dos seus fundamentos:
ausência de uma proibição constitucional genérica de retroatividade mas critério
supletivo de Direito Transitório apontando para a inexistência de retroatividade (cf.
artigo 12º, n.º 1 1ª parte do Código Civil) ou para um grau de retroatividade
ordinária caso a LN seja retroativa mas nada se disponha quanto aos efeitos de
factos passados atingidos e ressalvados (cf. artigo 12.º, n.º 1 2ª parte);
 Sentido e fundamentos subjacentes às proibições constitucionais específicas de
retroatividade;
 Construção, sentido e alcance do princípio da proteção da confiança legítima.

III
1 – Nesta questão o examinando deveria:
 Caracterizar sucintamente o referido critério de integração de lacunas
demonstrando conhecer em que condições poderá ser utilizado;
 Identificar as teses que se pronunciam em qualquer dos sentidos referidos na
questão tomando, fundamentadamente, posição.

2 – Nesta questão o examinando deveria:


 Proceder à distinção dos dois conceitos, evidenciando a forma diferenciada como
esta contraposição pode ser entendida – designadamente, de acordo com a
conceção adotada no Curso e com a conceção seguida pela generalidade da
doutrina alemã;
 Discutir, tomando posição, a questão de saber se a interpretação restritiva gera ou
não uma lacuna oculta.

3 – Nesta questão o examinando deveria:


 Identificar e caracterizar sucintamente a referida situação subjetiva, no quadro do
pensamento de Hohfeld, identificando e caracterizando as situações com que está
em (i) oposição, (ii) contradição e (iii) correlatividade.

Seria suplementarmente valorizado se o fizesse com recurso a exemplos.

4– Nesta questão o examinando deveria:


 Estabelecer a diferença entre as figuras em causa, demonstrando compreender que
na redução teleológica, ao contrário do que se passa na interpretação corretiva (na
delimitação que é feita no Curso), ainda se poderá ir ao encontro do “plano
legislativo”;
 Identificar os limites das figuras em causa e discutir a sua admissibilidade,
problematizando a autonomia da redução teleológica, nomeadamente em face da
interpretação restritiva.

5 – Nesta questão o examinando deveria:


 Comentar a afirmação discutindo e tomando, fundamentadamente, posição quanto
à admissibilidade das leis confirmativas e, especialmente, das leis confirmativas
tácitas.

Ponderação Global – 2 valores (domínio da língua, encadeamento lógico do raciocínio,


organização das respostas).

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