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CPC/2015 e processo do trabalho (2) – Aplicação às

execuções trabalhistas do art. 866 do CPC/2015

É amplamente sabido, que na vigência do CPC anterior, juízes iniciaram a prá tica de determinar a
penhora de quantias correspondente a percentuais arbitrariamente estipulados do faturamento
bruto de uma empresa, sem qualquer aná lise prévia dos danos que tal medida poderia causar nã o
só à empresa, propriamente dita, mas aos seus empregados e demais credores. O STJ, por sua vez,
construiu uma jurisprudência só lida no sentido de considerar que tal medida nã o se configurava
como “penhora sobre dinheiro”, em termos técnicos, mas sim como forma espú ria depenhora sobre
a própria empresa, feita à margem das normas legais disciplinadoras dessa modalidade de técnica
executiva. A significaçã o deste entendimento é grande: apenas pode ser admitida a penhora sobre
percentual qualquer sobre faturamento de empresa, quando satisfeitas as condiçõ es exigidas para a
penhora da empresa e a consequente constituiçã o do usufruto, como forma de pagamento, ou seja,
mediante a nomeaçã o de um administrador, o qual deverá apresentar ao juízo o percentual de
faturamento que pode ser utilizado na satisfaçã o do crédito exequendo.

A Justiça do Trabalho, todavia, embora tenha assimilado a prá tica da mencionada relativa à
penhora direta de percentual do faturamento de empresa, tem ignorado, inteiramente, a
jurisprudência do STJ sobre a matéria, inclusive aquela formada com relaçã o à execuçã o fiscal, a
qual serve como fonte subsidiá ria primeira à s execuçõ es trabalhistas. Pior: a Justiça do Trabalho
tem desprezado os só lidos argumentos com fundamentos nos quais tal jurisprudência foi
consolidada e à luz dos quais devem ser compreendidos os precedentes já firmados pelo STJ. Com
efeito, a Orientaçã o Jurisprudencial 93 da SBDI2 do TST, sequer reconhece que a “penhora sobre
faturamento” é forma de penhora sobre a empresa, confundindo a primeira com “penhora sobre
dinheiro”, e condicionando o uso dessa medida executiva apenas ao vago requisito de “nã o
demonstraçã o de risco ao desenvolvimento regular das atividades da empresa executada”.

Esse entendimento, data maxima venia, é inservível para dar conta nã o só dos aspectos
puramente legais, como daqueles constitucionais da questã o. Em primeiro lugar, apenas a invocaçã o
de um valor constitucional – no caso a efetividade da tutela jurisdicional – poderia justificar a
violaçã o das normas processuais aplicá veis à espécie, ou seja, as normas do CPC/1973
disciplinando a penhora de empresa e seu respectivo usufruto, como forma de pagamento.
Contudo, a invocaçã o de um valor constitucional para justificar o afastamento de norma legal, já
inequivocamente atribuída como sentido de determinado texto legislativo (portanto, já superada a
questã o relativa à pró pria determinaçã o da norma legal), só pode ser feita de forma racional
e coerente com a própria força normativa da Constituição, através de uma atividade extremamente
complexa, a qual exige que seja constituída, pelo menos, das etapas superficialmente descritas nos
seguintes termos:
1. A determinaçã o pelo intérprete/aplicador dos valores constitucionais – além do pró prio princípio
da legalidade, ele pró prio uma norma constitucional a nã o ser banalmente negligenciada – estariam
sendopromovidos com a norma que se pretende afastar, com fundamento na promoçã o de um
determinado valor constitucional.
2. A determinaçã o pelo intérprete/aplicador de soluçõ es alternativas que preservem, ao menos em
alguma medida, a norma a ser afastada, ou seja, com a determinaçã o de condiçõ es específicas e
limitadas que justificariam o afastamento cogitado.
3. A ponderaçã o entre o valor a ser realizado pelo afastamento da norma e aqueles promovidos com a
pró pria existência da norma.
Esse paradigma complexo de interpretaçã o/aplicaçã o do direito, que se revela um corolá rio
necessá rio da pró pria força normativa das normas constitucionais que consagram valores – todas
elas igualmente constitucionais e igualmente aplicá veis imediatamente – é inteiramente
desprezado, o que permite considerar que as “ultrapassagens” de normas legais, feitas nessa base
simpló ria de mera invocaçã o unilateral de um valor constitucional, sã o, rigorosamente, um
atentado à pró pria Constituiçã o. Este é, precisamente, a avaliaçã o cabível para a prá tica consolidada
na execuçã o trabalhista e consagrada, ao arrepio da Constituiçã o, pelo pró prio TST, em decisõ es
vá rias e na OJ mencionada.[1]

O CPC/2015 conferiu reconhecimento expresso e legal ao entendimento consolidado do STJ


relativo à penhora sobre faturamento. Com efeito, o art. 866 do novo diploma processual constitui,
como instituto legal, essa técnica executiva, disciplinando-a nos seguintes termos:

Art. 866. Se o executado nã o tiver outros bens penhorá veis ou se, tendo-os, esses forem de difícil
alienaçã o ou insuficientes para saldar o crédito executado, o juiz poderá ordenar a penhora de
percentual de faturamento de empresa.

§ 1o O juiz fixará percentual que propicie a satisfaçã o do crédito exequendo em tempo razoá vel, mas
que nã o torne inviá vel o exercício da atividade empresarial.

§ 2o O juiz nomeará administrador-depositá rio, o qual submeterá à aprovaçã o judicial a forma de


sua atuaçã o e prestará contas mensalmente, entregando em juízo as quantias recebidas, com os
respectivos balancetes mensais, a fim de serem imputadas no pagamento da dívida.

§ 3o Na penhora de percentual de faturamento de empresa, observar-se-á , no que couber, o disposto


quanto ao regime de penhora de frutos e rendimentos de coisa mó vel e imó vel.

Como amplamente sabido, o TST já cuidou de expressar, através da Instruçã o Normativa n.


39, posicionamento quanto à aplicabilidade e nã o aplicabilidade, aos processos trabalhistas, de
vá rias normas do CPC/2015. Nã o houve, contudo, nenhuma mençã o expressa à norma veiculada
pelo art. 866, que cuida da penhora sobre faturamento. Com isso, a questã o está sem um
posicionamento expresso do pró prio TST, o que torna oportuna a presente reflexã o.

Entende-se que a aplicabilidade do art. 866 do CPC/2015 à s execuçõ es trabalhistas se impõ e


por duas ordens de argumentaçõ es: uma argumentaçã o estritamente legal (no sentido
deinfraconstitucional) e outra constitucional. No presente texto, limitar-se-á a ensaiar em que
termos se daria, em sua forma geral, uma argumentaçã o constitucional sobre a aplicabilidade de tal
norma, com rejeiçã o à norma que foi fixada, pretorianamente, pela repetida prá tica jurisprudencial.
Tal norma, por ser pretoriana, nã o está consagrada em nenhum “texto oficial”, mas poderia ser
enunciada nos seguintes termos:

NP: Admite-se a penhora sobre percentual de faturamento da empresa, percentual este fixado com
independência de um plano de administraçã o.

Em termos normativos, quando um juiz defere a penhora sobre faturamento em percentual


arbitrariamente fixado, ele está , implicitamente, aplicando uma norma que poderia ser assim
expressa. E tal norma, como se viu, nã o corresponde a nenhuma norma legislativa atualmente
existente (nem no CPC/73, nem na L. 6.830/80), sendo em patente conflito com a norma veiculada
pelo art. 866 do CPC. Por isso, no presente texto se faz uma breve aná lise, em chave de
argumentaçã o constitucional, do conflito entre a manutençã o da norma pretoriana NP e a adoçã o
da norma legislativa do art. 866 do CPC/2015, para defender que é esta ú ltima que deve ser,
doravante, aplicada na Justiça do Trabalho.

Como quer que seja, a penhora direta sobre o faturamento de empresa, num percentual
qualquer arbitrariamente fixado, sem a realizaçã o de um plano de administraçã o, que verifique o
modo de satisfaçã o do crédito exequendo compatível com a continuidade da empresa, nã o deixa de
ter, ao menos de imediato, um efeito benéfico quanto à celeridade processual e à efetividade da
tutela jurisdicional. Com certeza a eliminaçã o da nomeaçã o de administrador e elaboraçã o de um
plano de administraçã o permitem que algum dinheiro comece a ser de plano apreendido, se a
empresa tem um faturamento regular, ao menos nos primeiros meses que a medida for efetivada.

Porém, quando observado o uso dessa técnica numa perspectiva temporal mais larga, pode-
se revelar uma “vitó ria de Pirro”, pois proporcionará , em tempo mais rá pido, uma satisfaçã o apenas
parcial do crédito. Assim, a prestaçã o apenas parcial de tutela executiva é uma violaçã o nã o apenas
ao valor correspondente à tutela jurisdicional efetiva, mas uma violaçã o inclusive à duraçã o
razoá vel do processo, uma vez que, quanto à parcela nã o satisfeita do crédito, o processo pode
durar muito além do razoá vel, ou seja, indefinidamente. Portanto, quando se passa da perspectiva
imediatista de aná lise, para uma perspectiva mais duradoura, para avaliar a penhora sobre
faturamento de percentual arbitrariamente fixado, na dinâ mica concreta de sua utilizaçã o, ela se
revela inadequada mesmo à promoção dos valores processuais da efetividade da tutela jurisdicional e
da duração razoável do processo. Só por isso, o uso arbitrá rio da penhora sobre faturamento de
empresa sem um plano de administraçã o já se revela uma violaçã o ao mais elementar dos
subprincípios da proporcionalidade,, a saber: o princípio da adequaçã o, o qual nã o se reduz à mera
“adequaçã o abstrata”, mas exige também “adequaçã o concreta”, ou seja, real eficá cia causal do meio
realizar, plenamente, o fim buscado.

Contudo, nã o param aí os problemas que podem ser apontados à penhora sobre faturamento
sobre percentual arbitrariamente fixado. Ora, justamente por ser este percentual arbitrariamente
fixado, duas situaçõ es concretas podem ocorrer:
a) Ele ser um percentual mais baixo do que a saú de financeira da empresa poderia permitir, o que
impõ e ao credor uma satisfaçã o mais prolongada do seu crédito.
b) Ele ser um percentual mais elevado do que a saú de financeira da empresa permitir.
Na primeira hipó tese, a arbitrariedade na fixaçã o do percentual a ser expropriado volta-se,
mais uma vez, contra os pró prios valores processuais que a medida visa a promover. Porém, no
segundo caso, o uso da medida revela violaçõ es a valores constitucionais também de ordem
material, nomeadamente, o desenvolvimento da economia, o valor social do trabalho e a direito ao
emprego. Ora, é inadmissível que a pró pria Justiça do Trabalho nã o compreenda o significado de
uma ruptura no equilíbrio financeiro de uma empresa. Isso pode conduzir desde a demissõ es de
parte de seus empregados, até o fechamento da empresa, com a eliminaçã o de inú meros postos de
trabalho. Portanto, uma medida judicial que provoque isso é, inequivocamente, uma medida judicial
que atentacontra os direitos dos trabalhadores. Logo, deveria ser a Justiça do Trabalho aquela a ser
mais cautelosa com a utilizaçã o de uma técnica executiva que pode chegar até esse ponto.

Ora, a norma veiculada pelo art. 866 do CPC/2015 se revela, portanto, nã o apenas adequada
para a promoçã o os valores constitucionais materiais que seriam restringidos pela aplicaçã o da
norma pretoriana que continua a ser seguida na Justiça do Trabalho, como também se revela capaz
de ser, inclusive, uma maneira mais adequada e eficaz de promover os pró prios valores processuais
que estariam sendo promovidos pela mencionada norma pretoriana. Já por essa sumá ria aná lise do
conflito entre a norma pretoriana e aquela posta pelo art. 866 do CPC/2015, portanto, tem-se
elementos bastantes para defender a aplicaçã o desta ú ltima à s execuçõ es trabalhistas.

Ademais, a reconstruçã o dos valores em jogo, promovidos e beneficiados, com ambas as


normas, revela-se extremamente ú til, inclusive, para fazer uma aná lise crítica, do ponto de vista
estritamente legal (no sentido de infraconstitucional), da orientaçã o consagrada na Justiça do
Trabalho, aqui expressa como a norma pretoriana NP. Porém, como diria Rudyard Kipling, “That’s
another story!”

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