Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Toda a sociedade é composta por situações de riscos permitidos, que fazem parte do modelo
normal dos meios de vida, sem os quais essa sociedade não poderia desenvolver suas
atividades. Nesse rol de atividades, estão, por exemplo, a circulação de veículos, a navegação
aérea, os contatos pessoais, o compartilhamento do trabalho e muitas outras situações
envolvendo mais de uma pessoa na elaboração dos fatos.
Também deve ser analisado que tipo de conexão há entre a atividade neutra e o lavrador
clandestino. De acordo com isso, a conexão da ação inicialmente neutra com a
realização de um delito realizado por outro é requisito necessário, em que pese seja
insuficiente para afirmar a tipicidade da conduta. É pressuposto da tipicidade, mas não é
elemento que decide a relevância penal da conduta. Somente a concorrência de
especiais circunstâncias que permitam concluir pela existência de forma clara e unívoca
de uma especial relação de sentido delitivo entre a conduta inicialmente neutra e o
delito pode modificar o caráter neutro da conduta e convertê-la em típica [10].
Dessa forma, tais comportamentos não podem ser considerados como co-autoria ou
participação. Não se discute a relação de causalidade entre a conduta do autor e o delito do
terceiro, já que existe, em princípio, atipicidade no antecedente. Nem mesmo se pode
considerar a regressão nas hipóteses em que o agente saiba que o resultado de sua conduta
servirá de base para um crime futuro, já que não tem domínio do fato e nem mesmo certeza da
infração por parte do terceiro.
Entende-se por mais correto um conceito como o estabelecido por José Antonio Caro
John, no sentido de que o termo “conduta neutra”: “[...] expressa o sentido jurídico
valido que reúne uma conduta que não alcança o nível de uma intervenção punível. O
caráter neutro da conduta indica ter sido praticada dentro das margens da adequação
social reconhecida pelo Direito, ou dentro do risco permitido, de tal maneira que a
possibilidade de uma imputação por
intervenção delitiva resta excluída de plano”.
Quanto a solução à pergunta proposta, a conduta do gerente G e do entregador E, não
são puníveis, afinal, o gerente da Mineradora M poderia perfeitamente e sem qualquer
dificuldade firmar contrato de locação para obtenção de maquinário com outro
fornecedor e usá-los para praticar o crime de lavra clandestina como prevê o art. 55 da
Lei 9.605/1998 para extrair argila sem autorização legal.
Sendo assim, a proibição da contribuição do gerente G e do entregador E seriam
inidôneas para proteger o bem jurídico concreto (a argila), vale dizer, não melhoraria de
modo relevante a proteção deste bem jurídico, inexistindo, assim, na conduta do gerente
G e do entregador E, risco juridicamente proibido (ou desaprovado).
[1] Cumplicidade através das ações neutras: a imputação objetiva na participação. Rio
de Janeiro: Renovar, 2004, p. 110.
[2] “As ações cotidianas no âmbito da participação delitiva” in Revista Jus Navegandi,
ano 8, n. 61, 1º jan. 2003, disponível em https://jus.com.br/artigos/3652, acesso em
14.12.2019. Artigo também publicado na Revista Síntese de Direito Penal e Direito
Processual Penal, v. 3, n. 16, out./nov. 2002, p. 37-42.