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Trata-se de requisito para a existência do fato típico, não devendo ser relegado para o exame da
culpabilidade.
Funda-se na premissa de que todos devem esperar por parte das outras pessoas que estas sejam
responsáveis e ajam de acordo com as normas da sociedade, visando a evitar danos a terceiros.
Por essa razão, consiste na realização da conduta, na confiança de que o outro atuará de um
modo normal já esperado, baseando-se na justa expectativa de que o comportamento das outras
pessoas se dará de acordo com o que normalmente acontece.
Outro exemplo é o do motorista que, trafegando pela preferencial, passa por um cruzamento,
na confiança de que o veículo da via secundária aguardará sua passagem. No caso de um
acidente, não terá agido com culpa7 .
Contudo, o princípio da confiança não se aplica quando era função do agente compensar
eventual comportamento defeituoso de terceiros. Por exemplo: um motorista que passa bem ao
lado de um ciclista não tem por que esperar uma súbita guinada deste em sua direção, mas
deveria ter se acautelado para que não passasse tão próximo a ponto de criar uma situação de
perigo8 . Como atuou quebrando uma expectativa social de cuidado, a confiança que depositou
na vítima qualifica-se como proibida: é o chamado abuso da situação de confiança.
Desse modo, surge a confiança permitida, que é aquela que decorre do normal desempenho das
atividades sociais, dentro do papel que se espera de cada um, a qual exclui a tipicidade da
conduta, em caso de comportamento irregular inesperado de terceiro; e a confiança proibida,
quando o autor não deveria ter depositado no outro toda a expectativa, agindo no limite do que
lhe era permitido, com nítido espírito emulativo.
Tal princípio foi desenvolvido por Claus Roxin, segundo o qual “só pode ser castigado aquele
comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não seja simplesmente
pecaminoso ou imoral. À conduta puramente interna, ou puramente individual – seja
pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente –, falta a lesividade que pode legitimar a
intervenção penal”6 .
Por essa razão, a autolesão não é crime, salvo quando houver intenção de prejudicar terceiros,
como na autoagressão cometida com o fim de fraude ao seguro, em que a instituição seguradora
será vítima de estelionato (CP, art. 171, § 2º, V).
No delito previsto no art. 28 da Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, poder-se-ia alegar ofensa
a esse princípio, pois quem usa droga só está fazendo mal à própria saúde, o que não justificaria
uma intromissão repressiva do Estado (os drogados costumam dizer: “se eu uso droga, ninguém
tem nada a ver com isso, pois o único prejudicado sou eu”).
A Lei n. 11.343/2006 não tipifica a ação de “usar a droga”, mas apenas o porte, pois o que a lei
visa é coibir o perigo social representado pela detenção, evitando facilitar a circulação da
substância entorpecente pela sociedade, ainda que a finalidade do sujeito seja apenas a de uso
próprio. Assim, existe transcendentalidade na conduta e perigo para a saúde da coletividade,
bem jurídico tutelado pela norma do art. 28.
Interessante questão será a de quem consome imediatamente a substância, sem portá-la por
mais tempo do que o estritamente necessário para o uso. Imaginemos a conduta de uma pessoa
que recebeu de terceiro a droga, para uso próprio e, incontinenti, a consome. Nesta hipótese,
não há que se falar no delito de posse de droga para uso próprio, pois não houve detenção, nem
perigo social, mas simplesmente o uso. Se houvesse crime, a pessoa estaria sendo castigada pelo
Poder Público, por ter feito mal à sua saúde e a de mais ninguém. Não se pode confundir a
conduta de portar para uso futuro com a de portar enquanto usa. Somente na primeira hipótese
estará configurado o crime do art. 28 da Lei de Drogas. Quem detém a droga somente durante o
tempo estritamente necessário em que a consome limita-se a utilizá-la em prejuízo de sua
própria saúde, sem provocar danos a interesses de terceiros, de modo que o fato é atípico por
influxo do princípio da alteridade.
Nesse contexto, vale destacar que a atual Lei de Drogas vedou a imposição de pena privativa de
liberdade a quem porta drogas para consumo pessoal, impondo-lhe, no entanto, medidas
educativas (advertência sobre os efeitos da droga, prestação de serviços à comunidade e medida
educativa de comparecimento a programa ou curso educativo).
O bem jurídico tutelado pela norma é, portanto, o interesse de terceiros, pois seria inconcebível
provocar a interveniência criminal repressiva contra alguém que está fazendo apenas mal a si
mesmo, como, por exemplo, punir-se um suicida malsucedido com pena pecuniária, corporal ou
até mesmo capital.
PRINCÍPIO DA PERSONALIDADE
Ninguém pode ser responsabilizado por fato cometido por outra pessoa. A pena não pode passar
da pessoa do condenado (CF, art. 5º, XLV).
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Além de encontrar assento na imperativa exigência de respeito à dignidade humana, tal princípio
aparece insculpido em diversas passagens de nosso Texto Constitucional, quando abole certos
tipos de sanções (art. 5º, XLVII), exige individualização da pena (art. 5º, XLVI), maior rigor para
casos de maior gravidade (art. 5º, XLII, XLIII e XLIV) e moderação para infrações menos graves
(art. 98, I). Baseia-se na relação custo-benefício.
Toda vez que o legislador cria um novo delito, impõe um ônus à sociedade, decorrente da
ameaça de punição que passa a pairar sobre todos os cidadãos.
Uma sociedade incriminadora é uma sociedade invasiva, que limita em demasia a liberdade das
pessoas.
Por outro lado, esse ônus é compensado pela vantagem de proteção do interesse tutelado pelo
tipo incriminador. A sociedade vê limitados certos comportamentos, ante a cominação da pena,
mas também desfruta de uma tutela a certos bens, os quais ficarão sob a guarda do Direito Penal.
Para o princípio da proporcionalidade, quando o custo for maior do que a vantagem, o tipo será
inconstitucional, porque contrário ao Estado Democrático de Direito.
Em outras palavras, a criação de tipos incriminadores deve ser uma atividade compensadora
para os membros da coletividade. Com efeito, um Direito Penal democrático não pode conceber
uma incriminação que traga mais temor, mais ônus, mais limitação social do que benefício à
coletividade.
Quando a criação do tipo não se revelar proveitosa para a sociedade, estará ferido o princípio da
proporcionalidade, devendo a descrição legal ser expurgada do ordenamento jurídico por vício
de inconstitucionalidade. Além disso, a pena, isto é, a resposta punitiva estatal ao crime, deve
guardar proporção com o mal infligido ao corpo social. Deve ser proporcional à extensão do
dano, não se admitindo penas idênticas para crimes de lesividades distintas, ou para infrações
dolosas e culposas.
Necessário, portanto, para que a sociedade suporte os custos sociais de tipificações limitadoras
da prática de determinadas condutas, que se demonstre a utilidade da incriminação para a
defesa do bem jurídico que se quer proteger, bem como a sua relevância em cotejo com a
natureza e quantidade da sanção cominada.
O Supremo Tribunal Federal orgulha-se de ser o guardião da Constituição Federal, e tem sido
prestigiado pelo ordenamento jurídico brasileiro, que lhe atribui essa missão. Mas o fato de ser
o guardião de nossa Carta Magna não lhe atribui a sua titularidade. Isto é, o STF não é o dono da
Constituição, tampouco tem o direito de reescrevê-la a seu bel-prazer, como vem fazendo nos
últimos anos, com suas interpretações contraditórias, equivocadas e, especialmente,
contrariando o que vinha afirmando nos últimos 25 anos.
Essa postura autoritária que vem assumindo ultimamente, como órgão plenipotenciário, não o
transforma em uma Instituição mais identificada com a sociedade brasileira. Pelo contrário, cria
enorme insegurança jurídica, agride o bom senso, fere os sentimentos democráticos e
republicanos e gera insustentável insegurança jurídica na coletividade brasileira. As garantias
constitucionais são flagrantemente desrespeitadas, vilipendiadas, reinterpretadas e até
negadas, como ocorreu no julgamento do HC 126.292, ocorrido no dia 17 de fevereiro de 2016.
Nesse dia, afirmamos, numa linguagem um tanto inadequada 103, que “o STF rasgou a
Constituição Federal e jogou no lixo” os direitos assegurados de todo cidadão brasileiro que
responde a um processo criminal, determinando que aproximadamente um terço dos
condenados, provavelmente inocentes, cumpram pena indevidamente, segundo as estatísticas
relativas a reformas pelos Tribunais Superiores.
O decano do STF, Ministro Celso de Mello, na mesma linha do Ministro Marco Aurélio, manteve
seu entendimento anterior, qual seja, contrário à execução antecipada da pena antes do trânsito
em julgado de decisão condenatória, afirmando que a reversão do entendimento leva à
“esterilização de uma das principais conquistas do cidadão: de jamais ser tratado pelo poder
público como se culpado fosse”. E completou seu voto afirmando que a presunção de inocência
não se “esvazia progressivamente” conforme o julgamento dos processos pelas diferentes
instâncias. O Presidente do STF, Ricardo Lewandowski, também votou contra a possibilidade da
execução provisória da pena e destacou que lhe causava “estranheza” a decisão da Corte.
Lewandowski lembrou que a decisão do tribunal agravará a crise no sistema carcerário brasileiro,
aliás, crise para a qual, acrescentamos nós, a Corte Suprema nunca olhou, e também nunca se
preocupou com a inconstitucional violação da dignidade humana no interior das prisões
brasileiras, especialmente nos chamados “Presídios Federais”.
Mas a essa altura os novos Ministros do STF, que não o integravam nos idos de 2009, já haviam
mudado a orientação da Corte Suprema, numa espécie de insurreição dos novos contra os
antigos!
Veja-se a nefasta contradição de nossa Excelsa Corte: no dia 17 de fevereiro de 2009, por sete
votos a quatro, o Supremo Tribunal Federal decidiu que um acusado só pode ser preso depois
de sentença condenatória transitada em julgado (HC 84.078), em obediência ao disposto no
inciso LVII do art. 5º da CF. Essa decisão reafirmou o conteúdo expresso de nossa Carta Magna,
qual seja, a consagração do princípio da presunção de inocência. Ou seja, ao determinar que
enquanto houver recurso pendente não poderá ocorrer execução de sentença condenatória,
estava atribuindo, por consequência, efeito suspensivo aos recursos especiais e extraordinários.
Tratava-se, por conseguinte, de decisão coerente com o Estado Democrático de Direito,
comprometido com o respeito às garantias constitucionais, com a segurança jurídica e com a
concepção de que somente a sentença judicial definitiva, isto é, transitada em julgado, poderá
iniciar o cumprimento de pena imposta.
Com essa decisão, lamentavelmente, emretrocesso histórico, o STF volta atrás e ignora o texto
expresso da Constituição Federal, bem como os Tratados Internacionais que subscreveu. Com a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1971, oprincípio da presunção de inocência
ganhou repercussão e importância universal. Ratificou, em outros termos, a Declaração dos
Direitos Humanos, da ONU, em 1948, segundo a qual “toda pessoa acusada de delito tem direito
a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei
e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa” (art.
11).
Ademais, o Brasil votou na Assembleia Geral da ONU de 1948, e aprovou aDeclaração dos
Direitos Humanos, na qual estava insculpido, repetindo, o princípio da presunção de inocência,
embora somente com a Constituição Federal de 1988 o nosso país tenha incorporado
expressamente a presunção de inocência como princípio basilar do seu ordenamento jurídico.
Por outro lado, com a aprovação pelo Congresso Nacional, pelo Decreto Legislativo n. 27/92, e
com a Carta de Adesão do governo brasileiro, anuiu-se à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que estabeleceu, em seu art.
8º, I, o Princípio da Presunção de Inocência: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que
se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. Pois essa
comprovação, no sistema brasileiro, somente se concretiza com o trânsito julgado da sentença
condenatória, por força constitucional.
Na verdade, o Brasil tem dois textos legais, no plano constitucional, que asseguram o princípio
da presunção de inocência, na medida em que o art. 5º, § 2º, da CF/88 atribui essa
condição/natureza de constitucional a Tratado Internacional devidamente aprovado no País. E,
não se pode negar, tanto o Pacto de São José da Costa Rica como o art. 5º, LVII, da CF/88
reconhecem a vigência desse princípio.
Não se ignora, diga-se de passagem, que o Estado brasileiro tem direito e interesse em punir
indivíduos que tenham condutas que contrariem a ordem jurídica, podendo impor sanção
àqueles que cometem ilícitos. No entanto, esse direito-dever de punir do Estado deve conviver
e respeitar a liberdade pessoal, um bem jurídico do qual o cidadão não pode ser privado senão
dentro dos limites legais. Ora, os princípios e garantias consagrados no Texto Constitucional não
podem ser ignorados ou desrespeitados, e a Suprema Corte está aí para reafirmá-los, defendê-
los e impedir decisões que os contrariem, reformando-as ou cassando-as, exatamente o
contrário do que fez nesse julgamento.
Na verdade, como destaca José Roberto Machado105: “As questões afetas aos direitos humanos
devem ser analisadas na perspectiva do reconhecimento e consolidação de direitos, de modo
que uma vez reconhecido determinado direito como fundamental na ordem interna, ou, em sua
dimensão global na sociedade internacional, inicia-se a fase de consolidação. A partir daí, não
há mais como o Estado regredir ou retroceder diante dos direitos fundamentais reconhecidos, o
processo é de agregar novos direitos ditos fundamentais ou humanos”.
Aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal, dos bons tempos, já se posicionou adotando o
princípio da vedação ao retrocesso, destacando que por tal princípio se impõe ao Estado o
impedimento de abolir, restringir ou inviabilizar sua concretização por inércia ou omissão. No
entanto, com a decisão prolatada no HC 126.292, contrariou essa sua própria decisão, ao
restringir, alterar e revogar garantias sociais e humanitárias já incorporadas no Estado
Democrático de Direito, violando, nessa decisão, também o princípio da proibição do retrocesso
. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 contém cláusula que impede,
expressamente, que tratados posteriores sejam “interpretados no sentido de limitar o gozo e
exercício de quaisquer direitos ou liberdades que possam ser reconhecidos em virtude de lei de
qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos
Estados” (art. 29, b).