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precisamente ali, onde Marx trata das origens do sistema produtivo
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i capitalista, da chamada "acumulação primitiva", que se revela a
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caraterística específica da questão penal. Seguindo a análise de Marx,
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podemos identificar tanto os elementos clássicos da questão penal
no século XIX como as linhas fundamentais de desenvolvimento da
política criminal burguesa, em uma investigação histórica na qual o
:, :'j ~ A questão penal em O capital* conceito de acumulação primitiva (ou originária) joga um papel cen-
~~ ! tral. É na formação do proletariado que a relação entre a pessoa
I como um criminoso e a pessoa como um trabalhador fica clara.
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Portanto, o processo que cria a relação-capital não pode ser -outra coisa
r que o processo de separação do trabalhador da propriedade das condi-
ções da realização do trabalho, um processo que transforma, por um
lado, os meios sociais de subsistência e de produção em capital e, por
outro, Os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim cha-
mada acumulação primitiva é, portanto, nada mais que o processo histó-
Assim como para muitos outros fenômenos inerentes às esferas rico da separação entre produtor e meio de produção. Ela aparece como
que costumamos definir como da psicologia ou da sociologia, a "primitiva" porque constitui a pré-história do capital e do modo de pret-'
criminalidadee a pena são consideradas, pelo pensamento marxiano, dução que lhe corresponde1 •
não como objeto de "ciências" separadas, mas como expressões das Assim Marx resume a essência do longo período de gestação da
condições humanas sob o domínio do capital. É sob .esse enfoque sociedade do capital. O fundamento do processo de transformação social
que elas aparecem em alguns momentos da elaboração teórica de e econômico que se verifica nas áreas mais desenvolvidas da Europa
Marx, e é somente nessa dimensão, de fato, que elas podem tornar-se entre os séculos XV e XVIII é, portanto, a expulsão dos camponeses
objeto da sua teoria social científica. da terra e a sua transformação em operários; tanto no primeiro mo-
Esse é o motivo pelo qual prefiro, neste texto, concentrar-me mento como no segundo, os órgãos de poder estatais revelam-se
n' O capitalem vez de nos outros escritos marxianos, onde, todavia, inextricavelmente conexos com a espontaneidade econômica mais
a questão criminal é abordada de modo mais explícito, tais como ou menos determinante. Apesar de Marx não tratar ex-professo da
alguns artigos juvenis publicados no Rheinische Zeitung, ou aque- questão penal neste capítulo XXIV do primeiro livro de O capital, se
les de um momento posterior, no New York Daily Tribune, algumas levarmos em conta o quadro mais amplo, todavia, a intervenção do
passagens dos Manuscritos de 1844, ou ainda o oitavo capítulo da momento repressivo, ou preventivo, estatal, assume uma tal impor-
Sagrada família. tância que permite que esse lugar seja considerado o ponto de refe-
Mas é somente n' O capital que o fenômeno social criminalidade rência histórica e analítica decisivo para o conjunto das posições o
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é examinado a partir do núcleo da teoria marxiana mais geral; e é marxianas sobre essa problemática. .
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C) • "Criminologia e marxismo: alie origini della questione penale nella società de 11 capitole". La 1 Karl Marx, O capital, v. I, t. 2 (São Paulo, Abril Cultural, 1984), p. 262. Trata-se do primeiro
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Questione Criminole, no 2, 1975. Tradução de Márcio Bilharinho Naves, em que se consideraram parágrafo do capítulo XXIV do primeiro livro de O capital, "O segredo da acumulação primitiva".
t- algumas modificações feitas pelo autor neste artigo em sua versão em inglês: "The penal question Cf. além disso, sobre a acumulação primitiva capitalista, Maurice Dobb, A evolução do capitalismo
in Capital". Crime and Social Justice, no 5, 1976. "'
"' (Rio de Janeiro, Zahar, 1976). <
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!t 124 MARGEM EsQUERDA 4 A QUESTÃO P E N A L E M o CAPITAt 125
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Em um dos seus escritos juvenis, Marx tinha mostrado como o reco- 11'
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quais tinham o mesmo direito de propriedade, e a usurpação das
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lhimento da lenha caída nos bosques era uma das últimas sobrevivên- terras comuns. O processo de expropriação forçada teve novo impul-
cias do regime medieval de propriedade ou do uso coletivo de deter- so com a Reforma e o "colossal furto de bens eclesiásticos' que lhe ,11
minados bens e como o poder estatal da burguesia assumiu a tarefa de seguiu, levando quem vivia do trabalho e da caridade nos conventos ·~.·~,·~:.!· .
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sancionar penalmente o que era, para a "massa pobre", um exercício e nas instituições religiosas em geral a fazer parte da massa do futuro i!!
verdadeiro e adequado do direito 2• Em seguida, na Sagrada faml1ia, proletariado. Foi assim que, já em 1601, o pauperismo se tornara uma
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ele mostra como a redução do homem a outro-de-si que está na base realidade de tal forma extensa no reino de Elisabeth que teve de ser
da rebelião, do desejo de reapropriação do delinqüente, tinha a sua introduzido todo o sistema da chamada Old Poor Law 5• O furto reali-
mais clara expressão na introdução de um sistema de vida baseado em
relações de produção capitalistas e, em particular, nas condições de
vida do operário. Ora, esses pontos encontram clarificação e sistemati-
zado pelos proprietários feudais à custa do Estado (da propriedade
dominial) e pelo Estado, por sua vez, à custa da "propriedade co-
mum" da massa camponesa, com as famosas "leis de cercamento das
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zação histórica na análise marxiana da acumulaçào originária. terras comunais", verdadeiros "decretos de expropriação do povo",
A expulsào da terra foi, como mostra Marx, rapina, violência, ho- completam o processo durante o século XVIII.
micídio. Isso é particularmente importante nào apenas para quem é A aparência jurídico-penal manifesta-se, assim, por um lado, na ab-
sensível às questões morais mas também para estabelecer uma precisa soluta impunidade assegurada aos usurpadores, que sào os mesmos
matriz originária da violência ria luta de classes, que a burguesia ten- que legislam e julgam, e na conseqüente destruiçào da legitimidade
tou depois e ainda hoje tenta continuamente ocultar com o seu domí- juridica representada pelo direito consuetudinário das classes oprimi-
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nio ideológico e jurídico3. Os meios pelos quais a "expropriação ori- das e, por '\outro, como se verá, na sanção penal de comportamentos
ginária" foi levada a cabo são arrolados por Marx no segundo parágrafo provocados pela mesma autoridade sancionadora. Não é à toa que,
do capítulo XXIV4• Foi a monarquia absoluta, em parte, que provo- para as teorias jurídicas do Iluminismo, uma das maiores dificuldades I
cou o processo com a "dissolução dos séqüitos feudaiS', além dos seja representada pela solução do problema da origem da propriedade
grandes Landlords com a expulsão dos camponeses da terra sobre as privada, juntamente com o problema do pacto social; a razão iluminista
deveria aqui forçosamente perder-se na irracionalidade e na pura intui-
ção se nào quisesse ir para além de si mesma.
2 Karl Marx, • Dibattiti sulla legge centro .i furti di legna•, em Karl Marx, Scritti politici giovanili
O que acontece com esses homens, com essa massa camponesa,
(Turim, Einaudi, 1950), p. 117 e ss. transformada em livre força-trabalho, "livre", isto é, "sem nada", a não
ser a sua habilidade para trabalhar?li ,'.,!
3 Quando passa a tratar do processo de acumulação originária fora da lnglatenra, Marx observa:
"Esses métodos baseiam-se, em parte, na mais brutal violência, por exemplo, o sistema colonial.
Os expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela intermitente e j·!
Todos, porém, utilizaram ó poder do Estado, a violência concentrada e organizada da sociedade, .I,
para ativar artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção em capita- violenta expropriação da base fundiária, esse proletariado livre como os f:\
lista e para abreviar a transição. A violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe I.:~
de uma'nova. Ela mesma é uma potência econômica" (Karl Marx, O capital, op. cit., p. 286). Isso
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não quer dizer que a violência nos países capitalistas mais desenvolvidos tenha sido menor, mas Karl Marx, O capital, op. cit., p. 275. A lei de 160 I é somente o último ato na construção do o '
apenas que ela não é mais o instrumento dominante da acumulação. Por outro lado, a ralé inglesa complexo normativo da 0/d Fbor Law elisabetana. Cf. sobre isso as obras fundamentais de S. e B.
deportada para os Estados Unidos ou a Austrália, isto é, a força de trabalho exportada para novas Webb, English Poor Law History. Part .1: The 0/d Poor Law (Londres, Longmans, 1927); F.M. Eden,
zonas de desenvolvimento, por algum misterioso milagre moral, transformava-se. durante a tra- The State of the Poor (Londres, Routledge & Sons, 1928); e o interessante volume, rico de
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vessia do Atlântico, em colono e, chegando a um país no qual as res nullius, isto é, dos indígenas, informações e bibliografia, de j.D. Marshall, The 0/d Poor Law ( 1795-1834)(Londres, Macmillan,
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.., eram muito mais numerosas que na velha lnglat~nra. podiam legitimamente realizar todos aque- 1968) (que trata sobretudo da crise da 0/d Poor Law). Ver também o texto de Friedrich Engels
sobre as condições da classe trabalhadora na lnglatenra ( 1845). o
les atos de conquista de tais bens que, do outro lado do oceano, eram qualificados como furto, ·''
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pássaros não podia ser absorvido pela manufatura nascente com a mes-
ma velocidade com que foi posto no mundo. Por outro lado, os que
foram bruscamente arrancados de seu modo costumeiro de vida não
punições corporais ou na pena de morte8 • Mas qual deveria ser a
finalidade da pena? Naquela época, a pena limitava-se ao esforço
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inútil de levar os "vagabundos" de volta ao lugar de onde foram
~ conseguiam enquadrar-se de maneira igualmente súbita na disciplina da
nova condição. Eles se converteram em massas de esmoleiros, assaltan- expulsos. Marx diz isso claramente na passagem citada: a pena de-
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tes, vagabundos, em parte por predisposição e, na maioria dos casos, por veria consistir no aprendizado da "disciplina da nova situação".
força das circunstâncias. Daí ter surgido em toda a Europa ocidental, no Portanto ele retoma ao discurso exposto na Sagrada famt1ia e nos
;J final do século XV e durante todo o século XVI, uma legislação sanguiná- Manuscritos. ser operário é absolutamente não-natural, um estado
ria contra a vagabundagem. Os ancestrais da atual classe trabalhadora de castração e de dor que não pode ser adquirido pelo homem,
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foram imediatamente punidos pela transformação que lhes foi imposta que agora se historicizou no camponês expulso, a não ser por meio
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I. A QUESTÃO P E N A L E M o C A P I T A l 129.
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relações sociais" 11 • Não se trata, portanto, de nenhuma forma de a A burguesia força ao trabalho a nascente classe operária com leis
priori, seja idealista, seja materialista, mas, sim, da complexa trama de contra a vagabundagem, contra o direito de associação, leis que pro-
relações sociais que ligam os homens entre si e à natureza. As neces- longam a jornada laborativa e estabelecem um teto salarial etc. Aqui,
sidades que se desenvolvem historicamente, assim, não são, para Marx, efetivamente, o direito penal pode jactar-se de sua grande utilidade
de modo algum pressupostos do ser social, mas é nele próprio que par.1 o capital, pois, como violência do Estado, ele é, na época do
elas são criadas e se tomam reais. Isso é verdade tanto P<!-ra a teoria mercantilismo, um dos instrumentos com que é mais facilmente subs-
dos Manuscritos como para a d' O capital. O que muda, então? Onde tituído o ainda frágil ímpeto da iniciativa privada.
se manifesta, na questão penal, a maior riqueza d' O capital! Como se
Assim, o povo do campo, tendo a sua base fundiária expropriada à força
verá, o uso da violência do Estado e, portanto, do direito penal e da f
e dela sendo expulso· e transformado em vagabundos, foi enquadrado
pena, em O capital, é analisado por Marx como função exercida com
por leis grotescas e terroristas numa disciplina necessária ao sistema de
o objetivo de garantir o controle da força-trabalho e, portanto, a ex-
trabalho assalariado, por meio do açoite, do ferro em brasa e da tortura.
tração da mais-valia, a exploração. Se nos Manuscritos e na Sagrada
Não basta que as condições de trabalho apareçam num pólo como capital
jamt1ia, a repressão ainda estava ligada de modo muito intuitivo,
e no outro pólo como pessoas que nada têm para vender a não ser a sua
analógico, à sociedade burguesa, em O capital é descrito o mecanis-
força de trabalho. Não basta também forçarem-nas a se venderem volunta-
mo específico e a função do processo de contenção e de redução
riamente. Na evolução da produção capitalista, desenvolve-se uma classe
daquela que, no capítulo VII da Sagrada famt1ia, é chamada de "for-
de trabalhadores que, por educação, tradição, costume, reconhece as exi-
ça humana essencial".
gências daquele modo de produção como leis naturais evidentes. A orga-
Vindos das ruínas do feudalismo, capital e operários "livres" são
nização do processo capitalista de produção plenamente constituído que-
colocados frente a frente. E são reunidos materialmente na manufatu-
bra toda a resistência, a constante produção de uma superpopulação mantém
ra. Para esse proletariado em formação, tal abraço não é voluntário
a lei da oferta e da procura de trabalho e, portanto, o salário em trilhos
nem de modo algum prazeroso. Ele deve adaptar-se à clausur.1, à falta
adequados às necessidades de valorização do capital, e a muda coação das
de luz e de espaço, à perda daquela relativa autonomia permitida pelo
condições econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador.
trabalho nos campos, para submeter-se à autoridade incondicional do
Violência extra-econômica direta é ainda, é verdade, empregada, mas ape-
capitalismo, na mais brutal e fatigante monotonia e repetitividade. Não
nas excepcionalmenuP. Para o curso usual das coisas, o trabalhador pode
é por acaso, como veremos, que manufatura e cárcere tenham histori-
ser confiado às "leis naturais da produção", isto é, à sua dependência
camente uma mesma e interdependente origem.
do capital que se origina das próprias condições da produção e por elas é
Nem seria preciso recordar aqui a belíssima página marxiana so-
garantida e perpetuada. Outro era o caso durante a gênese histórica da
bre a manufatura:
produção capitalista. A burguesia nascente precisa e emprega a força do Esta-
· [a manufatura] aleija o trabalhador convertendo-o em uma anomalia, ao do para "regular" o salário, isto é, para comprimi-lo dentro dos limites
fomentar artificialmente sua habilidade no pormenor mediante a repres- convenientes à extração de mais-valia, para prolongar a jornada de traba- I'
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são de um mundo de impulsos e capacidades produtivas, assim como lho e manter o próprio trabalhador num grau normal de dependência. Esse i:,
nos Estados de La Plata abate-se um animal inteiro apenas para tirar-lhe é um momento essencial da assim chamada acumulação primitiva. 14 o
a pele ou o sebo.U .
Desse modo, seja para o operário-delinqüente do século XVI, seja
para o delinqüente tout-courl de um sistema capitalista desenvolvido ~ ,.,,
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l'l 11 Karl Marx, "Teses sobre Feuerbach", em Karl Marx & Friedrich Engels, A ideologia alemã (São o
Paulo, Hucitec, 1993), p. 13. 13
Aesfera da repressão penal, portanto, é a esfera das exceções. Os itálicos na citação são meus (DM). -
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12 Karl Marx, O capital, op. cit., v. I, t. I, p. 283. 14
Karl Marx, O capital, op. cit., v. I, t. 2, p. 277. "'
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ld., ibid., p. 267. 18
Karl Marx, op. cit., v. I, t. I, p. 144, 145.
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Karl Marx, op. cit., v. I, t. 2, p. 219-220. 19
Karl Marx, op. cit., p. 144. "
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precisamente depois, no berço do protestantismo mais rigoroso, como inventada pelos quacres é o modelo do estilo de vida imposto por
o da Pensilvânia, que se pôde operar a etapa seguinte e decisiva: a uma religião que é a religião do homem de negócios pio. O processo
transformação do "instituto de beneficência" - a casa de trabalho - de exploração, fundamento da civilização do capital, torna-se o eixo
em "lugar de pena" - a prisão. Surge assim o "sistema metodista do central do processo reformativo carcerário23 • A batalha iluminista pela
21
cárcere celular", ao qual Marx fará referência na Sagradajamt1ia • O cerleza da pena dá ao valor criado pelo trabalho forçado uma medi-
próprio fundador do Estado norte-americano, William Penn, tinha da exata, proporcional ao valor do bem tutelado24 • Depois de a fábri-
antecipado esse desenvolvimento, que viria a se concretizar cerca de ca te~ sido vista como a casa de trabalho ideal, agora é a prisão que se
um século depois na primeira penitenciária moderna, o cárcere celu- torna a fábrica ideal. A pena finalmente adquire o duplo caráter de
lar que surge em 1790 na Filadélfia. Dizia Penn em 1682: "All prisons representação sensível da ideologia dominante na sociedade: ela é sua
22
shall be workhouses for felons, vagrants and loose and idle persons". expressão extrema e radical e é, ao mesmo tempo, lugar de repressão
Mas, no ano em que a primeira prisão moderna é inaugurada, a bur- e de educação; disso resultando uma lição clara e convincente para
guesia na França já está pondo a sua pesada hipoteca sobre a gestão quem estava do lado de fora e se recusava a adaptar-se ou, o que dá
política da sociedade .. Trata-se, portanto, de um momento no qual, ao no mesmo, não podia adaptar-se.
menos nas nações mais avançadas, a hegemonia econômica e social Mas, se a fábrica é o mistério revelado da moderna prisão e o operá-
da nova classe recebe a unção do poder estatal. Segundo a interpre- rio o destino ao qual o delinqüente está condenado, agora, então, os
tação marxiana, isso significa que o modo de vida está se tornando
para a jovem classe operária cada vez mais um hábito, garantido mais
pela força das relações econômicas do que pelo Estado, Estado que 23
Ou, pelo menos - ma;; aqui não é possível aprofundar a questão -, da ideologia do cárcere.
parece ter-se tornado agora, ao menos nas teorizações dos livre-caro- Nesse sentido, o cárcere assume como seu próprio modelo sobretudo a casa de trabalho.
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' Em Hegel, e a seguir no jovem Marx democrata-radical, exprime-se muito bem a consciência
de que o princípio da proporcionalidade da pena corresponde a um tipo de relação social ba-
lO Não por acaso porque- como observa Marx- na "nação capitalista modelo do século XVII, seado na troca de equivalentes, portanto no valor de troca em geral. Cf. o § I OI da Rlosofia do
direito, de Hegel. Marx, no texto sobre a lei contra o furto de lenha, afirmava: "Se o conceito de o
a massa popular holandesa já em 1648 era mais esgotada pelo trabalho, mais empobrecida e
mais brutalmente oprimida do que aquela do resto de toda a Europa fYer K. Marx, O capital, op. direito exige aquele de pena, a realidade do delito exige uma medida da pena ... O limite de sua I,ji
cit.). Cf. sobre a casa do trabalho de Amsterdã, a Rasp-huis, o belo volume de T. Sellin, Pioneering pena deve, portanto, ser o limite de sua ação. O efetivo conteúdo da ofensa é também o limite I
in Penalogy (Riadélfia, University of Pennsylvania Press, 1944). Nesta instituição, que será modelo do efetivo delito e, portanto, a medida do delito é dada pela medida desse conteúdo. Essa :E I
para todas as outras, coincidiram por muitos anos a estrutura da manufatura do século XVII e
: ~ medida da propriedade é o seu valor. .. O valor é o modo de existir da propriedade na sociedade ~
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o alguns dos traços que serão característicos do cárcere do século XVIII. civil, o resultado lógico pelo qual ela adquire sua inteligibilidade e sua comunicabilidade social" (K. o 1:;:
Marx, "Dibattiti sulla legge contro i furti di legna", op. cit., p. 183-184). O conceito será expresso :
CJ 21 Karl Marx & Friedrich Engels, A sagrada família (São Paulo, Boitempo, 2003), p. 21 O. 1~
com extrema clareza muitos anos depois, em 1924, por um autor soviético, E.B. Pachukanis, em h
... 22 "Toda prisão deverá ser uma casa de trabalho para criminosos, vagabundos e pessoas ociosas seu trabalho, A teoria geral do direito e o marxismo, (Rio de janeiro, Renovar, 1979).
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caminhos da libertação e da redenção são comuns a essas duas figuras formar um lumpemproletário em proletário, de tirá-lo da esfera da
humanas. Marx mostra, no texto sobre a Comuna de Paris, que, em realização pessoal perturbada e irracional, para levá-lo à solidarie-
~·. i casos excepcionais de tensão revolucionária, quando o nó apertado
\~ i dade, à união, à associação com outros operários visando a um
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')I das relações burguesas afrouxa, o lumpemproletariado também é ca- programa consciente e comum.
paz de participar da luta comum e de superar o seu próprio individua- Não é por acaso que precisamente hoje possamos avaliar e acolher
!:i ' lismo para pôr-se sob a direção do proletariado25 • Mas a fábrica, além essa posição marxiana. O cárcere da'segunda metade dos anos 1860-
'i de ser o lugar da máxima representação do embrutecimento e da es- um tipo de cãrcere que em todo o mundo, sob o estímulo do poder
\'.,; cravidão do operário, é também o lugar da solidariedade, do projeto e crescente que a classe operária vinha conquistando no mercado de
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da luta pela libertação. Na medida em que a prisão se toma verdadei- trabalho, era cada vez mais voltado para ,uma utilização de tipo i
,. ramente similar à fábrica, também o ideal da teoria penal hegeliana de produtivista - funcionava, ao mesmo tempo, como elemento de re-
j.l urna formação da consciência, mesmo que consciência critica, negati-
;I composição de classe entre trabalho livre e tràbalho forçado; o cárcere
va, antagônica, aproxima-se de sua própria realização. A esse tema se toma assim, nos anos 1868-1870, um dos pontos quentes, interna-
jll Marx dá urna última contribuição sugestiva, depois de O capital, em cionalmente, de um movimento de fábrica e anti-institucional que se
r' sua crítica da reivindicação inscrita no programa de Gotha do Partido desenvolveu com uma amplitude e urna simultaneidade espantosas.
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Operário Social-Democrático alemão (1875), intitulada: "Regulamenta- São esses acontecimentos, no quadro de urna profunda e vasta crise
ção do trabalho nas prisões". Marx comenta: social e política do Ocidente, que obrigam a esquerda, "jurídica" ou não,
Reivindicação mesquinha, num programa geral operário. Em todo caso, "reformista" ou não, a acertar as contas com a questão penal, urna ques-
deveria proclamar-se claramente que não se desejava, por temor à con- tão que se torna mais grave hoje ante as manobras anti-inflacionistas dos
corrência, ver delinqüentes tratados como bestas e, sobretudo, que não diversos Tesouros nacionais. Assim, é justamente nos países anglo-saxões,
se queira privá-los de seu único meio de corrigir-se: o !rabalho produti- onde a cultura burguesa havia elaborado as mais reftnadas técnicas de
vo. Era o mínimo que se poderia esperar de socialistas.26 controle da deviance, que se manifesta a necessidade de elaborar urna
radical theory of deviance de inspiração rnarxista 27 • Mas as raízes da
É claro que o trabalho produtivo pode ser meio real de corre- questão criminal estão na essência mesma da sociedade que a produz,
ção do delinqüente do mesmo modo dialético no qual ele o é para no aspecto determinado que as relações. de produção assumiram nessa
o trabalhador em geral: por meio do trabalho, para negar e supe- época de seu desenvolvimento. Portanto trata-se.de determinar a relação
rar o trabalho alienado e a sociedade que a ele corresponde. Mas, concreta que se instaurou entre as linhas essencia~ da sociedade capita-
em um primeiro momento, ele é "corretivo" no sentido de trans- lista' e alguns de seus contornos, como a "criminalidade", o "desvio" etc.
Creio que possa ser de algum interesse, desse ponto de vista,
concluir relembrando os termos de urna polêmica que opôs alguns
25 Karf Marx, "A guerra civil na França", em Karf Marx & Friedrich Engels, Textos (São Paulo, Edições expoentes da "New Crirninology" ao marxista inglês Paul Hirst28 , pre-
Sociais, 1971). Marx retoma aqui o terna da concorrência entre o trabalho forçado e o trabalho livre. cisamente no terreno do método para abordar toda essa questão.
• Por muito tempo, prevaleceu no movimento operário a preocupação de que o trabalho forçado
pudesse subtrair postos de trabalho aos trabalhadores livres ou, mais provavelmente, corno ocorreu
o
...
e ocorre, abaixar o nfvel salarial em alguns ramos da produção por causa da exploração bestial à qual 27
Cf. I. Taylor, P. Watson e J. Young, The New CriminoiOfif (Londres, Routledge & Kegan Paul,
os presos são submetidos. Esse é o motivo pelo qual a classe operária, quanclo começou a organizar-
1973). e I. Taylor, P. Watson e j. Young (orgs.), Criminologia crítica (Rio de Janeiro, Graal, 1980). E
se e depois por muitos anos ainda, combateu asperamente, de modo geral, o trabalho carcerário.
o 28 Cf. P. Hirst, "Marx e Engels- sobre direito, crime e moralidade", em I. Taylor, P. Watson e j. Young
Marx mostra aqui o caminho justo a seguir no combate não ao trabalho na prisão tout court, mas ao
" modo corno ele é exercitado. (orgs.), úiminologia critica, op. cit.; I. Taylor, P. Waison, ':A. teoria radical do desvio e o marxismo: urna o
26 Karl Marx, "Crítica ao Programa de Gotha", em Karl Marx & Friedrich Engels, Textos, op. cit., p. réplica ao 'Marx e Engels- sobre direito, crime e moralidade', de Paul Q. Hirst"; P. Hirst, "The
1- rnarxism ofthe 'New Criminology'". The British)oumof ofúiminolog,-, outubro de 1973; I. Taylor, P.
a: 242-243.
Watson e j. Young, "Rejoinder to the Reviewers". The British )oumaf of úimino!Dgf, outubro de 1973. "'
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P. Hirst certamente tem razão quando sustenta, refutando a proposta diante. Desse modo, o problema da criminalidade ou do desvio d
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de urna "teoria marxista do desvio", que: "Os objetos da teoria mar- (conceitos burgueses que têm a função de exprimir de modo ideo- l i'
xista. são determinados por seus próprios conceitos" (e arrola, a se- lógico, mistificado, um problema real) se torna, em uma situação \~
guir, "os meios de produção, a luta de classes, o Estado, a ideologia histórica determinada, um aspecto da questão da acumulação ori-
etc.") 29• É provavelmente correto refutar a validade, para a teoria mar- ginária do capital (conceito marxista científico); o problema
xista, de expressões como "teoria marxista do desvio", mas o proble- carcerário, ou da penalogia, se transforma na questão da formação
ma está restrito apenas à utilização da palavra "teoria", na medida em do proletariado de fábrica etc.
que ela possa referir-se a urna teoria completa e acabada do desvio, Tudo isso exige uma aplicação contínua e criativa do marxismo,
a uma nova "criminologia marxista", em suma. Seguramente não era como ensinaram todos os grandes marxistas, de Luxemburgo a Gramsci, ,
esse, eu creio, o objetivo dos "novos criminólogos"; é evidente para de Lenin a Mao. Isso é verdade seja em relação à necessidade de
qualquer um que a nossa tarefa não é formular uma nova teoria analisar uma estrutura social que se transforma continuamente, seja
social eclética resultante da mistura de marxismo e sociologia, mas é, em relação a setores que ainda não foram penetrados pelo marxismo
antes, a de estender a hegemonia da única teoria social científica, o científico.
marxismo, ao conjunto dos objetos das chamadas "ciências sociais", Devemos fazer considerações análogas em relação a outro ponto
em um esforço para eliminar, desse modo, as várias e separadas con- da polêmica entre Taylor, Walton e Hirst, a questão de uma chamada
cepções de "ciências" diversas, como a sociologia, o direito, a psico- crime-free society, de uma sociedade livre do crime, sem crime31 •
logia, a economia e assim por diante. Pode-se observar como Hirst, recusando-se a elaborar um ponto
Se "o materialismo histórico é ... uma teoria científica e geral dos de vista marxista sobre os temas do crime e da pena, termina, afinal,
modos de produção"30, a idéia de que essa teoria deva ter como em uma posição subordinada à ideologia burguesa, ou melhor, em
objeto somente os próprios conceitos teóricos fundamentais é não posições ideo!Ç>gicas burguesas anacrônicas. Hirst sustenta a neces-
apenas redutiva, mas também oposta à essência da concepção mar- sidade da pena, das prisões e assim por diante 32 , fazendo uso de
xista, isto é, que ela seja o seu próprio objeto. Esses conceitos, a conceitos teóricos típicos do século XIX, do capitalismo do laissez-
partir de uma avaliação teórico-prática própria e constitutiva da ciên- faire; enquanto, por outro lado, já existe uma sociedade li:vre do
cia marxista, relacionam-se, de modo determinado, com todo o uni- crime, ou melhor, livre da punição, lá onde o neocapitalismp está
verso social. Se não fosse assim, o marxismo seria apenas uma teoria substituindo um certo tipo de prática e de teoria do controle social
econômica particular ou uma espécie de sociologia do trabalho, e por uma outra" na qual tanto os conceitos como os fenômenos reais
nada mais. Não é estranho, de fato, que os ideólogos burgueses de prisão e de pena, por exemplo, tornam-se obsoletos e vão sendo
freqüentemente tentem fazê-lo aparecer desse modo; eles sabem que substituídos pelos de atividade preventiva, desvio, controle social ; ~·~
a hegemonia científica marxista procede pari passu com a hegemonia extra-institucional, tratamento. Além disso, eu concordo com Hirst \j
social da classe operária, e· sabem também que um dos instrumentos
para enfrentá-la é limitar a sua capacidade teórica geral.
se ele simplesmente sustenta que, mesmo em uma sociedade em
transição para o socialismo, continuarão a existir ainda por muito
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Quando o marxismo se apropria de novos setores do "conheci- tempo fenômenos atualmente definidos como crimes. Mas devemos !I,~
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mento", como, a criminol~gia, ele destrÓi a criminologia enquanto \1
reconhecer que, como marxistas, é nossa tarefa política e científica <I
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tal, ao mesmo tempo que ele enriquece os seus próprios conceitos
básicos: capital e trabalho, luta de classes, Estado· e assim por L
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Cf.l. Taylor, P.Walton ej. Young, The NewCrimino/ogy, op. cit. e I. Taylor e P.Walton, "A teoria
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il. radical do desvio e o marxismo: uma réplica ao 'Marx e Engels -direito, crime e moralidade' de
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29 P. Hirst, 'Marx e Engels- sobre direito, crime e moralidade", op. cit. Paul Q. Hirst", op. cit.
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30 ld., ibid. Cf. P. Hirst, "A teoria radical do desvio e o marxismo: uma réplica a Taylor e Walton", op. cit. <
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lutar por uma ordem diferente quando esses fenômenos forem de-
~. crescendo à medida que a sociedade for se transformando em dire-
!'1 ção ao socialismo e ao comunismo.
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Dentro das relações humanas, ao contrário, a pena não será realmente
~.l outra coisa diferente do juízo do infrator acerca de si mesmo. Não se tratará
de convencê-lo de que uma violência externa imposta por outros é uma
violência que ele se irrlpõe a si mesmo. Nos outros homens ele haverá de
Da miséria ideológica à crise estrutural do capital:
encontrar, muito antes, os redentores naturais da pena que ele infligiu a si uma reconciliação histórica
mesmo, quer dizer, a relação se inverterá por completo.33
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M A R G ,E
0A MISERIA IDEOLÓGICA À CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL' 141
140 4
1 ) M EsQuERDA
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