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tação de que os proprietários contam Com este livro sobre o roubo na época

mais que a natureza ou o valor do merovíngia, Marcelo Cândido da Sil-


bem, quaisquer que sejam as fontes
Uma história do roubo va aborda, após seu magistral estudo

Uma história do roubo na Idade Média


analisadas. Marcelo Cândido da Sil- sobre os reis merovíngios, um tema
va revela a coerência das lógicas dos
textos normativos, reais e canônicos, na Idade Média essencial para os primeiros séculos da
Idade Média. A natureza do poder na
ou hagiográficos, que são abordados Idade Média remetia à problemática
em seus contextos particulares de re- Marcelo Cândido da Silva do sagrado na sociedade e na políti-
dação. Ele mostra também como o “Este livro aborda um assunto original: o roubo nas sociedades ca, mas também, e talvez sobretudo,
roubo de bens, ou mais precisamente da Alta Idade Média. Marcelo Cândido da Silva não procurou às relações entre a coletividade e o
o combate a essa prática e a sua des- descrever as práticas sociais a partir de normas, muito menos soberano, que agitaram historiadores
crição, participaram da construção e filósofos durante séculos, e cons-
elaborar um quadro das formas de repressão dos delitos. Seu livro
relativa das pessoas e das coisas. Com- tituem o cerne de nossas reflexões
se insere nas problemáticas históricas renovadas, que procuram
preende-se então como as normas são societárias e políticas. A questão do
instrumentos produzidos e utilizados
relacionar a fabricação da norma e o processo de construção das roubo é também importante e apre-
pelos homens para resolver proble- relações sociais. O autor não limita a sua pesquisa à legislação real, senta ressonâncias igualmente atuais:
mas colocados pelas relações entre mas leva em conta todos os textos que denunciam a apropriação a propriedade e o seu lugar na hie-
eles e também com as coisas. ilegítima dos bens de outrem: a hagiografia, a legislação real, os rarquia social, durante muito tempo
textos canônicos, os testamentos, etc. Definitivamente, a principal concebidos como fenômenos essen-
O livro aborda também a questão dos
concepção deste rico livro é a qualificação jurídica, que aparece cialmente coletivos entre os francos,
“bens da Igreja”. Trata-se de uma no-
ção cuja emergência coloca vários nos textos como uma ação normativa destinada a definir aquilo são reinterpretadas neste livro.
problemas, mas é abordada com que é lícito e aquilo que não é.” Para surpresa dos historiadores e
grande fineza por este estudo inova- dos eruditos dos séculos XVIII e XIX,
Régine Le Jan, Professora de História Medieval
dor que revela as suas raízes teóricas o roubo aparece como o crime mais
na Université Paris 1 – Panthéon/Sorbonne
e práticas. Marcelo Cândido da Silva severamente punido nas antigas leis.
mostra como os eclesiásticos ignora- Marcelo Cândido da Silva não se con-

Marcelo Cândido da Silva


ram o princípio que fez por definição tenta em lembrar que a resolução dos
de Deus o criador e o proprietário de conflitos mais graves ocorria à mar-
todas coisas, para dar um estatuto gem da lei, pela faida – a vingança
particular aos bens da Igreja. As nor- familiar -, e que as leis bárbaras se
mas construídas no contexto da luta dedicavam à pacificação mais do que
contra o roubo são então reutilizadas à punição. Apoiando-se em trabalhos
em uma ótica distinta da sua elabora- de antropólogos, de filósofos e de
ção para punir o ladrão desses bens historiadores do direito, ele analisa
particulares: “assassino dos pobres”, fontes lidas muitas vezes de maneira
o ladrão ataca bens cujo proprietá- superficial, revelando a lógica inter-
rio no sentido estrito é Deus, o que na das mesmas. Esse procedimento
modifica profundamente a natureza profundo e original permite ao autor,
desses bens. através do estudo do roubo, esclarecer
os processos medievais de construção
Sylvie Joye das relações sociais e das pessoas.
Université de Reims Suas conclusões sobre o estatuto das
Institut Universitaire de France pessoas e dos bens parte da consta-
Uma história do roubo na Idade Média
Bens, normas e construção social no mundo franco

Marcelo Cândido da Silva


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©Marcelo Cândido da Silva

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A817c
Arruda, Rogério Pereira de
Cidades-capitais imaginadas pela fotograia: : La Plata (Argentina), Belo
Horizonte (Brasil), 1880-1897 / Rogério Pereira de Arruda. - 1. ed. - Belo
Horizonte, MG : Fino Traço, 2013.
264 p. : il. (História ; 39)
Apêndice
Inclui bibliograia
ISBN 978-85-8054-160-1
1. 2. Fotograia - História. 2. Capitais (Cidades). 3. Fotograia - La Plata (Argentina).
4. Fotograia - Belo Horizonte (MG). I. Título. II. Série.
13-07326 CDD: 770
CDU: 77
25/11/2013 27/11/2013

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Andréa Lisly Gonçalves | UFOP
Betânia Gonçalves Figueiredo | UFMG
Iris Kantor | USP
Marcelo Badaró Mattos | UFF
Paulo Miceli | UniCamp
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Para a Néri e para a Marina.
Sumário

Prefácio 9

Introdução 11

1. Normas e construção social 15

2. O roubo nas hagiograicas 35

3. O roubo da legislação real 49

4. O roubo nos cânones conciliares 83

5. O problema dos bens da Igreja 103

Considerações finais 127

Bibliografia 133
“Le droit se heurte aux faits, mais il n’est pas de faits qu’il ne simule de surmonter
pour empiriquement développer son emprise sur eux” [homas, Y. Fictio legis.
L’empire de la iction romaine et ses limites médiévales. Droits. Revue française de
théorie juridique, 21, 1995 : 35].

“Un père (certains soutiennent qu’il s’agissait d’un cheikh fort riche), sentant sa
in prochaine, prit ses dispositions pour régler sa succession. Son troupeau de
chameaux devait être réparti entre ses trois ils (Ahmed, Ali et Benjamin, mais les
noms varient d’une version à l’autre) selon l’ordre suivant: le premier, en vertu du
droit d’aînesse, recevrait la moitié, le second hériterait du quart, quant au cadet,
il se contenterait du sixième. Lorsqu’il mourut peu après, ses ils furent bien
embarrassés : le partage se révélait en efet impossible, dès lors que le troupeau
s’élevait à onze chameaux très exactement. Alors qu’ils en étaient déjà venus aux
mains à propos de ce partage impossible, ils convinrent de soumettre l’afaire au
khadi. Celui-ci, après avoir entendu les parties, réléchit, traça quelques signes
dans le sable, et inalement déclara: ‘Prenez un de mes chameaux, faites votre
partage, et, si Allah le veut, vous me le rendrez’. Interloqués, mais peu désireux
de contredire cet homme sage, les ils s’en allèrent avec le chameau du juge. Ils ne
tardèrent pas cependant à réaliser l’ingéniosité du khadi: avec douze chameaux,
le partage devenait fort aisé — chacun reçut sa part et le douzième chameau
ne manqua pas d’être aussitôt restitué” (antigo conto beduíno, citado por Ost,
F. Le douzième chameau, ou l’économie de la justice, In: Liber amicorum Guy
Horsmans, Bruxelas, Bruylant, 2004: 843-867).

“Car les hommes ne vivent pas seulement en société, comme les primates et autres
animaux sociaux, mais ils produisent de la société pour vivre. Et il me semble que,
pour produire une société, il faut combiner trois bases et trois principes. Il faut
donner certaines choses, il faut en vendre ou troquer d’autres, et il faut toujours
en garder certaines” (M. Godelier, “Des choses que l’on donne, des choses que l’on
vend et celles qu’il ne faut ni vendre ni donner, mais garder pour les transmettre”
(Godelier, M. Au fondement des sociétés humaines. Ce que nous apprend
l’anthropologie, Paris, 2007 : 87).

9
Prefácio

Antes de mais nada, este prefácio testemunha uma amizade estabelecida


há quase dez anos, mantida por numerosos intercâmbios proissionais e
pessoais. Ele é também o fruto de uma colaboração mantida entre historiadores
medievalistas brasileiros e franceses por meio de encontros cientíicos e de
publicações comuns. O livro de Marcelo Cândido da Silva foi, em parte, escrito
na França, graças a uma bolsa de pesquisa da prefeitura de Paris e foi objeto
de discussões preliminares no Seminário de História da Alta Idade Média da
Universidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne.
Esse livro aborda um assunto original: o roubo nas sociedades da Alta
Idade Média. O roubo e a sua repressão não são especiicidades das sociedades
bárbaras: todas as sociedades que deinem direitos de propriedade, sejam eles
individuais ou coletivos, condenam a apropriação ilícita de bens de outrem
e desenvolvem procedimentos de repressão e/ ou compensação pelos danos
sofridos pelos proprietários. As leis bárbaras, elaboradas entre os séculos VI e
VIII, não são diferentes e fornecem frequentemente um catálogo bem preciso
das multas e punições previstas para as diferentes categorias de roubo. Alguns
chegaram até mesmo a defender que os Bárbaros reprimiam mais o roubo
do que o homicídio e que eles davam mais valor aos seus bens do que à vida
humana. Tal airmação é desmentida pela presença onipresente da vingança
de sangue. Além disso, essa preposição não leva em conta a necessidade de
contextualizar os discursos e de desconstruir as fontes, necessidade que se
impõe depois de três décadas de linguistic turn. Por um lado, as leis escritas
não esgotam o campo normativo nas sociedades da Alta Idade Média, na qual
prima à oralidade. Por outro, as normas são permanentemente contornadas ou
renegociadas, o que torna móvel o limite entre a legitimidade e a ilegitimidade.
Marcelo Cândido da Silva não procurou descrever as práticas sociais a partir
de normas, muito menos elaborar um quadro das formas de repressão dos
delitos. Seu livro se insere nas problemáticas históricas renovadas, que procuram
relacionar a fabricação da norma e o processo de construção das relações sociais.
O roubo de bens é um tema que se presta bem a uma pesquisa desse
gênero. Os trabalhos sobre dom e transferência patrimonial na Alta Idade
Média, que se multiplicaram nos últimos anos, abordam a circulação de
bens materiais, reagrupando sob um único termo de troca todas as formas de
transações que envolvem reciprocidade: os dons, as trocas de bens materiais,
a venda e a compra. A noção de dom e troca, elaborada por Karl Polanyi,
permitiu realçar o caráter circular e indeinido de relação criada pelo dom,
nas sociedades em que o econômico está incrustado no social. O historiador
deve, portanto, observar a parte social e simbólica nas operações que parecem
ser essencialmente econômicas e vice-versa, ao se interrogar, por exemplo,
sobre a mais-valia simbólica contida nas operações de transformação. Essa
abordagem foi utilizada recentemente ao se estudar o launechild lombardo,
contra-dom obrigatório nas trocas matrimoniais, cujo valor dependia das
funções sociais que lhe eram atribuídas: de um valor simbólico a um preço
aproximado, passando pelo reconhecimento de dívidas anteriores à transação.
O roubo e a pilhagem fazem parte dessa circulação ininita de bens, mas de
forma negativa, pois coloca em perigo a ordem social. Dessa forma, as normas
servem para delimitar a parte do lícito e do ilícito, ao qualiicar juridicamente
os atores e as suas ações. Mais do que reprimir delitos, elas servem para
estabelecer o valor social dos bens e a hierarquia das pessoas, em um processo
indeinidamente renovado.
Marcelo Cândido da Silva não limita a sua pesquisa a legislação real, ele
levou em conta todos os textos que denunciam, de uma maneira ou outra,
a apropriação ilegítima dos bens de outrem: a hagiograia, a legislação real,
os textos canônicos, os testamentos, etc. Para cada tipo de texto e a partir
de exemplos signiicantes, ele desenvolve uma normatividade particular. A
natureza das fontes conduz a colocar em destaque o roubo de bens da Igreja,
quer que se trate do roubo de bens de santos reportados nas hagiograias ou
de bens das igrejas denunciados nos textos conciliares. Mas o autor não cai na
armadilha de uma oposição anacrônica entre as esferas civis e religiosas. A partir
do século VII, a Igreja passa a controlar uma grande parte da circulação e da
redistribuição de bens, por meio do dom e da salvação da alma. E mesmo se os
Pais da Igreja tenham deinido os bens da Igreja como bens inalienáveis, cujo
verdadeiro proprietário é Deus, o seu uso pode ser legitimamente devolvido
aos laicos. No século IX, os prelados carolíngios airmam ser os únicos que
podem controlar o uso, mas são os reformadores gregorianos que, somente
no século XI, se empenham na luta para reservar o uso dos bens somente
aos clérigos.
Deinitivamente, a principal concepção desse rico livro é a qualiicação
jurídica que aparece nos textos como uma ação normativa destinada a deinir
aquilo que é lícito e aquilo que não é. Ela permite compreender por que o
valor econômico dos bens roubados e o prejuízo sofrido não determinam
diretamente o rigor da punição ou a ausência de punição. Ela apresenta o
desejo de paciicação que anima as autoridades e o estatuto do possesso, o
que conirma a ideia de que nessas sociedades, nas quais pessoas e bens estão
estreitamente ligados, o valor social dos bens é determinado pelo estatuto
daquele que os possuem.
Esse rápido prefácio não esgota a riqueza do livro, mas provocará, eu
espero, a vontade de lê-lo para saber mais.

Régine Le Jan
Professora de História Medieval da Université Paris I (Panthéon-Sorbonne)

12
Introdução

A imagem da Idade Média é a de um mundo dominado pela violência


atávica e sem limites. E isso graças notadamente à historiograia do século XIX,
que deplorava no período medieval a ausência de uma autoridade central forte, na
mesma proporção em que exaltava o Estado Moderno como a forma mais perfeita
de controle da violência interpessoal. Dois conlitos mundiais, uma série de outros
conlitos de alcance regional, as milhões de vítimas dos totalitarismos, bem como
a explosão da violência nas grandes metrópoles, o fenômeno do crime organizado,
entre outros, solaparam a coniança no Estado como um instrumento capaz de
combater ou mesmo prevenir a violência. Assistimos também a um aumento
do interesse pelo fenômeno da violência entre os historiadores, sociólogos,
antropólogos, etc. Nos últimos vinte anos, houve uma multiplicação de estudos
sobre a violência na Idade Média, cujo foco está menos na autoridade pública e
em sua capacidade de lidar com esse fenômeno do que nas formas societárias de
solução de controvérsias1. A publicação, em 1986, por P. Geary, de um artigo
sobre os mecanismos de resolução de conlitos [“Vivre en conlit dans une
France sans État: typologie des mécanismes de règlement des conlits (1050-
1200)”, e o colóquio La justicia nel alto Medioevo, organizado em Spoleto, em
1995 e em 1997, pelo Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo (CISAM),
são eventos que marcaram uma guinada nos estudos sobre as relações entre
paz e violência na Idade Média. Nesse sentido, pode-se mencionar também
os trabalhos de P. Fouracre e W. Davies, E. James, I. Wood, F. Bougard, R. Le
Jan, R. McKitterick, bem como o colóquio Le règlement des conlits au Moyen
Âge, organizado pela Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement
Supérieur Public Français (SHMESP), em 2000, cujos anais foram publicados
um ano mais tarde; ou ainda, mais recentemente, o colóquio sobre a vingança,
promovido na École Française de Rome, em 2003, cujos anais foram publicados
em 2006 (La vengeance, 400-1200). Essa guinada “societária” do estudo da
violência, com uma ênfase inédita nos mecanismos de solução de controvérsias
que não passam pelos tribunais, é sintomática da crise da crença na eicácia do
Poder como categoria de análise, de uma dissociação entre a História Política
e as instituições, e também da integração das práticas sociais como um lócus
privilegiado para o estudo do poder.
Em 1994, o historiador norte-americano R.F. Newbold, publicou um artigo
sobre a violência interpessoal nas Histórias, de Gregório de Tours. Nesse artigo,
o autor desenvolve uma abordagem quantitativa acerca da violência: números

1 Tratamos do problema da violência e da paz na Idade Média em um livro escrito com Néri de
Barros Almeida (Paz e violência no Ocidente medieval, no prelo).

13
de agressões, origens sociais dos agressores, formas de violência, efeitos, etc.2 As
formas de violência são catalogadas e tratadas como se Gregório fosse um cronista
dos fatos quotidianos do mundo franco, e suas Histórias, um relato jornalístico
da crônica policial do período. A violência em Gregório de Tours não pode
ser dissociada do sentido que o autor atribui à história, a saber, a luta dos reis
contra as nações adversas, dos mártires contra os pagãos, das igrejas contra os
heréticos. Todos os inúmeros atos de violência descritos nas Histórias servem,
portanto, para ilustrar não apenas o im dos tempos, mas também para dar sinais
irrefutáveis do triunfo inal da Igreja: é nesse sentido, como bem mostrou Martin
Heinzelmann, que a morte do rei Gontrão - o rei cristão ideal na perspectiva
gregoriana - é ocultada nessa obra, ainda que o bispo de Tours faça menção a ela
em um trecho dos Sete livros de milagres dedicado aos milagres de São Martinho3.
Este é apenas um exemplo da reavaliação dos sentidos da violência nos textos da
Alta Idade Média. Numa perspectiva distinta daquela adotada por Newbold, este
trabalho parte da ideia de que a violência e, particularmente os ataques aos bens,
não podem ser dissociados dos imperativos da produção e da difusão dos textos
que descrevem esses fenômenos. Os ladrões, os proprietários e os bens descritos
nas crônicas, nas atas conciliares, nas leges ou nas hagiograias dos primeiros
séculos da Idade Média não podem ser delas isolados sem que se compreenda
o papel - formal inclusive - que eles exercem em tais textos. Fazer uma história
desses personagens e dos bens que eles disputam sem levar em conta as funções
narrativas dessas disputas nos diferentes suportes em que elas aparecem equivale
a esvazia-las de parte essencial de seus signiicados.
Daí resulta a organização dos capítulos deste livro, centrada nos diversos tipos
de fontes e nas formas pelas quais elas descrevem os ataques aos bens, e não nas
diversas modalidades de roubo. Optou-se por igualmente por evitar a tipologia
oriunda do Direito moderno e fundamentada na distinção entre “roubo” e “furto”
(que só é efetiva a partir do século XVI). Aliás, não se pode fazer uma história
dos ataques aos bens desde a Antiguidade até a época moderna sem reconhecer
que os ataques aos bens encobrem conteúdos e sentidos radicalmente distintos
segundo a região e o período, ainda que as palavras utilizadas para deini-los
sejam as mesmas. O ladrão, o proprietário e os bens são criações documentais
tanto quanto personagens da vida social: toda a diiculdade está em tentar deinir

2 “In reading Gregory’s history one is struck by the frequency of episodes such as above.
Excluding the violence involved in warfare, books 2-10 yield 261 separate instar of physical in-
terpersonal violence, such as beating, stabbing, arresting, imprison torturing, poisning, burying
alive. Such incidents can be under a number headingd, such as place of occurrence, agressor,
victim, nature of violence, cause, efect, and purpose of the violence, in order to illustrate the
role and nature of interpersonal violence in the world as Gregory perceives and reports it”,
R.F. Newbold, “Interpersonal Violence in Gregory of Tours’ Libri Historiarum”, Notingham
Medieval Studies 34 (1994): 3-17, aqui: 3-4.
3 De virtutibus beati Martini episcopi, IV, 37: “Tempos depois, após a morte do gloriosíssimo
rei Gontrão...”.

14
os limites entre uma e outra manifestação! Talvez a tarefa dos historiadores esteja
menos em tentar resolver essa ambiguidade (o que diicilmente poderia ser feito
sem o recurso à dicotomia entre “ideal” e “realidade”) do que em entender o
seu funcionamento, compreender a sua função. Não se trata, evidentemente,
de negar a existência do real, mas de levar em conta a mediação realizada pelos
textos em toda a sua amplitude, e tirar ao mesmo tempo as consequências das
diiculdades documentais para os estudos das sociedades da Alta Idade Média.
Devemos, por isso, deixar o estudo do roubo, do furto e da violência em geral aos
especialistas da literatura medieval? De forma alguma. Ainda que não possam
ser avaliados a partir de um ponto de vista estritamente quantitativo, como
expressões sociológicas do nível de violência ou de intensidade de ataques aos
bens, os relatos desses ataques nos textos dos primeiros séculos da Idade Média
não são desprovidos de interesse para o historiador. Eles permitem que se alcance
o universo das concepções sociais acerca do roubo, do furto e da violência em
geral e, mais importante ainda, as formas pelas quais as normas que coíbem essas
práticas participam do processo de construção das relações sociais e dos próprios
sujeitos. Tal é a trama que será tratada ao longo deste livro.

15
1. Normas e construção social

Os estudos sobre as sociedades da Alta Idade Média constituem, já há alguns


anos, uma paisagem em plena mutação1. Eles são o terreno da emergência de novas
perspectivas sobre fontes já conhecidas: a descoberta, desde o inal do século XIX,
de alguns textos iscais (as Contas do Monastério de Tours e uma nova versão
do Políptico de Saint-Rémi de Reims), e também de necrópoles e túmulos de
chefes não pode explicar por si só as transformações em tela. Assistimos a um
movimento de outra natureza, e seria redutor deini-lo como um “retorno às
fontes”. As fontes disponíveis são reconsideradas, desconstruídas e reconstruídas2,
e o próprio termo “fontes” é colocado em questão3. Essa intensa renovação
engloba tanto os textos escritos quanto os elementos da cultura material. Os
dados arqueológicos, ao invés de pressupostos, são considerados materiais
sujeitos a interpretações que se abrem para horizontes até então desconsiderados
por historiadores e arqueólogos, como a amizade, a inimizade4, a competição5,
as emoções6 ou a psicologia social7. Paradoxalmente, esse movimento só foi
possível graças à crise da História, dos paradigmas e dos objetos de estudo
tradicionais do historiador.
Mais do que uma crise da História, o mais correto, aliás, seria falar em crise
da História Cientíica e de seus instrumentais teórico-metodológicos consagrados
em boa parte à genealogia do Estado Nacional. Essa crise atingiu em cheio as
grandes edições de textos realizadas nesse período (Monumenta Germaniae

1 As primeiras páginas deste capítulo foram publicadas na Signum, a revista da Associação


Brasileira de Estudos Medievais, sob a forma do artigo “A Idade Média e a Nova História Política”
[http://www.revistasignum.com/signum/index.php/revistasignumn11/issue/current/showToc]
2 A este respeito, ver “Descontrucionismo e construcionismo nas fontes da Alta Idade Média”,
conferência ministrada por Régine Le Jan na abertura do Colóquio Internacional “Os medie-
valistas e suas fontes: a Alta Idade Média”, organizado pelo Laboratório de Estudos Medievais
(LEME) e pelo Laboratoire de Médiévistique Occidentale de Paris (LAMOP) nos dias 7, 8 e 9 de
abril de 2009.
3 Para uma crítica do termo “fontes”, ver os artigos de Morsel, J. Les sources sont-elles le
pain de l’historien? Hypothèses 2003. Travaux de l’École Doctorale d’Histoire de l’Université
Paris I Panthéon-Sorbonne, Paris, 2004 : 263-586; e de Kuchenbuch, L. Sources ou documents?
Contributions à l’histoire d’une évidence méthodologique, Hypothèses 2003 : 287-315.
4 Régine Le Jan prepara atualmente um livro sobre “amizade” e “ódio” nas sociedades da Alta
Idade Média (séculos VI-XI).
5 Baray, L., Brun, P., Testart, A., “Dépots funéraires et hiérarchies sociales aux âgs du fer en
Europe occidentale: aspects idéologiques et socio-économiques”, In: Pratiques funéraires et socié-
tés Nouvelles approches en archéologie et en anthropologie sociale, Dijon, 2007: 169-189 (Collection
Art, Archéologie et patrimoine).
6 Rosenwein, B. (ed.), Anger’s Past: he social uses of an Emotion in the Middle Ages.
7 Halsall G., Settlement and Social organisation in the Merovingian region of Metz, Cambridge,
1995.

17
Historica, Patrologia Latina, dentre outros)8. Muito embora a leitura crítica das
edições dos textos medievais não seja um fenômeno recente, ela se concentrava,
pelo menos até os anos 1970, nas questões de erudição. Em 1925, por exemplo,
F. Lot mostrou que o texto identiicado por A. Boretius e V. Krause como a
primeira capitular de Carlos Magno era uma falsiicação.9 Para F-L. Ganshof, a
edição de Boretius e de Krause deixaria a desejar, tanto do ponto de vista da
crítica textual, quando do ponto de vista da história do Direito: o aparato crítico
seria incompleto e não repousaria em uma classiicação metódica dos elementos
da tradição manuscrita ou impressa.
A crítica contemporânea sustenta que os autores dessas edições foram além
de um trabalho de erudição, privilegiando algumas famílias de manuscritos
em detrimento de outras, reconstruindo manuscritos a partir da supressão de
discrepâncias que, mantidas, permitiriam uma outra compreensão do texto. Essa
crítica é acompanhada de um retorno aos manuscritos e da percepção de que um
estudo atento dos mesmos pode chamar a atenção para uma série de elementos
igurativos e paleográicos que geralmente passam despercebidos nas edições
impressas10. Antes consideradas apenas do ponto de vista da hercúlea tarefa de
erudição que as engendrou, as edições de textos medievais constituem-se hoje
também em um objeto historiográico11.

8 Uma das mais importantes edições de textos medievais, os Monumenta Germaniae Historica
(MGH) constituem parte essencial do projeto Romântico de recuperação da Idade Média. A
divisa da coleção, Sanctus amor patriae dat animum já foi interpretada como prova da marca
patriótica associada ao projeto. Essa não é a opinião de H. Fuhrmann: “Cette maxime illustre
l’esprit qui présida à la fondation des MGH: ‘l’amour de la patrie incite à l’action’. Mais il serait
pour le moins aventureux d’identiier purement et simplement cet ‘amour de la patrie’, qualiié,
qui plus est, de saint (Sanctus amor), au patriotisme. Il exprime plutôt la conviction que l’esprit
agissant émane du peuple et de la patrie et que seul le renforcement de cet esprit permet d’es-
pérer des résultats. Que la libération de l’‘esprit populaire’ comportât certains dangers pour
l’ordre, c’était ce que craignaient avant tout les forces de restauration, qui venaient tout juste
de conquérir ou de reconquérir leurs biens et leurs territoires lors du Congrès de Vienne en
1815” (Fuhrmann, H. Les premières décennies des Monumenta Germaniae Historica. Francia 21/1,
1994 : 175-180). Para uma história dos MGH, ver Knowles, D. Great Historical Enterprises.
9 Lot, F. Le premier capitulaire de Charlemagne. École Pratique des Hautes Études.
Annuaire,1924-1925. (Ganshof, F-L., Recherches sur les capitulaires: 8).
10 Um bom exemplo desse retorno aos manuscritos é o livro Inventar a heresia? Discursos polê-
micos e poderes antes da Inquisição (Campinas, LEME/Editora da UNICAMP, 2009), organiza-
do por M. Zerner e resultado do seminário “Heresia, estratégia de escrita e instituição eclesial”,
acontecido em Nice de 1993 a 1995, e de uma mesa-redonda que se seguiu, em 1996. Os autores
optaram por retornar aos textos, narrativos, normativos e polêmicos escritos antes da criação
dos tribunais da Inquisição. Poderíamos citar também o artigo de C. Lauranson-Rosaz sobre o
Liber Legis Doctorum de Clermont (Lauranson-Rosaz, C. Le Bréviaire d’Alaric en Auvergne:
le Liber Doctorum de Clermont (ms. 201, anc. 175) de la B.M.I.U. de Clermont-Ferrand”, In:
Rouche, M., Dumézil, B., Le Bréviaire d’Alaric. Aux origines du Code Civil, Paris, Presses de
l’Université Paris-Sorbonne, 2008: 241-276).
11 Berger, S. “Introduction: Towards a Global History of National Historiographies”, In: Writing
the Nation. A Global Perspective: 1-29; do mesmo autor, he Power of National Pasts: Writing
National History in Nineteenth- and Twentieth- Century Europe, In: Writing the Nation. A

18
A própria História Política retorna com força, mas ela não é a mesma que
foi criticada e destronada pelo movimento dos Annales. A questão colocada
por J. Le Gof em seu artigo de 1971, “a História Política ainda é a espinha
dorsal da História?”, parece ter encontrado sua resposta na multiplicação das
pesquisas sobre as elites, os poderes locais, o espaço político, e a renovação
do interesse pela diplomacia, pelas normas e pela resolução de conlitos. O
campo de estudo do poder estendeu-se para domínios antes inexplorados pelos
historiadores, como a construção das identidades12, os funerais13, a literatura, os
sentimentos14, a amizade, a inimizade, as relações de parentesco e a psicologia
familiar15. Até a primeira metade do século XX, poucos eram os historiadores
que acreditavam que esses fossem loci do poder ou mesmo temas dignos de
atenção da História.
O estudo do consenso nos reinos bárbaros tem mostrado que o fenômeno
da dominação nas sociedades da Alta Idade Média vai além da simples relação
de mando e obediência, consagrada pela teoria clássica do Direito16. A relação
governantes/governados não foi a única a ser colocada em xeque na relexão
historiográica dos últimos trinta anos. Os binômios construídos no âmbito
da História Cientíica e sobre os quais se fundamentavam os estudos sobre a
Idade Média (público/privado, racional/irracional, ideal/realidade, clérigo/laico,
sagrado/profano, Igreja/Estado, paz/violência) encontram-se relativizados, e até
mesmo abandonados, em proveito de leituras mais nuançadas das concepções e
das práticas sociais daquele período17. Saliente-se, no entanto, que esse intenso
questionamento dos pressupostos tradicionais de análise não conduziu ao triunfo
do relativismo no campo da História Medieval. As correntes “pós-modernas” -

Global Perspective: 30-62.


12 Há uma boa síntese dos debates sobre a construção das identidades em Gazeau, V. Bauduin,
P., Modéran, Y. (dir.), Identité et Ethnicité. Concepts, débats historiographiques, exemples (IIIe-
XIIe siècles).
13 Testart, A., Enjeux et diicultés d’une archéologie sociale du funéraire, In: Pratiques funé-
raires et sociétés : 9-13; do mesmo autor, Deux politiques funéraires: dépôt ou distribution, In:
Archéologie des pratiques funéraires: approche critique: 303-310; G. Halsall, Settlement and Social
Organization: he Merovingian region of Metz.
14 Rosenwein, B. (ed.), Anger’s Past: he social uses of an Emotion in the Middle Ages.
15 Rosenwein, B. Emotional Communities and the Body (http://www.kcl.ac.uk/content/1/
c6/02/04/95/LondonEmtheBody.pdf).
16 “Merovingian Francia, we now realize, worked by consensus; the Carolingians, far from forging
a state, were forever negotiating to stay in power; and the ‘ feudal anarchy’ of the post-Carolingian
period worked through informal mechanisms of dispute resolution” (Rosenwein, B. Writing wi-
thout fear about early medieval emotions. Early Medieval Europe. v. 10, n.2, 2001.: 229-234). Ver
também, Wood, I. Kings, kingdoms and consent. In: Sawyer, P. Wood, I. (ed.), Early Medieval
Kingship: 3-29.
17 No que se refere às relações entre racional e irracional: Colman, R. Reason and unreason
in early medieval law. Journal of Interdisciplinary History, v. 4, 1974: 571-91; ideal e realidade:
Mckitterick, R. Perceptions of Justice in western Europe in the ninth and tenth centuries. In:
La Giustizia nell’Alto Medioevo (Secoli IX-XI), Settimane di Studio del Centro Italiano di Studi
sull’Alto medioevo: 1075-1102; paz e violência: Wallace-Hadrill, J.-M. he Long Haired Kings.

19
especialmente o linguistic turn, o performatif turn e a Gender History - tiveram
um apelo reduzido entre os medievalistas e foram objeto de diversas críticas
nos últimos anos18.
A retórica dos textos e as questões formais por eles suscitadas não são
hoje o monopólio da análise literária. Os historiadores estão mais sensíveis
à possibilidade de utilizar os textos literários e os recursos retóricos para o
estudo do poder e da sociedade19. Contudo, eles estão também mais atentos à
dimensão literária dos discursos do poder, dos discursos históricos, dos discursos
identitários. Tomemos um exemplo: um estudioso das sagas islandesas, T.
Andersson airma que o recurso às sagas constitui um remédio contra a ausência
de detalhes no Livro de Leis (Grágás); ele também lembra que os historiadores
do Direito, muito embora façam referência às sagas, concentram o seu foco
nas questões processuais, negligenciando as implicações dos textos literários.
A partir de uma leitura das sagas, por exemplo, seria possível identiicar com
clareza a natureza do roubo como crime de honra (o termo “roubo” é aplicado
somente em caso de apropriação oculta de bens) e sua apresentação como
defeito de caráter 20. Seria um equívoco negligenciar as dimensões normativas

18 O livro da historiadora israelense, N. Pancer (Sans peur et sans vergogne. De l’honneur et des
femmes aux temps mérovingiens), é um bom exemplo da postura crítica assumida pelos medie-
valistas face à Gender History.
19 Os estudos sobre as “emoções” têm desempenhado papel importante na reconsideração das
relações entre topos retóricos e pesquisa histórica. Segundo Barbara Rosenwein, uma das maio-
res expoentes dessa corrente analítica, “[…] the representation of emotional standards is itself
a social product […] the existence of topoi need not deter the historian of emotion […]If emo-
tions igure in those documents (and even if they do not) we have right to ask what emotional
structures are revealed by them in their proper context, taking into account all we can about the
linguistic, social, economic, intellectual and political processes and structures that make up that
context, while not relecting the audience and the range of ways in which it might have received
the texts in question” [Rosenwein, B. Writing without fear about early medieval emotions, Early
Medieval Europe: 232-233]. O “topos” retórico parece cumprir uma função que não se esgota no
interior do texto. Como mostrou Peter Dronke, “... a distinctive use of a topos can itself consti-
tute individuality within a tradition; and further, that it is the function of the topos in context,
rather than its topicality, which repays study: ‘analytic study must constantly be accompanied
and complemented by integrative and contextual understanding; the irst is accurate only in so
far as the second is sensitive” [Dronke, P. Poetic Individuality in the Middle Ages: 11-12 apud.
Garrisson, M., he study of emotions in early medieval history. Early Medieval Europe. v.10, n.2,
2001: 246]. Segundo M. Garrisson: “A irst step will be to reject the widespread notion that dis-
misses topoi in medieval texts as by deinition antithetical to the expression and communication
of genuine feelings” (he study of emotions in early medieval history, Early Medieval Europe.
v.10, n.2, 2001: 245).
20 “he law-books tell us about procedures, not emotions. he sagas perform a diferent ser-
vice – they mirror public opinion. It is clear that in the hierarchy of public animosity, thet in
Iceland occupied an unenviable position and was considered to be particularly distasteful. he
thief was characteristically lowborn, oten a foreigner or otherwise estranged from the commu-
nity. het was not infrequently connected with sorcery, another crime regarded as particularly
contemptible… Accusations of thet invite extreme reactions on the part of those accused and
result almost always in bloody reprisals” T. Andersson, he hief in Beowulf. Speculum, v.59,
1984: 496-497.

20
dos textos narrativos, da mesma forma que é preciso pôr em xeque a ideia
de que esses últimos correspondem a descrições iéis do real. As narrativas
históricas não são mais consideradas relexos da realidade social, ainda que essa
realidade seja vista como uma das referências da construção desses textos21. O
real é apenas uma das referências, ao lado das idealizações políticas e também
dos imperativos ideológicos ou de transformação social. G. Bührer-hierry
mostrou, por exemplo, que a constituição das coleções canônicas não levava
apenas em conta as questões de direito, mas também os conlitos políticos entre
os diversos grupos episcopais22.
Os historiadores não veem mais o poder apenas como uma forma de
controle sobre homens ou sobre estruturas. Uma nova variável começa
timidamente a integrar o horizonte das relexões sobre o poder: o acúmulo de
bens, materiais ou não23. A compreensão do funcionamento do poder está a um
passo de se tornar indissociável do estudo da administração e da distribuição
desses bens24. Se há ainda algumas questões sobre a Alta Idade Média que não
foram suicientemente exploradas pelos historiadores, como, por exemplo, a
articulação entre o simbólico e o conjunto da vida social25, talvez seja porque
nos últimos anos os historiadores se concentraram muito mais nos sujeitos
como produtores do simbólico. A contribuição da antropologia foi decisiva
para que os historiadores se dessem conta de que as relações entre os sujeitos
não são os únicos meios a partir dos quais são produzidos os símbolos que
compõem o edifício social. As relações entre os homens e as coisas, ou melhor,
entre os sujeitos e os bens, são também produtoras de símbolos e de sentidos
que constroem a sociedade. Esse é o campo que será explorado ao longo deste
trabalho. Pretende-se estudar, nas leges, editos, preceitos e cânones conciliares,
histórias e hagiograias, como o roubo, o furto de bens e, especialmente, o
combate a essas práticas participaram da construção das posições relativas

21 É o que podemos observar a partir dos estudos de P. Wormald sobre a Lex Salica (Lex Scripta
and Verbum Regis: legislation and Germanic kingship, from Euric to Cnut, In: Sawyer, P. H.,
Wood, I. N. (ed.), Early Medieval Kingship, Leeds, 1977: 105-138), ou ainda, de M. Heinzelmann
sobre a obra historiográica de Gregório de Tours (Gregory of Tours: History and Society in the
Sixth Century, Cambridge, 2001).
22 Bührer-hierry, G. Évêques et pouvoir dans le royaume de Germanie. Les Églises de Bavière
et de Souabe (876-973).
23 Ver, nesse sentido, a pesquisa coletiva sobre a competição na Alta Idade Média, lançada em
2010 por medievalistas franceses, alemães, italianos e ingleses, e ainda em seu estágio inicial.
24 É o que mostram os trabalhos sobre as transferências patrimoniais na Alta Idade Média, es-
pecialmente a obra coletiva Les transferts patrimoniaux en Europe occidentale, VIIIème-IXème
siècles.
25 Le Jan, R. Femmes, pouvoir et société: 13. S. Airlie tem uma opinião semelhante quanto aos
problemas da articulação entre o simbólico e as práticas sociais: “hus the good news for histo-
rians, that a historical approach to all forms of social experience and values is both appropriate
and necessary, is balanced by the bad news that the recapturing of that experience is bound up
with all sorts of problems of representation”(Airlie, S. he history of emotions and emotional
history: 235).

21
de sujeitos e bens, e também da própria natureza desses últimos no mundo
franco, durante a Alta Idade Média (séculos VI-XI).
A ênfase nos francos e no mundo franco ao longo deste trabalho se explica
por várias razões. Em primeiro lugar, a extensão do domínio franco: em seu
apogeu, no século IX, o Regnum Francorum ia do norte da Península Ibérica
e da Itália até a Frísia, e da Aquitânia até a Baviera. Além das regiões sob seu
controle direto, os francos estavam em contato com outras regiões, como a
Escandinávia, as Ilhas Britânicas, a Espanha, o papado, Bizâncio, os Bálcãs
e a Europa oriental26. Em segundo lugar, a centralidade dos francos e de sua
experiência jurídica e administrativa. O Liber Constitutionum, o Breviário de
Alarico, a Lex Visigothorum foram utilizados na Gália franca muito tempo
depois que o Reino dos Burgúndios, o Reino Visigodo da Aquitânia e o Reino
dos Visigodos tinham desaparecido. A inluência desses textos no Pactus legis
Salicae e na legislação real merovíngia e carolíngia é considerável. Além disso,
os francos estiveram na origem da compilação da Lei dos Alamanos, Lei dos
Bávaros, Lei dos Frisões, Lei dos Turíngios e Lei dos Saxões.
Resta, ainda, o problema de uma deinição preliminar de roubo e furto. O
Código Penal Brasileiro os diferencia a partir do comportamento do criminoso:
o furto é deinido no artigo 155 como o ato de subtrair, para si ou para outrem,
coisa alheia móvel; já o roubo, previsto no artigo 157, consiste no ato de subtrair
coisa alheia móvel, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência
à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade
de resistência. Não há diferença formal entre roubo e furto no procedimento
judiciário da Alta Idade Média: isso só ocorre a partir do século XVI. A
principal diferença que encontramos, por exemplo, no Código Teodosiano, e
também em algumas leis bárbaras, é entre o roubo oculto e o roubo manifesto,
o primeiro sendo considerado em geral uma forma mais grave do delito.
Os termos utilizados para deinir as apropriações indevidas de bens nos
textos da Alta Idade Média são numerosos, especialmente no que diz respeito
aos bens da Igreja. Em uma busca nos MGH, especialmente nos volumes
consagrados aos textos francos da Alta Idade Média, é possível notar que o
campo semântico dos ataques aos bens é bastante amplo, e designa não apenas
a apropriação dos bens, bem como a invasão e a destruição completa ou parcial
dos mesmos. Aquele que se apropria dos bens de outro é designado como latro,
nis, m. (ladrão); fur, is, m. (ladrão); rapax, is, m. (assaltante); raptor, oris, m.
(sequestrador); eversor, oris, m. (destruidor, dissipador, aquele que derruba);
exspoliator, oris, m. (espoliador); praedo, onis, m. (pilhador); praedator, oris,
m. (pilhador, caçador, sequestrador, sedutor); subreptor, oris, m. (aquele que
subtrai, que rouba); pervasor, oris, m. (invasor, usurpador); depraedator, oris, m.
(aquele que pilha, que depreda, que devasta). A maior parte dos termos serve,
aliás, para descrever as circunstâncias nas quais os bens são indevidamente

26 Ver McKitterick. R. Politics. In: he Early Middle Ages: 3-58.

22
apropriados: furtum, i, n. (roubo); furor, atus sum, ari (roubar, furtar); rapina,
ae, f. (rapina, roubo, pilhagem); rapio, rapui, raptum, ere (levar consigo, subtrair,
roubar); raptio, onis, f. (rapto - de uma mulher); rapto, avi, atum, are (levar
consigo, pilhar, devastar); exspoliatio, onis, f. (ação de espoliar); exspolio, avi,
atum, are (espoliar, pilhar); praedatio, onis, f. (pilhagem, pirataria); praedor,
atus sum, ari (praticar a pilhagem, pilhar, roubar); subreptio, onis, f. (roubo,
subtração); subripio, ripui, reptum, ere (roubar, subtrair). Uma segunda categoria
de termos remete à invasão ou à ocupação dos bens (bens imóveis): pervasio,
onis, f. (invasão, usurpação); pervado, vasi, vasum, ere (invadir, penetrar).
Finalmente, há os termos que designam a destruição completa ou parcial
dos bens: eversio, onis, f. (destruição, ruína, derrubada); everto, i, sum, ere
(derrubar, destruir, expulsar, expropriar); depraedatio, onis, f. (depredação,
pilhagem, devastação); depraedor, atus sum, ari (depredar, pilhar)27. Os termos
que designam a apropriação indevida ou a ocupação ilegítima dos bens são
muito mais numerosos que os termos que remete à destruição dos mesmos.
Essa discrepância pode signiicar tanto uma maior recorrência da apropriação
e da ocupação face à destruição dos bens quanto uma maior preocupação dos
textos do período com a apropriação e com a ocupação.
Essa classiicação preliminar não deve nos fazer perder de vista duas coisas
importantes: em primeiro lugar, não havia uma fronteira rígida na utilização
dos termos anteriormente elencados. Por exemplo, os textos conciliares utilizam
uma grande variedade de termos, de conotação moral bem clara, para designar
os ladrões: oppressor, sacrilegus, antichristus, necatores pauperum (assassino
dos pobres). Em segundo lugar, o essencial na deinição do ataque aos bens
não está no comportamento do criminoso, mas no estatuto do proprietário
dos bens atacados, como veremos mais adiante. Isso ica claro, sobretudo, no
caso dos bens da Igreja, como veremos nas páginas seguintes. Optou-se, neste
trabalho, pelo uso do termo “roubo” para designar as formas de apropriação
ilícita dos bens de outrem, com ou sem o uso da força.
As leis, os editos e os cânones conciliares também mencionam a razzia,
a corrupção, os coniscos por parte da autoridade pública, entre outros. Se
adotarmos uma deinição preliminar de roubo e furto – ataques ilícitos,
violentos ou não, à relação entre os proprietários e seus bens – a “razzia” ica
de fora, por consistir em um ataque considerado legítimo quando perpetrado
contra membros de outra comunidade; da mesma forma, também deixamos
de lado o conisco de bens por parte da autoridade pública, por ser um ato
amparado na legislação. No entanto, dar-se-á ênfase às formas de qualiicação

27 Agradeço a Gaëlle Calvet-Marcadé por ter partilhado comigo os primeiros resultados do le-
vantamento lexicográico sobre os ataques aos bens que realizou nos cânones conciliares ca-
rolíngios [Calvet-Marcadé, G. “From sacrilege to Antichrist. How Church robbers are called in
carolingians councils (815-909)?”, comunicação apresentada no Colóquio Internacional Texts
and Identities Session XII, Auxerre, Centre d’Études Médiévales, 17-19 de outubro de 2008 (texto
impresso)].

23
do delito nos textos. Assim, muito embora a razzia, e o conisco possam
ser eventualmente formas legítimas de apropriação de bens, poderão ser
objeto deste estudo se, e quando forem qualiicadas nos textos a partir do
campo semântico do roubo28. Isso porque uma deinição apriorística de roubo
só engessaria esta análise e impediria que se atentasse para todo o alcance
construtivo das formas jurídicas de qualiicação.
A maior parte dos casos de roubo examinados neste trabalho diz respeito
aos bens eclesiásticos, o que se traduz, inclusive, no vocabulário mais extenso
utilizado para designar essa modalidade de roubo. No entanto, não se deve
deduzir daí nenhuma predominância estatística do roubo de bens eclesiásticos
no mundo franco. O que se pode inferir é que a documentação disponível, aliás,
majoritariamente de cunho eclesiástico, ocupa-se essencialmente de disputas
em torno dos bens da Igreja29. No entanto isso não representa empecilho
para o estudo que aqui se propõe, mesmo porque não é especiicamente o
roubo de bens que interessa30, mas sim suas relações com as normas que o
combatem. As normas jurídicas, tratadas no capítulo seguinte, podem criar
moldes e categorias – os qualiicativos jurídicos31 – capazes de produzir efeito
sobre as relações entre sujeitos e bens, e mesmo de transformá-los. O aparato
normativo que busca combater os ataques a essas relações são instrumentos
de construção social. E seu estudo, cotejado com as crônicas e hagiograias do
período, permite que se acompanhe a economia de tal construção. Portanto, a
escolha de se estudar o roubo, tendo como ponto de partida as relações entre
norma e exceção, pode nos conduzir à história da fabricação das formas de
vida social.
Em um balanço historiográico sobre as normas, publicado no livro Les
tendences actuelles de l’histoire du Moyen Âge en France et en Allemagne (2003),
C. Gauvard, A. Boureau e R. Jacob mencionam uma série de problemas que os

28 A exceção é o roubo de relíquias. Esse tema, já estudado por P. Geary, não será objeto deste
trabalho. P. Geary mostra que essa era uma prática legítima: muitas vezes, o relato do roubo
servia para dissimular a aquisição, o dom ou a invenção de relíquias, pois a possessão de relí-
quias roubadas tinha se tornado uma marca de prestígio. Isso ocorria, sobretudo, em relação
às relíquias que provinham de fora do mundo católico (Espanha, Norte de África ou Oriente
Próximo). Segundo Geary, Roma era a grande exceção: o roubo de relíquias provenientes dessa
cidade era uma fonte de prestígio (Geary, P. Furta Sacra: 70 e 160).
29 Segundo W. Brown, “Documenys recording church and monastic property rights, including
the outcome of property disputes, have tended to survive the early Middle Ages, whereas other
kinds of records have not. hey have above all because many early medieval monasteries and
churches remained in being beyond the Middle Ages, and because monks and churchmen have
had an ongoing interest in keeping ttrack of their property holdings” (Brown, W. Unjust Seizure:
Conlict, interest, and authority in an early medieval society. Ithaca/Londres, 2001, x-xi).
30 Essa é a perspectiva adotada, por exemplo, em artigo de Renaut, M.-H. La répression du vol de
l’époque romaine au XXIe siècle. Revue Historique CCXCV/1, 1996: 3-47.
31 Segundo Y. homas, a qualiicação jurídica “met en forme la vie sociale, elle y découpe et y
singularise des entités comme la personne, les biens, la propriété, le contrat, etc., toutes formes
nécessaires aux opérations pratiques et changeantes du droit” (homas, Y. Présentations: 1426).

24
historiadores ainda não teriam conseguido resolver: qual o fundamento das
normas? Qual o lugar do Direito na elaboração das normas? Quais as relações
entre normas e poder? Qual a natureza do poder normativo? E, inalmente,
qual o peso das normas na disciplina dos costumes? Se o mesmo texto tivesse
sido escrito hoje, seus autores certamente constatariam mudanças signiicativas
nos estudos sobre as normas. A primeira delas, e a mais evidente, é o abandono
dos termos “lei” e “direito”, em proveito de “normas”, já consagrado, aliás,
no artigo em tela32. O fundamento das normas e o lugar do Direito em sua
elaboração têm sido objeto de interesse de um grupo de historiadores reunidos
em torno do projeto coletivo La fabrique de la norme, do Centre d’Etudes et
de Recherches en Histoire Culturelle (CERHIC)33. Além disso, estudos recentes
sobre a resolução de conlitos, especialmente o livro de B. Lemesle, Conlits et
justice au Moyen Âge, têm explorado a relação entre o poder e as construções
normativas34. Outros problemas repertoriados em 2003, como a natureza do
poder normativo, ou ainda, o peso das normas na disciplina dos costumes,
constituem terrenos a serem explorados pelos historiadores.
Neste trabalho, reletir-se-á sobre uma questão que não é elencada por
C. Gauvard, A. Boureau e R. Jacob: em que medida e em quais circunstâncias
as normas participam da construção e transformação dos sujeitos, das coisas
e das relações entre eles? Colocada dessa forma, a questão pode parecer
surpreendente, ainal há mais de um século os historiadores se empenham
em mostrar que as normas são uma construção social muito mais do que um
instrumento de construção da sociedade. Porém, isso não signiica que se
esteja propondo um estudo das fundações normativas da sociedade, como foi
defendido pela Escola Alemã do Direito, no século XIX, e duramente criticado
pelos historiadores ao longo do século seguinte. O caminho aqui proposto não
é o da negação – que seria, aliás, anacrônica e inadequada – do enfoque social
das construções normativas, ou ainda, um retorno aos pressupostos clássicos
da preeminência das ideias e das instituições sobre as formas da vida social35.

32 Ao empregarem o termo “norma” ao invés de “direito”, preferindo sua utilização no plural,


C. Gauvard A. Boureau e R. Jacob pretendiam salientar “...le pluralisme des codes de compor-
tement dont l’expression ne se [limitait] pas aux formes écrites du droit savant”, e estudar as
“structures normatives” concebidas como “valeurs de référence qui disciplinent la société mé-
diévale”. Gauvard, C., Boureau, A., Jacob, R. Normes, droit, rituels et pouvoir. In: Schmitt, J-C.,
Oexle, O. G. Les tendences actuelles de l’histoire du Moyen Âge: 461.
33 A primeira Jornada de Estudos associada ao projeto, e intitulada Fabrique de la norme, fa-
briques des normes: inventaire et ouverture, ocorreu em 17 de outubro de 2008, na Université de
Reims (http://helios.univ-reims.fr/Labos/CERHIC/CERHIC/17Octobre08.html). Em 2012, foi
publicado o livro La fabrique de la norme. Lieux et modes de production des normes au Moyen
Âge et à l’époque moderne, coordenado por V. Beaulande-Barraud, J. Claustre e E. Marmursztejn
(Rennes, Presses Universitaires de Rennes).
34 Lemesle, B. Conlits et justice au Moyen Âge.
35 Um bom exemplo desse enfoque é um livro de W. Ullmann, que teve grande sucesso entre os
medievalistas: Principios de gobierno y politica en la Edad Media.

25
A discussão em torno do problema de qual das esferas determina a outra é
estéril, como bem mostrou M. Weber, em A ética protestante e o espírito do
capitalismo. Além disso, as normas não se dirigem à sociedade, mas são parte
integrante da própria construção social. A distinção entre uma esfera “social” e
uma esfera “normativa” nasceu de uma identiicação demasiadamente estreita
entre norma e instituição jurídica. A Escola Alemã do Direito criou a ilusão
de que os produtores dos valores de referência que disciplinam os sujeitos
e as coisas são atores institucionais, que agem pela coerção e que se situam
acima dos demais atores.
As normas são instrumentos produzidos pelos homens para resolver
problemas colocados no âmbito das relações entre eles e entre eles e as coisas.
Mas, para atingir o seu objetivo, muitas vezes, elas alteram deliberadamente os
dados desses problemas, de maneira semelhante ao khadi do conto beduíno
citado em epígrafe deste livro. Nesse sentido, constituem parte integrante e
mais ou menos eicaz do próprio estabelecimento da sociedade. Essa eicácia
não depende da semelhança da norma com uma sociedade determinada,
mas da sua capacidade em criar formas que são aceitas por aqueles que dela
fazem parte. A aceitação das normas signiica não apenas uma mudança de
comportamento dos atores sociais, ela implica também no reconhecimento
por parte dos mesmos de que as coisas e as pessoas assumem formas distintas
daquelas que eram as suas antes que as normas se projetassem sobre elas. Nesse
sentido, as normas criam a impressão de uma transformação social e, por isso
mesmo, a própria transformação social. É por isso que, neste estudo, não se
buscará medir a efetividade das normas contra o roubo no mundo franco
durante a Alta Idade Média (“seriam as normas efetivamente aplicadas?”),
tema, aliás, limitado pela documentação do período36. Nosso interesse está nas
maneiras pelas quais essas normas fabricam os sujeitos, os bens e as relações
entre eles. Essa não deixa de ser uma forma de avaliar a eicácia dessas normas.
Se hoje é possível colocar a questão da fabricação jurídica das pessoas
e das coisas, é porque, na prática judiciária contemporânea, esses elementos
constituem problemas, muito mais do que pressupostos. Houve uma implosão
da antiga distinção entre pessoas e coisas, devido, entre outras coisas, à
tecnologia em geral e à biotecnologia, em particular. O complexo de técnicas

36 O mundo das elites é o único acessível aos historiadores da Alta Idade Média? Decididamente,
as tentativas de se reconstruir a história das comunidades camponesas a partir do ponto de vista da
“cultura popular” encontraram seus limites nos últimos anos. Por outro lado, há a emergência de
perspectivas que pretendem recuperar a história econômica e social dessas sociedades e desses atores.
É o caso dos livros recentemente publicados de J-P. Devroey e de C. Wickham. Este último pretende
estudar os grupos sociais situados às margens do mundo franco, camponeses livres catalões e italia-
nos, pequenos proprietários da Alemanha média, etc. No entanto, a questão das fontes permanece
delicada: elas podem servir para o estudo do mundo camponês? A resposta de J-P. Devroey oferece
certa clareza quanto às suas motivações e ao mesmo tempo deixa dúvidas quanto à operacionalidade
da mesma: “Par conviction personnelle, l’essai de synthèse que j’ai tenté est écrit dans la perspective
de ces acteurs muets” (Devroey, J-P. Puissants et misérables: 13).

26
tradicionalmente utilizadas pelas instituições jurídicas para fabricar as pessoas
e as coisas, bem como as distinções entre elas não são mais coniáveis. A
propriedade é o campo no qual a constituição jurídica das pessoas e das coisas
tornou-se mais vulnerável à evolução social e tecnológica contemporânea. Com
o advento das patentes de biotecnologia, das intervenções biomédicas, das
plantas transgênicas e das novas sensibilidades ambientais, as distinções entre
as pessoas e as coisas tornaram-se um centro de interesse e, mais importante
ainda, de ansiedade social. Em cada uma desses domínios tecnológicos, as
fronteiras se deslocam ou simplesmente desaparecem: sequências de genes
são, ao mesmo tempo, parte da genética, e produtos químicos a partir dos
quais medicamentos são fabricados; os embriões são ligados aos seus pais
pelas mesmas relações que unem as pessoas e os bens e, no entanto, também
são pessoas, em função da utilização que deles é feita; as células de embriões
produzidas por fertilização in vitro possuem um potencial “natural” para
o desenvolvimento da pessoa humana, e, ao mesmo tempo, representam
um recurso valioso para a investigação sobre a terapia genética. Em cada
caso, a classiicação de uma entidade como pessoa ou coisa é tributária de
um contingente de distinção muito mais que de uma divisão intrínseca37. A
construção da pessoa legal do autor mostra, por exemplo, como a personalidade
legal é tomada como uma característica de indivíduos “reais”, e como a doutrina
legal reforça essa convicção38.
Os historiadores há tempos perceberam que os laços entre pessoas e
coisas são construções realizadas com o concurso das normas39. No entanto,
a possibilidade de as pessoas e as próprias coisas serem, também, fruto de
construções jurídicas, não é levada suicientemente em conta pela História
Social. Essa possibilidade constitui uma vasta área a ser explorada40.
As fronteiras cambiantes entre coisas e pessoas foram mais bem percebidas
por antropólogos ou sociólogos, ou ainda, pelos teóricos do Direito41, do que

37 Pottage, A. Introduction: the fabrication of persons and things. In: Pottage, A., Mundy, M. (ed.),
Law, Antropology, and the constitution of the social: Making Persons and hings, Cambridge,
Cambridge University Press, 2004: 4-5.
38 Ibid: 11-12: “For example, by constituting the author as an owner of ideas, intellectual pro-
perty law stabilised and ‘naturalised’ the romantic conception of the spontaneously creative
individual, and this relation between legal personality and natural individuality still seems sel-
f-evident”.
39 Os exemplos são demasiadamente numerosos para serem citados aqui. Fiquemos apenas com
alguns trabalhos relevantes no campo da circulação de bens na Alta Idade Média, e que foram
publicados nos últimos anos: Rosenwein, B. Negotiating Space. Power, Restraint, and Privileges
of Immunity in Early Medieval Europe; Wood, S. he Proprietary Church in the Medieval West;
poderíamos citar ainda os estudos sobre as transferências patrimoniais, o dom, a herança e o
comércio.
40 Cf. Cändido da Silva, M. Le vol des biens et la construction sociale dans le royaume des
Francs (VIe-IXe siècle), In: V. Beaulande-Barraud, J. Claustre, E. Marmursztejn, La fabrique de
la norme, Rennes, 2012: 71-89.
41 é o caso da relexão de Yan homas sobre as icções no Direito romano [Fictio legis. L’empire

27
pelos historiadores tout court. Os antropólogos foram capazes de identiicar
os signiicados cambiantes dos sujeitos, ao mesmo tempo em que punham
em dúvida a existência objetiva de um indivíduo que não está sujeito aos
caprichos do tempo e do espaço. Um dos melhores exemplos dessa abordagem
é a relexão de M. Godelier sobre as “coisas”. Se existem diferenças, como
demonstrou Godelier, entre as coisas que se vendem, aquelas que se dão, e,
inalmente, aquelas que não se vendem nem se dão, mas são guardadas para
serem transmitidas, não é por causa de uma diferença atávica entre elas, mas
em razão dos distintos signiicados que lhes são atribuídos. Godelier salienta
a capacidade dessas diferentes signiicações em alterar o estatuto e a própria
natureza das coisas, modiicando, assim, as fronteiras entre essas últimas e as
pessoas. Ele mostra, por exemplo, que as conchas que são trocadas por uma
mulher ou oferecidas para compensar a morte de um guerreiro apresentam-se
como substitutos simbólicos dos seres humanos, ou seja, como equivalentes
imaginários da vida. Da mesma forma que os objetos sagrados, os objetos
preciosos são investidos de um valor imaginário que não pode ser confundido
com o trabalho necessário para descobri-los ou fabricá-los, ou mesmo com
sua relativa escassez. Este valor traduz o fato de que eles podem ser trocados
contra a vida, ou seja, colocados em equivalência com os seres humanos42.
Embora não negue que o Direito se remeta a referências concretas,
seu teórico não tenta decifrar, por trás das abstrações dessa área – regras,

de la iction romaine et ses limites médiévales. Droits: Revue française de théorie juridique n.21,
1995: 17-63]. Poderíamos mencionar ainda, o estudo deste autor sobre a construção da unidade
cívica no Direito Romano, no qual a cidade, em suas relações jurídicas, era considerada um
sujeito [homas, Y. La construction de l’unité civique. Choses publiques, choses communes,
choses n’appartenant à personne et représentation. Mélanges de l’École Française de Rome.
Moyen Âge, n.114, 2002: 13]. Saliente-se ainda a relexão de G. Agamben sobre a junção entre
o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder: “L’un des résultats auxquels
elle est parvenue est précisément le constat que les deux analyses ne peuvent être séparées, et
que l’implication de la vie nue dans la sphère politique constitue le noyaux originaire – quoique
occulté – du pouvoir souverain. On peut dire en fait que la production d’un corps biopolitique
est l’acte original du pouvoir souverain. En ce sens, la biopolitique est au moins aussi ancienne
que l’exception souveraine. En plaçant la vie biologique au centre de ses calculs, l’État moderne
ne fait alors que mettre en lumière le lien secret qui unit le pouvoir à la vie nue, renouant ainsi
(selon une correspondance tenace entre le moderne et l’archaïque qui peut être observée dans
les domaines les plus divers) avec la plus immémorial des arcana imperii” (Agamben, G. Homo
Sacer: le pouvoir souverain et la vie nue I, Paris, 1997: 14). Esses estudos demonstraram, de um
ponto de vista ilosóico, que o “Direito” e a “vida” correspondem até tornarem-se uma “zona de
indistinção”, realizando assim a famosa assertiva de C. Von Savigny, segundo a qual “Le droit n’a
aucune existence en soi, son être est plutôt la vie meme des hommes, considérée sous un aspect
particulier”.
42 Godelier, M. Des choses que l’on donne, des choses que l’on vend et celles qu’il ne faut ni
vendre ni donner, mais garder pour les transmettre. In: Au fondement des sociétés humaines: ce
que nous apprend l’anthropologie. Paris, 2007: 71-81. Ver também, do mesmo autor, L’énigme du
don (Paris, 1996); outras referências importantes sobre o tema são os livros de A. Testart (Des
dons et des dieux. Anthropologie religieuse et sociologie comparative, Paris, 1993) e A.B. Weiner
(Inalienable possessions: the paradox of keeping-while-giving, Berkeley, 1992).

28
procedimentos, conceitos, sistemas de categorias – a realidade de um jogo
social, no qual poder-se-ia enxergar a irredutível singularidade de seus atores e
a irredutível realidade de suas relações. Essa singularidade e essa realidade são,
por esse teórico, suspensas e colocadas à distância43. E são precisamente elas que
o historiador pretende alcançar, deixando de lado os esquemas de qualiicação
produzidos pelas normas, como se esses qualiicativos existissem somente nas
leis e nos editos. Uma vez ignorado o alcance dos qualiicativos jurídicos, cria-se
a impressão de que haveria um universo de práticas sociais “não normatizado”,
bastando para alcançá-lo escolher os documentos “narrativos” ou “literários”
e colocar-lhes as boas questões. Para tanto, seria necessário que as distinções
entre textos “narrativos”, “literários” e “normativos” correspondessem a uma
distinção na vida social entre, por um lado, o campo das normas jurídicas e, por
outro, o das práticas sociais. Os estudos realizados nos últimos anos mostraram
que, se a ordem judiciária é o locus por excelência da produção das normas, não
constitui, de modo algum, o locus exclusivo: no domínio religioso, por exemplo,
o Direito canônico é complementado por uma vasta gama de “mediadores
culturais religiosos” que, como a literatura de devoção, os livros de peregrinação,
a casuística, e mesmo o mobiliário litúrgico, participam da normatização de
crenças, práticas, comportamentos44. A ampliação do conceito de norma,
implícita no abandono pelos historiadores do termo Direito, é concomitante
à crítica da reiicação do “social” e do “popular”. Não se pode esquecer que o
“povo”, como entidade original e refratária às inluências normativas, de matriz
civil ou eclesiástica, nasceu com a historiograia romântica do século XIX.
Se as normas, ao estabelecerem as categorias para o tratamento das ações
criminais, constroem “qualiicativos jurídicos”, os historiadores não deveriam
deixar ao estudioso do Direito o monopólio da análise dos efeitos de todas as
mediações formais, a partir das quais o Direito se interpõe entre os próprios
sujeitos e a própria sociedade. O interesse dos historiadores pelo Direito e
pela lei esteve quase sempre restrito à possibilidade de, por meio desses, ter
acesso ao conhecimento das práticas, das mentalidades ou das ideias. Assim,
se os historiadores reconheceram o domínio dos atentados aos bens como o
terreno privilegiado da lei penal, essa lei é vista como um instrumento pelo
qual é possível alcançar os múltiplos códigos de comportamento. O Direito
Penal, pelas próprias sanções que exprime, manifestaria, também, os valores
que participam da construção da sociedade45.
Mesmo que não abordem mais a lei como um “espelho” da sociedade, os
historiadores ainda buscam uma correlação entre a primeira e a situação que

43 homas, Y. Présentations. Annales HSS, novembro/dezembo 2002, n.6: 1425.


44 Marmursztejn, E. Proposition d’introduction. Jornada de Estudos “Fabrique de la norme,
fabriques des normes: inventaire et ouverture”, Reims, 17 de outubro de 2008 (texto impresso).
45 Esse é o caso de Renaut, M-H. La répression du vol de l’époque romaine au XXIe siècle. Revue
Historique CCXCV/1, 1996: 3-47.

29
ela pretende regular e/ou modiicar. Esse é o caminho que tem sido adotado
pelos historiadores da justiça nos últimos anos: muitos são os que pensam as
normas, e não apenas o Direito, como uma construção da sociedade, ou que,
pelo menos, a leva em conta em sua elaboração46. Os historiadores devem estar
atentos para o fato de que esses qualiicativos são instrumentos que servem, não
para conhecer, mas para avaliar as coisas e para “trancher les disputes nouées
à leur sujet – et donc à les produire autrement qu’elles n’existent au dehors de
cette étroite et précise mesure du droit”47. É necessário, também, estabelecer
um inventário das diferenças. Se o historiador do Direito, como airma Y.
homas, busca descrever o trabalho pelo qual as normas agem sobre pessoas e
coisas, para transformá-las (na medida em que toda técnica social transforma
a sociedade à qual remete, mas sobre a qual, ao mesmo tempo, opera), os
historiadores podem tentar compreender as circunstâncias da produção e ação
dos qualiicativos jurídicos. Não se trata de alcançar a “realidade” que esses
qualiicativos pretendem transformar a partir de sua “desconstrução”, mas de
compreender as funções desses qualiicativos. Decididamente, não é possível
encontrar nas normas jurídicas, fontes imediatamente disponíveis para uma
história das práticas sociais, para uma história institucional e política, ou para
uma história das ideias48. Mas talvez seja possível encontrar nelas, material
para uma história da construção social e de seus imperativos.
Isso não se traduzirá, aqui, em uma história dos qualiicativos jurídicos,
pois esses não possuem uma existência completamente dissociada das
pessoas e coisas sobre as quais agem, ainda que, no curso de sua ação, eles
as transformem em sujeitos e coisas. Por outro lado, propor uma história
social dos qualiicativos jurídicos signiicaria considerar que, a partir deles,
é possível alcançar o universo das “práticas sociais”, o que não parece ser o
caso. A posição desses qualiicativos é ambivalente: eles podem ajudar a revelar
o complexo jogo de interesses e conlitos que participam da construção da
sociedade, mas não são meio de acesso direto a ela; eles revelam muito mais
o que está em disputa e é objeto de litígio, do que o desenrolar do próprio
litígio. Nesse sentido, o que se propõe neste trabalho é uma “economia dos
qualiicativos jurídicos”: um estudo sobre o modo de produção dessas formas
jurídicas e sobre as maneiras pelas quais elas se difundem na documentação –
leges, editos, cânones conciliares, histórias, hagiograias –, alterando os limites
entre as pessoas e entre essas e as coisas, convertendo-as em sujeitos e bens.
É necessário prestar mais atenção à construção das formas – procedimentos,
esquemas de qualiicação – que veiculam e iltram dados para as necessidades de

46 Ver, por exemplo, o artigo de McKitterick, R. Perceptions of Justice in western Europe in the
ninth and tenth centuries. In: La Giustizia nell’Alto Medioevo (Secoli IX-XI): Settimane di Studio
del Centro Italiano di Studi sull’Alto medioevo, XLIV, Spoleto, CISAM, 1997, t.2:1075-1102.
47 Cf. nota 29 deste trabalho.
48 Descimon, R. Declareuil (1913) contre Hauser (1912). Les rendez-vous manqués de l’histoire et
de l’histoire du droit. Annales HSS, 6, 2002: 1615-1636.

30
uma aplicação prática da decisão jurídica. Em geral, não se consegue considerar
o alcance dessas categorias que servem, nas palavras de Y. homas, para produzir
o mundo muito mais do que simplesmente descrevê-lo49. A validade das normas
jurídicas não depende de sua aplicação aos casos particulares, quer se trate de
um processo ou de um ato executório; ao contrário, é precisamente porque as
normas são gerais que devem valer, independentemente do caso particular50. As
normas também não se aplicam diretamente aos fatos, ininitamente diversos
e polimóricos, mas também não se aplicam aos indivíduos irredutivelmente
singulares. Elas se aplicam a determinadas situações, que se coniguram como
exceções – como o roubo de bens –, diante das quais o intérprete começa
por reduzir os fatos e impor a eles uma forma propícia à atuação da regra,
projetando sobre eles os contornos dessa última. É precisamente aí que reside
seu potencial construtivo. Da mesma maneira, as normas se dirigem a sujeitos
tão abstratos em relação aos próprios indivíduos quanto o sujeito gramatical
o é em relação à singularidade de cada um. A operação jurídica não se situa
em um “impensável e impossível posicionamento da lei em face dos fatos,
mas na remodelação que qualiica esses últimos para o julgamento prático
do valor que ela ordena”51. Os sujeitos e os bens produzidos por essas normas
não são iguras individuais, mas categorias que se aplicam a certo número de
casos que, por sua vez, são individuais. O papel das normas que combatem
o roubo de bens não se resume, portanto, à criação de moldes da vida social,
que as pessoas tomam como referência e limite para seus comportamentos,
mas abrange, também, a construção de qualiicativos jurídicos que alteram a
própria identidade das pessoas e das coisas que essas normas buscam preservar.
Entre os teóricos do Direito, a relação entre normas e exceção constitui
uma questão capital. Nas obras do jurista alemão C. Schmitt, há uma das
mais prolíicas relexões sobre as normas e a vida social. Para poder agir
sobre algo, uma norma deve ser capaz de supor, segundo Schmitt, o que se
encontra fora da relação para, em seguida, estabelecer uma ligação com este
elemento. A relação de exceção exprimiria, assim, a estrutura original da
vinculação jurídica. Partindo da constatação de que as normas do Direito
são notadamente fabricadas a partir de circunstâncias excepcionais, e que a
exceção é a própria condição de validade da ordem jurídica, Schmitt crê que as
construções normativas podem entrar em comunicação com um universo que,
em princípio, lhes é exterior e não previsto na ordem legal em vigor. O papel
da exceção, nesse sentido, é que, por ela, a força da vida real consegue quebrar
a “carapaça” de uma mecânica ixada na repetição52. E é nessas condições que
a norma jurídica alcançaria a vida social.

49 Cf. nota 29 deste trabalho.


50 Agamben, G. Homo sacer, le pouvoir souverain et la vie nue I: 28.
51 homas, op. cit.: 1426.
52 Schmitt, C. héologie politique: 25.

31
No entanto, no esquema proposto por Schmitt, a exceção provoca a
suspensão da norma, deixando espaço para o poder soberano: na assertiva
tornada clássica, ele airma que “soberano é aquele que decide do (über) estado
de exceção”. Como bem notou J. Freund, a preposição “über” pode signiicar
aquele que decide “do estado de exceção”, ou bem aquele que decide “em caso
de estado de exceção”. O sentido da assertiva de Schmitt parece estar nesta
última tradução, na medida em que para esse autor, a situação excepcional é
imprevisível, tanto do ponto de vista político quanto do ponto de vista jurídico,
e nasce espontaneamente do curso dos eventos.
A relexão de Schmitt remete aos problemas da soberania e do poder
soberano, tal como se apresentam no âmago do Estado Moderno: “O soberano
está, ao mesmo tempo, no exterior e no interior da ordem jurídica”. Para
tentar compreender em que medida a soberania marca o limite da ordem
jurídica, o autor se interessa à estrutura da exceção, que ele deine como
“algo que não é possível subsumir; ela escapa a toda formulação geral, mas
simultaneamente revela um elemento formal especíico de natureza jurídica,
a decisão em sua absoluta pureza” (Grifo nosso). A situação excepcional seria
imprevisível, tanto do ponto de vista político, quanto do ponto de vista jurídico;
nasceria espontaneamente do curso dos eventos, tal como uma capitulação
em seguida a uma guerra perdida53. Em razão de seu caráter singular, as
situações excepcionais não exigiriam normas, mas decisões que devolveriam
sentido à norma jurídica, que elas próprias perturbaram54. Para Schmitt, o
ordenamento jurídico repousaria, como todo ordenamento, em uma decisão
e não em uma norma.
O principal limite para um estudo sobre o roubo e a legislação que se
aplica a ele na Alta Idade Média, à luz das assertivas de C. Schmitt, está em que
a soberania – da mesma forma que a coerção – não constitui, nesse período, o
canal primordial de comunicação entre norma e exceção. A ênfase dada por C.
Schmitt nos mecanismos de decisão revela sua preocupação com a soberania
moderna, e indica sua inadaptação às especiicidades do ofício de governo na
Alta Idade Média. Assim, o príncipe bárbaro não é um soberano, no sentido
“carl-schmittiano” do termo; não se encontra no exterior e no interior da ordem
jurídica. Sob os merovíngios, as exortações episcopais já associavam o bem
comum (utilitas publica) à realização de um bem espiritual deinido fora do
âmbito do poder real: a salvação das almas dos cristãos. Sob os carolíngios,
esse programa é acentuado. A justiça encontrava-se no epicentro do programa
ideológico que os clérigos apresentaram a Carlos Magno e a seus sucessores.
Novo Davi, como sublinhou Alcuíno, o rei carolíngio é um justiceiro, que deve
manter a ordem, defender as igrejas e os fracos contra toda forma de opressão,

53 Freund, J. Les lignes de force de la pensée politique de Carl Schmitt. Nouvelle École 44, 1987:11-
27, especialmente: 18.
54 Schlegel, J-L. Introduction. In: Schmitt, C. héologie politique, ix.

32
colocando as práticas sociais em conformidade com a ordem estabelecida por
Deus. O cerne desse programa encontra-se menos na decisão do rei do que
na vontade divina expressa nas Escrituras e interpretada pelos clérigos. Os
juízes são, nesse sentido, os ministros do rei; participam de seu ministério e
devem ajudar a implementar um sistema judiciário que repouse sobre a lei,
a concórdia e a misericórdia55.
Em seu livro Homo sacer, G. Agamben sustenta que não é a exceção que
se subtrai à regra, mas a regra que, colocando-se em suspensão, dá lugar à
exceção. Somente dessa maneira a regra se constituiria como tal, mantendo
uma relação seguida com a exceção. É algo bastante distinto do que se encontra
em C. Schmitt, para quem, em circunstâncias excepcionais, a norma é reduzida
ao nada, ainda que, para ele, a exceção permaneça acessível ao conhecimento
legal, pois os dois elementos, norma e exceção, permaneceriam em um ambiente
jurídico56. Segundo Agamben, a exceção é um espaço de exclusão, um caso
singular que é excluído da norma geral. Mas o que caracterizaria propriamente
a exceção seria o fato de que aquilo que é excluído não ica sem relação com
a norma: ao contrário, os dois casos permanecem unidos pela suspensão. A
norma se aplica à exceção, desaplicando-se a ela, retirando-se. O estado de
exceção não é o caos que precede à ordem, mas a situação que resulta de sua
suspensão. Nesse sentido, a exceção, etimologicamente falando, é aquilo que
é “apanhado fora” (ex-capere) e não apenas excluído.
O que interessa particularmente na relexão de Agamben é o fato de que
nela, a lei conserva uma relação com o exterior, com o campo da vida; e essa
relação é que dá à lei um vigor particular, conforme se observa:

[…] la situation créée dans l’exception a donc ceci de particulier qu’elle ne peut être
déinie ni comme une situation de fait, ni comme une situation de droit. Elle institue
plutôt entre celles-ci un seuil paradoxal d’indiférence. Elle n’est pas un fait, car elle est
créée uniquement par la suspension de la norme; mais, pour cette raison même, elle
n’est pas non plus un cas d’espèce, même si elle fonde la possibilité d’une mise en vigueur
de la loi… L’exception est, en ce sens, la localisation (Ortung) fondamentale qui ne se
limite pas à distinguer ce qui est dedans et ce qui est dehors, la situation normale et
le chaos, mais trace entre eux un seuil (l’état d’exception) à partir duquel l’intérieur
et l’extérieur entrent dans ces relations topologiques complexes qui rendent possible la
validité de l’ordre57.

55 Le Jan, R. Justice royale et pratiques sociales dans le royaume Franc au IXe siècle. In: Femmes,
pouvoir et société dans le haut Moyen Âge, Les médiévistes français, 1, Paris: Picard, 2001: 149-153.
56 Schmitt, C. héologie politique: 23.
57 Agamben, G. Homo Sacer: le pouvoir souverain et le vie nue I: 26-27.

33
A relexão de Agamben não é menos centrada nos dilemas contemporâneos
do que aquela de C. Schmitt. Aquele se preocupa com a propensão do estado
de exceção em tornar-se a regra. Entretanto, propõe, e de maneira mais útil
para os ins deste trabalho do que Schmitt, um esquema de relações topológicas
complexas entre normas e exceção menos fundamentado na decisão e, portanto,
no paradigma da soberania. Esse esquema permite apreender a norma, não
apenas como instrumento de controle, prescrição e comando – no sentido de
que submete à sua regulamentação uma organização normal das condições de
vida (para C. Schmitt, a norma precisa de um meio homogêneo) –, mas como
uma fábrica de quadros de referência no interior, e a partir de uma vida social
não normalizada, no sentido em que ela própria colocou-se em suspensão.
Para melhor compreender o processo de construção social, é necessário,
portanto, reletir sobre as relações dinâmicas e luidas entre as normas e a
exceção. Os estudos recentes sobre a resolução de conlitos na Idade Média
mostraram que é preciso ter a devida precaução de não tomar a norma e a
exceção como dois mundos que se comunicam somente por meios coercitivos.
Desde o século XVIII, e pelo menos até a primeira metade do século XX, os
historiadores viram a Idade Média como um período dominado por uma
violência endêmica e sem limites58. O longo processo de revisão da natureza
e da extensão da violência nos séculos que sucederam à queda de Roma
começou no imediato pós Segunda Guerra Mundial, mas foram nos últimos
vinte anos que esse movimento assumiu a sua amplitude que se conhece
hoje59. Os historiadores contemporâneos consideram que a violência daquele
período não era necessariamente desagregadora, tampouco um sintoma da
“decadência da civilização”. A Antropologia Jurídica anglo-saxã, bem como
os estudos realizados na França desde a década de 1990, demonstraram que a
violência também pode ser utilizada para a manutenção e mesmo para o reforço
dos laços sociais. Esse é o caminho seguido pelos estudos sobre a resolução
de conlitos na Idade Média60. Alguns autores estão convencidos de que, nas

58 Guizot, F. Histoire de la civilisation en Europe. Depuis la chute de l’Empire romain jusqu’à la


Révolution française. P. Rosanvallon, Paris, 1985 (1a. ed., 1828); Lehuërou, J-M. Histoire des ins-
titutions mérovingiennes et du gouvernement des mérovingiens jusqu’à l’édit de 615 (sic), Paris,
1842; hierry, A. Récits des temps mérovingiens, Paris, 1840; LOT, F. La in du monde antique et
le début du Moyen Âge, Paris, 1927; entre outros.
59 Um bom balanço historiográico dessa questão foi realizado por J.-M. Moeglin, em um artigo
recente (Le ‘droit de vengeance’ chez les historiens du droit au Moyen Age (XIXe-XXe siècles).
In: Barthélemy, D.,Bougard, F., Le Jan, R. (eds.) La vengeance, 400-1200, Paris, 2006: 101-148.
60 A publicação, em 1986, por P. Geary, de um artigo sobre os mecanismos de resolução de
conlitos (Vivre en conlit dans une France sans État: typologie des mécanismes de règlement
des conlits (1050-1200), e o colóquio A justiça na Alta Idade Média,, organizado em Spoleto, em
1995, pelo Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo (CISAM), são dois eventos que marcam
um aumento do interesse dos historiadores pela solução das controvérsias. Pode-se mencionar
também os trabalhos de P. Fouracre e W. Davies, E. James, I. Wood, F. Bougard, R. Le Jan, R.
McKitterick, bem como o colóquio Le règlement des conlits au Moyen Âge, organizado pela

34
sociedades da Alta Idade Média, a violência era também um instrumento para
a airmação da paz. Em um artigo sobre monastérios femininos, violência e
competição pelo poder na Francia do século VII, R. Le Jan mostrou que os
ataques de que foram vítimas as abadessas e suas comunidades não eram fruto
de uma violência cega, mas constituíam uma forma de injúria (iniuria) que
rompia o equilíbrio e, ao mesmo tempo, produzia uma troca de violências
para restabelecer a paz61. Os estudos sobre as emoções também lançaram uma
nova luz sobre a natureza da violência na Idade Média. É o caso, por exemplo,
do livro organizado por B. Rosenwein sobre a “cólera”. Esse estudo é um claro
contraponto a N. Elias e à distinção feita por ele entre a expressão “violenta”
das emoções na Idade Média e a delicada, embaraçada e vergonhosa expressão
dos sentimentos na época contemporânea. O desenvolvimento do Estado
monárquico e a imposição do Estado absoluto no século XVI explicariam,
segundo Elias, essa transformação. Para os autores do livro organizado por B.
Rosenwein, o papel importante da cólera na sociedade medieval não resultaria
do fato de que seria “incivilizada”, mas, ao contrário, porque era sensitiva,
adaptável e atenta às possibilidades de reajustamento62.
Portanto, um estudo sobre o roubo deve, necessariamente, levar em
consideração, em primeiro lugar, que as normas não são simplesmente um
instrumento de punição: nas sociedades da Alta Idade Média, constituem,
sobretudo, um meio de paciicação. Assim, a coerção não constitui, nesse
período, o principal canal de comunicação entre a norma e a exceção. Em
segundo lugar, os comportamentos violentos não podem ser avaliados
unicamente do ponto de vista da imprevisibilidade e da irracionalidade; eles
servem como instrumento de pressão para a ação normativa e para a paciicação.
Assim, no período deste estudo, a exceção dialoga com as normas por meio
de comportamentos violentos, que podem, eventualmente, ser um meio para
forçar a aplicação dessas normas e a obtenção do compromisso dela decorrente.

Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public Français (SHMESP), em


2000, cujos anais foram publicados um ano mais tarde; ou ainda, mais recentemente, o coló-
quio sobre a “vingança”, promovido na École Française de Rome, em 2003, cujos anais foram
publicados em 2006 (La vengeance, 400-1200). Nesses estudos, a vingança não é mais vista como
a realização de uma pulsão violenta e irracional, e sim como o resultado de códigos e normas
que presidem a organização de uma sociedade. Para um estudo do tema, ver Cândido da Silva,
M., Almeida, N. de B. Paz e violência no Ocidente medieval, São Paulo: Alameda Editorial, 2010
(no prelo).
61 Le Jan, R. Monastères de femmes, violence et compétition pour le pouvoir dans la Francie du
VIIe siècle. In: Femmes, pouvoir et société dans le haut Moyen Age. Les médiévistes français:
89-107.
62 Rosenwein, B. (ed.), Anger’s Past: he social uses of an emotion in the Middle Ages.

35
2. O roubo nas hagiografias

A Vida de São Filiberto de Jumièges, escrita por volta de 750, relata dois
episódios de roubo. O primeiro, descrito no capítulo 12, trata do roubo das
luvas do santo. Filiberto teria ido até Paris para restabelecer a paz entre os
habitantes. Tendo conseguido promover a concórdia na cidade, ele teria se
retirado para uma hospedaria, esperando o dia seguinte para retornar ao
monastério de Jumièges. No entanto, durante a noite, um ladrão (“latro”)
teria entrado em seu quarto e se apossado de suas luvas. O santo se deu conta
disso pela manhã, mas manteve silêncio sobre o ocorrido. Então, o ladrão
teria sido tomado subitamente por dores horríveis e, gritando que estava
queimando, mostrava seu peito, onde estavam guardadas, sob suas vestes, as
luvas que ele havia roubado. Depois de sua morte, os habitantes teriam retirado
as luvas, entregando-as ao abade1. No capítulo 16 dessa mesma vita, o autor
descreve o roubo do cavalo do santo. Ao retornar de uma viagem, Filiberto se
apressava para celebrar a missa solene do domingo. Ele teria, então, montado
em uma barca com os religiosos de seu séquito a im de atravessar o Sena,
deixando nos prados os cavalos que os tinham servido. O guarda das lorestas
(“forestarius”) do rei encontrou o cavalo que havia sido montado pelo santo e o
levou consigo, com a intenção de roubá-lo (“equum quem vir Dei sederat furto
abduxit”). Ao colocar-se no leito para dormir, o forestarius teria despertado
subitamente, acreditando estar no meio de chamas, que pareciam devorar toda
a sua casa, mas sua esposa nada via. Então, ela, tomada pelo mesmo terror de
seu marido ao ver o prodígio, suplicou que ele lhe dissesse se havia roubado
algo dos servidores de Deus. O forestarius teria, então, confessado seu erro.
Imediatamente, ela o levou até o monastério, conduzindo o cavalo que ele
havia roubado. O homem, após receber a penitência imposta por Filiberto,
retornou tranquilamente com sua esposa para sua casa, que lhe apareceu em
seu estado ordinário, não tendo sofrido nenhum dano resultante das chamas
sobrenaturais que tinham aparecido2.

1 Vita Filiberti abbatis Gemeticensis et Heriensis, 12: “Quodam tempore Parius civitate exigente
causa discordiae, vir Domini pacem perrexerat reformare. Obtentu quod voluit, latro wantos
illius inlicita praesumptione furavit. Ipse dum in crastino eos non inveniret, more solito pa-
tientiam tenui. Sed infelix ille, percussus a Domino, furtum quod fecerat patefecit. Ardere se
eiulans inclamabat et aliud loqui non poterat, nisi extensis brachiis sinum cum furto abscondito
demonstrabat. Illo morte multato, cives loci illius ad sancti Dei cenubium praedictos wantos
eius repraesentaverunt obtutum”.
2 Vita Filiberti abbatis Gemeticensis et Heriensis, 16: “Dies erat dominica, et vir Dei, peracta
itinera, festinabat ad caenubium missarum celebrate sollemnia. Parveniens ad Sigonam, ipse
cum fratribus adscendit navicula; caballus quos habueret reliquid in pascua. Quod regius fo-

37
Em uma mesma hagiograia, têm-se duas descrições bastante distintas
do desfecho do roubo dos bens do santo, mais precisamente no que se refere
à punição dos ladrões. Como explicar que o ladrão do cavalo foi perdoado,
e o das luvas não? Trata-se apenas de mais um paradoxo literário em um
gênero que conhece tantos outros? Ou será que esses dois relatos revelam
duas abordagens distintas do roubo, na prática judiciária da Alta Idade Média?
Essa última possibilidade é a privilegiada por A.-M. Helvétius, para
quem os dois capítulos da Vita Filiberti mostram que os grandes deviam ser
magnânimos, evitando, assim, que o roubo degenerasse em faida, ao passo
que exerciam uma justiça mais severa em relação aos mais fracos, como se
observa a seguir:

[...] Une telle sévérité à l’encontre des voleurs des biens ecclésiastiques n’est pas
exceptionnelle en soi, compte tenu du précédent biblique ofert par l’histoire d’Ananie
et de Saphire. Pourtant, lorsque le forestier du roi s’empara du cheval de Philibert, lui
et son épouse ne périrent pas ni n’encoururent de châtiment; au contraire, un signe
divin les amena à restituer l’objet du larcin au saint abbé, dont ils reçurent pénitence et
indulgence. Cette mansuétude peut sembler surprenante dans la Vie de Philibert: le vol
d’un cheval serait-il moins grave que le vol des gants? Il est plus vraisemblable de supposer
que la peine varie ici en fonction du statut du voleur. Selon notre hagiographe, le grand
n’est encouragé à pardonner à son prochain que si celui-ci est de la même condition
sociale que lui, car il serait risqué de s’en prendre à un agent du roi. En d’autres termes,
les grands sont invités à se montrer magnanimes entre eux pour éviter qu’un vol ne
dégénère en faide, mais ils se doivent d’exercer une justice sévère à l’égard des plus faibles3.

Contrariamente ao que airma A.-M. Helvétius, é pouco provável que


a Vita Filiberti descreva penalidades que variem em função do estatuto dos
ladrões. Os textos hagiográicos francos estão repletos de exemplos de ladrões
– sobre os quais não há dúvidas de que não se tratem de “potentes” – que não
são punidos com o mesmo rigor do ladrão das luvas de São Filiberto.
A Vida de São Germano de Auxerre, escrita por Constâncio de Lyon no
inal do século V, relata, por exemplo, o roubo cometido por um ladrão de
baixo extrato social: durante uma viagem do santo, enquanto ainda estava

restarius dum aspexit, equum quem vir Dei sederat furto abduxit. Sed cum se ad dormiendum
locasset, repente surrexit et totam domum suam lammis exitialibus ardere conspexit. Sed cum
hoc uxor ipsius non videret et eius anexietatem conspesceret, subito et ipsa hoc quod vir suus vi-
debat conspiciens, anexietatem conpesceret, subito et ipsa hoc quod vir suus videbt conspiciens,
percunctare coepit, si aliquod de rebus servorum Domini vir suus haberet in fraude. Quod bi
cognovit, ambo pariter nullam moram fecerunt, donec et durepta reddiderunt et paenitentiam
cum indulgentiam recepissent”
3 Helvétius, A-M. Le récit de vengeance des saints dans l’hagiographie franque (VIe-IXe siècle):
447-448.

38
no pagus de Auxerre, veio juntar-se a seu séquito um viajante de pés nus, sem
capa, “desprovido de tudo” e cuja diiculdade teria despertado sua piedade.
Durante a noite, enquanto os guardas rezavam, ele apoderou-se do animal
que transportava Germano. Quando amanheceu, todos perceberam a perda
da montaria e, para que o animal não izesse falta ao bispo, um dos clérigos,
continuou a viagem a pé. Enquanto seguiam viagem, os companheiros do
santo notaram que ele tentava dissimular a alegria que aparecia em seu rosto.
Germano pediu, então, que parassem, e pouco depois, perceberam ao longe o
ladrão, a pé, conduzindo com a mão o animal roubado (post se manu captum
animal deducentem). Ele se aproximou e, prosternado aos pés do santo,
confessou o delito que cometera. O ladrão contou que, durante toda a noite
tinha icado imobilizado, como se tivesse sido apanhado em uma rede de tal
forma que não podia avançar; e não tinha encontrado outro meio de se livrar
daquilo, a não ser devolvendo o animal. Diante dessas palavras, o santo teria
dito: “Se ontem demos a você com o que se cobrir enquanto estava nu, não
era necessário roubar” (“‘Si hesterna’, inquit, ‘die nudo tibi tegimen dedissemus,
furandi necessitas non fuisset’”)4. Não apenas foi o ladrão perdoado pelo santo
de quem havia roubado o cavalo, como recebeu uma bênção como recompensa.
Na Vida de Santa Genoveva, escrita por volta de 520, há o caso de uma
mulher que, após roubar os sapatos da santa, icou cega. Embora sua condição
social não seja especiicada no texto, como foi o caso do ladrão de São Germano,
pode-se supor que o texto se reira a um “pauper”. O roubo de objetos, tais
como luvas e sandálias, está sempre associado aos pauperes nas hagiograias
francas. Ao compreender que se tratava da vingança divina por causa da
injúria (“iniuri”) dirigida a Genoveva, a mulher teria se lançado aos pés da

4 Constâncio, Vida de São Germano de Auxerre, 20: “Operae pretium puto mandare memoriae,
etiam eius iter clarum fuisse virtutibus. Necdum territorium suae civitatis excesserat, viam leni-
ter carpens, eratque, inminente iam vespera, dies pluvius: cum subito comitatu suo nudus pede,
cucullo vacuus, nimis expeditus viator adcrescit, cuius etiam nuditate condoluit. Qui dolose
inhaerens contubernio, iungitur mansione et inter innocentes occupatosque custodes, qui Deo,
non animalibus vigilabant, iumentum, quo senior vehebatur, praedo nocturnus arripuit. Die
reddito amissio evectionis agnoscitur et, ut sacerdoti animal non deesset, unus ex clericis in
peditem mutatur ex equite. Dumque iter agitur, circumiecti comites intuentur beatum virum
extra morem conceptam laetitiam vultus obumbratione velantem. Quod cum ab omnibus vide-
ratur, unus ex reliquis, circumiecti comites intuentur beatum virum, extra morem conceptam
laetitiam vultus obumbratione velantem. Quod cum ab omnibus videretur, unus ex reliquis,
auctoritate concepta, causam laetitiae percunctatur. At ille inquiens: ‘Paulolum commoremur,
quia infelicis illius labor et inridendus est et dolendus, quem mox videbitis aestuantem’. Cumque
delapsi animalibus substitissent, paulo post eminus intuentur peditem, post se manu captum
animal deducentem. Qui brevi adiungitur; dum ille accelerat, hi morantur, statimque vestigiis
provolutus, crimen quod commiserat conitetur et ita totius noctis spatium inretitum esse se
retulit, ut longius prodire non posset nec evadendi viam aliam repperisset, nisi ut abductum
animal reformaret. Ad haec vir beatissimus: ‘Si hesterna’, inquit, ‘die nudo tibi tegimen dedis-
semus, furandi necessitas non fuisset. Quod deest, accipe; reforma, quod nostrum est’. Itaque
confessor criminis pro poena commissi non solum veniam, verum etiam praemium cum bene-
dictione suscepit”.

39
santa para pedir perdão, o que ela obteve, e sua visão foi restituída5. Como
é possível observar nos dois exemplos citados, não há necessariamente nas
hagiograias francas um maior rigor com o roubo cometido pelos mais fracos.
No capítulo 65 do Liber in gloria martyrum, Gregório de Tours descreve
como os membros do séquito do príncipe Chramn teriam cometido crimes
na região de Clermont, na Auvérnia, tomando os bens do oratório de Ysaac-
la-Tourette. Entre os cinco ladrões, quatro teriam morrido em rixas, e apenas
um teria conseguido escapar da vingança (ultio) divina, mas mesmo assim
teria icado cego. Sua visão teria sido restituída somente após a devolução dos
objetos roubados6. Ainda que fossem membros do séquito real, os ladrões
sofreram a ultio divina.
Outra história da vida de um santo, contemporânea à Vita Filiberti,
também mostra a punição de um funcionário real que roubou o cavalo do
santo: a Vida de São Corbiniano, redigida em 769, por Arbeo, bispo de Freising,
narra o caso do conde Husing, que contraiu apoplexia e morreu algum tempo
depois, mesmo tendo confessado o roubo e pedido à sua esposa que devolvesse
o cavalo ao santo, e que lhe entregasse 200 moedas de ouro: apesar de suas
reticências, o santo é convencido, pelo rei, a aceitar a reparação e orar pela
salvação da alma do conde. A especiicidade desta vita é que nela, o rei, e
não o santo, é quem age como paciicador, presenciando o pagamento da
compensação pecuniária, e forçando o santo a acordar o perdão7.

5 Vita Genovefae, 24: “Quedam femina furto abstulit eius calciamenta, que ut ad domum suam
pervenit, continuo oculorum lumem amisit. Ergo ut cognovit furuncula, caelitus in se ulcisci iniu-
riam Genuvefae, alterius ad eam ducatu revectans calciamenta ruensque ad pedes Genovefae,
ignosci sibi pariter et lmen restitui ululans exorabat. Genuvefa vero, ut erat benignissima, manu
eam ab umo subridens levavit, et signans oculos eius, pristinum visum restituit”.
6 Liber in gloria martyrum, 65: “In ipso quoque territurio tempore, quo Chramnus Arvernum
abiit, cum diversa scelera ab eius gererentur ministris, quinque viri sacrosanctum oratorium
domus Iciacensis furtim appetunt - habentur autem in eum sancti Saturnini reliquiae -, inrup-
tumque, ablatis palleolis vel reliqua ministerii ornamenta, nocte tegente discedunt. Sed presbiter
recognoscens furtum ac inter vicinos scrutans, nullum potuit ex his quae ablata fuerant indicium
repperire. Protinus vero latrones, qui haec admiserant, in Aurilianensi se territurio transtulerunt;
divisisque rebus, accepit unusquisque partem suam. Sed mox, insequente ultione divina, quattuor
in seditionibus interfecti sunt. Quintus vero totam sibi furti huius hereditatem superstis remanens
vindicavit. Sed ubi haec in domo sua contulit, statimque obtectis sanguine oculis, excaecatus est.
Tunc conpunctus tam doloribus quam inspiratione divina, vovit, dicens: “Si respexerit Deus mi-
seriam meam et mihi visum reddiderit, referam loco illi sancto quae abstuli”. Et haec cum lacri-
mis orans, visum recepit. Accedens vero ad oppidum Aurilianensem, providente Deo, diaconem
Arvernum invenit. Cui traditis rebus, suppliciter exoravit, ut easdem oratorio restitueret; quod
diaconus devotus implevit”.
7 Vita Corbibiani, XV: “Sedente autem rege et cum eo vir Dei, mulier ipsius tunc defuncti, orbata
viro et viduata, lebili vultu vestigiis viri Dei provoluta est, deducens viri Dei cavallum, a viro
suo machinis diabolicis et nefande raptum insidie, forma et specie decorum, quasi debito viri sui
mortis reum; insuper ducentos solidos viro Dei obtulit, dicens virum suum eadem die percussum
fuisse, in quo inlecebris machinis viam viri Dei inpedire praesumpsit, et ut ex eadem percussione
languor cottidie dolori fomitem ministrasset, et ut iam a medicis esset disperatus, sibi praecepis-
set, ut sub omni diligentia ipsum custodiret cavallum et viro Dei, si, Deo donante, ibidem reversus

40
Tendo em vista a diversidade das narrativas hagiográicas, é difícil
estabelecer uma mesma regra que explique todos os casos de roubo. Pode-
se, entretanto, descartar algumas possibilidades. A primeira, e mais evidente,
é a relação entre o valor dos bens roubados e a intensidade da punição: nas
hagiograias francas, o valor dos bens roubados não inluencia a amplitude
da penalidade, ou mesmo a recorrência do perdão. Na Vida de São Filiberto,
por exemplo, o roubo de luvas é punido com mais severidade do que o roubo
de um cavalo. Outra alternativa que pode ser descartada é a relação entre
punição e estatuto social do ladrão. Não é possível entender as punições
ao roubo, descritas nesses textos a partir do estatuto social daqueles que
cometem o ato, contrariamente ao que sustenta A.-M. Helvétius. Mesmo
que a hierarquia social desempenhasse um papel importante no tratamento
de actio criminalis, não se pode airmar que a justiça mais severa em relação
aos mais fracos fosse uma constante da prática judiciária e das concepções
de justiça no mundo franco.
A proteção aos pauperes é um topos recorrente da documentação
legislativa carolíngia: em vários capitulares, Carlos Magno exortava os
juízes a não aceitarem presentes (munera) no exercício de sua função. Essa
proibição visava proteger os homens livres das pressões exercidas sobre eles
pelos poderosos, sob pretexto do exercício da justiça: os juízes não deveriam
reduzir os pauperes à miséria, exigindo deles presentes que iam além de seus
meios; mas deveriam ter por única preocupação julgar segundo a lei escrita,
sem considerar a situação social dos litigantes, ou as relações que tinham com
alguns deles8. Carlos Magno pedia que os juízes não se concentrassem somente
nos processos dos poderosos, e que também cuidassem dos interesses dos
pobres e dos menos poderosos. É o que se pode observar em uma instrução
de 802, endereçada aos representantes locais do imperador, os missi dominici
(“enviados do senhor”): “Façam de maneira plena e equânime justiça às igrejas,
às viúvas e aos órfãos, e a todos os outros, sem fraude, sem corrupção, sem
demora abusiva, e cuidem para que todos os seus subordinados façam o
mesmo”. O Capitulare de iustitiis faciendis (811-813), publicado ao im do
reinado de Carlos Magno, pretendia garantir que as disputas entre condes e
poderosos não atrapalhassem o andamento dos processos dos pauperes e dos
menos poderosos9. A condenação da violência praticada pelos potentes contra

fuisset, omnino redderet et eius facinus illi proiteretur, insuper debiti inpensionis ei aurum adfer-
ret, ut pro eius anima vir sanctissimus depraecari divinam clementiam dignatur”.
8 Le Jan, R. Justice royale et pratiques sociales dans le royaume Franc au IXe siècle. In: Femmes,
pouvoir et société dans le haut Moyen Âge, Paris, 2001: 152.
9 Capitulare de iustitiis faciendis (811-813), 1: “De termino causarum et litium statuimos, ut ex quo
bonae memoriae domnus Pippinus rex obiit et nos regnare coepimus causae vel lites inter partes
factae atque exortae discutiantur et congruo sibi iudicio terminentur... Ut episcopi, abbates, co-
mites et potentiores quique, si causam inter se habuerint ac se paciicare noluerint, ad nostram
iubeantur venire praesentiam, neque illorum contentio aliubi diiudicetur neque propter hoc pau-

41
os pauperes, as viúvas e os órfãos é parte integrante da concepção ministerial
do poder secular. Entretanto, a denúncia repetida dos abusos cometidos pelos
grandes não signiica que os textos carolíngios condenassem a violência em
si, mas a atitude brutal que provoca a desordem, isto é, a perturbação da
ordem social10.
É improvável que a Vida de São Filiberto servisse como caixa de ressonância
de uma prática de justiça recorrente entre os grandes, e amplamente condenada
pelo poder real e pelos próprios bispos francos entre os séculos VIII e IX.
O mais importante indício nesse sentido é a comparação com outros textos
hagiográicos francos. Na Vida de Santa Genoveva, na Vida de São Corbiniano,
no Liber in gloria martyrum e na Vida de São Germano de Auxerre, a punição
ou o perdão aos pauperes e aos potentes não decorrem de seus diferentes
estatutos sociais.
Em todos os casos mencionados anteriormente, aqueles que se
arrependem, ou não são punidos, ou recebem o perdão para sua alma, ao
passo que aqueles que não se arrependem são punidos severamente com
a morte. Esse arrependimento vem acompanhado de um ato concreto: os
ladrões dos cavalos de São Filiberto, de São Corbiniano e de São Germano, o
último ladrão do oratório de Ysaac-la-Tourette, bem como a ladra das luvas
de Santa Genoveva, devolvem os bens que roubaram. O mesmo não ocorre
com o ladrão das luvas de São Filiberto nem com os quatro primeiros ladrões
do referido oratório. A punição mais severa do ladrão não tem relação alguma
com seu estatuto, mas apenas com a não devolução dos bens, qualquer que
seja seu valor. E essa punição é a morte, que atinge os membros do séquito de
Chramn, bem como o pobre ladrão das luvas de São Filiberto. Embora o ladrão
do cavalo de São Corbiniano também morra, ao devolver o cavalo e ressarcir
pecuniariamente o santo, ele obtém a salvação de sua alma. A paciicação ocupa
um lugar mais importante nas vitae francas do que a punição. Ela promove
o perdão e a conciliação do santo com os ladrões arrependidos. P. Fouracre
et R. Gerberding lembram que a “paz” está no cerne das preocupações dos
cronistas e hagiógrafos do século VII11. E, mesmo nos casos em que os ladrões
não devolvem os bens dos santos, esses retornam a seus proprietários: São
Filiberto e Santa Genoveva recuperam suas luvas. Os santos são mais do que
proprietários dos seus bens; são proprietários eicazes na sua defesa. Qualquer
que seja o estatuto do ladrão, um forestarius, um membro do séquito real ou
um pauper, ele pode ser punido pelo roubo dos bens dos santos.

perum et minus potentium iustitiae remaneant”.


10 Devroey, J-P. Puissants et misérables, Paris, 2006: 332-333.
11 “Seventh-century chroniclers and hagiographers had no great Love of the abstract; for them the
purpose of political Power was contained in one concrete and comprehensible Word: peace” (Late
Merovingian France. History and Hagiography, 640-720. Manchester, 1996: 2-3).

42
Nas vidas de santos, as ocorrências do termo proprietatis são bastante
numerosas12. Isso mostra o papel central desempenhado pelas hagiograias
francas nas disputas sobre os bens na Alta Idade Média, especialmente no
que se refere aos bens das igrejas.
Muito embora o seu valor não entre em consideração na descrição da
punição aos ladrões, os bens dos santos possuem um estatuto e uma natureza
à parte nas narrativas hagiográicas sobre o roubo. Os relatos de roubo desses
bens nas vitae francas cumprem um papel na defesa dos bens da igreja, em face
dos ataques perpetrados por eclesiásticos e, sobretudo, por laicos. O primeiro
indício nesse sentido é a recorrência dos objetos roubados aos santos nos
textos hagiográicos: luvas, sapatos e cavalos. Esses objetos são instrumentos
a partir dos quais os santos podem exercer sua atividade evangélica. Em
segundo lugar, o roubo desses bens, muitas vezes, é punido com a morte, da

12 Vita Faronis ep. Meldensis I, SS rer. Merov. 5, c. 106: 195, lin. 18: “Haec cum curis studiosissimis
Deo militaret in villa residendo quae vulgo Pinnevindo dicitur ex iure suae proprietatis, praesul
Dei Faro mandato eam suae praesentiae adesse optavit”; Vita Faronis ep. Meldensis I, SS rer.
Merov. 5, c. 109: 196, lin. 12: “Conservantur eius nempe sancta membra, quibus ad omne opus
bonum velut organo usus est Spiritus sanctus, hac in speciosissima basilica, habitaculum an-
gelorum facta, quam ipse miro opere in fundo proprietatis suae fundavit in honore salutiferae
ac viviicae Crucis necne baptistae beati Iohannis atque omnium apostolorum”; Walahfridus
Strabo, Vita Galli, SS rer. Merov. 4, lib. II, c. 10: 319, lin. 13: “Postmodum consilio cuiusdam ducis
nomine Nebi persuasus, ad praefatum principem Carolum cum eodem duce properavit ipsique
eandem cellam proprietatis iure contradidit et, ut Otmarum presbyterum eidem loco praeice-
ret, exoravit”; Walahfridus Strabo, Vita Galli, SS rer. Merov. 4, lib. II, c. 14: 322, lin. 31: “Comites
vero quidam, Warinus et Ruadhardus, qui totius tunc Alamanniae curam administrabant, cum
infra ditionis suae terminos ecclesiasticarum non minimam partem rerum suae proprietatis
dominio per potentiam subicere niterentur, maximam de eiusdem monasterii possessionibus
partem sibimet vindicarunt”; Vita I Ganguli mart. Varennensis, SS rer. Merov. 7, c. 4: 160, lin.
17: “Transmissa viarum intercapedine, ad suae proprietatis devenit habitacula, constituta in
loco qui Varennas dicitur, ubi etiam ipsius sancti nunc basilica habetur”; Vita Hrodberti ep.
Salisburgensis, SS rer. Merov. 6, c. 6: 159, lin. 8: “Saepe nominatus dux ibidem primitus ei in
circuitu aliquas proprietatis possessiones tribuit”; Almannus, Vita Nivardi ep. Remensis, SS rer.
Merov. 5, c. 9: 166, lin. 40: “Ergo excellentissimus atque apice nobilitatis insignissimus Nivardus
archipresul, nimium de angelica revelatione gavisus, cum querit in hac vita sollerter heredes
habere ministros Christi, ut in futura coheredes Christi eici mereretur, tali modo fecit sibi
Christum debitorem, ut hoc opus letus aggrederetur et daret illis res sue proprietatis in regione
mortuorum, ut esset ei Dominus portio in terra viventium, sicut est in eternum”; Hincmarus
Remensis, Vita Remigii episcopi, SS rer. Merov. 3, cap. 7: 273, lin. 20: “Et dum haec agerentur, ac-
cidit, sobrinam illius nomine Celsam, Deo sacratam, perinde transire et villam suae proprietatis
nomine Celtum adire”; Vita Rigoberti ep. Remensis, SS rer. Merov. 7, cap.: 60, lin. 18: “Quia in
Gerneicourt villa proprietatis suae multo tempore deguerit, vitam suam bonis semper operibus
exornans, quodque proba consuetudo ei fuerit creberrime urbem Remorum invisere et ibi in
ara beatae Mariae missarum sollemnia celebrare; quorum quoque sanctorum memorias inde
regrediens visitare solitus fuerit”; Vita Rusticulae sive Marciae abb. Arelatensis, SS rer. Merov.
4, c. 6: 343, lin. 2: “Erat enim strenua in omnibus, prudens in verbis, moribus bonis, elegans
specie, aetate conspicua, in omnibus mansueta, praeceptis Christi morigera, ut suis proprietatis
nomine actibus demonstraret, ut iam illo in tempore dignam sponsi vocem mereretur audire:
Speciosa sicut luna”

43
mesma forma que Ananias e Saira, contramodelos do cenobitismo na Alta
Idade Média, como mostrou I. Rosé13, mas também exemplos de personagens
que retêm uma parte da doação que prometeram integralmente à Igreja14. O
relato da tomada de Jericó é ainda mais eloquente:

[...] Porém a cidade será anátema ao Senhor, ela e tudo quanto houver nela; somente
a prostituta Raabe viverá; ela e todos os que com ela estiverem em casa; porquanto
escondeu os mensageiros que enviamos. Tão-somente guardai-vos do anátema, para
que não toqueis nem tomeis alguma coisa dele, e assim façais maldito o arraial de
Israel, e o perturbeis. Porém toda a prata, e o ouro, e os vasos de metal, e de ferro
são consagrados ao Senhor; irão ao tesouro do Senhor15.

Apesar da advertência, Acã teria roubado uma capa babilônica, duzentos


siclos de prata e uma cunha de ouro. Uma vez confessado o roubo, ele, sua
família e seus bens foram apedrejados e queimados16. A intensidade da pena

13 Rosé, I. Ananie et Saphire ou la construction d’un contre-modèle cénobitique (IIe-xe siècle).


Médiévales 2008 (55): 33-52.
14 At. 5:1-11: “Mas um certo homem chamado Ananias, com Saira, sua mulher, vendeu uma
propriedade, e reteve parte do preço, sabendo-o também sua mulher; e levando a outra parte,
a depositou aos pés dos apóstolos. Disse então Pedro: Ananias, por que encheu Satanás o teu
coração, para que mentisses ao Espírito Santo e retivesses parte do preço do terreno? Enquanto
o possuías, não era teu? e vendido, não estava o preço em teu poder? Como, pois, formaste este
desígnio em teu coração? Não mentiste aos homens, mas a Deus. E Ananias, ouvindo estas pa-
lavras, caiu e expirou. E grande temor veio sobre todos os que souberam disto. Levantando-se
os moços, cobriram-no e, transportando-o para fora, o sepultaram. Depois de um intervalo de
cerca de três horas, entrou também sua mulher, sabendo o que havia acontecido. E perguntou-
lhe Pedro: Dize-me vendestes por tanto aquele terreno? E ela respondeu: Sim, por tanto. Então
Pedro lhe disse: Por que é que combinastes entre vós provar o Espírito do Senhor? Eis aí à porta
os pés dos que sepultaram o teu marido, e te levarão também a ti. Imediatamente ela caiu aos pés
dele e expirou. E entrando os moços, acharam-na morta e, levando-a para fora, sepultaram-na
ao lado do marido. Sobreveio grande temor a toda a igreja e a todos os que ouviram estas coisas”.
15 Josué 6, 17-19.
16 Josué 7, 19-25: “Então disse Josué a Acã: Filho meu, dá, peço-te, glória ao Senhor Deus de
Israel, e faze conissão perante ele; e declara-me agora o que izeste, não mo ocultes. E respondeu
Acã a Josué, e disse: Verdadeiramente pequei contra o Senhor Deus de Israel, e iz assim e assim.
Quando vi entre os despojos uma boa capa babilônica, e duzentos siclos de prata, e uma cunha
de ouro, do peso de cinquenta siclos, cobicei-os e tomei-os; e eis que estão escondidos na terra,
no meio da minha tenda, e a prata por baixo dela. Então Josué enviou mensageiros, que foram
correndo à tenda; e eis que tudo estava escondido na sua tenda, e a prata por baixo. Tomaram,
pois, aquelas coisas do meio da tenda, e as trouxeram a Josué e a todos os ilhos de Israel; e as
puseram perante o Senhor. Então Josué, e todo o Israel com ele, tomaram a Acã ilho de Zerá,
e a prata, e a capa, e a cunha de ouro, e seus ilhos, e suas ilhas, e seus bois, e seus jumentos, e
suas ovelhas, e sua tenda, e tudo quanto ele tinha; e levaram-nos ao vale de Acor. E disse Josué:
Por que nos perturbaste? O Senhor te perturbará neste dia. E todo o Israel o apedrejou; e os
queimaram a fogo depois de apedrejá-los. E levantaram sobre ele um grande montão de pedras,
até o dia de hoje; assim o Senhor se apartou do ardor da sua ira; pelo que aquele lugar se chama

44
– o fogo, mesma punição que atinge o ladrão das luvas de São Filiberto, e que
quase destrói a casa do ladrão do cavalo desse santo –, como o próprio texto
demonstra, se deve ao fato de que os bens pertenciam ao Senhor.
Os relatos hagiográicos retomam o precedente bíblico da intensiicação
da punição, transferindo aos bens dos santos o papel que na Bíblia cabe aos
bens ofertados a Deus. Outro indício de que os bens dos santos nos relatos
hagiográicos reportam-se àquilo que pertence à Igreja está nas descrições do
roubo de bens que não pertencem nem a ela, nem aos santos. A maioria dos
casos de roubo de bens não eclesiásticos encontra-se nos relatos que envolvem
a libertação de prisioneiros pelos santos. Esses episódios constituem um dos
principais topoi da literatura hagiográica da Alta Idade Média17. Neles, louva-
se o perdão acordado pelos santos, como bons imitadores do Cristo. Nas
Histórias, X:1, Gregório de Tours relata essas palavras do papa Gregório Magno:

Ninguém dentre vós deve se desesperar em razão da enormidade de vossos pecados.


Uma penitência de somente três dias apagou a longa vida de pecados do homem de
Nínive. O ladrão arrependido ganhou a recompensa da vida no mesmo momento
em que recebeu a pena de morte!18.

As palavras atribuídas ao papa mostram que o perdão aos ladrões no


mundo franco se enraíza na tradição bíblica de perdão aos criminosos,
desenvolvida, por exemplo, em Ezequiel 33, 11 e em Jonas, 3 (texto do qual o
trecho acima citado retira sua referência). Ainda que o roubo seja, muitas vezes,
punido com a pena capital – e isso acontece diversas vezes nos textos reais e
nas vidas de santos – o ladrão pode se beneiciar do perdão e da intercessão
dos bispos e santos. Esses dois elementos – o perdão e a intercessão – são uma
constante nas vidas de santos e nas crônicas e histórias do mundo franco. Boa
parte dos prisioneiros libertados pelos santos é culpada de roubo19.

o vale de Acor, até ao dia de hoje”.


17 É bastante ilustrativa, nesse sentido, a proximidade dos relatos de libertação de prisioneiros
na Vida de Santa Radegonda, de Venâncio Fortunato, e na Vida de São Germano de Auxerre, de
Constâncio de Lyon. Fortunato inspirou-se, muito provavelmente, do texto de Constâncio para
descrever este que foi o primeiro milagre de Santa Radegonda.
18 Gregório de Tours, Histórias X, 1: “Nullus autem de iniquitatum suarum inmanitate disperet;
veternosas namque Ninnivitarum culpas triduana paenitentia abstersit, et conversus latro vitae
praemia etiam in ipsa sententia suae mortis emeruit”.
19 I. Westeel trouxe à luz três manuscritos originários da Aquitânia, mais precisamente da região
de Limoges, e que oferecem quatro episódios suplementares à Vita Eligii conhecida através das
edições clássicas. Esses manuscritos constituem, segundo a autora, um grupo à parte na tradição
manuscrita desse texto. O editor da Vita Eligii no início do século XX, B. Krusch, havia identi-
icado um desses manuscritos e editado nos MGH dois de seus episódios. Dois outros acréscimos
foram colocados em evidência por I. Westeel, uma predição de Santo Elói sobre os reinados dos três
ilhos da rainha Batilda (adição ao capítulo 32 do livro II), e também um milagre de ressurreição

45
Gregório de Tours consagra o capítulo 72 de seu Liber in Gloria Martyrum
ao mártir Quitinus (morto no início do século VI). Nele, descreve o roubo do
cavalo de um padre. O padre teria encontrado o ladrão e o teria conduzido
até o juiz. Após ter sido preso, acorrentado e torturado, o ladrão confessou
e foi condenado à forca. Segundo Gregório, o padre temia que um homem
perdesse a vida por causa de uma acusação sua. Esse padre teria, então, pedido
ao juiz que poupasse a vida do ladrão. Entretanto, o juiz manteve a sentença.
O padre teria chorado e suplicado diante do túmulo do mártir:

[...] Gloriosíssimo atleta de Cristo, eu vos peço que salve este pobre homem das
mãos de uma morte injusta, para que eu não seja coberto de vergonha caso este
homem morra através de minha acusação. Eu vos suplico que mostre vosso poder,
de maneira que a atenuação de vossa gentil piedade possa libertar um homem a
quem a crueldade humana recusou o perdão.

Depois desta oração, as amarras do patíbulo se romperam, lançando o


acusado no chão, são e salvo. Quando o juiz soube o que aconteceu, de acordo
com Gregório, ele teria icado aterrorizado e maravilhado com este milagre
divino, e não teria ousado fazer mal a esse homem20. O perdão acordado ao
ladrão é mais importante nesse relato do que a defesa do bem do padre.

(acrescentado ao capítulo 31 do livro I). O capítulo 31 da Vita Eligii narra como o santo obteve do
rei Dagoberto o direito de inumar todos os corpos daqueles que haviam sido mortos pela justiça
real pelos motivos mais variados: “Um dia que ele atravessava a Austrásia em companhia do rei,
eles chegaram perto de Estrasburgo e viram um homem suspenso que havia sido estrangulado no
mesmo dia. Eles tiraram a corda para dar-lhe uma sepultura. Quando começou a tocar o corpo,
Elói sentiu a respiração do homem. Este último se levantou como se nada tivesse sofrido. Seus per-
seguidores tentam recapturá-lo, mas Elói consegue para ele uma carta de securitas (“Quem Eligus
vex eorum manibus ereptum regi pro eo suggessit cartamque ei securitariam apud regem impe-
travit atque ita eum defendit”). O quarto e último episódio relata um fato semelhante (Westeel,
I. Courte note d’hagiographie: un nouvel épisode du ‘pendu-dépendu’ dans la vie latine de Saint
Éloi. In: Aurell, M. Deswarte, T. (org.), Famille, violence et christianisation. Mélanges oferts à
Michel Rouche, Paris, 2005: 216). O trecho traz informações precisas sobre o morto, e mostra, uma
vez mais, o santo agindo como intercessor. Ele rescussita o enforcado endereçando uma oração a
Deus. Como ocorria muitas vezes nesse tipo de milagre, o enforcado era culpado de roubo.
20 Liber in gloria martyrum, 72: “Sed presbiter metuens, ne ob sui damni causam anima hominis
auferreretur, iudicem deprecans, ut, concessa illi vita, hic culpa reus absolveretur a poena, dicens,
satis sibi esse iam factum, quod per tot tormentorum genera latro quae gesserat declarasset; sed
severitas iudicis cum nullis precibus potuisset inlecti, reum patibulo condemnavit. Tunc presbi-
ter cum lacrimis prostratus ad beati martyris tumulum, suppliciter deprecatur, dicens: ‘Quaeso,
gloriosissime athleta Christi, ut eruas hunc pauperem de manu mortis iniquae, ne mihi iat in
obprobrium, si per meam accusationem moriatur hic homo. Ostende, deprecor, virtutem tuam,
ut, quem asperitas humana nequit absolvere, lenis pietatis moderamine tu dissolvas’. Haec sa-
cerdote cum lacrimis deprecante, disruptis vinculis patibuli, reus ad terram ruit. Quod audiens
iudex, timore perterritus et divinam admirans virtutem, nihil illi ultra nocere praesumpsit”.

46
Nessa mesma categoria de relatos, há o capítulo 8 do livro VI das Histórias.
O bispo de Tours narra como Eparchius, um eremita de Angouleme salvou um
criminoso reincidente, considerado culpado de muitos outros delitos, roubos
e também assassinatos, da condenação à morte. Eparchius teria enviado um
de seus monges para pedir ao conde que lhe acordasse a vida desse homem,
apesar de ele ser culpado. A multidão teria se manifestado e objetado que,
se o acusado fosse libertado, seria o im da lei e da ordem no pagus, e o
conde perderia toda a sua autoridade. Ele foi torturado e sua condenação
conirmada. Eparchius teria, então, enviado seu emissário novamente para
que lhe trouxesse o condenado, por cuja vida ele pediu a Deus. Depois disso,
o cadafalso cedeu, as correntes se romperam, e o enforcado caiu no chão.
Então, o monge conduziu-o até o abade, que agradeceu a Deus e admoestou
o conde, mostrando-lhe o condenado são e salvo21.
Um último caso de perdão e libertação de prisioneiros é narrado pelo bispo
de Tours no Liber in Gloria Confessorum, e refere-se aos prodígios realizados
por Sequanus, abade na região de Langres. Gregório associa sua faculdade, em
vida, de libertar os homens do controle do diabo, e os prodígios que realizou
após sua morte, permitindo que homens que estavam presos e acorrentados
fossem libertados. O capítulo trata do roubo da corneta de caça (cornu) do rei
Gontrão, com a qual ele reunia seus cães e caçava os cervos na loresta. Em
busca do culpado, o rei teria aprisionado vários homens e privado alguns de
seus bens. Três desses homens procuraram, então, o santuário do confessor.
Quando o rei Gontrão soube disso, ordenou que fossem acorrentados. No meio
da noite, uma luz apareceu na igreja, as bolas de ferro presas aos pés deles se
romperam, as correntes foram quebradas, e os prisioneiros foram libertados.

21 Histórias VI, 8: “Quodam vero tempore, dum pro furtum quis ad adpendendum deduceretur,
qui et in alia multa scelera, tam in furtis quam in homicidiis, accusabatur ab incolis criminosus, et
haec ei nuntiata fuissent, misit monachum suum ad deprecandum iudici, ut scilicet culpabilis ille
vitae concederetur. Sed insultante vulgo atque vociferante, quod, si hic dimitteretur, neque regioni
neque iudici possit esse consultum, dimitti non potuit. Interea extenditur ad trocleas, virgis ac fus-
tibus caeditur et patibulo condemnatur. Cumque mestus monachus abbati renuntiasset: «Vade»,
inquid, «a longe, quia scito, quod, quem homo reddere noluit, Dominus suo munere redonabit. Tu
vero, cum eum cadere videris, protinus adprehensum adducito in monasterium». Monacho vero
iussa complente, ille prosternitur in oratione et tam diu in lacrimis ad Deum fudit preces, quoa-
dusque, disruptum obice cum catenis, terrae restitueretur adpensus. Tunc monachus adprehen-
sum eum abbatis conspectibus incolomem repraesentat. At ille gratias Deo agens, comitem ar-
cessiri iubet, dicens: «Semper me benigno animo solitus eras audire, ili dilectissime; et cur hodie
induratus hominem, pro cuius vita rogaveram, non laxasti?» Et ille: «Libenter te», inquid, «audio,
sancte sacerdos; sed, insurgente vulgo, aliud facere non potui, timens super me seditionem move-
ri». Et ille: «Tu», inquid «me non audisti; Deus autem audire me dignatus est, et quem tu tradidisti
morti, ille vitae restituit. En», inquid, «coram te adstat sanus!» Haec eo dicente, prosternitur ad
pedes comitis stupentis, quod videbat vivere quem in mortis interitu reliquisset. Haec ego ab ipsius
comitis ore cognovi. Sed et alia multa fecit, quae insequi longum putavi. Post XLIIII vero annos
reclusionis suae parumper febre pulsatus tradidit spiritum; protractusque a cellula, sepulturae
mandatus est. Magnus autem conventus, ut diximus, de redemptis in eius processit exsequiis”.

47
Segundo Gregório, o rei icou aterrorizado quando soube do acontecimento,
e rapidamente cessou a perseguição contra os homens22.
Esses relatos não se ocupam dos bens ou da propriedade: o essencial é
a atuação dos santos como libertadores de prisioneiros. Algumas vezes, os
bens não são sequer discriminados. Gregório de Tours, por exemplo, não diz
quais bens foram roubados pelo ladrão condenado à morte e depois salvo por
Eparchius, eremita de Angoûleme. Por contraste, tem-se em outras hagiograias
francas do mesmo período uma descrição pormenorizada, não apenas dos bens
roubados dos santos, mas do estatuto social dos ladrões e do que aconteceu
com eles após o roubo.
F. Graus airma que os relatos hagiográicos de libertação de prisioneiros
e de escravos aumentam a partir dos séculos V e VI, e que isso, muito
provavelmente, correspondia a uma prática recorrente nas sociedades da Alta
Idade Média23. O aumento da recorrência desses relatos adquiriria todo seu
sentido em um período onde os editos e preceitos reais estabelecem penalidades
mais duras para o roubo. As leis francas, bem como o Liber Constitutionum e
a Lex Visigothorum preveem a pena de morte para os ladrões. Entretanto, no
que se refere ao período compreendido entre 600 e 750, as conclusões de Graus
são nuançadas por M. Van Uytfanghe, para quem o milagre não é abundante:

[...] S’il est vrai que les hagiographes n’ont pas nécessairement besoin de miracles pour
célébrer, parmi les vertus de charité de leur saint, le souci et le rachat des captifs, il n’en
reste pas moins que la délivrance miraculeuse (généralement après le refus initial du
juge, du seigneur ou du marchand impitoyables, d’acquiescer à la supplique du saint)
est en quelque sorte l’apanage de deux évêques du Nord de la Gaule, à savoir Géry
de Cambrai dans le corpus A (ses 4 miracles de ce type suggèrent déjà une certaine
‘spécialisation’) et Saint Éloi de Noyon-Tournai dans le corpus B (7 cas)24.

22 Liber in gloria confessorum, 86: “Magnae enim virtutis fuit et ille Sequanus Lingonici abba ter-
riturio, qui vivens saepe homines a vinculo diabolici nexus absolvit et post obitum ad sepulchrum
suum ergastulari catena revinctos liberos meritis suis abire permisit. Denique Gunthramnus rex
cornu, cuius voce vel Molosos collegere vel illa corneorum arboreorum armenta efugare consue-
verat, furto ablatum perdidit. Quae res multos in vinculis coniecit, nonnullos facultate privavit.
Ex quibus tres viri memorati confessoris monumento petierunt; quod rex conpertum, iussit eos
catenis atque conpedibus necti. Factumque est ita. Media vero nocte lux in basilica humanae luci
clarior oritur; dissiliunt ferrearum pedestrium repagula, catenarumque disruptis bacis, vincti la-
xantur. Quo audito rex exterritus, velociter eos liberi arbitrii potestate donavit”.
23 Graus, F. Die Gewalt bei den Anfängen des Feudalismus und die ‘Gefangenenbefreiungen’ der
merowingischen Hagiographie. Jahrb. f. Wirtschatsgeschichte 1961, I: 104.
24 Van Uytfanghe, M. Pertinence et statut du miracle dans l’hagiographie mérovingienne (600-
750). In: Aigle, D. (dir.), Miracle et Karama. Hagiographies médiévales comparées 2, Turnholt,
2000: 67-144, especialmente: 103 (“Bibliothèque de l’École des Hautes Études Section des Sciences
Religieuses” 109)

48
A pequena incidência de santos libertadores de prisioneiros, em que
pese o aumento considerável da intensidade das penas contra os ladrões,
mostra que as hagiograias francas não tentavam aportar uma resposta a esse
problema. No que se refere ao roubo, a questão principal que animava esses
autores eram os ataques aos bens eclesiásticos. Há, nesses relatos hagiográicos,
uma distinção entre os bens dos santos e das igrejas, e os bens dos laicos. Os
primeiros, não apenas por uma maior descrição das circunstâncias em que
ocorreram, mas também pela punição mais acentuada, situam-se no cerne
das narrativas hagiográicas. Os casos de perdão são sistemáticos quando há
roubo de bens que não pertencem à igreja, ou aos próprios santos; entretanto,
quando esses bens pertencem a santos ou igrejas, o perdão depende da
conissão, da devolução do que foi roubado, e da penitência. Em todos os
relatos anteriormente mencionados, esse tipo de roubo aparece como a forma
mais grave de subtração dos bens de outrem.
Os bens da Igreja encontram-se no cerne do tratamento dessa actio
criminalis descrita nas hagiograias, quer seja na punição, quer seja no perdão
acordado aos ladrões. Não se trata apenas de uma questão formal, de um topos
retórico, comum a todos os textos hagiográicos. As descrições de roubo de
objetos pertencentes aos santos ou às igrejas que eles protegem atendem ao
imperativo mais amplo de defesa dos bens eclesiásticos. Essa é uma questão
central, que mobiliza os bispos conciliares no mundo franco desde o início do
século VI. É nesse contexto que se devem entender os relatos sobre o roubo
de bens dos santos nas hagiograias.
Não foi preciso esperar as Reformas Monástica ou Gregoriana para que
a Igreja buscasse distinguir os seus bens daqueles pertencentes aos laicos
a im de melhor protegê-los das tentativas de apropriação. O conceito de
“Eigenkirche”, elaborado pela historiograia alemã para sustentar a existência
da apropriação privada das igrejas desde a época merovíngia até a época
gregoriana, foi recentemente reavaliado por S. Wood: para essa autora,
as relações de propriedade variam segundo o tamanho e o prestígio dos
estabelecimentos eclesiásticos, alguns deles podendo ser objetos possuídos,
e outros, objetos e sujeitos possuidores. Os únicos objetos eclesiásticos cuja
possessão por parte de laicos – reis, condes, senhores, grupos de pequenos
proprietários rurais ou urbanos – e clérigos – padres, bispos e monastérios
– não era colocada em questão nos textos da Alta Idade Média seriam as
pequenas igrejas (“lower churches”)25.Todas as outras apropriações de bens
da igreja produziam reações vigorosas, visíveis não somente nos cânones
conciliares, mas também nas vidas de santos.
O papel das hagiograias na defesa dos bens eclesiásticos não é exclusivo
dos primeiros séculos da Idade Média. No âmbito do combate intensamente
travado pelos partidários da Reforma nos séculos XI e XII, as vidas de santos

25 Wood, S. he Proprietary Church in the Medieval West, Oxford, 2006.

49
desempenharam um papel pelo menos complementar aos dos polemistas
gregorianos. B. De Gaier, em um artigo de 1932, mostrou que, nos textos
hagiográicos do século XI, a vingança divina (ultio diuina) atingia aqueles que
usurpavam os bens eclesiásticos e monásticos26. As vidas de santos também
desempenharam um papel semelhante no mundo franco dos séculos VI-
IX, mas, como será mostrado nas páginas seguintes, o recurso à ameaça da
vingança divina e de aplicação da excomunhão foram apenas alguns dos meios
mobilizados na defesa dos bens eclesiásticos.
No caso das hagiograias, a punição mais acentuada pelo roubo de bens
dos santos e das igrejas não é a única maneira pela qual esses se diferenciam
de outros bens. O santo obtém sempre a devolução dos objetos roubados, seja
através do arrependimento dos ladrões, seja por meio de ações consecutivas à
sua punição. Essa eicácia tem, muito provavelmente, precedentes bíblicos, na
capacidade do Senhor em recuperar os bens que lhe pertencem, como se viu no
caso de Ananias e Saira, e também no relato sobre Acã e os seus. O proprietário
dos bens parece ser a chave para a compreensão do maior rigor da punição
aos ladrões, bem como da eicácia na restituição desses bens. No entanto,
é pouco provável que a fonte para a construção desses relatos fosse apenas
bíblica: os casos veterotestamentários mencionados anteriormente concentram-
se na punição dos ladrões, ao passo que as hagiograias acordam um papel
importante à recuperação dos bens e à paciicação. O perdão concedido aos
ladrões (sejam eles pauperes ou potentes) é uma prática que se inscreve na
tradição de paciicação da justiça da Alta Idade Média. A.-M. Helvetius tem
razão ao considerar que não é possível separar as vitae francas das questões
que envolvem a justiça e as disputas interpessoais. Contudo, essa relação não
se situa simplesmente no plano exemplar ou moralizador. As hagiograias
participam dos embates em torno dos bens e da sua propriedade.
Os relatos hagiográicos francos estabelecem uma distinção entre os bens
que pertencem aos santos e às igrejas e os que não pertencem. Nesses, os bens
são hierarquizados em função dos estatutos de seus proprietários. A pista que
se buscará examinar, nas páginas seguintes, é a da relação entre essa distinção
e aquela estabelecida pelas leges bárbaras e pelos cânones conciliares. Em
outras palavras, buscar-se-á relacionar a defesa eicaz dos bens eclesiásticos
por parte dos santos, e a qualiicação jurídica do proprietário, presente nas
leges bárbaras e nos cânones conciliares. Interessa, neste trabalho, analisar
como os relatos hagiográicos sobre o roubo tomam emprestados das leis
civis e das normas conciliares os argumentos e as formas de qualiicação dos
bens e dos proprietários.

26 Gaier, B. Les revendications de biens dans quelques documents hagiographiques au XIe siecle.
Analecta Bollandiana 50, 1932: 123-138.

50
3. O roubo na legislação real

Sujeitos e bens

A relação dos proprietários com os seus bens não é apenas um problema


de história do Direito, mas tem implicações na história econômica e na história
social. Nas sociedades ocidentais, por exemplo, pelo menos até o século XIX,
ou ainda na Polis grega, o estatuto de cidadão está associado à condição de
proprietário (na Grécia Antiga, o chefe do Oikos). Já nas sociedades ocidentais
modernas, o direito à propriedade estabelece uma individuação do sujeito a
partir da exclusividade de sua relação com os bens; e é enquanto proprietário
que ele age no espaço público. A relação com os bens deine, também, as
relações entre os próprios proprietários: o direito à propriedade individual,
por exemplo, consagra uma oposição bem mais clara entre o proprietário e os
seus pares – às vezes em termos de exclusão mútua – do que em um regime
de possessão coletiva dos bens. Entretanto, essa oposição não traz consigo a
desagregação das relações sociais. Uma das razões para isso está na circulação
de bens: os sujeitos podem fazer legitimamente circular os bens entre si,
quer seja através da troca, do dom, ou do comércio. Essas modalidades de
circulação, quando aceitas por ambas as partes e legitimadas pela legislação
em vigor, reforçam e ampliam as relações interpessoais.
Mas há uma categoria de circulação de bens que se situa no limite entre
a legitimidade e a ilegitimidade. Trata-se da razzia, uma espécie de roubo
considerado legítimo quando se dirige ao exterior da comunidade. Nas
sociedades beduínas, a razzia era valorizada e contribuía para construir a
reputação e a honra de um homem nobre, ao lhe dar a oportunidade para
mostrar sua coragem. No sentido inverso, o roubo no interior da tribo era
considerado vergonhoso e digno de homens inferiores1. Algo de muito
semelhante acontece na Gália franca: a razzia é praticada com frequência, como
mostra Gregório de Tours, mas ele condena com vigor apenas as cometidas
no interior do Reino dos Francos.
Outra categoria de transmissão de bens que se situa no limiar entre
a legitimidade e a ilegitimidade é a imposição iscal. Há um grau, não
necessariamente quantiicável, muito menos indicado nos textos, a partir do
qual os impostos são considerados ilegítimos. Do ponto de vista estritamente

1 Claudot, H., Haward, M. Coups et contrecoups: l’honneur en jeu chez les Touaregs. Annuaire
de l’Afrique du Nord 21, 1982: 793-808.

51
legal, não basta que um determinado ataque aos bens seja reprovado pelas
comunidades envolvidas para ser deinido como roubo; é preciso, ainda, que
essa reprovação tenha alguma referência na legislação em vigor. Assim, o
roubo é um ato praticado a despeito da legislação, civil ou eclesiástica, e não
pode, a princípio, ser confundido com as ações de transferência forçada de
bens, patrocinado pelo poder real – por exemplo, as imposições iscais ou o
conisco –, ou mesmo pela Igreja.
Na perspectiva adotada neste trabalho, no entanto, o que deine o roubo é
o vocabulário utilizado pelos textos: razzias podem ser descritas como roubo,
e coniscos também o podem. Nesses casos, eles serão objetos desse estudo.
A Vita Sancti Severini, de Eugípio (†c. 533), por exemplo, mostra o santo
defendendo sua civitas contra a pilhagem de um bando de bárbaros, que ele
ameaça com a vingança divina. O termo utilizado pelo autor do texto para
descrever a ação dos bárbaros é o mesmo que, em outros textos, designa o
roubo de bens: praedatione2. Em um artigo de 1995, F. Lifshitz sustenta que o
êxodo das relíquias da diocese de Rouen, relatado em textos hagiográicos, foi
um mito que serviu para encobrir a prática sistemática do “conisco” desses
bens durante os séculos IX e X. A “eicácia” dessas relíquias em proteger a
diocese de Rouen das incursões vikings no século IX teria feito delas objeto de
cobiça. Assim, na Translatio Gildardus, por exemplo, consta que o rei Carlos,
o Calvo, pediu aos habitantes de Rouen que dessem as relíquias de Gildardus
para o monastério de Saint-Médard de Soisson. Segundo Lifshitz:

[…] he inhabitants of Rouen were coerced to disgorge their relics by the royal authority
of Charles the Bald, who wished to reward a favoured monastic house. his amounts
to a thet; however, because nothing sanctioned by ‘public’ authority can, technically,
be illegal, we might call it instead a ‘coerced translation’3.

O que aqui se propõe não é um estudo sociológico e estatístico sobre o


roubo, mas sobre sua qualiicação e seu tratamento nos textos francos da Alta
Idade Média. Daí a importância que daremos às maneiras como os ataques
aos bens são descritos.
As pessoas se ligam às coisas, não apenas a partir de modalidades de
circulação consideradas legítimas – comércio, dom, troca competitiva, troca

2 A Vita Sancti Severini, IV, 4-5: “...ite et vestris denuntiate complicibus, ne aviditate praedandi
ultra huc audeant propinquare: nam statim caelestis vindictae iudicio punientur, deo pro suis fa-
mulis dimicante, quos ita consuevit superna virtute protegere, ut tela hostium non eis inferant vul-
nera, sed arma potius subministrent.” dimissis itaque barbaris ipse de christi miraculis gratulatur,
de cuius et miseratione promittit numquam illud oppidum hostium praedas ulterius experturum:
civis tantum ab opere dei nec prospera nec adversa retraherent”.
3 Lifshitz, F. he migration of Neustrian relics in the Viking Age: the myth. Of voluntary Exodus,
the reality of coertion and thet. Early Medieval Europe 1995 (4/2): 182-183.

52
não competitiva, razzia contra o inimigo externo –, mas também, por formas
ilegítimas. Seja do ponto de vista do proprietário, da comunidade ou da
autoridade pública, o roubo é uma forma ilegítima de circulação de bens.
Pelo lugar que ocupa nas leges bárbaras4 e na legislação conciliar, é provável
que constitua a principal fonte de disputas nos reinos que tomaram o lugar
do Império Romano do Ocidente. Além disso, foi objeto de um número mais
importante de regulamentações do que as formas legítimas de circulação de
bens. Mesmo que as trocas, os dons, ou o comércio, tenham sido objeto de
restrições por parte da autoridade pública na Alta Idade Média (os príncipes
carolíngios se opuseram, por exemplo, a um tipo de comércio regido,
segundo eles, pelo lucro indevido – turpe lucrum5), o roubo provoca mais
sistematicamente a adoção de medidas repressivas e, às vezes, a vingança6.
E é nessas medidas e na condenação desse ato, que as normas constroem os
qualiicativos jurídicos dos “ladrões” e “proprietários”. A reprovação ao roubo
aparece mais claramente nos textos do que a condenação ao turpe lucrum,
por exemplo. A centralidade do roubo pode ser observada, inclusive, no fato
de que os textos tomam emprestados termos que designam esse ato para
deslegitimar certas práticas de comércio ou dom. O roubo é a exceção que,
em suas relações seguidas e topológicas com a norma, deine as situações
proprietárias.
Pode-se falar em “propriedade” na Alta Idade Média? Embora esse não
seja um argumento decisivo, a palavra proprietas está presente nos textos
francos. Suas ocorrências são numerosas nos formulários7 e nos capitulares
carolíngios8. Viu-se também, no capítulo anterior, que o maior número de

4 Hagemann, H-R. Diebstahl - Deutsches Recht. In: Lexikon des Mittelalters, III, Munique/
Zurique, 1984, col. 990-991.
5 Capitular de Nimègue, 806. Sobre as regulamentações carolíngias do comércio, ver Cândido
da Silva, M. O combate à fome nos capitulários de Carlos Magno (c. 780-806). In: R.O.A. Filho
(org.), Relações de poder, educação e cultura na Antiguidade e Idade Média, Estudos em homena-
gem ao Professor Daniel Valle Ribeiro, Santana do Parnaíba, 2005: 379-390.
6 Em seu estudo sobre um código de honra seguido pelos habitantes de Barbagia (na Sardenha),
A. Pigliaru mostrou que esses últimos diferenciavam os roubos “ofensivos” dos roubos “não-o-
fensivos”, os primeiros dando origem à vingança, e os segundos à compra dos objetos roubados
pelos seus proprietários legítimos (A. Pigliaru, Il Banditismo in Sardegna. La vendetta barbari-
cina come ordinamento giuridico, Milão, 1975).
7 Cartae senonicae 25, 768-775: 196: “hoc est res proprietatis meae in paggo illo...”; Formulae extra-
vagantes 11: 540: “... per hoc dotis testamentum de rebus proprietatis meae in paggo illo”.
8 Additamenta ad capitularia Regum Franciae Orientalis, Capit. 2, Cap. 248: 180, lin. 4: “Nullus
monachorum aliquid proprietatis habeat, et res seculares, quibus renuntiavit, nullatenus sibi
usurpet, nec parrochias ecclesiarum accipere presumat sine consensu episcopi”; Capitulare
Olonnense mundanum, Capit. 1, Hlotarii capitularia Italica: 329, lin. 33: “Statuimus ut libe-
ri homines, qui tantum proprietatis habent unde hostem bene facere possunt et iussi nolunt, ut
prima vice secundum legem illorum statuto damno subiaceant; si vero secundo inventus fuerit
neglegens, bannum nostrum id est LX solidos persolvat; si vero tertio quis in eadem culpa fuerit
inplicatus, sciat se omnem substantiam suam amissurum aut in exilio esse mittendum”; Synodus
Francofurtensis, Capit. 1, Karoli Magni capitularia: 74, lin. 9: “Necnon omnem iustitiam et res

53
referências à propriedade está nas hagiograias. Pretender fazer uma história da
construção social a partir de conceitos, tais como “propriedade”, “roubo”, que
também estão presentes no vocabulário contemporâneo, coloca uma questão
particularmente importante: a discrepância entre, de um lado, os sentidos que
os textos da Alta Idade Média dão a esses termos e, de outro, seus signiicados
contemporâneos. Um bom exemplo nesse sentido, e repleto de consequências
para os estudos medievais, é o problema das identidades bárbaras.
Vê-se, nesse caso, grande preocupação dos autores dos séculos V e VII em
apresentar os nomes étnicos, os mitos de origem e as leis como parte integrante
de um discurso de reivindicação de certa homogeneidade étnica de grupos
(deinidos pelo termo natio). Somada a isso, há a preocupação dos historiadores
europeus, desde o século XIX, em encontrar as origens de suas próprias nações
no interior dessas comunidades – pelo menos em parte – “imaginadas”. Os
historiadores modernos tomaram os discursos de origem dos séculos V-VII
como a prova de que sólidas comunidades étnicas encontravam-se na base
dos reinos que levavam os nomes dessas comunidades. Entretanto, o sentido
da palavra natio nos textos da Alta Idade Média somente pode ser associado
a “nação” ao preço de se tomarem os reinos bárbaros como os ancestrais dos
Estados Nacionais modernos.
Em textos do século XIV, a propriedade é deinida como o direito de
utilizar, beneiciar-se e dispor de uma coisa de maneira exclusiva e absoluta,
tendo como limite apenas as restrições estabelecidas pela lei. Herdeira da
concepção romana de direito e propriedade, essa noção moderna aparece
no Código Civil, de 1804, como um direito individual, absoluto, exclusivo e
perpétuo. O direito contemporâneo deine a propriedade como uma relação
que se estabelece entre o sujeito A e o bem X, quando A dispõe livremente
de X; e essa faculdade em relação a X é socialmente reconhecida como uma
prerrogativa exclusiva, cujo limite teórico é “sem relações”, e no qual “dispor
de X” signiica ter o direito de decidir tudo o que diz respeito a X, sendo
possuído no sentido material ou não9. No período que interessa, os séculos
VI-IX, a noção de propriedade (proprietatis, dominium), isto é, o direito de
ter um controle total sobre uma coisa, é limitado tanto pela possessio (controle
físico dessa coisa, ou ius in re aliena) quanto pelo usufrutus. Entretanto, seria
um equívoco ver na propriedade moderna um princípio absoluto, em oposição
a concepções antigas, relativas. Mesmo em uma sociedade liberal, fundada no
“laissez-faire” e no respeito à propriedade individual, como, aliás, em todas as

proprietatis, quantum illi aut iliis vel iliabus suis in ducato Baioariorum legitime pertinere de-
buerant, gurpivit atque peroiecit et, in postmodum omni lite calcanda, sine ulla repetitione indul-
sit, et iliis ac iliabus suis in illius misericordia commendavit”. F.-L. Gasnhof deine as capitulares
como atos do poder cujo texto era geralmente dividido em artigos (capitulum) utilizados por vários
príncipes carolíngios para publicar medidas de ordem legislativa ou administrativa (Ganshof, F-L.
Recherches sur les capitulaires, Paris, Sirey, 1958: 3-4).
9 Sani, G. Propriedade. In: Bobbio, N. et alii, Dicionário de Política, Brasília, 1993, v.2: 1021-1035.

54
sociedades, o direito à propriedade é limitado por controles legais e sociais.
O simples fato de a noção de propriedade de uma sociedade ser diferente da
nossa, não permite que se diga que essa sociedade desconhece essa noção10.
A propriedade supõe sempre obrigações e restrições, isto é, é sempre uma
questão de grau11. Essas restrições, e, sobretudo, os atentados à propriedade,
constituem o melhor meio para se estudar a construção dessa noção, suas
especiicidades em uma dada sociedade. Isso permite que se vá além do
domínio restrito da história das ideias jurídicas e se coloque no domínio vivo
do diálogo entre as normas e a sociedade.
A noção de propriedade raramente constituiu o cerne dos estudos
sobre as relações entre sujeitos e bens na Alta Idade Média. Boa parte da
historiograia centrou suas análises na noção de “propriedade coletiva”, oriunda,
segundo vários autores, de uma tradição comunitária dos povos germânicos.
Os historiadores de Direito na Alemanha, no século XIX, deram ênfase em
seus estudos, à Alta Idade Média, ao uso coletivo e partilhado dos bens, em
detrimento do direito individual do sujeito sobre os bens. As teses sobre os
peris não proprietários do uso dos bens no mundo franco estão estreitamente
associadas à noção de “Völksgenossenschat”, construção historiográica que
identiicava na “Antiga Germânia” uma organização igualitária, cuja sombra
teria sido projetada na história franca da Alta Idade Média. As críticas mais
recentes a esta noção, especialmente a obra colossal de S. Wood, se traduziram
na reabilitação da noção de “propriedade individual”.
No entanto, pelos menos desde o século XIX, a historiograia francesa
tem adotado uma postura crítica em relação à noção de Völksgenossenschat12.
Em um artigo publicado na Révue Historique em 1886, M. hévenin aborda

10 A esse respeito, E. Levy mostrou que, apesar das limitações na transferência de bens nos reinos
bárbaros, ela podia ser considerada como uma transferência de propriedade: “As late as the ninth
and tenth centuries land gits made by the sovereigns or churches in east Frankish areas were
considered as transferring proprietas (concedere ou tradere in proprietatem) in spite of the fact
that such land could neither be alienated nor inherited” (Levy, E. West Roman Vulgar Law. he
law of Property: 89-90).
11 Reynolds, S. Fiefs and Vassals: 56: “In all societies the right of property may be limited or regu-
lated in some way, for instance by the degree to wich one’s use of property is exclusive or by the
possibility of its coniscation in at least some circumstances, however restricted they may be and
whatever the compensation that may be ofered”.
12 Centrando-se na questão da terra, N.D. Fustel de Coulanges elaborou uma crítica bastante
dura dessa perspectiva: “Il faut donc que l’historien tienne pour vrai que les grandes secousses
du Ve siècle et l’arrivée d’hommes nouveau n’ont ni altéré ni amoindri le droit de propriété du
sol. Supposer que les Germains aient introduit une nouvelle façon de posséder la terre serait
contredire tous les documents” (Les origines du système féodal, le bénéice et le patronat. In:
Histoire des Institutions politiques de l’Ancienne France, Paris, 1890, p.129. Sobre a distinção
entre “propriedade” e “posse”, ver Andreolli, B. ‘Situazione proprietarie’, ‘situazione possesso-
rie’. Spunti per un dibattito europeo sulla contratualistica agrária altomedievale. In: Montanari,
M., Vasina, (ed.), Per Vito Fumagali. Terra, uomini, instituzioni medievali, Bolonha, 2000: 541
e 547.

55
a questão a partir de um objeto especíico: os moinhos. Esse artigo constitui
uma vigorosa crítica à ideia de “propriedade coletiva”. O autor airma que é
impossível citar um só texto no qual um moinho apareça como propriedade
coletiva de um vilarejo, ou que apresente os habitantes do vilarejo como
coproprietários do moinho que utilizam13.
No livro A Sociedade Feudal, de 1939, M. Bloch sustenta que a noção
“medieval” de propriedade perdeu um traço característico do Direito romano:
a exclusividade do direito do proprietário em relação ao bem. Bloch procurou
ressaltar a multiplicidade de direitos que pesavam sobre um mesmo bem
entre os séculos XI e XIII:

[...] Sur presque toute terre, en efet, et sur beaucoup d’hommes, pesaient, en ce temps, une
multiplicité de droits, divers par leur nature, mais dont chacun, dans sa sphère, paraissait
également respectable. Aucun ne présentait cette rigide exclusivité, caractéristique de la
propriété, du type romain. Le tenancier qui — de père en ils généralement — laboure
et récolte; son seigneur direct, auquel il paie redevances et qui, en certains cas, saura
remettre la main sur la glèbe; le seigneur de ce seigneur et ainsi de suite, tout le long de
l’échelle féodale: que de personnages qui, avec autant de raison l’un que l’autre, peuvent
dire ‘mon champ’! Encore est-ce compter trop peu. Car les ramiications s’étendaient
horizontalement aussi bien que de haut en bas et il conviendrait de faire place aussi à la
communauté villageoise, qui ordinairement récupère l’usage de son terroir entier, aussitôt
celui-ci vide de moissons; à la famille du tenancier, sans l’assentiment de laquelle le bien
ne saurait être aliéné; aux familles des seigneurs successifs. Cet enchevêtrement hiérarchisé
des liens entre l’homme et le sol s’autorisait sans doute d’origines très lointaines. Dans
une grande partie de la Romania elle-même, la propriété quiritaire avait-elle été autre
chose qu’une façade ? Le système, cependant, s’épanouit aux temps féodaux avec une
incomparable vigueur. Une pareille compénétration des ‘saisines’ sur une même chose
n’avait rien pour heurter des esprits assez peu sensibles à la logique de la contradiction
et, peut-être, pour déinir cet état de droit et d’opinion, le mieux serait-il, empruntant
à la sociologie une formule célèbre, de dire : mentalité de ‘participation’ juridique14.

13 “En raison même de sa nature, un moulin ne pouvait être construit que par un propriétaire
de cours d’eau, disposant d’ailleurs de moyens suisants; il servait à un nombre plus ou moins
grand de voisins de la même circonscription territoriale et économique, c’est-à-dire du même
village; il était commun à ces voisins en ce sens seulement qu’ils en usaient en commun; d’après
la loi des Bavarois, du titre ‘de furto’, c’est un établissement ‘public’; il faut s’entendre sur la
signiication de ce mot... Il est visible qu’ici ‘casas publice’ ne signiie pas ‘maisons communes’
et que ‘publice’ ne rappelle, en aucune manière, le caractère collectif des premières propriétés
immobiliers ou des premiers modes d’appropriation, comme la résidence du duc, etc., le moulin
est public, c’est-à-dire, accessible à tous et constamment ouvert” (hévenin, Études sur la pro-
priété au Moyen Age. La propriété et la justice des moulins et des fours. Revue Historique 31,
1886: 245-246).
14 Bloch, M. La société féodale, Paris, 1982 (1ed., 1924): 119-120.

56
Para além dos resquícios de uma interpretação com base na ideia de
“propriedade coletiva” (exercida pela “comunidade do vilarejo”), a tese de
M. Bloch convenceu a muitos da existência de uma nítida separação entre
a noção romana de propriedade e aquela que teria prevalecido no período
medieval. Essa também é, por exemplo, a opinião de M. Villey. Segundo esse
autor, teria havido um descolamento progressivo entre o dominium e o jus:
“le dominium, lui-même, devient un jus, ce qui est anti-romain au maximum,
j’entends contraire au système général du droit romain classique. Au total, il
n’y a plus que des ‘jura’ et, dans le domaine qui nous occupe, il n’y a plus que
des ‘jura in re’”15. Alguns autores chegam mesmo a distinguir uma suposta
“mentalidade da propriedade”, típica da época romana, de uma “civilização
da posse”, característica da Idade Média: “A una mentalità angolosamente
proprietaria come quella romana si sostituisce une civilità ‘possessoria’ cui
è del tutto indiferente l’idea di un rapporto de validità [...] e che è invece
dominata de un vigoroso principio di efettività”16. O fundamento dessa
distinção excessivamente nítida está nas teses germanistas, segundo as quais
os povos bárbaros teriam legado à Alta Idade Média uma forte tradição do
uso e da possessão de bens comuns.
As noções de cessão, ou a noção de propriedade plena (dominium),
presentes nos formulários e diplomas da Alta Idade Média, não podem ser
consideradas como uma simples transposição das formulações clássicas. Há
algumas décadas, E. Lévy demonstrou que os elementos principais do direito
bárbaro sobre a propriedade são oriundos do Direito romano tardo-antigo
(notadamente o Codex heodosianus e o Breviário de Alarico), e não do Direito
romano clássico17. Isso teria resultado, segundo ele, em uma perda de precisão
do vocabulário e das categorias que designavam o direito à propriedade, algo
fundamental no Direito clássico. No plano das relações entre sujeitos e bens,
não houve um distanciamento em relação aos princípios do Direito romano
tardio na Alta Idade Média, tampouco um triunfo de supostas tradições
germânicas, mas uma mudança no uso das palavras, que indicava uma limitação
da plenitude dos direitos de propriedade.
Os estudos recentes sobre as transferências patrimoniais mostraram, por
exemplo, que o princípio da livre disposição de bens sobreviveu na Burgúndia

15 Villey, M. Le ‘ jura in re’ du droit romain classique au droit moderne. In: Conférences faites
à l’Institut du Droit Romain en 1947, Paris, 1950 (Publications de l’Institut de Droit Romain de
l’Université de Paris VI): 197-198.
16 Grossi, P. La proprietà e le proprietà nell’oicina dello storico. Quaderni Fiorentini per la Storia
del pensiero giuridico moderno 17, 1988: 392.
17 Levy, E. West Roman Vulgar Law. he law of Property. Filadélia, 1951: 15: “he remnants of the
classical law played only a modest part in the sources used for these legislations. he Roman law
adopted in the Germanic kingdoms was at irst everywhere the vulgar law... he very incentive
for their undertakings came from Roman models, such as the Codex heodosianus and later the
Breviarium Alaricianum”.

57
pelo menos até os séculos VII e VIII, e, em algumas outras regiões, até o
século X. Algumas vezes, essa liberdade de oferecer, gratuitamente ou não, ou
ainda, de transmitir os bens, chocou-se com a necessidade de consentimento
familiar (a laudatio parentum), mas isso era excepcional18. Até o século X, os
doadores não tinham necessidade do consentimento oicial e público de seus
próximos quando transferiam uma parte de seus bens a outro ius et dominium.
Segundo R. Le Jan, na época carolíngia, a lei garantia a cada sujeito o livre
gozo de seus bens próprios, bem como a possibilidade de efetuar doações
às igrejas pro remedio animae, contanto que não incidissem sobre a parte da
herança garantida aos herdeiros diretos (Ebenwartrecht). Além disso, havia
a possibilidade de conceder uma parte maior da herança a certos herdeiros.
O sujeito dispunha livremente de pelo menos uma parte de seus bens para
dotar sua esposa, privilegiar certos herdeiros, vender, trocar ou fazer doações19.
Em seu estudo sobre a propriedade da Igreja na Idade Média, S. Wood
deine propriedade como o fato de uma pessoa (ou um grupo) ter posse ou
uso direto, ou potencial, de um bem, durante longo e contínuo período de
tempo, e com certo número de obrigações e restrições. Isso signiica que o
proprietário possui um título, ou pelo menos direito sobre esse bem, que ele
pode defender diante da lei e dispor dele como melhor entender, vendendo-o,
dando-o, dividindo-o ou arrendando-o. Esse poder de controle sobre o bem
se exprime através de um léxico variado (potestas, dominium, proprietas) cujo
sentido varia no tempo e espaço. O único traço comum nessas deinições de
propriedade é a capacidade de dar, vender ou alienar o bem. Na alienação,
encontra-se, segundo S. Wood, a essência daquilo que funda o direito de
propriedade: um sujeito é proprietário de um bem quando tem a faculdade
de se desfazer dele20.
Há, na Alta Idade Média, uma nítida associação entre propriedade e
autoridade: os conlitos em torno dos bens aparecem nos momentos delicados,
nos quais esses bens podem ser alienados: doação a um estabelecimento maior,
transferência testamentária, divisão entre herdeiros21. E, no interior desses casos,
o roubo constitui uma forma radical de ataque à propriedade e à autoridade.
As normas que combatem o roubo são instrumentos de recomposição da
propriedade, e, também, da autoridade das pessoas sobre as coisas.

18 Le Jan, R. Malo ordine tenent. Transferts patrimoniaux et conlits dans le monde franc (VIIe-Xe
siècle). In: Femmes, pouvoir et société dans le haut Moyen Âge, Paris: Picard, 2001: 133; Devroey,
J-P. Économie rurale et société dans l’Europe franque (VIe-IXe siècles), t.1, Paris, 2003: 179-180.
Para um estudo da laudatio parentum entre os séculos XI e XIII, ver White, S. Custom, Kinship
and Gits to Saints, the “laudatio parentum” in Western France, 1050-1250, Chappel Hill/Londres,
1988.
19 Le Jan, R. Malo ordine tenent. Transferts patrimoniaux et conlits dans le monde franc (VIIe-Xe
siècle): 133.
20 Wood, S. he Proprietary Church in medieval West, Londres, 2006: 76.
21 Calvet, G. Compte-rendu he proprietary Church in the medieval west. Annales, HSS, mars-a-
vril 2008 n°2: 406-408.

58
A noção de propriedade é, portanto, plenamente compatível com o mundo
franco dos primeiros séculos da Idade Média, apesar da transformação nas
categorias romanas clássicas acerca das relações entre sujeitos e bens. As
principais transformações que se veriicam nas relações entre sujeitos e bens
desde o século IV podem ser resumidas da seguinte forma: uma confusão
acentuada entre possessio e dominium (conjunto de relações de soberania
absoluta sobre um bem), a absorção pela possessio dos diversos iura in re aliena
(direitos limitados sobre a propriedade de outrem) e o aumento dos prazos
de prescrição da propriedade pelo uso de bens. Segundo E. Levy, desde o
inal da Antiguidade, a propriedade de todas as coisas passou a ser designada
pela possessio, que se tornou o denominador comum da lei da propriedade.
Na Lex Visigothorum, bem como no Liber Constitucionum, possidere e suas
derivações mantiveram sua dupla natureza: signiicam controle de fato de
um bem, entendido como sua longa possessão22, e também as ações para sua

22 Lex Visigothorum X, 3, 4: “Si quis intra terminos alienos per absentiam aut per ignorantiam
domini partem aliquam forte possederit1, ita ut diuturna inansio etiam multo tempore inoli-
ta vel amplius quam L annos hominum partis eius habitatio publice et inmobiliter consistere
aut permanere nullatenus conprobetur, statim cum per antiqua signa evidentibus inspectori-
bus ines loei alterius cognoseuntur, amittat domino reformandam. Nec contra signa evidentia
debitum doininium ullum longe possessionis tempus excludat; sed hoc, si ex his contendenti-
bus unus possessoris sive autorum eius dominmm repperiatur advenisse postremum. Nam si
tanta tempora excessenmt, ut nec ipsi nec autores eorum noverint, cuius primum aut dominium
aut possessio fuit, et nec per testem nec per scripturam potuerit postremus possessor ostendi,
quia dubium prime possessionis constat indicium, iinusquisque quod possidet inrevocabiliter
possidebit. Veram ubi unus possessor sine alterius domini mansoribus publice possidens per
evidentia signa locum ex integro vindicare videtur, nulla ratio sinit quamvis per longa tempora,
ut eius possessionis integritas decerpatur. Unde, si alter illic se per presumtivam introduxerit
novitatem, nihil nocere poterit possessori. Si vero idem aliena appetens aliquid ex hoc repetit
non presumtive, sed per iudicium, si meretur, obtineat. Nam si incondite et inprovise adtemtet
aliquatenus accedere velle, liceat hunc domino vere ut violentum accusare et ut invasorem per
iudicium legibus abdicare”; Lex Visigothorum X, 3, 5: “Si quodcumque ante adventum Gotorum
de alicuius fundi iure remotum est et aliquam possessionem aut vinditionem aut donationem
aut divisionem aut aliqua transactione translatum est id in eius fundi, ad quem a Romanis anti-
quitus probatur adiunctum, iure consistat. Cum autem proprietas fundi nullis certissimis signis
aut limitibus probatur, quid debeat observari, eligat inspectio iudicantium, quos partium con-
sensus elegerit; ita ut iudex, quos certiores agnoverit vel seniores, faciat eos sacramenta prebere,
quod terrainos sine ulla fraude monstraverint, et tamen rnullus novum terminum sine consortis
presentia aut sine inspectore constituat. Quod si forsitan liber hoc fecerit, damnum pervasionis
excipiat, quod legibus continetur. Si vero id servus admiserit domino nesciente, CC lagella pu-
blice extensus accipiat, et nullum ex hoc preiudieium domino conputetur”; Lex Visigothorum
V, 1.4: “Heredes episcopi seu aliorum clericorum, qui ilios suos in obsequiuni ecclesie conmen-
daverint, et terras vel aliquid ex muniicentia ecclesie possederint, si ipsi in laicis reversi fuerint
aut de servitio ecclesie, cuius terram vel aliquam substantiam possidebant, discesserint, statim
quod possidebant amittant. Sed et de omnibus clericis, qui de rebus ecclesie quecumque posse-
derint servetur liec forcna; ne quamvis longa possessio dominram ecclesie a rebus sibi debitis
quandoque secludatj quia et canonum auetoritas ita conraendat. Sed et vidue sacerdotiim vel
aliorum clericorum, que iilios suos in obseqiiium ecclesie conmendant, pro sola miseratione de
rebus ecclesiasticis, quas pater tenuit, non eiciantur exteri”.

59
recuperação23. Se o período clássico considerava, pelo menos teoricamente, o
dominium como um direito eterno, que não podia ser transferido depois de
certo tempo, desde o reinado de Constantino assiste-se à emergência da noção
de proprietas ad tempus – expressão utilizada pelo próprio imperador24. No
entanto, E. Levy ignorou um aspecto fundamental da construção da noção
de propriedade na Alta Idade Média: se, na legislação civil, as prescrições,
adotadas desde o século IV e, no Reino dos Francos, pelo menos desde o
século VI, participam da diminuição do raio de ação da propriedade, no que
se refere à legislação canônica, algo distinto acontece. Como será observado
no capítulo seguinte, assiste-se à construção de uma noção plena e absoluta
de propriedade, no contexto do combate à apropriação fraudulenta dos bens
eclesiásticos.
A legislação real da Alta Idade Média reforçou a preeminência da possessão
e da utilização sobre a validade jurídica. A relação direta, material, entre o sujeito
e o bem, tende a se sobrepor às relações de direito. Mas isso não signiica em
hipótese alguma o enfraquecimento do direito de propriedade. Um dos textos
que inaugura essa preeminência no mundo franco é o Preceito Clotariano.
Os problemas em torno da possessão pelo uso parecem coincidir com os do
reinado de Clotário I, na metade do século VI, como se pode observar:

[...]Tudo aquilo que for provado que a Igreja, os eclesiásticos ou nossos provinciais
possuem durante trinta anos, sem que seus direitos sejam perturbados, permanece
em sua possessão sob seu comando, se desde o início a possessão é justa; qualquer
ação que permaneceu sepultada por mais do que esse período de tempo não deve
ser restabelecido contra a lei, para que sem dúvida a possessão permaneça com seu
possuidor de direito” 25.

23 Lex Visigothorum VIII, 1, 2: “Quicumque violenter expiderit possidentem, priusquam pro ipso
iudicis sententia procedat, si causam meliorem habuerit, ipsam causam, de qua agitur, perdat.
Ille vero qui violentiam pertulit universa in statu, qno fuerant, recipiat quod possedit et securas
teneat. Si vero illud invasit, quod per iudicium obtinere non potuit, et causam amittat et aliut
tantum, quantum invasit, reddat expulso”; Liber Constitutionum LXXXIII, 1: “Quicumque res aut
mancipium aut quodlibet suum agnoscit, a possidente aut ideiuossorem idonem accipiat, aut, si
ideiussorem petitum non acceperit, res, quas agnoscit, praesumendi habeat potestatem”.
24 Levy, E. West Roman Vulgar Law. he law of Property: 61.
25 Preceito Clotariano, 8: “Quicquid ecclesia, clerici vel provincialis nostri, intercedente tamin
iusto possessionis inicio, per triginta annos inconcusso iure possedisse probantur, in eorum dicio-
ne res possessa permaneat, nec actio tantis aevi spaciis sepulta ulterius contra legum ordine sub
alequa repeticione consurgat, possessionem in possessoris iure sine dubio permanentem”. Essa
disposição, ao mencionar a “ justa possessão” dos bens como uma condição para a legitimidade
da propriedade eclesiástica, restringe deliberadamente esta última, abrindo o caminho para rei-
vindicações diversas. É em resposta a essa disposição e às reivindicações dela decorrentes que o
canone 1 do III Concílio de Paris deve ter sido redigido: “Competitoribus etiam huiusmodi frenos
districtionis imponimus, qui facultates ecclesiae sub specie largitatis regiae improba subreptione
peruaserint”. Este é um indício de que O. Guillot tem razão ao atribuir esse preceito a Clotário I.

60
Esse trecho trata do usucapio, isto é, uma forma de aquisição de um bem
pelo seu uso no decorrer do tempo26. O legislador estabelece duas condições
para que o direito à possessão de um bem seja reconhecido: a justiça da
possessão e a ausência de questionamento dessa possessão durante um período
de 30 anos. A menção à prescrição trintenária, como indica o próprio editor
do preceito, é uma modiicação em relação à Lex Wisigothorum, que previa
uma regra semelhante, mas em um período de vinte anos27.
Embora a prescrição de 40 anos esteja prevista no Codex heodosianus28,
foi progressivamente suplantada pela prescrição trintenária, a mais recorrente
nas leges bárbaras. Esta última está prevista no Decreto de Childeberto II29, nas
Formulae Andecavenses30, nas Formulae Turonensis31 e na Lei dos Lombardos,
ao passo que a prescrição de 40 anos é aplicada em um único caso, também
na Lei dos Lombardos.

26 Levy, E. West Roman Vulgar Law. he law of Property: 179: “he usucapio as an institution of
the practice is, I see it correctly, not traceable any more during the period between Diocletion and
Justinian. he term neither occurs in the Codew heodosianus or the subsequent Novellae, nor in
the Epitome Gai or the Interpretatio, nor in the Ostrogotic, Visigothic, or Burgundian codiica-
tions. It does not appear either in the constitutiones of these centuries incorporated in the Codex
Justinianus”.
27 Lex Wisigothorum, V, 24, interpretatio: “Vinginti annuorum non requisitam possessionem, si
tamen iustum possidendi initium intercessisse probatur, possessori prodesse certum est”.
28 Codex heodosianus IV, 11, 2: “Impp. Constantius et Constans aa. Argyrio praesidi. Annorum
quadraginta praescriptio, quam vetustatem leges ac iura nuncupare voluerunt, admittenda non
est, cum actio personalis intenditur. Quare in praesenti et in ceteris causis id potissimum serva-
bis atque custodies, nisi iure veteri comprehensum sit actionem, quae movetur, propter vetusta-
tem non debere moveri. Sed quamvis actio pecuniae postulatae exceptione temporis non iniatur,
iudex tamen debet inspicere, quae temporis intervalla nullis iustis causis exsistentibus luxerint,
et instrumenti vetustatem, ut diligentius his consideratis ex oicio iudicantis, quid pronuntiari
super huiusmodi actionibus oporteat, aestimetur. Dat. x kal. iul. Limenio et Catullino conss”.
29 Decretio Childeberti, 3: “Similiter Treiecto conuenit nobis, ut seruo, campo aut qualibet re ad
unum ducem uel iudicem pertinentem per x annos quicumque inconcusso iure possedit, nullum
habeat licentiam intertiandi, nisi tantum causa orfanorum usque xx anno licentiam tribuimus.
Si quis super hoc iudicium presumpserit intertiare, soledos xv soluat et rem intertiatam amittat.
De reliquis uero conditionibus omnes omnino causas tricinaria lex excludit, preter id quod rixa
huncusque detenuit”.
30 Formulae Andecavenses, 10A: “...Ut hoc inter se intenderent, ut dum ipsi illi alius homines de
sua agnacione non redebebat, sic visum fuit ipsius abbati vel quibus meus aderant, ut ipsi homo
aput homines 12, mano sua 13, in basileca domne illius in noctis tantis coniurare deberet, quod de
annus 30 seu amplius servicium ei nonquam redebibet”.
31 Formulae Turonensis, 39: “...Interrogatus ille ante ipsos viros taliter dedit in responsis, quod
ipsam hereditatem, quam ipse contra eum repetebat, genitor suus, vel quilibet parens, ipsam ei
moriens dereliquerat, et de annis 30 inter ipsum et parentes suos, qui ipsam ei dereliquerant,
ipsam tenuissent, et secundum legem ei si debita. Dum sic intenderent, sic ipsi viri memorato
homine decreverunt iudicium, ut in noctes tantas, quod evenit die ille, apud homines tantos, sua
manu tanta, in basilica sancti illius, in loco nuncupante illo, taliter debeat coniurare, quod ipsam
hereditatem, quam ipse homo contra ipsum repetebat, per annos 30 inter ipsum et memoratos
parentes suos, qui ipsam hereditatem morientes ei dereliquerant, semper ipsam tenuissent, et per
ipsos annos 30 secundum legem plus sit ipsa hereditas ei habendi debita quam ipso homini red-
dendi”.

61
A regra da prescrição se afasta de um dos princípios essenciais, consagrados
pelo direito individual e exclusivo à propriedade: o direito de dispor de um
bem, decidir em relação a ele, quer se disponha ou não dele no sentido material.
O imperativo da utilização dos bens neutraliza a ideia de um direito abstrato,
diminuindo o raio de ação do proprietário sobre eles e reduzindo-o, nesse
caso especíico, ao domínio daquilo que é visível a todos, isto é, o contato
direto do sujeito com os bens.
A airmação do usucapio na legislação real da Alta Idade Média consagra
o imperativo da potestas na deinição da propriedade e de seus direitos. Isso
não signiica, como pretendia L. Halphen em um artigo publicado nos anos
1950, que os bárbaros eram incapazes de compreender as abstrações (ele se
referia à res publica). Mesmo porque a airmação do usucapio começa no
Direito romano tardo-antigo. Essa prática realça os atributos de arbitragem
do poder real, cuja propensão é concentrar em seus tribunais as resoluções
das disputas. Mas ela também reforça a igura do possessor dos bens, em
detrimento do seu proprietário.
Note-se que o usucapio impõe o critério da publicidade da reivindicação:
se esta última não for apresentada em público, não possui valor legal. É possível
notar, assim, a importância do espaço público na prática judiciária da Alta
Idade Média. As reivindicações e as contestações à propriedade de um bem –
usucapio –, bem como sua transferência legítima – a doação às igrejas32 ou à
esposa –, mesmo quando acontecem no interior da casa, devem ser executadas
diante de testemunhas, em público. A importância de um ato concluído diante
de um público e em local público aparece claramente, aliás, no caso do duário.
Claramente, há relação com a necessidade de melhor organizar as disputas
sobre os bens tratadas pelos tribunais. No entanto, assiste-se igualmente a
uma extensão do espaço público (inclusive em direção ao interior das casas),
que não se pode dissociar do fortalecimento da própria autoridade pública33.

As leges bárbaras

Entre os textos fundamentais do Direito nos reinos bárbaros, encontram-se


as leges, os resumos e os comentários das leis romanas, os cânones conciliares,

32 As doações às igrejas deviam ser feitas em casa e na presença de testemunhas legítimas. É o


que prevê, por exemplo, o Capitular legibus additum, de 803: “Qui res suas pro anima sua ad
casam Dei tradere voluerit, domi traditionem faciat coram testibus legitimis; et quae actenus in
hoste factae sunt traditiones, de quibus nulla est quesito, stabilis permaneant. Si vero aliquis alii
res suas tradiderit et in hoste profectus fuerit, et ille cui res traditae sunt interim mortuus fuerit,
qui res suas tradidit, cum reversus fuerit, adhibitis testibus coram quibus traditio facta est res suas
recipiat; si autem et ipse mortuus fuerit, heredes eius legitimi res traditas recipiant”.
33 Sobre o tema do espaço público na Alta Idade Média, ver Cândido da Silva, M. O público e o
privado nos textos jurídicos francos, Varia Historia 26, 2010: 29-48.

62
os editos, os preceitos e os formulários. Além disso, alguns textos produzidos
entre o inal do século V e o início do século VI apresentavam resumos e
comentários das leis romanas, especialmente o Codex heodosianus. Tal
é o caso do Breviário de Alarico – também conhecido como Lei Romana
dos Burgúndios – e do Código de Eurico – ambos promulgados pelo rei dos
visigodos Alarico II – e do Edito de Teuderico. Pode-se citar, igualmente, os
editos e os preceitos publicados pelos reis francos e visigodos, reunidos no
Liber Iudicorum. Há também formulários, isto é, modelos para a redação de
atos públicos ou privados, compostos na Espanha e Gália até o século IX.
Finalmente, os cânones conciliares, que ixavam as regras de conduta dos
clérigos e se pronunciavam igualmente sobre as disputas que os opunham
aos laicos, bem como sobre a organização da sociedade – por exemplo, a
obrigatoriedade do repouso aos domingos.
Escritas em latim, as leges bárbaras foram publicadas e, algumas vezes,
reeditadas entre os séculos VI e IX. A mais conhecida das leges, o Pactus legis
Salicae, é também a mais polêmica, tanto do ponto de vista da datação quanto
da autoridade. Os historiadores do século XIX o viam como uma espécie de
“constituição” do Reino dos Francos. Os historiadores de hoje são menos
otimistas, e colocam em questão a eicácia e mesmo a validade desse texto.
Segundo I. Wood e R. Le Jan, é pouco provável que o Pactus contivesse toda
a lei franca; segundo eles, boa parte permanecia oral. O Pactus legis Salicae
não era a “constituição dos francos”, mas apenas uma peça do mosaico do
qual faziam parte os cânones conciliares, os editos e os preceitos reais, bem
como os formulários e os diplomas. Daí o interesse deste trabalho pelo estudo
comparativo do Pactus e dos cânones conciliares.
Na metade do século VII, havia no Reino dos Francos a ideia de que um
povo, soberano ou submetido, tinha sua lex, enquanto a lei de Roma estaria na
Igreja34. Daí a intensa atividade legislativa que se desenvolveu nesse período,
e da qual resultou a publicação, pelos reis francos, de várias leges inspiradas
no Pactus legis Salicae.
A Lex Ribuaria (Lei Ripuária) foi promulgada entre o inal do século
VI e o reinado de Dagoberto I (629-639). Essa promulgação ocorreu em um
momento de intensa atividade legislativa dos reis merovíngios, após o inal das

34 Lex Ribuaria 61, 1: “Hoc etiam iubemus, ut qualiscumque francus Ribuvarius seu tabularius
servum suum pro animae suae remedium seu pro pretium secundum legem Romanam liberare
voluerit, ut eum in ecclesia coram presbyteris et diaconibus su cuncto clero et plebe in manu epis-
copi servo cum tabulas tradat, et episcopus archidiacono iubeat, ut ei tabulas secundum legem
Romanam, quam ecclesia vivit, conscriberet faciat ; et tam ipse quam et omnis procreatio eius
liberi permaneant et sub tuitione ecclesiae consistant vem omnem reditum status eorum eccle-
siae reddant. Et nullus tabularium aut servum tabularii denariare ante regem praesumat. Quod
si fecerit, ducentos solidos culpabilis iudicetur et nihilominus ipse tabularius et procreatio eius
tabularii persistant, et omnis reditus status eorum ad ecclesiam reddant; et non aliubi quam ad
ecclesiam, ubi relaxati sunt, mallum teneant”.

63
guerras civis, o triunfo da realeza cristã e a reuniicação do Reino dos Francos
(613). Dos 89 títulos dessa lex, os 38 primeiros títulos indicam uma nítida
inluência do Pactus legis Salicae, mas apresentam valores ligeiramente mais
elevados para as compensações; os títulos XXXIX-LIV repetem por extenso
o Pactus, e os títulos LV-LXXXIX foram acrescentados no início do período
carolíngio. Mesmo tendo sido composta a partir do modelo da Lei Sálica, a
Lex Ribuaria tem características próprias, como a inluência acentuada da
Lei Romana dos Burgúndios e a recorrência dos temas ligados à Igreja, por
exemplo, as multas pelo assassinato dos bispos. Desta época datam igualmente
o Edito de Paris (614), o Pactus legis Alamanorum.
O antigo Reino dos Burgúndios, anexado ao Reino dos Francos em 534,
era o território de duas leis, a Lei Romana dos Burgúndios e a Lei dos Burgúndios
(ou Liber Constitutionum). A primeira tratava, sobretudo, de delitos, doações,
direito das pessoas e direito da família. A segunda era um código territorial
que colocava em igualdade os burgúndios e os galos-romanos. Publicada
sob o reinado de Gondobaldo († 516) e redigida, como o Pactus legis Salicae,
por jurisconsultos romanos ou pelo menos por personagens conheciam o
Direito romano, o Liber constitutionum foi revisado e ampliado pelos últimos
reis burgúndios. Após a integração da Burgúndia no Reino dos Francos, o
Liber continuou a ser utilizado, pelo menos até o século IX. A Lei Romana
dos Burgúndios, ou Breviário de Alarico, também exerceu inluência sobre a
legislação franca, sobretudo no que se refere ao Preceito Clotariano, examinado
anteriormente.
O Liber Constitutionum, ou Lex Gundobada, foi transmitido através
de treze manuscritos, nove dos quais anteriores ao século IX. Cinco desses
manuscritos têm um texto de 105 títulos, os restantes, 88 títulos ou adições
em números variáveis. Essa lex não foi composta de uma só vez: evidências
internas ao texto mostram que os 88 primeiros títulos constituem a versão
mais antiga da lei. Os títulos restantes, até o 105, bem como as Constitutiones
Extravagantes, são adições posteriores, que os especialistas creem terem sido
feitas sem uma aprovação oicial do monarca. Embora sua datação ainda
seja motivo de debate, não parece provável que a lex tenha sido publicada
antes do início do reinado de Gondobaldo, em 474. Dada a inluência da Lex
Visigothorum na Lex Gundobada, e o fato de que a primeira foi compilada
em sua forma primitiva em 483, durante o reinado de Eurico, é provável que
a redação da segunda tenha ocorrido após essa data. Assim, acredita-se que
os títulos II-XLI tenham sido compilados entre 483 e 501; a segunda parte, os
títulos XLII-LXXXVIII, entre 501 e 507; e a última parte, os títulos LXXXIX-
CV e as Constitutiones Extravagantes, durante o reinado de Clodomar (524-
532) ou após a anexação do Reino dos Burgúndios ao Reino dos Francos35.

35 Fischer-Drew, K. Introduction. In: he Burgundian Code. Book of Constitutions or Law of


Gundobad. Additional Enactements, Filadélia, 1972 (1.ed., 1949): 6-7.

64
Outras leges, inspiradas do Pactus legis Salicae, foram estabelecidas pelos
reis francos nos territórios conquistados na Germânia: tanto a Lei dos Alamanos
quanto a Lei dos Bávaros foram publicadas em duas versões, uma primeira do
início do século VII e uma segunda que datava da primeira metade do século
VIII. Embora o Ducado dos Alamanos tenha sido incorporado ao Regnum
Francorum somente em 730, desde o inal do século V, após a batalha de
Tolbiac, a história dos alamanos esteve integrada à história franca. No início do
século VII, a primeira redação das leis alamanas, o Pactus legis Alamanorum,
foi promulgada durante o reinado de Clotário II, muito provavelmente após
a uniicação do Reino dos Francos em 613. Uma segunda redação, chamada
de Lex Alamanorum, foi realizada entre 717 e 719, sob o reinado de Clotário
IV. Dessa redação deriva a tradição manuscrita chamada Lex Alamanorum
Hlotarii. Há também a Lex Alamanorum Lantfridana (do duque alamano
Lantfrid, que dirigiu a redação dessas leis antes da anexação do Ducado dos
Alamanos) e a Lex Alamanorum Karolina (que corresponde à revisão feita
por Carlos Magno em cerca de 788). Os 22 primeiros tratam de assuntos
eclesiásticos, os títulos XXIII-XLIII dizem respeito à justiça ducal, e os títulos
XLIV-LXXXXVIII, tratam “das disputas que ocorrem comumente entre o
povo” (“De causis, qui saepe solent contingre in populo”).
Da mesma forma que a Alamânia, a Bavária foi integrada ao Regnum
Francorum na metade do século VIII. Data desta época a promulgação da Lex
Baiuvariorum, mais precisamente entre 744 e 748. O mais antigo manuscrito
dessa lei, conhecido como manuscrito de Ingolstadt, do início do século IX,
possui 23 títulos (outros manuscritos apresentam um número maior ou menor
de títulos). Cada um desses títulos é dividido em vários capítulos, que somam
no total, no manuscrito de Ingolsdat, 273: o título I trata da propriedade
eclesiástica, os títulos II e III tratam da justiça ducal, e os títulos IV-XXIII
contêm, sobretudo, disposições criminais e familiares. A divisão dos temas é
muito semelhante à adotada pelas leis alamanas. Além disso, dos 273 capítulos
da Lex Baiuvariorum, 100 possuem uma grande similaridade com a Lex
alamanorum. No início do século IX, Carlos Magno promoveu uma revisão
da Lei Sálica e a publicação da Lei dos Frisões, da Lei dos Turíngios e da Lei
dos Saxões36. Nesse período, se encerra a história das leges bárbaras.
A edição dessas leis foi principalmente obra dos Monumenta Germaniae
Historica. As numerosas fórmulas jurídicas escritas em língua germânica
(e que remetem às “Glosas Malbérgicas”, sem que se saiba ao certo o que
elas signiicam) e o princípio da reparação pecuniária paga à vítima ou à
sua família levaram seus redatores a verem as leges como expressão escrita
de um “Direito germânico”. A ideia de um “Direito germânico”, e mesmo a
utilização do termo germânico para qualiicar essas leges e os povos que lhe

36 F.-L. Ganshof considera que as capitulares são mais importantes na obra legislativa de Carlos
Magno do que a redação e a revisão das leges, Recherches sur les capitulaires, Paris, 1958: 2, n.2.

65
são associados (francos, visigodos, burgúndios, alamanos, bávaros e frisões),
trazem inúmeros problemas. Os trabalhos sobre a etnogênese mostraram que a
ideia de uma “Germânia unida”, cujos costumes e instituições teriam presidido
a formação dos reinos bárbaros, é um mito historiográico engendrado no
século XIX. A inluência romana sobre as leges é indiscutível: foram redigidas
em latim, por jurisconsultos, ou especialistas do Direito romano, sob a forma de
codiicações inspiradas do Direito romano tardio. Segundo W. Pöhl, os nomes
de pessoas, as narrativas, os mitos de origem e as leges da Alta Idade Média
eram componentes de uma estratégia de distinção, cujo objetivo era justiicar
a existência de um grupo étnico (a gens) com uma reivindicação exclusiva
de poder sobre parcelas do Império Romano. Assim, as bases “multiétnicas”
dos reinos bárbaros teriam sido transformadas em uma identidade singular,
expressa pelo nome do reino e pela ação das leis bárbaras. As distinções
iniciais entre os povos, menos fortes do que geralmente se supõe, teriam sido
cristalizadas, em razão de uma aculturação recíproca. Nesses reinos, onde
cada povo deveria, teoricamente, preservar sua lei, as leges não se aplicavam
apenas aos bárbaros, mas a todos os habitantes, segundo critérios territoriais.
Dos 88 primeiros títulos do Liber Constitutionum, apenas 4 tratam
diretamente do roubo; nas continuações, do título LXXXIX ao CV, 8 outros
abordam o assunto. Na Lex Alamanorum, 21 títulos tratam do roubo de bens
da Igreja e outros que não são da Igreja, num total de 105 títulos. Dos 273
capítulos da Lex Baiuvariorum, 29 dizem respeito diretamente ao roubo, 3
dos quais abordam os bens eclesiásticos. A Lex Ribuaria dedica 11 de seus 89
títulos ao roubo, ao passo que a Lex Visigothorum, de um total de 10 livros,
dedica um, o livro VII, ao roubo e às fraudes. O Pactus legis Salicae é, de todas
as leges, aquela que mais trata do combate ao roubo, objeto de cerca de 1/3 de
seus títulos (II, III, IV, V, VI, VII, VIII, X, XI, XII, XXI, XXII, XXVII, XXIII,
XXXIV, XXXV, XXXVIII et XL): os sete primeiros dizem respeito ao roubo
de animais (porcos, gado, carneiros, cabras, cachorros, aves e abelhas); o
título X trata do roubo de escravos e outros animais; o XI, de roubo e invasão
de casas por escravos; XII, roubo e invasão de casas por homens livres; XXI,
roubo de barcos; o título XXXIV, roubo de cercas; XXXV, assassinato e roubo
de escravos; XXXVIII, roubo de cavalos e jumentos; e, inalmente, o título
XL, trata da acusação de roubo contra escravos. Os editos e preceitos reais
merovíngios também tratam de roubo, especialmente o Pactus pro Tenore
Pacis (títulos I, II, III, IV, V, IX, X, XVI e XVII), o Edictum Chilperici (título
VIII) e o Decretio Childeberti (títulos III, VII, XI, XII e XIII). O roubo dos bens
eclesiásticos não é tratado pelo Pactus, mas aparece como tema recorrente
nos cânones conciliares dos séculos VI e VII, bem como em outras leges
(na Lex Alamanorum, o roubo de bens da Igreja é objeto de 5 títulos, na Lex
Baiuvariorum, 3 títulos). O Pactus legis Salicae será a principal lex abordada
neste estudo, por seu papel central na organização jurídica do mundo franco,

66
por ter servido como modelo para as outras leges publicadas entre os séculos
VII e VIII, e pela importância que nela se dá ao roubo.
A análise do Pactus, no entanto, traz vários problemas aos historiadores:
além das polêmicas sobre datação e autoridade, há lacunas, imprecisões e,
sobretudo, dúvidas sobre a utilização efetiva desse texto na prática jurídica
franca. Os estudos sobre a etnogênese mostraram que a lei serve, também, para
a identidade de uma comunidade, e, se for levado em conta o que airmam
alguns especialistas do tema, foi esse o caso da Lei Sálica37. P. Wormald estima
que, se o Pactus legis Salicae permaneceu inalterado ao longo do período
franco, é porque era veículo de tradição, e seu objetivo não era de se adaptar
às transformações da sociedade38. Texto normativo e literário conservado pelos
meios eclesiásticos39, “documento de antiquário” que simbolizava a antiguidade
e a legitimidade do Império franco40, lei escrita que servia para clariicar e
completar a lei oral41, a Lex Salica também aparece em vários trabalhos como
uma construção ideológica do período carolíngio.
Todavia, há alguns indícios de uma relação estreita entre a Lei Sálica
e a prática jurídica dos reinos bárbaros: primeiramente, o grande número
de adições e cortes presentes nas diversas tradições manuscritas, que fazem
pensar em sinais da utilização desses textos; em segundo lugar, as crônicas
e as histórias fazem referência às leges: por volta de 575, Gregório de Tours
arbitrou conlitos em sua cidade, tendo como referência de sua ação a lex.
Segundo ele, foi decidido que o culpado deveria pagar metade da composição,
contrariamente ao que estabelecia a lei - “et hoc contra legis actum” – para que
a paz fosse restabelecida42. Além disso, um juiz, Evrard de Frioul, possuía em

37 Uma das melhores introduções à questão da etnogênese é o artigo de W. Pöhl: “Aux origi-
nes d’une Europe ethnique. Transformations d’identité entre Antiquité et Moyen Age”, Annales
H.S.S., 60/1 (2005): 183-20. Um bom exemplo de postura crítica em relação à etnogênese é o
livro de M. Coumert, Origines des peuples. Les récits du Haut Moyen Âge (550-850), Paris, 2007.
Concentrando seu estudo nos diversos relatos de historiadores bárbaros, a autora airma que não
havia um consenso entre os diversos grupos étnicos acerca de uma origem ou de uma tradição
comuns: “Le passé s’avère au contraire l’objet de la cristallisation des oppositions contemporai-
nes, chaque récit se faisant l’écho des prétentions d’un clan au pouvoir en les projetant dans le
passé. Aucune norme de vie, aucun culte commun ni aucune législation n’étaient directement
rattachées aux récits d’origine” (: 535).
38 Wormald, P. he leges barbarorum: Law and Ethnicity in the Post-roman West. In: Goetz,
H-W., Jarnut, J., Pöhl, W. Regna and Gentes. he Relationship between Late Antique and Early
Medieval Peoples and Kingdoms in the Transformation of the Roman World, Leiden/Boston,
2003: 21 e 33.
39 Wallace-Hadrill, J-M. Archbishop Hincmar and the Authorship of Lex Salica. he Legal
History Review, 21/, 1940:1-29.
40 Murray, A.C. Kinship and Lex Salica. In: Germanic Kinship Structure. Studies in Law and
Society in Antiquity and the Early Middle Ages, Toronto, 1983:115-134.
41 Anderson Jr. T. Roman military colonies in Gaul, Salien Ethnogenesis and the forgotten mea-
ning of Pactus legis Salicae 59.5., Early Medieval Europe, 1995 (4/2): 129-144.
42 Gregório de Tours, Histórias VII, 47: “Tunc partes a iudice ad civitatem deductae, causas
proprias prolocuntur; inventumque est a iudicibus, ut, qui nollens accepere prius conpositionem

67
sua biblioteca, vários exemplares das leges, cuja lista está em seu testamento,
redigido por volta de 865: a Lei Sálica, a Lei Ribuária, a Lei dos Alamanos, a
Lei dos Lombardos e a Lei dos Bávaros.
Apesar das diferentes respostas dadas pela historiograia à questão da
aplicação ou não do Pactus legis Salicae, os historiadores estão de acordo
para reconhecer que o poder real está na origem da edição do texto, no início
do século VI43. As medidas previstas pelo Pactus, qualquer que tenha sido a
extensão de sua aplicação ou mesmo sua eicácia, reletiam em ampla medida
o ponto de vista da autoridade real franca. As nuanças entre as diferentes
tradições manuscritas – especialmente entre a tradição “A” e a tradição “C”
– ainda são objeto de polêmicas, e não podem ser apresentadas como prova
da utilização do Pactus no Reino dos Francos no século VI44. Por outro lado,
há referências explícitas à Lex Salica nos textos reais do século VI: o Edito de
Chilperico e o Pactus pro Tenore Pacis, ambos, textos que reservam um lugar
importante ao roubo45.
A questão fundamental neste trabalho não é saber se o Pactus tinha ou
não relação com as práticas sociais do mundo franco, mas em que medida a
qualiicação jurídica do roubo nele estabelecida está presente em textos de outra
natureza (cânones conciliares, hagiograias, histórias), através dos esquemas
de qualiicação jurídica, independentemente da imposição de normas sob a
forma da coerção.

domus incendiis tradedit, medietatem praetii, quod ei fuerat iudicatum, amitteret - et hoc contra
legis actum, ut tantum paciici redderentur - aliam vero medietatem conpositionis Sicharius red-
deret. Tunc datum ab aeclesia argentum, quae iudicaverant, accepta securitate, conposuit, datis
sibi partes invicem sacramentis, ut nullo umquam tempore contra alterum pars alia musitaret. Et
sic altercatio terminum fecit”.
43 Fischer-Drew, K. he law of salian franks: 29; Guillot, O. Observations sur la souverainité du
roi mérovingien en matière de justice”: 275; Wormald, P. Lex Scripta and Verbum Regis. :108;
Wood, I. Disputes in late ith- and sixth- century Gaul: some problems: 10; McKitterick, R.
The Carolingians and the written word: 40; Geary, P. Naissance de la France: Le monde méro-
vingien:112-114.
44 Em sua edição de 1962, K.-A. Eckhardt atribue a tradição “A” ao reinado de Clóvis, enquanto
que a tradição “C” seria datada, segundo ele, do reinado de Gontrão, em um período anterior
à publicação do Decreto de Childeberti II, em 596. A datação da tradição “C” resulta das seme-
lhanças ressaltadas por Eckhardt entre o título XIII:1 do Pactus com o cânone 20 do II Concílio
de Tours (567) - que legislava sobre o casamento entre os membros de uma mesma família - e
das semelhanças formais entre o Prólogo curto do Pactus e o Pacto de Andelot, de 587. Essa
opinião foi duramente criticada por A.C. Murray, em seu artigo Kinship and Lex Salica: 115-134,
especialmente: 126-127.
45 A.C. Murray crê que o Pactus legis Salicae, em sua primeira redação, era o relexo da lei no iní-
cio do século VI (Kinship and Lex Salica: 133): “he text may have sufered severely in the course
of transmission: it may have been subject for a long time to all kinds of revisions, emendations and
additions, some of considerable merit, others of none. Yet there can be no doubt that in the earliest
redaction, whatever he circumstances and purpose of its compilation, one can still ind a relection
of the living law of the early sixth century”. Mas o autor não nos dá nenhuma pista de como ele
conseguiu estabelecer essa relação.

68
O que signiica a lista de roubo de animais e terras que aparece nos
primeiros títulos do Pactus? Poderia indicar a importância central da criação
de animais, em relação à agricultura na sociedade franca, mas é preciso ser
prudente, pois não se está diante de uma descrição exaustiva dessa sociedade.
A ausência de menções à nobreza franca, à Igreja, às cidades, ou ao mar,
mostra, inclusive, que a Lei Sálica não é um espelho da situação na Gália,
em sua totalidade e complexidade46. P. Wormald tem razão, nesse sentido,
ao destacar o papel ideológico desse texto. No entanto, o Pactus não era
apenas um veículo de transmissão de uma visão ideal da sociedade franca.
Seria um erro subestimar sua pretensão de ser instrumento de construção
da sociedade. Não há correlação estreita entre o universo das práticas sociais
e os elementos descritos no texto, na medida em que esses elementos eram
mecanismos de intervenção e transformação dessas práticas. Assim, se nos
primeiros títulos do Pactus, o roubo de animais precede o roubo ou a invasão
de terras, não é necessariamente porque os animais possuem valor mais alto
do que as terras: como será estudado mais adiante, o valor dos bens roubados
não é levado em conta na punição do ladrão. O maior número de títulos
consagrados ao roubo de animais poderia signiicar, talvez, que, mesmo que
esses últimos ocupassem um lugar menos importante do que as terras na
escala de valores comerciais, o roubo de animais causava maior número de
disputas, constituindo, portanto, uma prática que merecia regulamentação
mais detalhada do que o roubo de terras. No entanto, esse tipo de roubo
ocupa lugar de destaque nos testamentos e cânones conciliares. A precedência
do roubo de animais pode signiicar, inclusive, que o legislador escolheu,
nesse texto em particular, legislar prioritariamente sobre essa modalidade
de ataques aos bens.
O texto do Pactus legis Salicae indica a importância da paciicação no
tratamento da ação criminal (actio criminalis)47. É o que pode ser constatado
no “Prólogo curto”, redigido entre o im do século VII e o início do século VIII:

[...] Foi decidido e acordado, com o auxílio de Deus, entre os francos e seus grandes,
como se deveria zelar pela observância da paz entre todos para suprimir o crescimento
das disputas, e por se destacarem dos povos vizinhos por seu braço forte, [os francos]
também devem se destacar por suas leis, e dessa maneira eles conduzirão as ações
criminais a um im de acordo com a natureza das disputas48.

46 É o que mostrou Siems, H. La vie économique des Francs d’après la Lex Salica. : 612.
47 Cândido da Silva, M. Paz e violência no Pactus legis Salicae, In: Oliveira, J.C.M., Selvatici, M.
Textos e representações da Antiguidade: Transmissões e Interpretações, Maringá, 2012: 91-113.
48 “Placuit auxiliante Domino atque conuenit inter Francos atque eorum proceribus, ut pro
seruandum inter se pacis studium omnia incrementa <uirtutum> rixarum resecare deberent, et
quia ceteris gentibus iuxta se positis fortitudinis brachio prominebant, ita etiam eos legali aucto-
ritate praecellerent, ut iuxta qualitate causarum sumerent criminalis actio terminum”.

69
Essa ênfase na paciicação é a mesma encontrada nas hagiograias
examinadas no capítulo anterior. Tanto as vitae francas, quanto o Pactus
legis Salicae, e as outras leges bárbaras pertencem a um ambiente jurídico
preocupado com a solução de controvérsias a partir do acordo entre as partes
em litígio. Isso não inviabiliza a punição, tampouco a vitória de uma parte
sobre a outra, ainal, os santos sempre triunfam sobre os ladrões: a paciicação
nas hagiograias equivale à devolução dos bens roubados e ao arrependimento
daqueles que praticaram o ato. A devolução dos bens também é o objetivo
perseguido pelos títulos do Pactus que tratam do roubo.
Há outro ponto em comum entre o Pactus e os textos hagiográicos: os
bens roubados não são importantes na qualiicação e no tratamento das ações
criminais. Colocando-se em paralelo o Prólogo curto e os títulos seguintes,
será possível constatar que as ações criminais são levadas a termo em função
da natureza das disputas que delas resultam. Isso não signiica que o valor dos
animais fosse completamente desprezado: aquele que rouba três cabras ou mais
deve pagar uma multa inferior49 à multa paga por aquele que rouba mais do
que trinta cabras50; ou ainda, aquele que rouba uma leitoa com seus ilhotes51
deve pagar uma multa maior do que aquele que rouba somente os ilhotes52.
Todavia, e de modo geral, o valor dos bens não é o eixo em torno do qual
os diversos títulos sobre o roubo são ordenados e materialmente hierarquizados,
mesmo porque o roubo de diferentes tipos de animais é punido com multa de
valor semelhante. Admitir que os valores das multas correspondiam aos valores
reais dos bens roubados signiicaria que um porco e um bezerro possuíam
o mesmo valor, o que não era o caso53. Essa identidade de valores signiica
somente que o legislador considera que o valor da multa pelo roubo de um
porco deve ser o mesmo que para o roubo de um bezerro, nada mais. As normas
previstas nesse texto não se aplicam diretamente aos vários casos de roubo de
animais, ininitamente diversos e polimorfos; e também não se endereçam

49 Pactus legis Salicae IV, 3: “Certe si tres (aut amplius) furauerit <cui fuerit adprobatum), mallo-
bergo lamp sunt, MCCCC denarios qui faciunt solidos xxxv culpabilis iudicetur excepto capitale
et dilatura”.
50 Pactus legis Salicae IV, 5: “Si <quis) uero <XL) ueruices aut L (sine LX) aut amplius furauerit
<et ei fuerit adprobatum), mallobergo sonista hoc est, MMD denarios qui faciunt solidos Lxn
semis culpabilis iudicetur excepto capitale et dilatura”.
51 Pactus legis Salicae II, 7: “Si quis porcum anniculum furauerit et ei fuerit adprobatum, mallo-
bergo ingimus hataria hoc est, cxx denarios qui faciunt solidos in culpabilis iudicetur excepto
capitale et dilatura”.
52 Pactus legis Salicae II, 6: “Si quis scrouam cum ‘porcellis furauerit, malhbergo focichalte,
DCC denarios qui faciunt solidos XVII semis culpabilis iudicetur”.
53 Pactus legis Salicae II, 1: “Si quis porcellum lactantem furauerit de chranne prima aut de
mediana et ei fuerit adprobatum, maliobergo chrannechaltio leschalti hoc est, unum tualepti sunt
cxx denarios qui faciunt solidos m ciüpabilis iudicetur”; Pactus legis Salicae III, 1: “Si quis uitulum
lactantem furauerit et ei fuerit adprobatum, mallobergo podero [aut freodo] hoc est, cxx denarios
qui faciunt solidos m culpabilis iudicetur excepto capitale et dilatura”. Ver Siems, H. La vie écono-
mique des Francs d’après la Lex Salica: 607-630.

70
diretamente a sujeitos singulares, quer sejam ladrões ou proprietários. Elas
se aplicam a situações típicas, às diversas modalidades de ataque à relação
entre proprietários e seus bens, a partir das quais o legislador começa por
reduzir os casos de roubo e impor a eles uma forma conveniente à aplicação
da regra, bem como projetar sobre eles os contornos dela. Da mesma forma,
se dirigem a sujeitos tão abstratos em relação aos próprios indivíduos quanto
o sujeito gramatical o é em relação à singularidade de cada um. A operação
jurídica, tal como aparece no Pactus e nas leges bárbaras, não se encontra na
impensável e impossível relação da lei aos fatos, mas na remodelação que os
qualiica para o julgamento prático do valor que a lei ordena.
Por não se prestar suiciente atenção às formas dos textos –procedimentos,
esquemas de qualiicação – que veiculam e iltram dados para as necessidades
da aplicação prática da decisão jurídica, geralmente tem-se diiculdade em
perceber o alcance de uma organização formal que serve para produzir o
mundo muito mais do que para descrevê-lo54. É por isso que, ainda que o
Pactus seja mais do que uma “lei memorial”, nosso objeto não são as relações
entre esse texto e as práticas sociais, e sim sua capacidade de agir sobre elas,
interpretando-as e formatando-as segundo os imperativos de defesa dos bens e
de seus proprietários. A hipótese sustentada aqui é que, apesar das discussões
acerca de sua transmissão e de suas revisões, ou ainda das dúvidas, aliás,
muito bem fundadas sobre sua eicácia coercitiva, os 65 primeiros títulos da
Lei Sálica produziram alguns esquemas de qualiicação jurídica do roubo,
presentes nos textos conciliares, nas hagiograias e mesmo nos testamentos.
O que deine o valor da multa prevista para cada actio criminalis descrita
no Pactus legis Salicae é o estatuto social do proprietário. Mas, como falar
de estatuto social em um texto que não trata da aristocracia ou da nobreza?
Primeiramente, a recusa em se utilizar certos conceitos com o pretexto de que
não são encontrados nos textos do período estudado, signiica esquecer que as
próprias questões colocadas a tais textos não faziam parte do universo de seus
autores 55. Não se pode aceitar ou recusar a utilização de um conceito sobre
uma base puramente linguística (presença ou ausência da palavra nos textos
do período), ou mesmo semântica (sua elaboração teórica), pois corre-se o
risco de, a qualquer momento, cair no anacronismo, ou mesmo na confusão

54 homas, Y. Présentations. Annales HSS, novembro-dezembro 2002, 6: 1426.


55 É importante lembrar que a História não é sinônimo de passado, mas constitui um estudo
contemporâneo sobre esse último. É inevitável que o historiador coloque aos textos questões ne-
cessariamente contemporâneas. Tomemos um exemplo: a história da violência na Idade Média
tornou-se, na Europa do pós-Segunda Guerra, uma história da resolução de conlitos, uma his-
tória da “fabricação” da paz nas obras de historiadores que viviam em sociedades que busca-
vam por vários meios manter uma paz frágil. Para um desses historiadores que viveu o conlito
mundial, “he Marvel of Early Medieval society is not war, but peace” (Wallace-Hadrill, J-M.
he Bloodfeud of the Franks. In: he Long-Haired Kings and Other Studies in Frankish History,
Londres, 1962: 147). Esse interesse contemporâneo pelo tema da paz na Idade Média não produ-
ziu uma História mais anacrônica do que aquela fundada na negação desse mesmo interesse.

71
entre instrumentos de análise e objetos observados56. Os excessos do ixismo
das interpretações “hiper-romanistas” mostraram o perigo que se corre quando
estudiosos se iam unicamente nas palavras, sem levar em consideração as
mudanças produzidas em seus sentidos ao longo do tempo. A constatação desses
excessos tem certa inluência no fortalecimento de novas perspectivas, que
utilizam noções exógenas para o estudo das sociedades da Alta Idade Média.
Pode-se, certamente, utilizar os instrumentos conceituais contemporâneos para
tentar compreender as sociedades desse período. Entretanto, deve-se evitar a
tentação de acreditar: 1) que todos os conceitos se prestam a essa utilização,
e 2) que sua utilização desobriga da necessidade de se buscar o sentido (ou
os sentidos) que melhor se adaptam aos textos analisados.
Em segundo lugar, mesmo que a aristocracia esteja ausente do Pactus
legis Salicae, é possível notar, em todo o texto, uma concepção hierárquica
da sociedade. É o caso, por exemplo, de um dos títulos mais polêmicos do
Pactus, o II: a multa pelo roubo de um porco “consagrado” é de 700 denários,
superior, portanto, à multa pelo roubo de um porco “não consagrado”, de
600 denários. B. Dumézil interpreta essa diferença no valor como o indício
da presença, ainda no século VI, de um regime de proteção ao culto pagão,
conforme trecho a seguir57:

[...] II:16. Aquele que rouba um porco consagrado e que for provado, com testemunhas,
que ele era consagrado (o que nas Glosas Malbérgicas é chamado de “barcho anomeo
chamitheotho”), deverá pagar 700 denários, isto é, 17 sólidos e meio, mais o retorno
do animal (ou seu valor), mais o pagamento pelo tempo durante o qual o seu uso
foi perdido58.

O valor mais elevado atribuído ao roubo do porco sacrium nada tem a


ver com a sobrevivência de um culto pagão, mas com o estatuto daquele a
quem o porco é destinado. Três famílias de manuscritos do Pactus, A1, A4 e
K, salientam, aliás, que o porco sacrium é uotiuo, isto é, consagrado a Deus59.

56 Devroey, J-P. Puissants et misérables: 28.


57 Dumézil, B. Les racines chrétiennes de l’Europe. Conversion et liberté dans les royaumes barba-
res, Ve-VIIIe siècle, Paris, 2005: 220-221.
58 Pactus legis Salicae II:16: “Si quis maialem sacriuum furauerit et hoc [cum testibus], quod sa-
criuus fuit, potuerit adprobare, mallobergo barcho anomeo chamitheotho hoc est, DCC denarios
qui faciunt solidos XVII semis culpabilis iudicetur excepto capitale et dilatura” (Grifo nosso).
59 A1: “II :16. Si quia maialem uotiuo furauerit et hoc testibus quod uotius fuit potuerit adproba-
re...”; A4: “II :11. Se quis maiale uodiuo furauerit et hoc cum testibus quod uotiuus fuisset adproba-
tum...”; a família K é ainda mais incisiva, e não deixa dúvidas quanto à identidade do proprietá-
rio do porco: “II :14. Si quis maialem sacriuum, qui dicitur uotium...” (grifos nossos). Além disso,
no Preceito atribuído a Clotário II, há referências a isenções sobre as terras da Igreja destinadas
à pastagem de porcos, o que pode signiicar que o número de porcos “consagrados” à Igreja
fosse realmente importante. Preceito Clotariano (Man. latino 10753, fol. 87, antigo suplemento

72
A preeminência do estatuto social do proprietário é mais claramente
observável na descrição do roubo cometido por um escravo ou por um homem
livre, no título XI. Um homem livre que tem comprovado o roubo de um bem
no valor de 2 denários no exterior de uma casa, deve pagar 600 denários,
além da restituição do objeto roubado, ou de seu valor correspondente, e do
pagamento do tempo pelo qual seu uso foi perdido pelo proprietário60; já
se um escravo roubar um objeto do mesmo valor e nas mesmas condições
discriminadas no título anterior, deve devolver o objeto roubado, ou seu
valor do mesmo, receber 120 chicotadas, ou pagar 120 denários para reparar
o seu erro61. Nesse caso, o atentado à relação entre proprietário e seus bens
não é quantiicável a partir de um suposto valor “de mercado” desses bens; as
multas pecuniárias e as punições degradantes dependem do estatuto social
do proprietário, como se pode observar no título II. Nos títulos XI e XII, as
penalidades dependem do estatuto daquele que pratica o crime.
Tomando-se outro exemplo na punição prevista pelo título LI no caso
do graio (conde), que toma injustamente os bens de alguém, em nome de um
terceiro. Contrariamente à pessoa em nome da qual a injustiça é cometida, e
que é obrigada a pagar uma multa de 8000 denários, o graio é condenado à
morte, como se lê no trecho:

[...] Se alguém pede que um graio se aproprie da propriedade de outrem, e que ele [o
graio] não chamou de maneira legítima o homem ao tribunal, aquele que pediu ao
graio para tomar injustamente antes que ele chamasse legalmente [seu adversário]
ao tribunal ou antes que uma promessa de pagamento tenha sido feita a ele [chamada
‘anthomit’ nas Glosas Malbérgicas], deve pagar 8000 denários, isto é, 200 sólidos62.

latino 215), c. 11: “Nós concedemos às igrejas, pela fé de nossa devoção, os dízimos agrícolas bem
como os de pastagens dos porcos, de maneira que os agentes do isco não poderão se aproximar
dos bens das igrejas. Os agentes não poderão requerer as igrejas, ou mais precisamente os clé-
rigos, para as funções públicas, os quais obtiveram as imunidades de nossos avós e pais” (grifo
nosso). O outro manuscrito menciona a expressão “...qui avi vel genetoris aut germani nostri
immunitatem meruerunt” (grifo nosso), que podemos traduzir por: “...os quais obtiveram as
imunidades de nossos pais ou nossos irmãos (man. latino S.-Germain, 936, 12097 – manuscrito
de Corbie).
60 Pactus legis Salicae XI, 1: “Si quis (uero) ingenuus deforis casa, quod ualet duo denarii, fu-
rauerit (cui fuerit adprobatum), mallobergo leodardi sunt, DC denarios qui faciunt solidos xv
culpabilis iudicetur excepto capitale et dilatura”.
61 Pactus legis Salicae XII, 1: “Si quis seruus <de foris casa, quod ualet duo denarii, furauerit et
ei fuerit adprobatum, mallobergo falcono sunt, excepto capitale et dilatura <aut> cxx lagellus
<extentus> accipiat aut cxx denarios qui faciunt solidos m (pro dorsum suum) reddat”.
62 Pactus legis Salicae LI, 1: “Si quis graionem ad res alienas tollendas inuitauerit [et rogauerit
ambulare] et legitime eum iactiuum aut admallatum non habuerit, ille, qui eum rogat, ut iniuste
aliquid tollat, antequam legitime admallatus fuerit aut ides ei facta fuerit, mallobergo antho-
mito sunt, VIIIM denarios qui faciunt solidos CC culpabilis iudicetur”; Pactus legis Salicae LI, 2:
“Ille uero, qui graionem rogat iniuste aliquid coniscare, VIIIM denarios qui faciunt solidos CC

73
Esse maior rigor na punição do grafio se deve à sua condição de
representante da autoridade real. Se há uma correlação entre o texto hagiográico
e a prática jurídica, essa correlação não concerne uma punição mais leve
para os potentes. O que se airma no título LI, da mesma forma que na Vita
Filiberti, é a importância relativa dos bens face ao estatuto dos sujeitos. O
Pactus hierarquiza o atentado à propriedade a partir do estatuto social dos
proprietários, daqueles que cometem o atentado, e também em função da
recorrência dos atos, mas nunca a partir do valor intrínseco desses bens.
O caso do roubo de escravos parece ser o único no qual o valor intrínseco
do bem é levado em consideração, conforme se lê neste trecho:

[...] Aquele que rouba ou mata, vende ou expõe gratuitamente o escravo de outro
homem, e que isso for provado contra ele [chamado ‘meotheo’ nas Glosas Malbérgicas],
deverá pagar 1400 denários, isto é, 35 sólidos [pela propriedade], além de 35 sólidos
pelo escravo mais um pagamento pelo tempo em que o seu uso foi perdido63.

Tratando-se de um escravo especializado, a multa é de 2880 denários64,


mais do que o dobro da multa para o roubo de um escravo não especializado.
No título XII, o roubo cometido por escravos recebe uma punição degradante,
ao passo que se cometido por homens livres, a punição é de uma multa maior,
mas não acompanhada de nenhuma pena física. Nesse caso, os escravos se
situam na base de uma pirâmide hierárquica construída pelo Pactus, que
divide a sociedade franca em escravos, homens livres e representantes do
rei. O título X (De seruis uel mancipiis furatis) coloca os escravos no mesmo
plano dos bens móveis, mas o tratamento do roubo nas diversas categorias de
escravos não é o mesmo utilizado nos casos do roubo de bens. A qualiicação
jurídica do escravo na legislação real franca o situa na fronteira entre sujeitos
e bens: se essa qualiicação faz do escravo um sujeito, mais precisamente um
sujeito não proprietário, que pode praticar o roubo, e que é punido de forma
mais severa que os homens livres, também prevê o roubo (furto) desse escravo
e uma punição a esse ato, deinida a partir do grau de especialização e dos
benefícios que o escravo outorga ao seu senhor. Quando se trata de homens

culpabilis iudicetur”; Pactus legis Salicae LI, 3: “Si uero graius inuitatus [ad alterius caussam]
supra legem aut debitum [iustum] aliquid amplius tollere praesumpserit, aut se redemat aut de
uita conponat”.
63 Pactus legis Salicae X, 3: “Si quis seruum alienum [furauerit aut] occiderit aut uendiderit aut
ingenuum dimiserit [et ei fuerit adprobatum], mallobergo meotheo, sunt denarii MCCCC qui fa-
ciunt solidos XXXV culpabilis iudicetur”.
64 Pactus legis Salicae X, 6: “Si quis ancillam perdiderit ualentem solidos XV aut xxv, si porcario,
uinitore’, si fabrum, molinario, si carpentario, si stratore uel quemcumque artiicem ualente soli-
dos xxv, mallobergo t(h)eod(u)ccos sunt, denarios MMDCCCLXXX qui faciunt solidos Lxx(n) (cui
fuerit adprobatum) culpabilis iudicetur (excepto capitale)”.

74
ou mulheres livres, o Pactus legis Salicae não só menciona o termo rapto (De
rapto ingenuorum uel mulierum), mas também trata o delito em função do
local onde a vítima foi raptada, de sua condição social e relação com aquele
que pratica o rapto65. O qualiicativo jurídico do escravo faz dele, ao mesmo
tempo, sujeito e objeto do roubo.
Esses deslocamentos das fronteiras entre sujeitos e bens revelam,
paradoxalmente, o potencial criativo da norma em um ambiente cristológico
marcado pela ideia de que a natureza é desejada e criada unicamente por Deus.
A partir do procedimento de assimilação entre sujeitos, sujeitos e coisas, e de
sua qualiicação, as normas no mundo franco conciliam seu potencial técnico
em modiicar a vida social com uma natureza, na qual todos os componentes,
inclusive as instituições e o Direito, são ordenados segundo os imperativos da
Salvação. Há, como bem percebeu Y. homas, um recuo do império da icção
na Idade Média: a cristianização do Direito romano signiicou a domesticação
de uma representação do mundo, na qual as coisas, mesmo divinas, eram
instituídas, e a natureza era um artifício a serviço de uma produção do artifício,
em que, sobretudo, a ciência civil era instrumento para transformar livremente
a ordem das coisas anteriormente instituídas66. No entanto, isso não signiicou
uma destruição do potencial criativo do Direito na Idade Média.
No que se refere ao combate ao roubo, com algumas nuances, o Pactus se
encontra em sintonia com os editos e preceitos reais do século VI. Childeberto I,
Clotário I, Childeberto II e Clotário II adotaram medidas, muito provavelmente,
complementares àquelas previstas no Pactus legis Salicae, mas também mais
duras em relação aos que eram julgados culpados de roubo. O Pactus pro
Tenore Pacis, assinado entre Clotário I e Childeberto I, na primeira metade
do século VI, cria uma força militar (os centenarii) especialmente encarregada
de perseguir os ladrões em ambos os regna67, e estabelece a pena de morte
para os culpados de roubo:

[...] Posto que a loucura de muitas pessoas aumentou, o mal deve ser dado àquele que
o merece pela selvageria de seus crimes. Por esta razão, é decretado que aquele que
for julgado culpado de roubo após (a publicação) deste edito poderá perder sua vida68

O Decreto de Childeberto II, de 596, também prevê a pena de morte para


os ladrões, mas também para os juízes que os libertassem:

65 Pactus legis Salicae, XIII.


66 homas, Y. Fictio legis. L’empire de la iction romaine et ses limites médiévales. Droits. Revue
française de théorie juridique. n.21, 1995: 39.
67 Sobre os centenarii, ver Murray, A.C. From Roman to Frankish Gaul: ‘Centenarii’ and
Centenae’ in the Administration of the Merovingian Kingdom. Traditio 44, 1988: 59-100.
68 Pactus pro tenore pacis, prólogo: “Ut, quia mulorum insaniae convaluerunt, malis pro imu-
nitate scelerum digna reddantur. Id ergo decretum est, ut apud quemcumque post interdictum
latrocinius conprobatur vitae incurrat periculum”.

75
[...] A respeito de ladrões e malfeitores, decretamos a seguinte lei que deve ser seguida:
que se 5 ou 7 homens de boa fé dizem sob juramento – e não por causa de inimizade
– que alguém é um criminoso [criminosus], o criminoso deve morrer sem lei, da
mesma forma que ele roubou sem lei. Se um juiz é convencido a libertar um ladrão
capturado, que ele perca sua vida, e que por todos os meios a ordem seja respeitada
entre o povo69.

Outras leges bárbaras também utilizam a pena de morte no repertório


do combate ao roubo. O Liber Constitutionum a prescreve aos homens livres
condenados por roubo de escravos e certos animais: “Se alguém aliena os
escravos de outrem, ou se alguém, seja burgúndio ou romano, rouba um
cavalo, égua, boi ou vaca, deve ser morto[...]”70.
A mesma penalidade é aplicada aos escravos, sendo reservado aos seus
mestres apenas o pagamento de uma multa:

[...] Se um escravo comete um roubo, ele deve ser entregue à morte: o mestre do escravo
deverá compensar com um pagamento único (na taxa simples), e sem pretensão
de maiores danos, aquele que perdeu as coisas subtraídas por roubo, incluindo os
animais acima mencionados e que não forem encontrados, de acordo com a tarifa
dos valores estabelecidos71.

Em contraste com o que ocorre nas leis francas, a penalidade decorre


também do tipo de bem que é roubado:

[...] E se um homem livre, seja ele burgúndio ou romano, roubar um porco, uma
ovelha, uma colmeia ou uma cabra, deverá pagar três vezes o seu valor estabelecido
e, além disso, deverá pagar uma multa de doze sólidos. A composição para o porco
será de um sólido; para a ovelha, um sólido; para a colmeia, um sólido; para a cabra,
um terço de sólido [tremissis]. De fato, seu valor deve ser pago triplamente72.

69 Decretio Childeberti, 7: “De furis et malefactoris ita decrevimus observare, ut si quinque aut
septem bonae idei homines absque inimicitia interposita criminosum cum sacramenti interpo-
sitione esse dixerint, quomodo sine lege involavit, sine lege involavit, sine lege moriatur. Si quis
iudex comprehensum latronem convictus fuerit relaxasse, vitam suam amittat, et disciplina in
populum modis omnibus observetur”.
70 Liber Constitutionum, IV, 1: “Quicumque mancipium alienum sollicitaverit, caballum quoque,
equam, bovem aut vaccam tam Burgundio quam Romanus ingenuus furto auferre praesumpserit,
occidatur...”.
71 Liber Constitutionum, IV, 2: “Si vero servus furtum fecerit, ipse tradatur ad mortem, et domi-
nus servi ea, quae furto ablata sunt de suprascriptis animalibus, ea, quae inveniri non possunt,
secundum formam pretii constituti eum qui perdidit simpla solutione reddat indempnem”.
72 Liber Constitutionum, IV, 3: “Quicumque ingenuus, tam Burgundio quam Romanus, porcum,

76
O roubo de porcos, ovelhas, abelhas e cabras acarreta uma simples
composição, ao passo que o roubo de cavalos, éguas, bois, vacas e escravos
implica na pena de morte. O Liber também hierarquiza a punição em função
do estatuto social dos condenados. Se o escravo de um burgúndio ou de um
romano admite o roubo do primeiro grupo de animais, é punido com 300
golpes73.
As medidas de combate ao roubo do Pactus legis Salicae parecem alinhar-
se com as medidas adotadas anteriormente na Lex Visigothorum e no Liber
Constitutionum, o que poderia ser explicado pela menção ao crescimento do
número de roubos contida no prólogo do Pactus pro Tenore Pacis. Mas nada
garante que isso fosse uma resposta à intensiicação do roubo de bens: talvez
se tratasse simplesmente de uma modiicação em suas formas de qualiicação.
Mesmo porque as leis francas não adotam o princípio da qualiicação do roubo
em função do valor dos bens roubados, como o faz o Liber Constitutionum,
mas continuam a avaliar o roubo em função do estatuto do proprietário e
do ladrão. No interregno entre a publicação do Pactus – entre 507 e 511 –, e a
publicação do pacto entre Childeberto I e Clotário I, ainda na primeira metade
do século VI, os legisladores provavelmente passaram a considerar que a pena
de morte era a forma mais adequada para tratar o ataque às relações entre
os proprietários e os seus bens. Mesmo que as hagiograias e as histórias dos
séculos VI, VII e VIII estejam repletas de exemplos de ladrões condenados à
morte e salvos pelos santos, não é o caso de discutir a efetividade, ou não, da
aplicação dessa penalidade e sua relação com o possível “aumento da loucura
de muitos”, para usar a expressão do Pactus pro Tenore Pacis. O essencial é o
signiicado da pena de morte na qualiicação do roubo. A princípio, essa punição
pode parecer paradoxal em relação ao princípio do usucapião. Esse último
relativizaria o direito à propriedade, enquanto a primeira o reforçaria. Mas não
é bem isso que ocorre. O princípio da prescrição pelo uso, bem como a pena
de morte, não reforçam de forma alguma a noção de propriedade individual
e absoluta dos bens. Se a prescrição pelo uso realça o controle direto dos bens
pelos sujeitos, em detrimento de um direito abstrato à propriedade, a pena
de morte, tanto no Pactus pro Tenore Pacis quanto no Decretio Childeberti, é
uma punição à desobediência às leis do rei. No primeiro caso, atinge aquele
que é julgado culpado de roubo após a publicação do edito real; no segundo,
é prescrita não apenas ao ladrão, mas também ao juiz que ousar libertá-lo.
Em ambos os casos, é a defesa da autoridade pública que sobressai: os editos

ovem, apem, capram furto abstulerit, in triplum solvat secundum formam pretii constituti et mul-
tae nomine solidos XII, id est: pro porco solidum I, pro ove solidum I, pro ape solidum I, pro capra
tremisse; pretia vero haec in triplum solvantur”.
73 Liber Constitutionum, IV, 4: “Si servus Burgundionis sive Romani furtum de supradictis peco-
ribus admiserit, servus tradatur ad poenam, ut CCC fustium ictus accipiat; dominus autem pro
eius crimine simplum solvat, et multa a domino non queratur”.

77
não protegem ou sacralizam os bens, mas punem a desobediência às normas
estabelecidas pelo rei74.
Os bens não constituem o cerne das preocupações da legislação real franca.
Em seu capítulo 3, o Pactus proTenore Pacis prevê que, se alguém praticou um
roubo e, em seguida, pagou a composição de maneira oculta, sem a presença
de um juiz (occulte sine iudice conpositionem fecerit), a vítima que aceitou
essa composição será considerada ladrão. Nada é dito sobre o bem que foi
roubado daquele que aceitou a composição. Na perspectiva do legislador, o
mais importante é qualiicar o sujeito que compôs sem a presença de um juiz,
e assimilá-lo àquele que pratica a actio criminalis75.
O texto não se contenta em criar moldes para a aplicação da norma,
mas altera substantivamente a natureza dos próprios sujeitos: o proprietário
é assimilado a um ladrão em uma circunstância na qual seus próprios bens
são roubados por outrem, da mesma forma que o escravo é assimilado, ao
mesmo tempo, a um sujeito e a um bem. Na complexa engenharia social
produzida por esse esquema de qualiicação, a vítima do roubo pode ser
assimilada a ladrão ao entrar em contato “oculto” com aquele que roubou seus
bens. O texto não diz que quem aceita a composição torna-se ladrão, mas que
é assimilado a um ladrão (...latronis similis est). Aí reside a diferença entre a
ictio legis e a qualiicação jurídica. O título LXXI do Liber Constitutionum
também estabelece que, aquele que compuser com um ladrão, sem a presença
dos juízes, deve receber a mesma punição prevista para o ladrão; mas em
momento algum assimila um ao outro76. Já a Lex Visigothorum considera
como ladrão não apenas aquele que comete efetivamente o roubo, mas toda
pessoa que estava a par dele no momento em que aconteceu, ou que recebeu
os bens roubados77.
A icção jurídica consiste em travestir os fatos, declará-los distintos daquilo
que realmente são, e tirar dessa adulteração e falsa suposição as consequências
normativas que se ligariam à verdade conscientemente simulada. A icção
requer, portanto, a consciência daquilo que é falso78. O que se vê aqui é algo
distinto: não se trata de presunção, incerteza quanto à verdade dos fatos,
nem tampouco de icção que altera de forma inequívoca a verdade. O Pactus

74 Além disso, a pena de morte aparece no Decretio Childeberti como uma suspensão da lei: “o
criminoso deve morrer sem lei, da mesma forma que ele roubou sem lei” (sine lege involavit, sine
lege moriatur). É através de sua própria suspensão que a norma dialoga com a exceção.
75 Pactus pro tenore pacis, 3: “Si quis furtum suum invenerit et occulte sine iudice compositionem
acceperit, latroni similis est”.
76 Liber Constitutionum, LXXI, 1: “Si quis inconsciis iudicibus de furto, quod ipsi factum est,
crediderit componendum, poenam, quam fur subiturus erat, ipse suscipiat”.
77 Lex Visigothorum, VII, 2, 7: “De his, qui cum furibus conscii fuerint. Non solum ille, qui furtum
fecerit, sed etiam et quicumque conscius fuerit vel furti ablata sciens susceperit, in numero furan-
tium habeatur et simili vindicta subiaceat”.
78 homas, Y. Fictio legis. L’empire de la iction romaine et ses limites médiévales. Droits. Revue
française de théorie juridique. n.21, 1995:17-18.

78
pro Tenore Pacis não procede por conjectura, o proprietário não é apenas
potencialmente assimilável ao ladrão, ele é assimilado a ele. Mas isso não
corresponde a uma alteração da verdade. Ele não proclama que o proprietário
que aceitou a composição sem a presença de um juiz é um ladrão, mas que é
semelhante a ele, nessas condições especíicas. Mais que conjectura, menos que
icção no sentido romano do termo, a norma entre os francos constrói uma
qualiicação jurídica do roubo, na qual os bens ocupam papel secundário em
face do estatuto do proprietário, das relações estabelecidas entre proprietário
e ladrão, e mesmo entre juiz e ladrão.
Todo o vocabulário desse capítulo 3 do Pactus pro Tenore Pacis permite
destacar os sujeitos e suas ações, enquanto os bens não são, em momento algum,
qualiicados. Não há nenhum esforço por parte do legislador em estabelecer
uma tipologia do roubo a partir dos bens subtraídos aos proprietários. Sua
importância é secundária, face à relação que se estabelece entre proprietário
e ladrão, considerada ilegítima se não for mediada por um representante da
autoridade pública. Como no Pactus legis Salicae, as diferentes penalidades
são estabelecidas em função do estatuto social dos ladrões: o capítulo 4 do
Pactus pro Tenore Pacis prevê que, se um homem livre é acusado de roubo,
mas tem a mão queimada, ao se submeter ao ordálio da água fervente79, deve
pagar a composição no mesmo montante pelo qual é acusado80; no capítulo
6, se um escravo rouba menos que um terço de sólido (tremissis), mas tem
má sorte [no ordálio], o mestre deve pagar 3 sólidos, e o escravo, receber
300 golpes com um porrete81. O Liber Constitutionum é ainda mais claro na
punição diferenciada para escravos e homens livres: se um homem livre e um
escravo cometem um roubo juntos, o primeiro deve pagar o triplo do valor
do objeto roubado, contanto que o roubo não tenha sido acompanhado de
crime capital; o escravo deve ser açoitado como punição82.
Na Lex Visigothorum, os diferentes estatutos sociais são levados em
consideração na qualiicação do roubo, e a tortura não pode ser aplicada
aos nobres, potentes e pessoas de estatuto superior83. Os homens livres e de

79 Sobre os ordálios, ver Barthélemy, D. Ordalies. In: Gauvard, C. et alii (Org.), Dictionnaire du
Moyen Âge, Paris, 2002: 1020-1022.
80 Pactus pro tenore pacis, 4: “Si quis ingenuus in furtum inculpatus fuerit et ad eneum provoca-
tus manum incenderit, de quantum inculpatus fuerit conponat”.
81 Pactus pro tenore pacis, 6: “Si servus minus tremisse involaverit et mala sorte priserit, dominus
servi tres solidos solvat et servus ille trecentos ictus accipiat”.
82 Liber Constitutionum, LXX, 1: “Si ingenuus aut servus furtum simul fecerint, ingenuus triplum
solvat, quod furatum est, si tamen capitale crimen non fuerit; servus vero fustuario supplicio de-
putetur”.
83 Lex Visigothorum, VI, 1, 2: “Nam si capitalia, quae supra taxata sunt, accusata non fuerint, sed
furtum factum dicitur vel aliud quodcumque inlicitum, nobiles ob hoc potentioresque persone, ut
sunt primates palatii nostri eorumque ilii, nulla permittimus ratione questionibus agitari. Sed si
in causa, pro qua conpellitur, probatio defuerit, suam qui pulsatur debeat iuramento conscien-
tiam expiare”.

79
condição inferior podem ser torturados se os bens em causa valerem mais
de 50 sólidos 84. No entanto, as penas alitivas valem para todos. Um homem
livre que rouba a propriedade de outrem deve pagar ao proprietário nove
vezes seu valor; um escravo deve pagar seis vezes o valor dos bens roubados,
e ambos devem receber uma centena de chicotadas. Além disso, a punição
também pode resultar em uma mudança de estatuto social: se o homem livre
não tem recursos pecuniários para pagar a multa, ou se o mestre se recusa
a dar satisfação do ato de seu escravo, aquele que é reconhecido culpado de
roubo torna-se de maneira perene o escravo do proprietário do bem roubado85.
O Livro de Leis da Islândia (Grágás), redigido no século XI, difere da
maioria das leges bárbaras por duas razões. Em primeiro lugar, não contém
nenhum capítulo especial sobre o roubo, mas discute esse crime em uma
seção sobre as buscas na casa de alguém suspeito de roubo86. Em segundo
lugar, diferentemente do que ocorre nas leis francas, a punição ao roubo ou à
retenção ilegal de bens não leva em consideração o estatuto social do ladrão ou
do proprietário, mas o valor do bem roubado: se um homem rouba um bem
que vale um penny ou mais, ele deve ser condenado a restituir o dobro, além
de pagar uma multa de três marcos; se um homem rouba um bem que vale
meia onça ou mais, e não o oculta, deve ser condenado por apreensão, e não
por roubo, e é proscrito; se roubou um bem de mais de meia onça e ocultou
seu ato, não deve ser condenado por apreensão, mas por roubo. Note-se que
nos casos que envolvem os bens de meia onça ou mais, a distinção é entre
apreensão com não ocultação e apreensão com ocultação, chamada de roubo.
Não se trata de uma simples divergência de sanções, já que a proscrição é a
mesma pena para ambos os crimes. Segundo T. Andersson, isso se explica
por uma distinção da mesma lei que estabelece que, se o réu for inocente,
pode processar por difamação. Em outras palavras, a acusação de roubo é
claramente um ataque à honra do acusado. A apreensão de bens seria uma
forma mais ou menos aceita de crime, ao passo que o roubo implicaria em
censura moral. Se um homem toma algo pela força e utiliza-o abertamente,
sua conduta era menos repreensível aos olhos da lei do que se ele a toma em
segredo e a esconde87. Em que pese a importância da honra no tratamento
do roubo, sua hierarquização depende de um código de comportamentos, no

84 Lex Visigothorum, VI, 1, 2: Inferiores vero humilioresque, ingenue tamen persone, si pro furto,
homicidio vel quibuslibet aliis criminibus fuerint accusati, nec ipsi inscriptione premissa subden-
di sunt questioni, nisi maior fuerit causa, quam quod quingentoram solidorum summa valere
constiterit”.
85 Lex Visigothorum, VII, 2, 13: “Cuiuslibet rei furtum et quantalibet pretii extimatione taxatum
ab ingenuo novies, a servo vero sexies ei, qui perdidit, sarciatur, et uterque reus C lagellorum ver-
beribus coerceatur. Quod si aut ingenuo desit, unde conponat, aut dominus componere pro servo
non adnuat, persona, que se furti contagio sordidavit, servitura rei domino perenniter subiacebit”.
86 Grágás: Islændernes lovbog i fristatens tid., ed. Vilhjálmur Finsen, Copenhagen, 1852: 162-163.
87 Andersson, T. he hief in Beowulf. Speculum, n.59, 1984: 496-497.

80
qual a ocultação do ato é um agravante, e não a posição social ocupada pelo
ladrão ou pelo proprietário88.
No capítulo 10 do Pactus pro Tenore Pacis, a condenação à morte daquele
em cuja casa foram encontrados objetos roubados é deinida como uma espécie
de composição, na qual aquele que é condenado compõe com sua própria
vida: “Si quis in alterius domum ubi clavis est furtum invenerit, dominus domus
de vita conponat”. No caso do homem livre que é acusado de roubo, e nega
tê-lo cometido, é possível alcançar a verdade a partir de 12 juratores, metade
deles escolhidos pelo acusado. Se este é julgado culpado do roubo, pode se
redimir caso possua os meios materiais para tanto, pagando a composição.
Se não os possui, deve ser apresentado por sua família em três tribunais, e, se
não for, pagará com sua vida (uita careat)89. A pena de morte é apresentada
como espécie de composição, que serve para satisfazer a vítima. Qual o
sentido dessa composição? É possível airmar que consagra a assimilação da
vida a um bem material que se oferece ao outro litigante ou à justiça como
espécie de compensação à actio criminalis, redutível, portanto, a uma soma
em soldos? O cerne da questão está, uma vez mais, nos sujeitos em litígio,
mais precisamente na relação que se estabelece entre eles. A importância dos
bens é tão pequena, que são designados genericamente como “produtos do
roubo”, ao passo que o sujeito que pratica o roubo não é chamado somente

88O estatuto social dos sujeitos na Alta Idade Média é deinido pelo nascimento, pela relação
com outros sujeitos e pela relação com a autoridade pública. Ainda que ausente das preocupa-
ções dos redatores do Pactus legis Salicae, a aristocracia galo-franca retirava uma parte conside-
rável de sua fortuna material e de seu estatuto social do exercício de funções públicas (que lhes
dava privilégios e uma parte das rendas iscais) e da função de intermediários entre as clientelas
rurais e a autoridade real (J.-P. Devroey, Économie rurale et société dans l’Europe franque, p.
261). Segundo J.-P. Devroey, o termo nobilis desempenhava muitas vezes o papel de um qualii-
cativo ou mesmo de um superlativo social, desprovido de todo valor geral, empregado em esca-
las absolutamente diferentes entre os homens livres para distinguir as famílias mais poderosas,
aquelas melhor providas de bens, de honores e de prestígio social. Essa deinição, segundo o
autor, torna vã toda história da nobreza na Alta Idade Média como um grupo social homogê-
neo e coerente. Seria preferível utilizar conceitos como “elite de poder”, “nobreza aristocrática”,
“gentry” ou “notáveis”, de modo a garantir sua adequação às realidades sociais da Alta Idade
Média (J.-P. Devroey, Puissants et misérables, Bruxelles, 2006. Esta ideia não é nova: o termo
“elites” foi adotado na obra coletiva organizada por R. Le Jan, La royauté et les élites dans l’Eu-
rope carolingienne, du début du IXe aux environs de 920, em 1998. O pertencimento à nobilitas
não era, portanto, o fruto de uma consideração subjetiva ou de uma decisão individual. Ele era
um elemento de distinção que se construía no âmbito das relações interpessoais e no espaço
público, isto é, diante dos olhos e dos ouvidos de todos. No início do século IX, por exemplo, a
aristocracia franca podia ser deinida por sua posição no espaço social e geográico, e também
em relação ao rei, fonte da distribuição de honores. A possessão de bens não estava no cerne da
determinação deste estatuto social.
89 Pactus pro tenore pacis, 2: “Si quis ingenuam personam per furtum ligaverit et negator exte-
terit, duodecim iuratores medios electos dare debet, quod furtum quod obicit verum sit. Et sic
latro redimendi se habeat facultatem; si facultas deest, tribus mallis parentibus oferatur, et si non
redimitur, vita carebit”.

81
de “ladrão” ou “igual a um ladrão”, mas também de “o proprietário da casa
fechada à chave no interior da qual foram encontrados os produtos do roubo”.
O sujeito é, aqui, uma categoria de qualiicação jurídica, que não serve para
descrever uma situação – o roubo - mas para avaliar esse fato e decidir das
disputas em torno dele. A qualiicação jurídica da pessoa deine a natureza e
a intensidade da actio criminalis, sem a intervenção dos bens.
A relação com aquele que pratica o roubo, mesmo que não haja
cumplicidade com a actio criminalis, ou seja, mesmo sem contato com os bens
roubados, pode conduzir a uma extensão da responsabilidade. É exatamente
isso que se observa no II Concílio de Tours: aquele que entra em comunhão
com alguém que se apropriou dos bens eclesiásticos verá aplicar a si mesmo o
motivo da excomunhão que atingiu o acusado90. Como na legislação real franca,
o essencial é a relação estabelecida entre o acusado e outra pessoa. Nada é dito
a respeito de uma possível partilha dos bens, ou sequer de algum contato do
sujeito com esses bens; eles não desempenham papel algum nessa condenação
estabelecida pelos bispos conciliares. Da mesma forma que a possessão dos
bens não qualiica o sujeito como membro de um grupo social determinado,
não estar em possessão, ou mesmo em contato com bens roubados, não é
determinante para deinir a inocência do sujeito, ou seja, seu estatuto jurídico.
Do ponto de vista dos temas tratados, o Pactus legis Salicae, pelo menos em
seus 40 primeiros títulos, relete a preocupação dos legisladores bárbaros dos
séculos VI-VIII com o roubo. No entanto, a coincidência não é apenas temática.
O Pactus pro Tenore Pacis também estabelece uma qualiicação jurídica para
o roubo, na qual a possessão dos bens não está no cerne da determinação do
estatuto jurídico do sujeito, e na qual o estatuto social do proprietário e do ladrão

90 II Concílio de Tours (567), 25: “Nam, quod quidem non credimus, si quis contra decreta nostra
tali temeratori communicare praesumpserit, in se causam excommunicationis transformet et cum
eodem se a caritate omnium sacerdotum cognoscat esse remotum”. Os editos e os preceitos dos
reis merovíngios, embora prevejam de maneira genérica a pena de morte para todos os tipos
de roubo, não dizem nada a respeito das penalidades para o roubo cometido por clérigos. Nos
textos eclesiásticos, desde pelo menos o inal do século VI, a penitência aparece como a medida
adotada nesses casos. É o caso da carta de Gregório Magno a Anthemius, Reitor do Patrimônio
da Igreja na Campânia. Esta carta, de 591, menciona a venda por clérigos de bens (dois cálices
de prata, duas coroas ornadas de golinhos, os leitos de outras coroas e seis pallia) da igreja de
Vanafra a um judeu. O papa pede que os clérigos sejam levados à presença do Reitor, assim como
o judeu “que, se esquecendo da força das leis, quis se amparar dos bens sagrados, e que ele seja
forçado a devolver rapidamente esses objetos, de modo que a dita igreja não sofra nenhuma di-
minuição nos seus bens”. Os clérigos que cometeram a infração seriam submetidos à penitência,
“de maneira que possam apagar com suas lágrimas um delito tão terrível”. É algo semelhante
o que se pode observar no Penitencial Clerical de São Columbano, também datado do inal do
século VI: “O clérigo tendo cometido um roubo, ou seja, se ele roubou um boi, um cavalo, uma
ovelha ou outro animal doméstico, devolverá o bem roubado e jejuará um ano a pão e água, se se
tratar de um segundo roubo. O clérigo que tem o hábito de cometer roubos, sem poder devolver
os frutos do mesmo, jejuará 3 anos a pão e água” Penitencial Clerical de São Columbano (inal
do século VI), ed. F.W.H. Wasserchleben, Die Bussordnungen der abendländischen Kirche, Halle,
1851.

82
deinem a punição e, em última instância, o próprio valor das coisas. Todavia,
na medida em que esses textos pertencem a uma mesma tradição textual,
e no caso do Pactus legis Salicae e o Pactus pro Tenore Pacis, a uma mesma
tradição manuscrita, a efetividade dessa qualiicação jurídica ainda necessita
ser demonstrada. É preciso, portanto, ampliar o escopo dos textos analisados.
O exemplo do II Concílio de Tours, mencionado anteriormente, mostra que
os textos conciliares podem apresentar outra dimensão do problema.
Ainda que as leis e os editos da Alta Idade Média não tenham criado
icções no sentido romano do termo, construíram qualiicativos jurídicos. A
recusa em se criar a natureza, destarte monopólio de Deus (e a quem pertence
a verdadeira soberania), não impediu que os legisladores dos reinos bárbaros
elaborassem construções jurídicas destinadas a transformar a multiplicidade
dos fatos e dos sujeitos em um material mais apropriado para a aplicação da
justiça. Para compreender todo o potencial criador da operação jurídica, é
necessário ir além do registro marxiano da ideologia, vista, de uma forma
geral, como sinônimo de falsiicação do real e de falsa consciência, orientadas a
partir da necessidade de dominação de classe. É mais produtivo atentar-se para
a capacidade do direito em criar categorias jurídicas, tomadas posteriormente
como componentes do complexo tecido da vida social, mesmo por parte
daqueles que contribuíram para estabelecer essas mesmas categorias.

83
4. O roubo nos cânones conciliares

A questão da possessão de bens pela Igreja foi objeto de polêmicas ao


longo de toda sua história. Os detratores da riqueza eclesiástica não cessaram
de opor o ideal apostólico de pobreza e vida em comum a uma Igreja que,
segundo eles, teria se afastado em demasia do ideal dos Evangelhos. O ideal
de partilha apostólica dos bens, inspirado nos Atos dos Apóstolos, tornou-
se o apanágio de comunidades monásticas, escolhidas pelos cristãos para
“abandonar” o mundo. As prescrições eclesiásticas abrangiam esses bens,
colocados em comum pelos monges, e, teoricamente, fora do mundo, mas
também os bens da Igreja, “no” mundo. Tratava-se de um amplo campo de
regulamentações, ampliado pelas doações dos iéis. Nas páginas seguintes,
focalizar-se-ão as maneiras pelas quais a Igreja franca defendeu seus bens dos
ataques de laicos, mas também dos próprios membros do clero.
Seria equívoco reduzir a questão dos bens eclesiásticos ao problema das
relações entre “Igreja” e “Estado”, como fazem os autores iscalistas. Para eles,
os bens da Igreja são bens do Estado1. Segundo E. Magnou-Nortier, o príncipe
franco disporia do direito de pronunciar coniscos e conceder, sob condição,
os bens do isco (isto é, também os bens da Igreja), da mesma forma que a lei
romana, que considerava os bens públicos e aqueles dos templos como domínio
que servia aos interesses do príncipe e do Estado2. Nos cânones conciliares,
tanto os atos de roubo quanto as apropriações dos bens eclesiásticos por parte
do rei são designados com os mesmos termos; são tratados como atos da
mesma natureza. E é nessa medida que as apropriações, por parte do poder
real, dos bens da Igreja nos interessam.
Ao se separar de seus bens materiais e concedê-los a Deus, cada iel
podia trocar suas riquezas efêmeras por um “tesouro eterno”. É importante
lembrar, no que se refere às doações, que os bens eram outorgados, em última
instância a Deus; a Igreja atuava apenas como depositária. Mesmo antes do
inal das perseguições, no século IV, algumas comunidades cristãs estavam
em possessão de importante número de bens, ampliado consideravelmente
sob os imperadores cristãos. Nessa época, as propriedades da Igreja receberam
tratamento especial na lei, e o direito à propriedade foi atribuído às igrejas de
cada cidade. Cabia aos bispos a administração desses bens que, segundo a lei,
eram inalienáveis. As turbulências do século V não signiicaram um recuo

1 Segundo E. Magnou-Nortier: “Avec lui [le problème des biens ecclésiastiques], nous restons pla-
cés au cœur d’une ‘afaire d’État’” [Magnou-Nortier, E., “La coniscation des biens d’Église: un
droit royal (VIe-VIIIe siècles)”, In: Aux sources de la gestion publique, t. II, L’invasio des villae ou
la villa comme enjeu de pouvoir, Lille, 1995: 150.
2 Magnou-Nortier, E. La coniscation des biens d’Église: un droit royal (VIe-VIIIe siècles): 151-156.

85
da propriedade eclesiástica; ao contrário, assistiu-se, a partir desse período,
a uma multiplicação das doações, sobretudo por iniciativa de ricos bárbaros,
recentemente convertidos. O controle acentuado pelos bispos dos bens das
dioceses, e também a proliferação de novas igrejas e monastérios, contribuíram
para tornar os bens da Igreja objeto de interesse de diversas camadas da
sociedade3. Na Gália, pelo menos a partir do início do século VI, a legislação
eclesiástica tentou consagrar as igrejas como sujeitos-proprietários, ixando-
lhes uma noção de plena propriedade, e tentando prevenir a exploração desses
bens por bispos ou outros membros do clero.
Os textos conciliares, ainda que tenham sido produzidos em assembleias
autorizadas, ou mesmo convocados pelos reis francos, não podem ser
considerados extensão da legislação real, mas constituem outra tradição
textual, com concepções especíicas da relação entre sujeitos e bens. De todo
o período merovíngio, foram conservadas as atas de cerca de duas dezenas
de concílios que ultrapassaram os limites das províncias eclesiásticas, de dois
concílios provinciais e de um concílio diocesano4. Os concílios merovíngios são
também conhecidos por algumas crônicas, que mencionam, eventualmente,
o contexto no qual foram realizados, sem, no entanto, apresentar o texto dos
cânones. As crônicas e histórias tratam igualmente certos concílios, cujos
cânones não foram conservados. É o caso, notadamente, das Histórias, de
Gregório de Tours, que fazem alusão a seis desses concílios: dois concílios
convocados pelo rei Gontrão, em 579 (Histórias V, 27) e em 581 (Histórias
VI, 1); dois convocados pelo rei Chilperico, em 577 (Histórias V, 18) e em 580
(Histórias V, 49); e outros dois ainda, realizados em 589 (Histórias IX, 37) e
590 (Histórias X, 19-20), sob o reinado de Childeberto II. Não há nenhum
traço dos cânones discutidos, e aprovados, nessas assembleias5.
Há diferenças consideráveis entre os editos reais publicados em seguida
às reuniões conciliares, como em Mâcon, 585, e os cânones redigidos nessa
mesma ocasião. Algumas dessas reuniões, como o III Concílio de Paris, adotam
textos que colocam diretamente em causa o rei nos prejuízos sofridos pela
Igreja, como se pode constatar:
[...] Nós impomos também o freio de uma tal sanção aos captadores (competitoribus)
que se amparam dos bens da Igreja através de artifício desonesto sob o pretexto

3 Wood, S. he Proprietary Church: 9-32.


4 Sobre os concílios merovíngios, ver Pontal, O. Histoire des conciles mérovingiens; Ewig, E.,
“Beobachtungen zu den Bischofslisten der Merowingischen Konzilien und Bischofsprivilegien”:
427-455; ver também Champagne, J., Szramkiewicz, R. “Recherches sur les conciles des temps
mérovingiens”: 5-49.
5 Os cânones dos concílios merovíngios foram objeto de várias edições. Há a edição de 1893 de
F. Maassen nos M.G.H. (Concilia aevi Merovingici, ed. F. Maassen, MGH, Leges (in-4°), sect. III,
Concilia I). Uma outra edição, de C. Le Clercq, também de muito boa qualidade, traz um índice
de todas as fontes e um excelente texto crítico [Conciliae Galliae (c. 511-695), ed. C. De Clercq,
CC 148A].

86
de uma liberalidade real. De fato, fomos tomados tardiamente de arrependimento
a respeito disso, pois no passado os bispos do senhor deveriam, sustentados nos
cânones, ter se oposto a tais pessoas, de modo que uma indulgente mansuetude não
incitasse a audácia dos maus a cometer cada dia ainda semelhantes atos. É bem tarde
que despertamos hoje, assoberbados pelo peso das injustiças, forçados também pelos
danos vindos de nossos senhores 6.

Essa reunião conciliar, a mais importante desde o Concílio de Orléans,


de 511, foi realizada pouco tempo após a morte de Clotário I, e tratou de duas
questões principais: a proteção do patrimônio das igrejas e as intervenções
da autoridade real nos assuntos eclesiásticos7. Os termos empregados para
denunciar a ingerência do poder real são inéditos nos cânones francos. O
preâmbulo dos cânones apresenta um balanço da situação das igrejas nos anos
anteriores, isto é, durante o reinado de Childeberto I, Clotário I, Clodomir,
Teuderico I, Teudeberto I e Teodobaldo I. É evidente que, para os bispos
conciliares em Paris III, os bens das igrejas não eram sinônimos de bens da
realeza.
Os cânones conciliares tentavam subtrair os bens das igrejas às prescrições
pelo uso, adotadas pela legislação real. O I Concílio de Orléans airma claramente
que o princípio da prescrição pelo uso (usucapio), oriundo do Breviário de
Alarico8, não se aplica às terras concedidas pelo bispo a clérigos ou a monges
para que eles as cultivassem e as explorassem:

[...] Se um bispo, em uma intenção generosa, concedeu a clérigos ou a monges


parcelas de vinha e de terra para cultivar e explorar durante certo tempo, e mesmo
que icar provado que um grande número de anos passou, que a igreja não sofra
nenhum prejuízo, e que não se objete a prescrição prevista pela lei secular para criar
um impedimento à Igreja9.

6 III Concílio de Paris (561-564), 1: “Competitoribus etiam huiusmodi frenos districtionis impo-
nimus, qui facultates ecclesiae sub specie largitatis regiae improba subreptione peruaserint : sera
namque de his rebus paenitudine commouemur, cum iam ante actis temporibus contra huiusmodi
personas cononum sufulti praesidio se sacerdotes Domini erigere debuissent, uti non mansuetudo
indulgentiae ad similia perpetranda improborum audaciam adhuc cotidie prouocaret. Nunc tarde
iniuriarum mole depressi damnis quoque dominicis compellentibus excitamur”.
7 Como salienta O. Pontal, o terceiro concílio de Paris não deve ter ocorrido após 564, pois
Paternus de Avranches e Leontius de Bordeaux assinaram os cânones, e ambos morreram entre
564 e 565 (Histoire des conciles mérovingiens: 151-154).
8 Guillot, O. La justice dans le royaume franc à l’époque mérovingienne. In: La giustizia nell’Alto
Medioevo (secoli V-VIII), Settimane di Studi sull’Alto Medioevo, 42, t. II, Spoleto, 1995: 653-731.
9 I Concílio de Orléans (511), 23: “Si episcopus humanitatis intuitu uineolas et terrulas clericis
uel monachis praestiterit excolendas uel pro tempore tenendas, etiam si longa transisse annorum
spatia conprobentur, nullum ecclesia praieudicium patiatur nec saeculari lege praescriptio, quae
ecclesiae aliquid inpediat, opponatur”.

87
Os bispos reiteram as mesmas objeções ao usucapião no Concílio de
Epaône, reunido seis anos depois, no Reino dos Burgúndios, invocando para
tanto o apoio da autoridade real. De acordo com o cânone 18, os bens da Igreja
possuídos pelos clérigos não poderiam ser reivindicados por eles a partir do
princípio da prescrição:

[...] Os bens que clérigos possuírem como retribuição por parte da Igreja, mesmo
sem carta de precário, o tempo que for, não poderão ser, pela autoridade do senhor,
nosso gloriosíssimo príncipe, reivindicados como propriedade privada em virtude
da prescrição, contanto que seja claro que são bens da Igreja. Não consideramos que
os bispos cuja administração prolongou-se tivessem que redigir cartas de precário
no momento de sua ordenação ou que pudessem transferir, para a sua propriedade
pessoal, bens da Igreja que detinham há muito tempo10.

Pela expressão “contanto que seja claro que são bens da Igreja”, este cânone
reconhece aos clérigos o direito de adquirir outros bens por meio do princípio
da prescrição. Os bispos conciliares, desde o início do século VI, colocam os
bens da Igreja acima das reivindicações de seus pares e dos clérigos que lhes
são submetidos, estabelecendo, para esses bens, um direito de propriedade
que não está submetido aos imperativos do uso, como os demais bens. O
Concílio de Epaône cria um qualiicativo jurídico para os bens, e opera uma
intervenção em sua própria condição, cindindo-os em duas categorias, distintas
entre si, unicamente em razão de seus proprietários. O parâmetro para a
qualiicação dos bens é o mesmo previsto nas leis civis nos casos de roubo,
isto é, o estatuto do proprietário. Mas, contrariamente a essas, as normas
conciliares buscarão, ao longo dos séculos VI e VII, construir uma noção
absoluta de propriedade associada à Igreja. Esse cânone terá uma posteridade
considerável: ele é literalmente retomado no 2° cânone do Concílio de Clichy,
de 626-627; também aparece em várias coleções canônicas: Vetus Gallica, 35,
10; Hispana (que o considera como o 59° cânone do Concílio de Agde, de 506);
Yves de Chartres, Decreto III, 166, Tripartite II, 28, 58; e Decreto de Graciano,
Causa 16, q. 3, c. 1111.
Os bens da Igreja, designados como res ecclesiarum ou res uel facultates
(“agellis”, “agri”, “campi”, “elemosinas”, “facultates”, “oblationes”, “remuneratio”,
“parochias”, “possessio”, “reicolae”, “villae”, “vineolis”), constituem uma categoria

10 Concílio de Epaône (517), 18: “Clerici quod etiam sine praecatoriis qualibet diuturnitate tem-
poris de ecclesiae remuneratione possederint, cum auctoritate domni gloriossimi principis nos-
tri in ius proprietarium praescriptione temporis non uocetur, dummodo pateat ecclesiae rem
fuisse, ne uideantur etiam episcopi administrationis prolixae aut praecatorias, cum ordinati
sunt, facere debuisse aut diu tentas eccleiae facultates proprietati suae posse transcribere”.
11 Les canons des conciles mérovingiens, ed. Gaudemet, J., Basdevant, B., Paris, 1989: 110, n. 2.

88
à parte também pelo vocabulário que sua apropriação ilícita mobiliza, já a
partir do século VI, notadamente nos cânones conciliares: “invasio”, “aufere”,
“agredere”, “contingere”, “confiscare”, “competire”, “exulare”, “distrahere”,
“ingredere”, “infestatio”, “occupare”, “praesumere”, “perire”, “percepere”,
“pervedare”, “rapere”, “retinere”, “retentare”, “substrahere”, “usurpare”, “subjugare”,
“spoliare”12. Embora alguns desses termos designassem, também, o roubo de
bens que não pertencem à Igreja, destacam-se pelo número e, também, pela
conotação moral de alguns deles. O caso mais sintomático, nesse sentido, é
necatores pauperum, que será examinado mais adiante.
Y. homas mostrou, em seu estudo sobre o valor das coisas no Direito
romano, que, nesse sistema, a vocação primordialmente patrimonial das
res é airmada, em contraste com o regime de indisponibilidade de que são
excepcionalmente atingidas no Direito sagrado e no Direito público. Para que
seja abertamente exposta sua natureza jurídica de coisas avaliáveis, apropriáveis
e disponíveis, é necessário que algumas dessas coisas tenham sido removidas
do espaço de apropriação e troca e, em seguida, afetadas aos deuses ou à cidade.
Isso acontece segundo modos de investimento e entesouramento, comuns ao
mundo antigo, mas que encontraram sua verdadeira expressão jurídica, e talvez
sua conceitualização, apenas em Roma13. Segundo a jurisprudência romana
dos três primeiros séculos de nossa era, é sob a relação quase exclusiva de um
valor patrimonial que as coisas são consideradas, avaliadas; elas pertencem
a uma esfera social de apropriação e troca que se manifesta, sobretudo, pelo
procedimento do Direito Civil, no qual as coisas são qualiicadas e avaliadas.
Paradoxalmente, os textos romanos raramente airmam de maneira explícita
essa redução das res às coisas apropriadas e trocadas14. O que se airma,
especialmente na jurisprudência da época imperial, é a qualiicação dos bens
sagrados, segundo uma fórmula consagrada pelos Institutes, de Gaius: coisas
que relevam de um patrimônio que não pertence a ninguém (res nullius in
bonis)15. É a partir dessa deinição que os outros bens são avaliados16. Em

12 Heuclin, J., “Biens ecclésiastiques et invasiones au VIe siècle”, In: Magnou-Nortier, E. (ed.),
Aux sources de la gestion publique, t. II, L’invasio des villae ou la villa comme enjeu de pouvoir,
Lille, 1995: 135-147.
13 Um exemplo da “santuarização” das coisas no Direito romano, segundo Y. homas, é a air-
mação de que nem os locais reservados aos mortos nem os monumentos erigidos nesses locais
podiam ser vendidos ou herdados [homas, Y. Res religiosae : on the categories of religion and
commerce in Roman law. In: Pottage, A, Mundy, M.(ed.), Law, Antropology, and the constitution
of the social. Making Persons and hings, Cambridge, 2004: 41].
14 Ibid.: 1431.
15 Gaius, Institutes, II, 9: “Aquilo que pertence ao direito divino não se encontra nos bens de
ninguém (nullius in bonis); aquilo que pertence ao direito humano é, na maior parte do tempo,
nos bens de alguém (alicuiuis in bonis)”.
16 Gaius, Institutes, II, 11: “As coisas públicas parecem não estar nos bens de ninguém (nullius
in bonis); elas pertencem à totalidade dos cidadãos” (ipsius universitatis); as coisas privadas são
aquelas que pertencem a indivíduos (singulorum hominum)”.

89
outras palavras, é a instituição de reservas santuarizadas de bens que cria,
por contraste, um espaço virgem de sacralidade e religião; é nesse espaço
que todas as coisas se apropriam, alienam-se e relevam de procedimentos
civis de avaliação.
O que acontece nos cânones conciliares francos é sensivelmente diferente:
a partir das circunstâncias de transferência ilícita, são deinidos os bens que
não podem ser roubados. Ou seja, a partir do roubo, os bens eclesiásticos
são patrimonializados no mundo franco, desde pelo menos o século VI. Essa
patrimonialização é indissociável de uma noção absoluta de propriedade
desses bens, o que implica, inclusive, e em casos excepcionais, na sua venda.
A “personiicação” de Deus nos cânones conciliares também personiica a
propriedade dos bens sagrados, dando-os a um proprietário, que é também,
pelo estatuto que ocupa, seu mais eicaz defensor. A fórmula romana “bens
que não pertencem a ninguém”, encontra na propriedade divina sua legítima
sucessora no mundo franco. Essa última não retira os bens da esfera patrimonial
ou comercial, mas dá-lhes estatuto distinto dos demais bens, e valor mais
importante.
A partir das primeiras décadas do século VI, assiste-se à emergência, nos
cânones conciliares francos, de uma qualiicação jurídica dos bens eclesiásticos
a partir do estatuto de seus proprietários, em detrimento do valor dos bens
(exatamente como na legislação real), e, igualmente, do estatuto do ladrão.
Essa qualiicação vai sendo construída à medida que as necessidades de defesa
dos bens da Igreja tornam-se mais prementes. Mas essa crescente elaboração
resulta do precedente por ela aberto: a qualiicação deve demonstrar por
quais razões esses bens não estão submetidos às mesmas regras que aqueles
não pertencentes à Igreja. Os concílios francos, ao longo dos séculos VI e
VII, vão buscar deinir a natureza desses bens. De início, como se pôde ver
no 23° cânone do I Concílio de Orléans, é suiciente que os bispos conciliares
lembrem a seus pares e subalternos, que o princípio da prescrição pelo uso
não é válido para aquilo que pertence à Igreja. A manifestação da hierarquia
eclesiástica, conjugada à autoridade dos cânones, parece ser suiciente nessas
situações, nas quais os ataques aos bens da Igreja procedem do interior da
própria instituição eclesial.
Os concílios das primeiras décadas do século VI estão preocupados,
sobretudo, com os ataques dos bispos, padres e monges aos bens dados às
igrejas pelo rei e pelos outros iéis. O 5° cânone do I Concílio de Orléans sustenta
que os presentes (oblationes) e as terras, doados pelo rei às igrejas, devem ser
gastos com a reparação das igrejas, manutenção dos bispos e dos pobres, e
libertação dos cativos. Aquele dentre os bispos que se mostrasse menos zeloso
na aplicação dessas regras, seria repreendido pelos bispos coprovinciais e, nesse
caso, tornar-se-ia indigno da comunhão com seus irmãos, até a correção de

90
seus erros17. Essa ausência de zelo devia compreender, também, as apropriações
ilegais dos bens doados, pois o cânone seguinte especiica que apenas a queixa
de alguém que reclama um bem a um bispo – sejam os bens das igrejas, sejam
os do próprio bispo – não é suiciente para excluí-lo da comunhão.
O I Concílio de Orléans também retoma o problema das doações dos iéis
nos cânones 14 e 15, reairmando as disposições precedentes. O 14° cânone trata
das ofertas feitas à igreja-catedral: o bispo retém metade, e o clero a outra parte,
com exceção das terras, que icam sob a autoridade dos bispos para suprir as
necessidades comuns. O 15° cânone trata dos dons (terras, vinhas, escravos
e gado) às igrejas paroquiais: tudo permanece sob a autoridade dos bispos, e
um terço dos bens colocados sobre o altar em oferenda deve ser diretamente
entregue a eles. A preocupação em disciplinar a relação dos clérigos com os
bens das igrejas aparece na mesma época, no Reino dos Burgúndios. O 7°
cânone do Concílio de Epaône pretende evitar que os padres das paróquias
desviem esses bens18. Cesário de Arles reuniu um concílio em Carpentras,
em 527, cujo único cânone promulgado – porém não retomado nas coleções
canônicas – protege o patrimônio eclesiástico contra as pretensões dos bispos19.
Uma mudança importante acontece a partir do Concílio de Clermont,
de 535. Em uma carta enviada a Teudeberto I, os bispos conciliares pedem
que ninguém perca seus bens em virtude das partilhas do reino, ou seja, que
quando alguém estiver sob o poder e a autoridade de um dos reis não perca,
pela reivindicação de outrem, uma propriedade situada nos seus domínios20.
Cada vez mais, os problemas evocados pelos concílios evocam os ataques
dos laicos aos bens eclesiásticos. No 13° cânone do V Concílio de Orléans, de
549, os bispos conciliares condenam aqueles que retêm, alienam ou subtraem
(alienare uel subtrahere) os bens e os recursos (res uel facultates) atribuídos
legalmente, sob uma forma ou outra de esmola, às igrejas, aos monastérios ou
aos hospícios: “Que se alguém o izer, condenado pelas sentenças dos antigos

17 I Concílio de Orléans (511), 5: “De oblationibus uel agris, quos domnus noster rex ecclesiis suo
munere conferre dignaus est uel adhuc non hebentibus Deo sibi inspirante contulerit, ipsorum
agrorum uel clericorum immunitate concessa, id esse iustissimum deinimus, ut in reparationibus
ecclesiarum, alimoniis sacerdotum et pauperum uel redemtionibus captiuorum, quidquid Deus
in fructibus dare dignatus fuerit, expendatur et clerici ad adiutorium ecclesiastici operis constrin-
gantur. Quod si aliquis sacerdotum ad hanc curam minus sollicitus ac deuotus extiterit, publice a
conprouincialibus episcopis confundatur. Quod si Nec sub tali confusione correxerit, donec emen-
det errorem, communione fratrum habeatur indignus”.
18 Concílio de Épaône (517), 7: “Quicquid parrochiarum presbyteri de ecclesiastici iuris pos-
sessione distraxerint, inane habeatur et uacuum, in uenditorem conparantis actione uertenda”.
19 Hefele, C-J. Histoire des conciles, trad. Leclecq, H. Paris, 1907, v. II: 1074-1076.
20 Epistola ad regem heodebertum I (535): “... ut per sugestionem nostram iustitiae et pietatis
uestrae auribus intimaretur, ut nullum de rebus uel possessiunculis propriis alienum pietas uestra
permitteret, ut, dum unius regis quisque potestati ac dominio subiacet, in alterius sorte positam
cuiuscumque, ut adsolet, inspetitione non amitteret facultatem”.

91
cânones como assassino dos pobres (necatores pauperum), seja mantido afastado
do limiar da igreja até que esse tenha restituído o que ele tomou ou reteve” 21.
A expressão necatores pauperum é utilizada pela primeira vez no 4° cânone
do Concílio de Agde, em 506, e faz parte da construção de uma qualiicação
jurídica dos bens da Igreja. Isso não signiica, entretanto, uma inversão da
qualiicação do Pactus legis Salicae, segundo a qual a punição pelo roubo desses
bens depende do estatuto de seus proprietários. A expressão, que reaparece
no I Concílio de Mâcon (581-583)22, não designa os pobres como proprietários
dos bens da Igreja, mas como seus beneiciários. Isso aparece claramente no
36° cânone do IV Concílio de Orléans (541), que lamenta que a Igreja, “que
provém às necessidades de muitos”, sofra a perde de seu patrimônio23. Nessa
qualiicação dos bens, sua utilização também é levada em consideração: há
uma espécie de função espiritual da propriedade eclesiástica.
Os cânones do V Concílio de Orléans, de 549, que trata, entre outros
assuntos, dos bens do hospício fundado pelo rei Childeberto I e pela rainha
Ultroghote, também fazem referência aos necatores pauperum. Os bispos
conciliares querem impedir, a todo custo, que aquilo que foi atribuído ao
hospício (bens e pessoas), através de dons dos reis ou esmolas dos iéis,
seja recuperado pelo bispo de Lyon pessoalmente ou por ele transferido à
propriedade da igreja sob sua responsabilidade:

[...] E se alguém, qualquer que seja o seu poder ou estatuto, tentar contrariar nossa
presente constituição ou subtrair alguma coisa às regras ou aos recursos do hospício,
de forma que esse hospício cessaria de existir, que ele seja, como assassino dos pobres,
assolado com um anátema irrevocável24.

21 V Concílio de Orléans (549), 13: “Quod quisque fecerit, tanquam necator pauperum antiquorum
canonum sententiis constrictus ab ecclesiae liminibus excludatur, quamdiu ab ipso ea, quae sunt
ablata uel retenta, reddantur”.
22 I Concílio de Mâcon (581-583), 4: “Vt, qui oblationes idelium defunctorum, quae ecclesiis con-
feruntur, retinent, uelut retentatores aut aegentium necatores ab ecclesiae liminibus arceantur”.
23 IV Concílio de Orléans (541), 36: “Se um bispo dá a um clérigo de outra igreja, por qualquer
razão que seja, um bem de sua própria igreja, que esse bem, após a morte daquele que o recebeu,
retorne para a possessão da igreja de cujo patrimônio ele havia sido retirado, pois é injusto que
por um tal motivo a Igreja, que provém às necessidades de muitos, sofra um prejuízo” (“Si quis
episcopus alterius ecclesiae clerico de facultatibus suae aliquid sub titulo quocumque donauerit,
post eius obitum, qui accepit, ad ecclesiae ius, de cuius facultate discesserat, reuertatur, quia
iniquum est, ut sub hac specie damnum ecclesia, quae multis subuenit, patiatur”).
24 V Concílio de Orléans (549), c. 15: “Quod si quis quolibet tempore, cuiuslibet potestatis aut
ordinis persona, contra hanc constitutionem nostram uenire temptauerit aut aliquid de consuetu-
dine uel facultate exenodocii ipsius abstulerit, ut exenodocium, quod auertat Deus, esse desinat,
ut necator pauperum inreuocabili anathemate feriatur”.

92
Até mesmo os bispos podiam ser designados necatores pauperum, caso
se apropriassem, por alguma manobra ou artifício, de bens em possessão de
outra igreja, ocupando-os sem nenhuma forma de processo e anexando-os
às suas propriedades ou às propriedades de sua igreja. Nesse caso, seriam
excomungados e depostos da função episcopal25. O bispo não pode ser
considerado, em hipótese alguma, proprietário dos bens das igrejas ou mesmo
de sua própria igreja26.
O 14° cânone do IV Concílio de Orléans salienta que todas as doações feitas
às igrejas ou aos pontíices, a partir de um ato legal, deviam ser respeitadas
pelos herdeiros legítimos, por consideração a Deus27. A menção a Deus mostra
que, para os autores dos cânones, as doações às igrejas constituem, em último
caso, doações a Deus. O princípio da propriedade divina aparece pela primeira
vez no 49° cânone do Concílio de Agde (506) – na verdade um acréscimo
posterior ao texto primitivo do concílio – na forma de um ordenamento, que
estabelece que os bens sagrados pertenciam a Deus e, portanto, os bispos, padres
e diáconos estavam proibidos de vendê-los, trocá-los, dá-los ou aliená-los28.
Essa disposição não implica em uma exclusão completa dos bens eclesiásticos
das circunstâncias legítimas de transmissão, mas apenas dos casos em que os
beneiciários são bispos, padres e diáconos, e não a própria Igreja. Os cânones
conciliares francos estão preocupados, sobretudo, com as formas ilícitas de
apropriação dos bens eclesiásticos. Em casos extraordinários, como o que
será examinado mais adiante no Testamento de Bertrand de Mans, a venda de
bens da Igreja é permitida. O princípio da propriedade divina só será exposto
de maneira clara no III Concílio de Paris e no II Concílio de Tours, ambos da
segunda metade do século VI. Esses dois concílios, respectivamente no 1° e
no 26° cânones, repetem a mesma assertiva:

25 Concílio de Clichy (626-627), 24: “Si quis episcopus res, quae ab alia ecclesia presentialiter possi-
dentur, quocumque ingenio aut callida cupididate peruaserit et sine audientia presumpserit usur-
pare ac suis uel ecclesiae suae ditionibus euocare, diu communione priuatus ut necator pauperum,
ab oicium deponatur”.
26 O bispo não pode dispor dos bens de sua igreja como bem entende. O Concílio de Clichy
(626-627), 25, por exemplo, restringe a possibilidade de venda dos vasos sagrados apenas em
caso de urgente necessidade para a libertação de cativos. O bispo que violasse essa disposição
seria suspenso de sua função durante dois anos (“Si quis episcopus, excepto si euenerit ardua
necessitas pro redemtione captiuorum, ministeria dancta frangere pro qualecumque conditiobe
presumpserit, biennio ab oicio cessabit ecclesiae”).
27 IV Concílio de Orléans (541), 14: “Quaecumque ecclesiis aut pontiicibus sub conpetenti ac
iusto documento fuerint delericta, ab heredibus legitimis dignum est, ut pro Dei contemplatione
seruentu”.
28 Concílio de Agde (506), 49: “(Sententia quae in veteribus exemplaribus conciliarum non habe-
tur, sed a quibusdam in ipsis inserta est) : Diacones vel presbyteri in parrochia constituti de rebus
ecclesiae sibi creditis nihil audeant commutare, vindere vel donare, quia res sacratae Deo esse
noncuntur. Similiter et sacerdotes nihil de rebus ecclesiae sibi commissae, ut superius comprehen-
sum est, emutare [vel] alienare praesumant. Quod si facere voluerint, convincti in concilio et ab
honore depositi de suo, aliud tantum restituant, quantum visi sunt praesumpsisse”.

93
E que ninguém tente reivindicar os bens de Deus (res Dei) pretextando as partilhas
entre os reinos, pois o poder de Deus abarca sob sua única dominação todos os reinos29.

Era urgente, para os bispos conciliares, defender os bens da Igreja contra


as reivindicações vindas do exterior, especialmente em razão das partilhas do
reino e das contestações por parte dos herdeiros das doações feitas às igrejas.
Em face desses novos casos, o argumento da autoridade canônica não podia,
sozinho, garantir a integridade dos bens eclesiásticos; daí a construção de um
qualiicativo jurídico dos bens sustentando: 1) que os bens da Igreja não estão
submetidos ao imperativo da prescrição pelo uso, contrariamente aos bens
que não são da Igreja; 2) que a distinção entre os dois tipos de bens se deve:
2.1) a seus proprietários e 2.2.) a seus beneiciários; 3) que os bens da Igreja
servem aos pobres; 4) que são bens de Deus (res Dei).
A qualiicação que privilegia o estatuto dos proprietários, em detrimento
de um valor intrínseco do bem na hierarquização da gravidade do roubo, é
encontrada, também, em alguns códigos de honra mediterrânicos. As pequenas
fábulas sicilianas em forma de apologias (“parità”), editadas por S. Guastella
no inal do século XIX, não separam os objetos em categorias, mas os homens,
em ricos e pobres: é permitido roubar os ricos, quando for necessário, mas
absolutamente proibido roubar os pobres, associados a Jesus Cristo30. No
mundo franco, no entanto, observa-se algo sensivelmente distinto: não há,
nesses textos, essa moral igualitária que faz ricos e poderosos pagarem o preço
de sua condição social, tampouco há uma noção de justiça distributiva. Nos
concílios merovíngios, o combate à apropriação dos bens dos paupares por
parte dos potentes é um meio para defender os bens da Igreja, como se pode
observar no II Concílio de Mâcon, de 585. No 14° cânone, os bispos conciliares
mencionam os próximos do rei e outros potentes, que utilizam seu poder
secular para promover a apropriação dos bens dos pobres:

[...] Devido à intervenção de algumas pessoas, soubemos que, em desrespeito aos


cânones e às leis, os próximos do rei e outros, valendo-se de seu poder secular,
amparam-se dos bens de outrem e, sem intentar nenhum processo, ou fornecer
alguma justiicativa, expulsam os pobres (miseros), não somente de seus campos,
mas também de suas próprias casas. Consequentemente, decretamos de um comum
acordo que, destarte, ninguém tenha a liberdade de cometer um mal parecido, mas
que, conforme os cânones e as leis, exponha suas reivindicações em justiça, de modo
que nenhum pobre seja expoliado de seus bens pela violência ou por qualquer fraude.

29 III Concílio de Paris (561-564), 1; II Concílio de Tours (567), c. 26: “Neque quisquam per in-
terregna res Dei defensare nitatur, quia Dei potentia cunctorum regnorum terminos singulari
dominatione concludit”.
30 Guastella, S. Le Parità morali, Milão, 1968: 76-94.

94
Que aqueles que tentarem desobedecer a esta disposição, que não é somente nossa,
mas também dos antigos Padres e reis, sejam atingidos pelos raios do anátema31.

O texto desse cânone promove uma ampliação sem precedentes do


campo das preocupações conciliares em relação ao roubo: até então, os bispos
tinham se ocupado somente da apropriação dos bens da Igreja32. Entretanto,
nesse trecho, a assimilação dos bens da Igreja aos bens dos pobres é mais
que uma metáfora, cujo efeito seria o de proclamar que os bens eclesiásticos
são utilizados em benefício dos pobres eclesiásticos. A norma conciliar em
Mâcon II considera os bens dos pauperes como bens eclesiásticos. A própria
punição para o ataque a esses bens por parte dos potentes – o anátema – é
o melhor indício de que são considerados como bens da Igreja. Os cânones
conciliares promovem uma hipertroia dos bens eclesiásticos, na medida em
que sua qualiicação jurídica incorpora os bens dos pobres.
No I Concílio de Mâcon, os bispos conciliares associam os assuntos públicos
aos interesses dos pobres33. Esse princípio é conirmado pelo rei Gontrão no
edito por ele publicado após o II Concílio de Mâcon. Os pobres possuem um
estatuto particular na prática conciliar da segunda metade do século VI: sua
defesa aparece como o objetivo último da ação de bispos e reis. O roubo de
bens eclesiásticos é apresentado, nos cânones, como um ataque àqueles que
deles beneiciam-se (os pauperes), àquela que é sua possessora legítima (a
Igreja) e, em último caso, a seu proprietário (Deus).
Os bispos detinham o direito de dispor dos bens eclesiásticos, porém,
esse direito não era uma forma de propriedade, mas uma posse, submetida
a dois critérios: a necessidade de se utilizarem esses bens, de acordo com a
vontade Daquele que os possui de fato, em benefício dos pobres; e a vontade
do doador, que não realiza a doação em benefício do bispo, mas para o repouso
de sua alma (pro remedium animae)34.

31 II Concílio de Mâcon (585), 14: “Ex interpellatione quorumdam cognouimus calcatis canonibus
et legibus hi, qui latere regis adhaerent, uel alii, qui potentia saeculari inlantur, res alienas com-
petere et nullus exertis actionibus aut conuinctionibus praerogatis miseros non solum de agris, sed
etiam de domibus propriis exulare. Idcirco in medio consulentes decernimus, ut deinceps huius
mali licentiam quispiam non habeat, sed secundum canonum atque legum tenorem causarum
suarum actionem proponat, ut nullus miserorum rebus suis per uirtutem aut adsentationem
quamlibet defraudetur. Illi autem, qui contra dispositum non solum nostrum, sed etiam antiquo-
rum patrum et regnum uenire temtauerint, procellosi anathematis ultione plectantur”.
32 Sobre o I e o II concílios de Mâcon, ver Cândido da Silva, M. A Realeza Cristã na Alta Idade
Média. Os fundamentos da autoridade pública no período merovíngio (séculos V-VIII), São Paulo,
2008: 255 e ss.
33 Concílio de Mâcon I (581-583), prólogo: “Cum ad iniunctionem gloriosissimo domni Guntramni
regis tam pro causus publicis quam pro necessitatibus pauperum in urbe Matiscensi nostra me-
diocritas conuenisset...”.
34 Concílio de Clichy (626-627), 22: “Aquilo que é legado ou dado, ao menos pelos estrangeiros,
aos pontíices que ocupam o mais alto nível do sacerdócio, quer tenha sido legado à igreja ou a

95
Para além da airmação de uma noção de propriedade absoluta, centrada
no próprio Deus, a qualiicação jurídica do roubo nos cânones conciliares
apresenta outra diferença importante, em comparação com a legislação real.
O Pactus legis Salicae estabelece, em seu título XI, disposições para o roubo
e invasão de casas por escravos, e em seu título XII, medidas sobre o roubo e
a invasão de casas por homens livres. Como foi demonstrado anteriormente,
a punição não era a mesma, de acordo com o estatuto do ladrão. Não é o
que se vê nos cânones conciliares. No 18° cânone do Concílio de Clichy, a
punição – a excomunhão – é a mesma, qualquer que seja o grau, a função ou
autoridade daquele que, após a morte do bispo, ousar se apropriar dos bens
da casa episcopal ou dos campos da igreja:

[...] Se alguém, qualquer que seja o seu grau, sua função ou sua autoridade, ousa, no
momento da morte de um bispo, amparar-se de qualquer objeto que se encontra na
casa ou nos campos da igreja, antes da abertura do testamento ou um julgamento,
ou ainda se ele ousa infringir os encerramentos da igreja e tocar na mobília que se
encontra na casa da igreja, ou de inventoriá-la, que ele seja rejeitado da comunhão.

Contrariamente ao que se veriica na legislação real, os diferentes estatutos


dos ladrões não são importantes na deinição da penalidade35.
A partir da qualiicação do roubo dos bens eclesiásticos, os cânones
conciliares estabelecem uma hierarquia, na qual esses bens aparecem como
propriedade de Deus; os clérigos, Seus representantes na terra, detêm a posse
desses bens, e zelam por sua utilização em benefício dos pobres. Os bispos
são considerados os defensores, e não somente os guardiões, dos bens que lhes
foram coniados36. A inalienabilidade dos bens eclesiásticos está em relação

eles em particular, posto que o doador oferece evidentemente para o repouso de sua alma e não
para o proveito do bispo, eles não poderão considerá-los como bens próprios, mas como um legado
feito à igreja, para ser acresentado aos recursos da igreja; assim, é justo que da mesma forma que
o bispo desfruta daquilo que é legado à igreja, a igreja desfrute daquilo que é deixado ao bispo”
(“Pontiices uero, quibus in summo sacerdotio constitutis ab extraneis dumtaxat aliquid aut cum
ecclesia aut sequestratim aut dimittitur aut donatur, quia ille, qui donat, pro remedium animae
suae, non pro quommoda sacerdotis probatur oferre, non quasi suum proprium, sed quasi di-
missum ecclesiae inter facultates ecclesiae conputabunt, quia iustum est, ut, sicut sacerdos habet,
quod ecclesiae dimissum est, ita ecclesia habeat, quod reliquit sacerdos”).
35 Concílio de Clichy (626-627), 18: “Si quis in quolibet gradu uel cingulo constitutus aut potestate
sufultus decedente epíscopo res cuiuslibet conditionis in domus uel agros ecclesiae positas ante
reserationem testamenti uel audientiam ausus fuerit occupare uel repagula efringere ecclesiae et
supellectilem infra domus ecclesiae positam contingere uel scrutare presumpserit, a communione
abdicatur”.
36 III Concílio de Paris (561-564), 1: “É injusto sermos considerados como conservadores das
cartas pelas quais é atestada a doação feita pelos iéis às igrejas mais do que, segundo o preceito
recebido, como os defensores dos bens que nos foram coniados” (“Iniquum esse censemus, ut
potius custodes cartarum, per quas aliquid ecclesiis a idelibus personis legitur derelictum, quam

96
direta com o estatuto de seu Proprietário, o único cujos bens não estavam
submetidos às prescrições pelo uso. Deus era, no sentido moderno do termo,
o único proprietário na Gália.
A ideia do Deus-proprietário é retomada na Regra de Chrodegang de
Metz († 766), redigida por volta de 750, e aconselha aos clérigos que não eram
capazes de renunciar ao benefício de seus bens terrestres, que guardassem
sua possessão e entregassem a Deus a propriedade:

[...] São Próspero e outros santos Padres nos disseram, na autoridade divina, que
os clérigos que desejam viver sobre os bens da Igreja, devem fazer doação de sua
própria propriedade por um ato jurídico a Deus e à Igreja na qual servem; assim,
eles poderão mais legitimamente e sem grande culpa pegar dos bens da Igreja. Assim
como o clero é capaz de desfrutar dos bens da Igreja, do mesmo modo a Igreja pode se
alegrar que ela e os pobres são promovidos e enriquecidos pela bens desses clérigos.
Por toda a vida destes clérigos, eles poderão, se preferirem, ter a renda de seus bens,
com o consentimento da igreja, tanto quanto todas as propriedades estiverem em
comum, e que a propriedade reverta quando de sua morte para a Igreja ou para a
congregação dos Cânones a quem já tinha sido concedida37.

Embora tenha alcançado relativo sucesso – apenas 4 manuscritos, mais


ou menos completos, foram preservados –, a Regra de Chrodegang mostra a
força dos qualiicativos jurídicos dos cânones conciliares. Mais de um século
após o último concílio merovíngio, o princípio da propriedade divina era ainda
proclamado. A Vida de João, abade do Monastério de Gorze, escrita a partir
de 974 pelo abade Saint-Arnoul de Metz, destaca, igualmente, o princípio da
propriedade divina, conforme o trecho a seguir:

defensores rerum creditarum, ut praeceptum est, iudicemur”).


37 Regra de Crodegang de Metz, 31: “...quia sanctus Prosper vel alii sancti Patres secundum divi-
nam auctoritatem sancxerunt, ut illi clerici qui de rebus ecclesie vivere cupiunt, res proprias quas
habent per instrumenta cartarum Deo et ecclesia cui deserviunt condonent et sic rebus ecclesie
gaudent, ita et ecclesia de rebus ipsorum clericorum cum pauperibus suis sit alta atque meliorata
gratuletur; ita tamen ut ipsi clerici, cm advivent, si ita placuerit, res suas usufructuario ordine
per beneicium ecclesiam habeant, ut omnia sit communia et post obitum eorum ad ecclesiam vel
ad canonicum ordinem, cui antedate fuerant, revertantur” (he Chrodegang Rules. he Rules for
the Common Life of the Secular Clergy from the Eight and Ninth Centuries. Critical Texts with
Translations and Commentary, ed. J. Bertram, Aldershot, 2005: 47).

97
[..] A um diácono encarregado dos assuntos da igreja, ele lembrava essas palavras
tiradas dos escritos de São Gregório38: ‘Esses bens não pertencem nem a mim nem
a ti; aja como se devesses prestar conta Àquele a quem eles pertencem’39.

Nos cânones conciliares, a natureza dos bens eclesiásticos não participa


de sua qualiicação jurídica: o que os torna distintos dos outros bens sujeitos às
prescrições pelo uso, e o que os retira do campo das trocas e das apropriações,
é o estatuto de Seu Proprietário. Mas Deus não é, por princípio, o proprietário
de todos os bens, de todas as coisas? Como os bispos conciliares chegaram a
essa deinição que outorga a Deus um lugar especiico em lagrante paradoxo
com sua onipotência e sua onisciência?
As raízes dessa “personiicação” da divindade estão na necessidade de
defender os bens da Igreja contra os ataques dos laicos. A relação da norma
com as práticas sociais reside, precisamente, em que o ponto de partida para
a elaboração dessas normas é uma situação precisa que a sociedade pretende
alterar. Seria um equívoco buscar na norma um retrato das práticas sociais;
o que se encontra nela é uma reconstrução dessas mesmas práticas. O Deus
dos textos conciliares não é o mesmo dos textos teológicos, mas uma espécie
de Deus-proprietário, um qualiicativo jurídico. Eis porque o estatuto daquele
que se ataca aos bens eclesiásticos nada importa em face do estatuto Daquele
que é o seu proprietário legítimo.
Na legislação imperial tardo-antiga e nas leges bárbaras, assiste-se a uma
confusão progressiva entre possessio e dominium, com a predominância da
primeira; já na legislação conciliar, há um nítido esforço de construção de
uma noção de plena propriedade. O Preceito atribuído a Clotário II, como se
viu anteriormente, marcou no mundo franco a consagração dos princípios do
usucapio e o da preeminência da justiça sobre a lei. Nos cânones conciliares,
paralelamente, há uma noção de propriedade absoluta, a propriedade de Deus.
Deus tornou-se o proprietário dos bens da Igreja. Ele não está mais fora do
mundo, e é colocado em concorrência com os diversos possessores. O que se
tem é o inverso de um processo de reiicação, uma espécie de “essencialização”
de Deus, que mostra a força e o alcance da qualiicação jurídica. Os concílios
merovíngios desenvolvem uma construção normativa, que havia começado
no Concílio de Agde, e na qual a sacralização dos bens eclesiásticos é reforçada
pelo recurso à qualiicação jurídica do proprietário. A legislação real qualiica

38 Essa citação não foi encontrada nas obras de Gregório Magno; segundo M. Parisse, ela não
está presente no CDROM dos autores do Corpus Chrisrianorum (Parisse, M. (ed. e trad.) La Vie
de Jean, abbé de Gorze. Paris, 1999: 117, n. 96).
39 Vita Iohannis Gorzie coenobii abbatis, 88: “Illud sepe de dictis beati Gregorii ad quendam
diaconum res ecclesiasticas curantem commemorans, ‘Res, inquit, hae nec meae sunt nec tuae; ita
age, ut de his ei cuius sunt rationem redditurus’”.

98
o roubo a partir do estatuto do proprietário e do ladrão; os cânones o fazem
somente a partir do estatuto do proprietário.

O testamento de Bertrand de Mans (616):

A qualiicação jurídica dos bens elaborada nos cânones conciliares vai


além desses textos. A distinção entre bens da Igreja e bens que não são da
Igreja prevalece em várias modalidades de transferência patrimonial. As
transferências de bens no interior dos grupos de parentesco – constituição de
duários, doações entre esposos, doações de um avô aos seus netos, partilhas de
heranças40 – são acompanhadas de cláusulas que garantem uma compensação
inanceira à parte lesada, em caso de violação do ato. No caso das doações pro
remedio aniamae, as sanções são muito mais duras. Os bens outorgados aos
santos relevam, destarte, de um registro público e sagrado. Esses bens estavam
colocados fora de alcance, e sua violação, submetida à sanção espiritual. Ainal,
participavam de um circuito de troca que garantia a própria salvação daqueles
que os utilizassem de maneira correta, isto é, em benefício dos pobres. É o que
se vê na Vita Richarii, de Alcuíno, em que as doações do santo aos pobres são
deinidas como um felix commercium, no qual ele distribuía bens efêmeros
em troca de bens eternos41. Os bens oferecidos a Deus eram bens sagrados, e
seus usurpadores, considerados sacrílegos42.
Redigido em Março de 616, o Testamento de Bertrand, bispo de Mans,
representa um caso especíico de transmissão de bens; é um dos textos mais
importantes para a compreensão do estatuto da propriedade no mundo
franco. Editado em 1986 por M. Weidemann43, é composto de um protocolo

40 No que se refere ao duário: Marculfo 15, Tours 14, Sens 25, Formulae salicae Lindengrogianae
7, Formulae Sangallenses Miscellaneae 18; doações entre cônjuges: Marculfo 7, Tours 17-18,
Lindenbrog. 13; doações de um avô para seus netos: Marculfo 10-11, Tours 21-22, Lindenbrog. 14;
doações de um pai à sua ilha: Marculfo 12; partilha da herança: Marculfo 14, Tours 25 (MGH
Formulae Merowingici et Karolini aevi, ed. Zeumer, Hanovre, 1882-1886).
41 Vita Richarii, 5: “Todas as somas que o povo lhe dava pela sua pregação, ele se apressava em
partilhar e dar aos pobres. Ele considerava indigno de pensar no dia seguinte em nossa vida
terrestre, pois aspirava receber as riquezas da vida eterna; ele distribuía aos pobres os dons de
todos, de modo a receber de Deus as recompensas prometidas. Ele fazia um comércio feliz, dis-
tribuindo com alegria pobres bens efêmeros e recebendo na felicidade bens magníicos e eter-
nos...” (“Quicquid uero ei populus in stipendia praedicationis sponte obtulit omnia pauperibus
diuidere festinauit. Indignum ei fuit de crastino praesentis uitae cogitare, qui diuitias aeternae
uitae accipere anhelauit. Ideo oblata ab hominibus distribuit ut promissa a Deo acciperet. Felix
commercium ut qui parua ac transitória hilariter distribuerat magna et aeterna feliciter esset
accepturus”).
42 Le Jan, R. Malo ordine tenent. Transferts patrimoniaux et conlits dans le monde franc (VIIe-Xe
siècle). : 134-135.
43 Das Testament des Bischofs Berthramn von Le Mans vom 27 März 616. Untersuchungen zu
Besitz und Geschichte einer fränkischen im 6. und 7. Jarhundert, ed. Weidemann, M., Mainz,

99
de introdução e 70 disposições. O pai de Bertrand era natural da Neustria, e
sua mãe, da Aquitânia. Nascido por volta de 540, tornou-se bispo de Mans
em 584, e morreu em 623. Fiel a Clotário II, foi obrigado por seus adversários
a abandonar seu bispado em duas ocasiões, entre 592 e 596, e entre 600 e
605. As turbulências de sua carreira são visíveis em seu testamento a partir
da descrição das origens e atribuições das villae, e compõem um quadro dos
ataques dos quais foram vítimas seus próprios bens, e também, os das igrejas.
O termo “roubo” não aparece no testamento, mas o texto descreve situações
nas quais os bens do rei, da igreja, do bispo e de sua família foram objeto de
apropriações, usurpações, etc.
Por esse testamento, é possível veriicar que a distinção entre os bens da
Igreja e aqueles que não são da Igreja foi projetada além dos textos conciliares.
A este trabalho, interessa, sobretudo, analisar como o testamento procede à
qualiicação jurídica da propriedade dos diversos tipos de bens e proprietários
que são mencionados. De fato, um dos maiores problemas em torno da
interpretação do Testamento de Bertrand de Mans é a separação entre os
bens da Igreja e os bens públicos. S. Linger airma que, nesse texto, os bens
eclesiásticos são uma extensão dos bens públicos. O melhor indício disso
estaria no fato de que o relato da usurpação dos bens do rei Clotário II está
na disposição 10, a mesma que menciona a usurpação dos bens da Igreja. E
isso seria a consequência jurídica da usurpação do próprio reino, por parte
dos adversários de Clotário II44. Se a autora tem razão, a qualiicação jurídica
estabelecida pelos cânones conciliares foi ineicaz em promover a distinção
entre os bens eclesiásticos e os bens públicos. Essa também é a opinião de M.
Rouche, que propõe uma explicação para o fenômeno da invasio dos bens
da Igreja pela ação do poder real, segundo a qual este último nunca teria
renunciado aos bens que estimava serem seus. Rouche sustenta que, desde
a união entre a Igreja e o Estado, em 392, com o Edito de Teodósio, as terras
eclesiásticas seriam terras do Estado45. O autor possui uma visão excessivamente

1986.
44 Linger, S. Acquisition et transmission de propriétés d’après le Testament de Bertrand du Mans
(27 mars 616). In: Magnou-Nortier, E. (ed.), Aux sources de la gestion publique, t. II, L’invasio des
villae ou la villa comme enjeu de pouvoir, Lille, 1995: 177.
45 “Elle [l’Église] ne proteste jamais contre la légitimité des mesures royales, parce qu’elle sait très
bien qu’elle ne le peut pas. Elle se rabat par conséquent sur une protestation de nature religieuse:
le soin des pauvres et du clergé passe avant, les uns diraient la bonne marche de l’État, eux disent,
avant les protégés du pouvoir royal. En d’autres termes, plus contemporains dans leur esprit, le bu-
dget social a priorité sur le budget de fonctionnement. En transférant ainsi le débat sur le plan des
valeurs, la primauté du pauvre et la fonction spirituelle, les évêques, dès lors, ‘n’ont plus d’armes’,
comme ils le disent. Il ne leur reste que la juridiction amiable, l’excommunication, l’anathème
perpétuel, ou encore l’impressionnante malédiction rituelle de psaume 108. Ainsi, s’expliquent les
expressions bizarres ‘envahir des revenus’ ou ‘ fouler aux pieds la religion’” (Rouche, M. La notion
d’invasion dans les conciles mérovingiens. In: Magnou-Nortier, E. (ed.), Aux sources de la gestion
publique, t. II, L’invasio des villae ou la villa comme enjeu de pouvoir, Lille: Presses Universitaires
de Lille, 1995: 133-134).

100
romanista, e enxerga todas as questões da época franca a partir de relações
Igreja/Estado. Tais relações podem até ser úteis para a compreensão do mundo
imperial no século IV, mas não da situação da Gália entre os séculos VI e VIII.
M. Rouche também ignora a legislação conciliar franca, que se opôs, com
vigor, à invasio cometida pelo rei e pelos potentes do reino.
Conforme a disposição 10:

[...] Ninguém ignora que, após a morte do rei Gontrão, prestei juramento de forma
indissolúvel ao meu senhor Clotário, pois a cidade de Mans lhe cabia legitimamente
pela sucessão de seu pai, o rei Chilperico, de boa memória, após a morte do rei Gontrão.
Devido à cupidez, esta cidade lhe foi retirada, e quanto ao restante de seu reino, uma
grande parte foi dividida. Mas meu juramento me ligava inteiramente de tal forma
que eu não podia de maneira alguma rompê-lo. Isso facilitou as coisas para mim e
eu deixei a sé, os bens, bem como a santa igreja e a propriedade, para não perjurar,
o que agrada a Deus. Então, por amor deste príncipe, permaneci com ele, antes e
depois de sua espoliação (expoliationem), porque ela era injusta. Este príncipe deveria
nos dar alguma coisa, para vivermos e para alimentarmos os pobres; então esse rei
foi para nós um benfeitor. Pois nós, pobres, não temos nem ouro nem prata, mas
bens de ti, gloriosíssimo senhor Clotário; entretanto, a respeito do que vossa glória
nos deu, lembramos vossa grandeza neste testamento. É por isso que oferecemos ao
vosso reino os bens para os quais, por um preceito conirmado por vossa mão, vós
nos atribuístes a autorização de fazer o que quiséssemos, isto é, as villae de Meulan e
Gaillon, com todo seu território e dependências, e o que em seguida acrescentamos,
que vossa grandeza receba em sua propriedade46.

46 Testamento de Bertrand de Mans (616), 10: “Licet nulli habetur incognitum qualiter ego post
transitum Guntranni, quondam regis, per quod sacramentum insolubile domno meo Clothario
regi dedi, pro eo quod civitas Cenomannis, legitimo ordine, post transitum domni Gunthranni,
ex hereditate genitoris sui, bonae recordationis suae Chilperici quondam regis, debuit pervenire;
sed faciente cupiditate, et civitas ipsa ei fuit ablata, et de reliquo regno suo multum passus est dis-
pendium. Sed dum me sacramentum meum in integrum constrinxit ut eum nullatenus dimitiere
deberem, facile et michi fuit et sedem, facultatem, tam sanctam aecclesiam quam et proprietatem
relinquerem, quam perjurus — quod absit — invenirer. Sed dum pro amore ipsius principis, una-
nimiter cum ipso consisterem, anteriorem expoliationem suam vel posteriorem, quod injuste per-
tulit, necesse ipsi principi fuit ut nobis aliquid adderet, unde vitae substantiae et nos et pauperes
nostri sustentare deberemus. Unde ille rex caelestis pro nobis retributor exsistat; nam nos pauperi
haberemus a nec aurum, nec argentum, unde tibi, gloriosissime domne Clotharie, bona retribua-
mus: attamen, de id quod gloria vestra nobis contulit, praesumemus in hoc testamento nostro
vestram celsitudinem memorare. Oferimus itaque regno vestro, de muneribus vestris, unde nos
per praeceptum vigoris vestrae manus roboratum, licentiam tribuisti faciendi quod volebamus, id
est: villas Neolone et Walionno, cum omni termino et adjacentiis ad se pertinentibus, vel quicquid
postea nobis fuit melioratum, hoc celsitudo vestra ad suam recipiat dominationem”.

101
Os bens mencionados nessa disposição não são bens da Igreja, mas
villae do isco real, concedidas ao bispo após ele ter deixado sua sé episcopal
na partilha que se seguiu à morte de Gontrão, e na qual Clotário II perdeu
a cidade de Mans. Esses bens não são integrados ao patrimônio da Igreja
episcopal de Mans após a morte de Bertrand, mas retornam ao isco (em
dominium) pelo testamento.
A disposição 25 trata de bens de outra natureza:

[...] todas as coisas, inteiramente, com os servidores que eu lá coloquei, ou que poderei
ainda colocar com a ajuda de Deus, que tudo esteja sob a possessão da santa basílica
em nome de Deus, que seja dominado perpetuamente. Da mesma forma, para a
metade da colônia Ganelon que adquiri de Beron em nome desta basílica, e a outra
metade, que a ilustre senhora Egydia atribuiu ao santo local por doação: ordeno que
a integralidade seja possuída por esta basílica e assim permaneça perpetuamente.
Ninguém ignora como Bertheghisilus, de maneira ilícita, instalou-se em sua sé
contra a opinião dos cânones e tomou numerosas coisas de Santa Maria ou minhas
próprias coisas para suas inúmeras despesas. E sei que ele não devia devolvê-las,
exceto uma pequena parte para substituir meus próprios bens que ele destruiu. Ele
deu alguns bens com as cartas de venda, isto é, nos vendeu juntamente as casas,
Barillé e Etival-lès-le-Mans, sua porção total. Mais tarde, depois de outras mudanças,
quando o glorioso rei Clotário sofreu prejuízos no seu reino, e que eu, infeliz, estava
novamente retido em cativeiro, o já nomeado Bertegisèle acedeu novamente à igreja
e a devastou. Ele encontrou nos arquivos esta carta que ele próprio fez e ordenou que
queimassem; assim, esse juiz temerário e terrível deu o seu julgamento para esses
bens com a mesma. E depois que nosso senhor reencontrou a afeição com o seu
sobrinho Teudeberto, e recebeu agradavelmente uma parte do seu reino, retomamos
esses bens sob nosso domínio. Barillé, Etival-lès-le-Mans com as casas, os colonos,
as vinhas e as lorestas, os prados, as águas e os mananciais, e seus direitos ou tudo
o que há neles, dou à santa basílica dos santos Pedro e Paulo (...) Suplicamos nosso
sucessor e imploramos a ele pela Divina Trindade que as villae que dei à santa igreja
neste testamento ou que foram adquiridas durante a minha gestão permaneçam em
possessão da igreja: que sejam reunidas cada ano todas as coisas ou em todos os bens
os dízimos de cereais, vinho, queijo, toucinho, como se fazia de nosso tempo; que
isso seja fornecido aos pobres e aos viajantes em suas esmolas47.

47 Testamento de Bertrand de Mans (616), 25: “… totum et ad integrum, cum servientibus, quos
inibi posui, ut adhuc Xpisto propitio, ponere potuero, et modo ad ipsa sancta basilica in Dei no-
mine possidetur: in perpetuo dominetur. Simili modo medietatem de colonica Vatinolonno, quem
de Berone, in nomine ipsius sanctae basilicae, comparavi, et aliam medietatem, quem illustris
matrona Egydia, ad ipsum sanctum locum per donationis titulum contulit: jubeo ut in integrum,
sicut a modo ab ipsa basilica, Xpisto praesuli, possidetur, et in perpetuo inibi perseveret. Et quia
nulli habetur incognitum, qualiter Bertheghisilus inlicito ordine, contra discreta canonum, in sede
sua fuit adgressus, et nimium res sanctae Mariae vel meas proprias generavit pro his gravissimum
dispendium; unde sciam non ut debuit restauravit, nisi parvitate, pro res proprias meas, quas

102
Há uma diferença importante entre os bens que o rei retoma na disposição
10 (hoc celsitudo vestra ad suam recipiat dominationem) e aqueles que o mesmo
Bertrand recupera após o retorno de Clotário II ao poder, na disposição 25 (et
nos locella illa obsistente ad dominationem nostrae revocavimus). Os primeiros
são bens públicos, que o bispo devolve ao isco, em testamento. No segundo
caso, tratam-se de bens tomados por Bertheghisilus quando assumiu, contra
a opinião dos cânones, a sé episcopal de Mans. Em momento algum Bertrand
utiliza o termo “minha propriedade” para referir-se aos bens da igreja ou
aos bens públicos. Ele distingue seus bens daqueles da Igreja de Mans ao
descrever sua apropriação por Bertheghisilus (et nimium res sanctae Mariae
vel meas proprias generavit pro his gravissimum dispendium), e ao descrever
sua necessária restituição (unde sciam non ut debuit restauravit, nisi parvitate,
pro res proprias meas, quas malo ordine dixtraxerat). Na disposição 10, estão
elencados os bens públicos, ao passo que, na 25 há esclarecimentos sobre os
bens do bispo e os da igreja de Mans. Essa distinção formal na organização
do testamento traduz a força da qualiicação jurídica dos bens elaborada pelos
cânones conciliares: os bens da Igreja não são assimilados aos bens públicos,
tampouco aos bens dos bispos.
A disposição 34 mostra a força da qualiicação jurídica dos bens da Igreja
elaborada pelos cânones conciliares:

[...] A villa Plassac, situada no território de Bordeaux, ao lado do castelo Blaye, que
se situa no [rio] Garonne, mesmo tendo sido a possessão de meus pais durante
muito tempo, foi retirada dos direitos de minha mãe durante um interregno ou sua
juventude, e duas partes dessa villa foram dadas por testamento, ilícito, por Arnulfus,
o ilho de Maurillon que dela se amparou, às santas igrejas de Bordeaux, Tours e
Angoulême; a terceira parte estando sob possessão de Charnulfus, o irmão deste
Arnulfus. Houve então um processo entre nós e aqueles da villa; mas Charnulfus,
reconhecendo aquilo que nos devia legitimamente, em presença dos pontíices que

malo ordine dixtraxerat, locella cum carta venditionis dedit, hoc est cum domibus, cum Bariaco
et Stivale, portionem suam in integrum nobis vendidit. Et postea, cum alia vice gloriosus domnus
Clotharius de regno suo, in insidiis pertulit, et iterum ego pauper ipsum valde in captivitate fui, et
in ipso nec nominandus Berthegisilus iterum vastatur aecclesiae accessit, et carta ipsa quam prius
fecerat, in archivo aecclesiae invenit, eam igni comburi precepit, sic illi judex metuendus atque
terribilis, pro rebus suis, cum eo ponit judicium. Et postquam Dominus noster cum voluntate
Dei, una cum praecelso consubrino suo, hudoberto regi, caritatem inivit, et voluntarie quanti-
tatem de regno suo recepit, et nos locella illa obsistente ad dominationem nostrae revocavimus;
Campariaco vero, Aestivale, cum domibus, mancipiis, vineis et silvis, pratis, aquis, aquarumve
deattibus, et jure earum, vel omnem peculium: sanctae basilicae domni Petri et Pauli delego (…)
Precamur domno et pontiici successori nostro, et per Deum Trinitatis conjuramus, ut de villas
quas ego sanctae aecclesiae, per hunc folium testamenti delegavi, vel qui meo tempore conquesite
sunt, vel in dominationem sanctae aecclesiae pervenerunt: omnibus vel in omnibus, decimas an-
none, vini, casei, lardi, annis singulis congregentur, sicut nostro tempore actum fuit; et pauperibus
vel peregrinis, in eorum alimonia ministretur”.

103
possuíam as duas outras partes, devolveu-nos a terceira parte da villa e deu-no-la em
possessão, através de uma carta de sua mão conirmada pelos referidos pontíices.
Mas o amor divino nos impede de agir contra a santa igreja, exceto se pudéssemos,
com a graça de meus senhores e irmãos, comprar este bem. Uma vez que o senhor
bispo Agericus nos vendeu a parte que era de São Martinho e realizou esta venda
com seus cônegos, e como ele queria, demos a ele 60 sólidos e resolvemos nossa
contenda. Queremos que tu, santa igreja de Mans, minha herdeira, a possua. E se
pudermos comprar algo deste bem aos pontíices de Bordeaux ou de Angoulême,
tu receberás tudo inteiramente sob a tua tutela (potestas)48.

Bertrand recupera de Charnulfus uma parte da villa usurpada pelo pai


deste à sua mãe, sem verter nenhuma compensação. É algo bem distinto
que acontece com as partes que estavam sob a possessão da igreja de Tours.
Bertrand paga 60 sólidos pelo equivalente de 2/9a da villa que lhe pertenciam
de direito. Mas esse bem retorna à Igreja, particularmente à de Mans, pelo
testamento. Os textos conciliares foram eicazes em construir uma qualiicação
dos bens eclesiásticos que os protege e lhes dá estatuto distinto de outros
bens. Não há uma “sacralização”, que retire completamente os bens da Igreja
da esfera da comercialização. Esses bens mudam de estatuto, aumentam de
valor, comparado ao valor dos bens que não pertencem ou que não estão
sob possessão da Igreja. A noção de propriedade divina foi, notadamente,
elaborada como uma resposta às apropriações ilícitas e aos questionamentos
à propriedade da Igreja. Ela não é incompatível, em princípio, com a venda
de bens eclesiásticos, especialmente, bens fundiários. No entanto, isso não
representa a criação de um “mercado de bens eclesiásticos”, mesmo porque
os casos, nesse sentido, são excepcionais. Para o período em tela neste estudo,
e dentro da documentação tratada, encontrou-se apenas um caso.

48 Testamento de Bertrand de Mans (616), 34: “Villa vero Blacciago sita in terraturio Burdigalense
secus castro Blaivit quae est super alveum Garonne, licet a parentibus meis longo tempore fuit posses-
sa, et per interregna vel adolescentia genitricis meae fuit de jure suo ablata, et ab Aunulfo, ilio Mau-
rilionis, qui eas occupaverat per testamenti sui paginas, dum illiti esset ad sanctas aecclesias, hoc est:
Burdigalense et Toronicae et Equiles omnes in duas partes, ex ipsa villa sunt delegatas; testicharnulfus
gennanus ipsius Aunulfo possedebant, unde altercatione habuimus inter nos et ipsos de praedicta
villa; sed illi recognoscens quod nobis legitime debebatur, coram ipsis pontiicibus, qui duas partes ex
hoc possidere videbantur, nobis, de presente, tertia ex omnibus de villa ipsa reddidit, et epistola exinde
manu sua roborata, vel a predictis sacerdotibus irmata, nobis tradidit possidendam. Sed dum nos
ita constringit amor divinus, ut contra sancta aecclesia non ambulemus, forsitan si possumus, cum
gratia domnorum meorum et fratrum, rem ipsam redimere, sed quia domnus Agericus, episcopus,
portionem illam quae sancti Martini fuit, nobis vendidit, et venditionem cum canonicis suis nobis
fecit, et solus secundum arbitra sui valebat, de presenti dedimus, et ipsa altercatio nostra subjunxi-
mus: volumus ut tu, sancta heres mea aecclesia Caenomannica, possideas; et si adhuc in rem ipsam
de domus pontiicis, ut Burdigalense aut Equilemense redimere possumus: totum et ad integrum ad
tuam revoces potestatem”.

104
5. O problema dos bens da Igreja

As dúvidas sobre a utilização das vidas de santos como instrumentos para


a compreensão da história das sociedades não são atuais. Pelo menos desde
a consolidação da História como disciplina cientíica, os textos hagiográicos
são considerados materiais inapropriados para os historiadores, na medida
em que estariam repletos de “lendas piedosas” e de superstições. O veredito de
B. Krusch é bastante duro nesse sentido, e ele resume a opinião dos eruditos
alemães do inal do século XIX: os hagiógrafos eram falsários que fabricavam
relatos com objetivos precisos, e a produção hagiográica seria uma espécie
de Kirchliche Schwindelliteratur1. Os historiadores de língua francesa também
seguiam essa corrente de opinião. Para R. Aigran, por exemplo, quanto mais
milagres continha uma vita, menos ela seria digna de crédito2. W. Levison,
aluno de B. Krusch, foi o primeiro historiador, em 1921, a airmar que a
crença nos milagres era mais importante que sua realidade, mas foi preciso
esperar o advento da “ideengeschichte” e da “histoire des mentalités” para
que fosse superado o debate entre “história piedosa” e “história cientíica”,
entre “verdadeiro” e “falso”, salientando o papel dos textos hagiográicos na
compreensão das concepções religiosas que existiam no momento de sua
redação. Entretanto, a ascensão da “Nouvelle Histoire” e o interesse pelas
mentalidades também contribuiu para reforçar a ideia de que, a partir das
vidas de santo, poder-se-ia compreender as representações de uma sociedade
muito mais do que suas práticas sociais.
Nos últimos anos, alguns historiadores sustentaram que a utilização da
hagiograia pode ir muito além do campo das representações, e atingir aquilo
que M. Van Uytfanghe designa como “noyau historique” do texto hagiográico3.

1 Krusch, B. Zur Florianus- und Lupus-Legende. Eine Entgegnung. Neues Archiv der Gesellschat
für ältere deutsche Geschichtskunde n.24,1899: 559.
2 Aigran, R. L’hagiographie. Ses sources, ses méthodes, son histoire, Paris, 1953: 204.
3 Van Uytfanghe, M. Les avatars contemporains de l’hagiologie. A propos d’un ouvrage récent
sur Séverin du Norique. Francia 5, 1977: 639-671; ver também, Heizelmann, M. Introduction:
la querelle historiographique. In: Heizelmann, M. Poulin, J.-C. Les viens anciennes de sainte
Geneviève de Paris. Etudes critiques, Paris, 1996: 3-10, especialmente: 9. Um exemplo clássico
dessa perspectiva já se encontra no inal dos anos 1960, com a edição seguida de uma introdução
e um comentário da Vita Martini, de Sulpício Severo, escritos por Jacques Fontaine (Fontaine, J.
Vie de Saint Martin, I-III, Paris, 1967-1969 (Sources Chrétiennes 133-135). Podemos citar também
Lotter, F. Severinus von Noricum. Legende und historische Wirklichkeit. Untersuchungen zur
Phase des Übergangs von spätantiken zu mittelalterlichen Denk – und Lebensformen, Sttutgart,
1976. O autor crê que é possível, a partir das camadas compactas da “hagiologie Umdeutung”,
alcançar a verdadeira personalidade histórica de Severinus. Não se pode esquecer, também, da
obra clássica de F. Graus, Volk, Herrscher und Heiliger im Reich der Merowinger, Praga, 1965.
Graus vê as vidas de santos merovíngios (diferentes das vidas de santas merovíngias) como tes-

105
P. Fouracre, em artigo de 1990, defendia o “traditional historical approach”
das vidas de santos, isto é, a tentativa de reduzir os textos hagiográicos a um
conjunto de dados utilizáveis pelos historiadores4. Diversos argumentos são
invocados para sustentar esse ponto de vista, a começar pelo estatuto social
dos personagens principais das hagiograias. De fato, os santos da Alta Idade
Média eram, em sua maioria, personagens que desempenhavam um papel
político proeminente, seja como funcionários da administração real, seja
como interlocutores dos príncipes. Cerca de metade dos santos do período
franco era oriunda de famílias aristocráticas. Educados nas cortes dos reis,
muitos deles exerciam funções na administração civil antes de obterem a
função episcopal5. As hagiograias seriam um suporte para os milagres, um
dos meios mais eicazes para reforçar e promover a autoridade dos santos6.
Além dos relatos exaustivos de suas proezas, as hagiograias seriam repletas
de alusões às relações entre o rei e os clérigos, à administração franca, ou
ainda a questões de rito e doutrina, material útil à história das práticas sociais7.

temunhos diretos da “estrutura social” e da “consciência” da sociedade merovíngia.


4 Fouracre, P. Merovingian History and Merovingian Hagiography. Past and Present 127 (1),
1990: 3-38, especialmente: 1.
5 J. Chélini usa a expressão “hagiocracia” para deinir essa situação (Histoire religieuse de l’Oc-
cident medieval, Paris, 1968: 71.
6 Sobre a hagiograia, ver F. Graus (Volk, Herrscher und Heiliger im Reich der Merowinger. Studien
zur Hagiographie der Merowingerzeit), L.W. Montford (Civilisation in seventh Century Gaul as
relected in saints’ “Vitae” composed in the period), e também F. Dolbeau, M. Heinzelmann e J.-C.
Poulin (Manuscrits hagiographiques et travail des hagiographes) e P. Fouracre e R. A. Gerberding
(Late Merovingian France: history and hagiography, 640-720), entre outros.
7 As polêmicas em torno da Vita sanctae Genovefae constituem um bom exemplo da utiliza-
ção das hagiograias pelos historiadores. B. Krusch, em seu último grande artigo, publicado em
1916, deplora que a história da fundação do Reino dos Francos não seja escrita a partir da serie-
dade de Gregório de Tours, mas segundo as “loucas fantasias do monge de Sainte-Geneviève”
[KRUSCH, B. Die neueste Wendung im Genovefa-Streit, NA 40 (1916): 131-181 e :265-327, es-
pecialmente: 136: “...Wenn ich am Ende meiner hagiographischen Studien noch einmal an der
Anfang zurückkehre, der ein neues System der Legendenkritik begründet hat, so wird dies
einmal die Bedeutung des Gegenstander für die fränkische Urgeschichte rechtfertigen, denn
es ist natürlich nicht gleichgütlig, ob diese nach Gregor von Tours oder nach den närrischen
Phantasien des Mönsches von St. Geneviève dargestellt wird...”]. Em seus estudos sobre a Vita
sanctae Genovefae, Martin Heinzelmann e Jean-Claude Poulin identiicam no texto hagiográ-
ico elementos que esclarecem a ação da santa como membro da administração pública, bem
como suas relações com o rei Childerico († 481). Outro bom exemplo é a Vita Columbani, es-
crita por volta de 640 por Jonas de Bobbio. A Vida de São Columbano mostra as relações es-
treitas entre o santo e os príncipes francos, e oferece um amplo material para a compreensão
do papel da monarquia franca no processo de airmação do monaquismo columbaniano (Cf.
Clarke, H.B., Brennan, M. (ed.), Columbanus and Merovingian monasticism; Wood, I. he Vita
Columbani and Merovingian hagiography: 63-80; Riché, P. Columbanus, his followers and the
Merovingian Church.: 59-72; Wood, I. Jonas, the merovingians, and pope Honorius: Diplomata
and the Vita Columbani.: 99-120). Pode-se mencionar, também, a utilização feita por Bruno
Dumézil da Vita Columbani e de outras hagiograias em seu estudo sobre a conversão dos “wa-
rasques”. Dumézil sustenta que a campanha de evangelização levada a cabo no Jura por monges
oriundos do monastério de Luxueil resultava menos da presença de pagãos e de heréticos nesta

106
O ponto de vista adotado neste trabalho é distinto. Não busca pôr
em dúvida a utilidade das hagiograias para os historiadores, mas apontar
alguns limites de sua utilização para uma história das práticas sociais, ou
para uma história do cotidiano. A partir dos diferentes relatos sobre o roubo
nas hagiograias francas, não é possível estabelecer uma tipologia social dos
ladrões ou deinir uma tabela estatística que aponte as origens sociais dos
criminosos, ou as diferentes incidências dos crimes por eles praticados. No
entanto, isso não signiica que as vidas de santo sejam apenas obras literárias.
Procurar-se-á mostrar, ao longo deste capítulo, que as diversas descrições sobre
o roubo nelas contidas reportam-se, em sua maioria, ao problema dos bens
da Igreja. Mais do que simplesmente difundir uma visão moralizante acerca
das apropriações ilícitas dos bens eclesiásticos, as hagiograias veiculam os
qualiicativos jurídicos do roubo elaborados pelas leges e, sobretudo, pelos
textos conciliares. Os sujeitos e as coisas que aparecem nos relatos hagiográicos
sobre o roubo não são “pessoas” e “coisas”, mas categorias que, como se airmou
no primeiro capítulo, aplicam-se a certo número de casos individuais. Nesse
sentido, questionar os textos hagiográicos, os conciliares, ou mesmo a legislação
real, sobre as identidades e as origens sociais dos ladrões ou sobre os objetos
roubados, não produziria um repertório útil à compreensão das práticas sociais.
A própria recorrência de luvas, cavalos e calçados entre os objetos roubados
aos santos nas hagiograias francas mostra que, o que está em causa são as
“propriedades dos santos”, muito mais do que luvas, cavalos ou calçados. Da
mesma forma, ao se mostrar a incidência geográica e temporal das vitae que
mencionam casos de roubo, não se estaria construindo uma “geograia do
roubo” no mundo franco8. Mas apenas, um mapa da repartição geográica
das hagiograias que abordam o tema, o que é bem diferente.
As vitae francas constituem a maior fonte de descrição do roubo. Sua
análise será circunscrita ao mesmo intervalo cronológico adotado para o

região do que de uma estratégia de controle da Burgúndia por parte de Clotário II, após a reu-
niicação do Reino dos Francos [Dumézil, B. A conversão dos warasques do Jura no século VII:
missão ou cristianização? In: Cândido da Silva, M., Barros Almeida, N. (Orgs.), Poder e constru-
ção social na Idade Média: história e historiograia, Goiânia, 2011: 109-126].
8 T. Hauschild, especialista das sociedades mediterrânicas, tenta mostrar em seu livro, Ritual
und Gewalt, o papel desempenhado pelo espaço na estrutura da violência: a análise das for-
mas culturais da violência deve apoiar-se sistematicamente em um conhecimento preciso da
geograia e da topograia dos locais onde elas apareceram. O autor defende o conhecimento
das realidades locais, mas também dos detalhes aparentemente microscópicos, por exemplo,
as relações dos terroristas do 11 de setembro com os seus corpos, especialmente as experiências
corporais feitas pelos combatentes de Bin Laden nos campos de treinamento no Afeganistão. O
futebol e o caratê praticados sob um sol escaldante, o canto e a dança, os exercícios de respiração
e as orações noturnas visariam produzir experiências limites que a etnograia há muito estuda
no Mediterrâneo e no Oriente Médio (Hauschild, T. Ritual und Gewalt, Frankfurt, 2008). Seria
infrutífero tentar deinir a geograia do roubo, bem como as relações dos ladrões com seus cor-
pos durante os primeiros séculos da Idade Média. Não dispomos de materiais que nos permitam
essa abordagem.

107
estudo da legislação real e dos textos conciliares, do início do século VI ao
inal do século VIII. No que se refere ao século VI, o mais prolíico hagiógrafo
é Gregório de Tours. E, em suas obras, é encontrada a maioria absoluta das
descrições de roubo de bens. Há, no total, 19 referências ao roubo nas obras
escritas pelo bispo de Tours: Histórias IV, 36; IV, 43; V, 18; VI, 8; VI, 10; VII,44
e X, 1; Liber in gloria martyrum, 18, 58, 65, 72, 96; Liber in gloria confessorum,
17, 81, 86; Liber de virtutibus S. Martini, 17 e 36; Liber de passione S. Iuliani 16
e 18. Metade dessas referências encontra-se em textos pouco conhecidos do
bispo de Tours, especialmente o Liber in gloria martyrum (composto muito
provavelmente entre 585 e 594) e o Liber in gloria confessorum. O primeiro
contém relatos sobre mártires da Gália, seus milagres e os milagres realizados
por suas relíquias, e o segundo é um conjunto de pequenas biograias de
personagens importantes da Igreja, a maior parte tendo vivido no século VI9.
Com relação aos textos hagiográicos dos séculos VII e VIII, o primeiro
problema é a datação, especialmente por causa das reescrituras, interpolações
ou modiicações de que foram objeto no período carolíngio, e ao longo dos
séculos seguintes. As edições das vidas de santos nos MGH não dirimiram
as dúvidas sobre a data de produção de muitos desses textos. A tipologia
estabelecida para a Gália, por M. Van Uytfanghe, é bastante útil nesse sentido:
inicialmente, são apresentados 19 relatos hagiográicos, que o consenso de
historiadores e ilólogos situa entre 600 e 750 – e que ele qualiica de “corpus
A”10. Nesse corpus, há menções ao roubo apenas na Paixão de Leudegário. Van
Uytfanghe cataloga ainda algumas vitae, cuja datação é objeto de polêmica, ou
que não se beneiciaram de uma edição suicientemente crítica. Elas teriam
sido escritas entre o período merovíngio e o período carolíngio. Essas vitae

9 Segundo M. Heinzelmann, o Liber in gloria martyrum e o Liber in gloria confessorum mostram


a situação-tipo de um santo ou mártir, morto há muito e operando milagres “novos” com a ajuda
do Cristo, de modo a colocar em evidência a obra do Cristo vivo em favor de sua Igreja, mesmo
nos tempos atuais: “Ce sont donc moins les saints que leurs miracles contemporains qui sont au
centre de l’intérêt de Grégoire, et à travers ces miracles, c’est la réalité eschatologique du Christ et
de son Église qui est déinitivement visée”, Heinzelmann, M. Grégoire de Tours et l’hagiographie
mérovingienne. In: Degl’innocenti, A. De Prisco, A., Paoli, E. (org.), Gregorio Magno e l’agio-
graia fra IV e VII secolo, Florença, 2007: 175.
10 No século VII, as vidas (ou paixões) do bispo Arnoul de Metz († c. 640), da rainha Batilda (†
680/681), do bispo Géry de Cambrai († c. 623/626), do abade Germano de Grandval († 675), da
abadessa Gertrude de Nivelles († 659), do abade Jean de Réomé († c. 544), de Justo, mártir em
Beauvais, do bispo Leudegarius de Autun († 679), do bispo Prix de Clermont († 676), da rainha
Radegonda († 587), da abadessa Rustícula de Arles († 632/633), do bispo Sulpício de Bourges
(† 646/647), do bispo Vaast de Arras († 540); por volta de 700, a Vida de São Wandrille, abade
de Fontebelle († c. 668); na primeira metade do século VIII, a Vida (bastante fragmentada) de
Santo Èvre, bispo de Toul (e que viveu no século VI), as Vidas de São Ouen, bispo de Rouen (†
684) e Bonet, bispo de Clermont († c. 705), e a Vida de São Mémoire, padre de Troyes no século
V; inalmente, uma pequena coletânea de milagres post mortem, as Virtutes sanctae Geretrudis,
composta por volta de 700.

108
ou paixões constituiriam o “corpus B”11. Nesse corpus, as referências ao roubo
de bens estão na Vida de Santo Elói e na Vida de São Filiberto.
A Vida de São Elói é o texto hagiográico mais prolíico, no que se
refere às descrições do roubo de bens: há 7 capítulos dedicados ao problema.
Composta de dois livros, o primeiro, de 80 capítulos, descreve a carreira laica
do santo; o segundo, também com 80 capítulos, narra sua carreira eclesiástica
e seus milagres post mortem. Graças aos trabalhos de jovens pesquisadores
franceses do HagHis (Hagiographie et Histoire: atelier français de recherches
sur l’hagiographie médiévale), é hoje atestado que a Vida de São Éloi foi redigida
por Santo Ouen, bispo de Rouen, entre 673 e 67512. A Vida de São Filiberto foi
escrita pouco tempo após a morte do santo, mas foi rapidamente reescrita,
aparentemente para corrigir a primeira versão. O texto foi conservado em
uma série de manuscritos modiicados no início do século IX13. Escrita por
Ursinus, abade do monastério de São Martinho, em Ligugé (ao sul da cidade de
Poitiers), na metade do século VIII, a versão original da Vita sancti Leodegarii
não sobreviveu, mas foi reconstituída por B. Krusch no inal do século XIX, a
partir de algumas versões da época carolíngia14. Van Uytfanghe situa a Vida
de São Columbano e de seus discípulos fora do corpus A e do corpus B, pelo
fato de esse texto dizer também respeito à Irlanda e à Itália. No entanto, pelo
fato de sua redação ter sido concluída na Gália, e pelos episódios de roubo
que menciona, essa vita também será abordada neste trabalho.

11 No corpus B, o autor discrimina as vitae escritas no século VII: Afra, mártir em Augsbourg
(† 304), Aile, abade de Rebais († v. 650), Arey, bispo de Gap († 604), Caprais, abade de Lérins
(† après 434), Didier, bispo-mártir de Langres († 407), Didier, bispo de Vienne († 606/607),
Eustadiole, abadessa de Bourges († inal do século VI), Èvre, eremita em Grenoble no século
VII, Fursy, abade de Lagny († v. 645), Médard, bispo de Noyon († v. 560), os abades do Monte
Habend e de Saint-Maurice d’Agaune, Riquier, abade de Centule († 645), Salagerbe, abadessa
em Laon († 664), Sigolène, abadessa de Troclar, os mártires trigêmios da Capadócia († c.155); em
seguida, a Vida e os milagres de Santo Austrille, bispo de Bourges († 624), escritas em algum
momento entre os séculos VII e VIII; e também as vidas e as paixões da primeira metade do
século VIII: Amand, bispo de Maastrich († 679), Austroberte, abadessa de Parilly († 704), Elói,
bispo de Noyon-Tournai († 660), Eucher, bispo de Orléans († c. 738/743), Goar, padre e eremita
da Renânia no século VI, Hubert, bispo de Liège († 727), Lambert, bispo de Maëstricht († 705), a
versão carolíngia da Paixão de Leudegário, bispo de Autun († c. 679), Pardoux, abade de Guéret
(† 737), Filiberto, abade de Jumièges e de Noirmoutier († c. 685), Ramber, mártir de Bugey (†
680), Servais, bispo de Tongres († 384), Sigismundo, roi martirizado dos burgúndios († 524). M.
Van Uytfanghe, “Pertinence et statut du miracle dans l’hagiographie mérovingienne (600-750)”,
In: AIGLE, D. (dir.), Miracle et Karama. Hagiographies médiévales comparées 2, Turnholt, 2000:
67-144 (“Bibliothèque de l’École des Hautes Études Section des Sciences Religieuses”, 109).
12 http://haghis.blogspot.com.br/2009/11/du-nouveau-sur-saint-eloi.html.
13 Monuments de l’histoire des Abbayes de Saint-Philibert (Noirmoutier, Grandlieu, Turnus),
Poupardin, R. (publicado segundo as notas de A. Giry), Paris, 1905: IX-XVI.
14 Inicialmente reticente quanto à validade dessa reconstituição, P. Fouracre acabou aceitando-a
como válida em seu estudo sobre a hagiograia merovíngia (Fourecre, P., Gerbeding, A. Late
Merovingian France: History and Hagiography, 640-720, Manchester, Nova Iorque, 1996: 206
e ss.).

109
Esses textos serão analisados, não necessariamente em ordem cronológica,
buscando relacionar os casos de ataques aos bens eclesiásticos neles descritos,
com a qualiicação jurídica do roubo, produzida pelas leges e pelos editos reais.
Primeiramente, Gregório de Tours. A maioria dos casos, mencionados
por esse autor, dizem respeito ao roubo de bens da Igreja. Em menor número,
estão os relatos de libertação de prisioneiros acusados de roubo, que serão
tratados no segundo capítulo. Será focalizada, portanto, a primeira categoria. A
segunda metade do século VI marca o aparecimento nas hagiograias francas
de episódios nos quais os ladrões atacam as igrejas, e não apenas os próprios
santos. Os ladrões, na Vida de Santa Genoveva e na Vida de São Germano de
Auxerre, são pauperes, e se contentam com os bens dos santos. Com Gregório
de Tours, os potentes fazem sua aparição como ladrões que penetram no
interior do edifício eclesial. É possível que essa mudança na trama e no elenco
das hagiograias francas tenha uma relação com o acirramento das disputas
em torno dos bens eclesiásticos, testemunhado, nos cânones conciliares,
pelo emprego cada vez mais frequente da expressão necatores pauperum, e
pela denúncia em termos sem precedentes da atuação dos reis e dos potentes.
Um bom exemplo dessa mudança é o relato gregoriano do roubo do
oratório de Ysaac-la-Tourette, mencionado no segundo capítulo: Gregório
começa o relato denunciando, claramente, a atuação dos homens do séquito
de Chramn (ilho do rei Chilperico) na região da Auvérnia. Cinco desses
homens teriam entrado furtivamente no santo oratório no domínio de Ysaac-la-
Tourette, que continha as relíquias de São Saturnino. Após a infração, roubaram
as vestes e os vasos para a celebração litúrgica, e partiram durante a noite. Um
padre se deu conta do roubo e procurou entre os habitantes da região, mas não
encontrou nenhum traço daquilo que fora roubado. Os ladrões teriam, então,
retornado ao território de Orléans, de onde vieram. Após terem dividido seu
saque, cada um apoderou-se de uma parte. A vingança divina (ultio divina) os
perseguiu e, rapidamente, quatro dentre eles foram mortos em rixas. Único
sobrevivente, o quinto ladrão recebeu o conjunto dos bens roubados. Mas
assim que os trouxe para casa, imediatamente seus olhos se incrustaram de
sangue e ele icou cego. Forçado pelas suas dores e pela inspiração divina, fez
um voto e prometeu que, se Deus restabelecesse sua visão, ele devolveria o
que havia roubado ao local santo (Si respexerit Deus miseriam meam et mihi
visum reddiderit, referam loco illi sancto quae abstuli). Após ter recuperado a
visão, o ladrão viajou até Orléans e encontrou, pela graça de Deus, um diácono
de Clermont, a quem entregou os bens roubados, pedindo que os devolvesse
ao oratório (ut easdem oratorio restitueret), o que o diácono piedosamente
cumpriu15. A ênfase do relato está no direito de propriedade do oratório de

15 Liber in gloria martyrum, 65: “In ipso quoque territurio tempore, quo Chramnus Arvernum
abiit, cum diversa scelera ab eius gererentur ministris, quinque viri sacrosanctum oratorium
domus Iciacensis furtim appetunt - habentur autem in eum sancti Saturnini reliquiae -, inrup-

110
Ysaac-la-Tourette: a promessa do ladrão sobrevivente é devolver os bens
roubados ao oratório, o que ele reitera ao diácono encontrado em Orléans.
Além disso, os bens são devolvidos, não por ação de qualquer santo, como é
recorrente nas hagiograias francas, mas através da ultio divina, que pune os
ladrões e faz com que o direito de propriedade seja restabelecido.
Ainda no Liber in gloria martyrum, Gregório apresenta outro relato no
qual o julgamento divino atua diretamente na punição do ladrão. Mais uma
vez, trata-se do roubo de um edifício eclesial, uma igreja localizada no vicus
de Yseurs, na região de Tours. Essa igreja ter-se-ia distinguido, segundo o
bispo de Tours, por vários milagres santos, e por possuir janelas cobertas
por vitrais, em moldura de madeira. Um ladrão audacioso entrou na igreja
durante a noite e, ao perceber que tudo estava guardado em depositários,
resolveu roubar os vitrais. Após ter quebrado e roubado o vidro das janelas,
retornou ao seu vilarejo no território de Bourges, onde colocou o vidro em
um forno aceso durante três dias, sem que nada ocorresse. Gregório airma
que o ladrão persistiu em seu crime, mesmo tendo se dado conta de que um
julgamento divino fora lançado sobre ele, (victusque crimine, divinum super
se iudicium intuens, nequaquam motus perdurat in malis). Mesmo não tendo
conseguido fundir os vitrais, ele os vendeu em pedaços a alguns comerciantes
e, tal como um novo Gehazi, assim que recebeu o dinheiro, foi atingido por
uma lepra incurável [II Reis 5: 19-27]. Quando se aproximava o primeiro
aniversário do roubo, um tumor cresceu em sua cabeça e sobre seus olhos,
tornando-se tão grande que parecia que seus olhos tinham sido arrancados
de suas órbitas. A cada ano, a mesma coisa acontecia ao ladrão no dia em
que executou seu roubo16. A igreja de Yseurs é reputada, segundo Gregório,

tumque, ablatis palleolis vel reliqua ministerii ornamenta, nocte tegente discedunt. Sed presbiter
recognoscens furtum ac inter vicinos scrutans, nullum potuit ex his quae ablata fuerant indicium
repperire. Protinus vero latrones, qui haec admiserant, in Aurilianensi se territurio transtulerunt;
divisisque rebus, accepit unusquisque partem suam. Sed mox, insequente ultione divina, quattuor
in seditionibus interfecti sunt. Quintus vero totam sibi furti huius hereditatem superstis remanens
vindicavit. Sed ubi haec in domo sua contulit, statimque obtectis sanguine oculis, excaecatus est.
Tunc conpunctus tam doloribus quam inspiratione divina, vovit, dicens: “Si respexerit Deus mi-
seriam meam et mihi visum reddiderit, referam loco illi sancto quae abstuli”. Et haec cum lacri-
mis orans, visum recepit. Accedens vero ad oppidum Aurilianensem, providente Deo, diaconem
Arvernum invenit. Cui traditis rebus, suppliciter exoravit, ut easdem oratorio restitueret; quod
diaconus devotus implevit”.
16 Liber in gloria martyrum, 58: “Eclesia est vici Iciodorensis sub termino Turonicae urbis, quae
plerumque sacris miraculis inlustratur, fenestras ex more habens, quae vitro lignis incluso cludun-
tur, quo praeclarius aedi sacratae lumen, quod mundus meruerit, subministrent. Quam eclesiam
fur inportunus adgreditur, ingressusque nocte, cum omnia cerneret custodum cura tueri et nihil
de sacris ministeriis quod auferret adverteret, ait intra se: “Si aliud”, inquid, “invenire non pos-
sum, vel has ipsas quas cerno vitreas auferam”; fusoque metallo, aliquid auri conquiri sibi. Ablatis
igitur dissipatisque vitreis, metallum abstulit et in pago Biturigi territurii contulit. Missumque
vitrum in fornace per triduum decoquens, nullum exinde opus potuit expedire; victusque crimine,
divinum super se iudicium intuens, nequaquam motus perdurat in malis. Ablatum autem a caca-

111
pelos milagres de santos; mas é o julgamento divino que atua na punição
do ladrão. Ambos os relatos airmam o princípio da propriedade divina. É
provável que a ausência de um patrono de prestígio explique a atuação direta
do juízo divino, pois, como se verá, no exemplo seguinte, quando as igrejas
possuem patronos de reputada virtude, esses agem no combate ao roubo. A
excepcionalidade do relato da igreja de Yseurs está no fato de que, nele, os
bens não retornam à igreja, ainda que o ladrão seja punido. Dentre todos os
casos de roubo de bens eclesiásticos analisados neste trabalho, esse é o único
em que isso ocorre, e no qual o castigo imposto ao ladrão é mais importante
do que a recuperação dos bens roubados.
O terceiro e último caso de invasão e roubo em um edifício eclesial nas
obras gregorianas encontra-se no sexto livro das Histórias. O edifício em questão
é a construção eclesiástica mais prestigiosa da Gália merovíngia: a Basílica de
São Martinho de Tours. E é o próprio São Martinho quem age para punir os
ladrões e recuperar os bens de sua basílica. Os ladrões penetram nesta última,
o ouro, prataria, tecidos de seda e, em seguida, fogem, depois de caminharem
sobre o túmulo do santo. De acordo com Gregório, em seu poder miraculoso,
São Martinho fez desses homens temerários, um terrível exemplo. Depois de
terem cometido o crime, fugiram para a cidade de Bordeaux, onde brigaram, e
um deles foi morto por um camarada. A indignação chegou ao conhecimento
do público, e os bens roubados foram descobertos e recuperados, embora a
prataria estivesse daniicada. O rei Chilperico ordenou, então, que os malfeitores
fossem acorrentados e trazidos à sua presença. No entanto, diante do pedido de
Gregório para que o rei não os executasse, foram poupados. Os bens roubados
estavam dispersados, mas foram recolhidos com grande cuidado pelo rei, que
os devolveu ao local santo (loco sancto reddi praecepit)17. A existência de um

vo vitrum, quod in pilulis nescio quibus conversum fuerat, advenientibus negotiatoribus venun-
dedit, ut scilicet, accepta pecunia, novus Giezi lepram perpetuam conpararet. Nam adveniente die
post anni curriculum, quod hoc furtum fecerat, caput eius tumori datur; oculi quoque inlantur, ut
erui a suis locis autumentur. Haec autem ei singulis annis eveniunt in die illa, qua furtum admisit.
Plangitque miser vitrum, quod ex itinere, quo transmisit, non potuit revocare”.
17 Gregório de Tours, Histórias VI, 10: “His diebus basilica sancti Martini a furibus efracta fuit.
Qui ponentes ad fenestram absidae cancellum, quod super tumulum cuiusdam defuncti erat, as-
cendentes per eum, efracta vitrea, sunt ingressi; auferentesque multum auri argentique vel palleo-
rum olosericorum, abierunt, non metuentes super sanctum sepulchrum pedem ponere, ubi vix vel
os applicare praesumimus. Sed virtus sancti voluit hanc temeritatem etiam cum iudicio manifes-
tare terribili. Nam hi, perpetrato scelere, ad Burdegalensim civitatem venientes, orto scandalo,
unus alterum interemit; sicque patefacto opere, furtum repertum est, ac de hospitale eorum ar-
gentum comminutum vel pallea sunt extracta. Quod cum regi Chilperico nuntiatum fuisset, iussit
eos alligari vinculis et suo conspectui praesentari. Tunc ego metuens, ne ob illius causam homines
morerentur, qui vivens in corpore pro perditorum vita saepius deprecatus est, epistolam regi pre-
cationis transmisi, ne, nostris non accusantibus, ad quos persecutio pertinebat, hi intericerentur.
Quod ille benigne suscipiens, vitae restituit. Species vero, quae dissipatae fuerant, studiosissime
componens, loco sancto reddi praecepit”.

112
patrono de grande reputação é um meio eicaz, não apenas na punição dos
ladrões, mas também na recuperação da propriedade eclesiástica.
A reputação dos santos se constrói na defesa de seus próprios bens e dos
bens das igrejas às quais estão associados. No capítulo 17 do Liber in gloria
confessorum, Gregório fala de um túmulo localizado entre arbustos e espinhos
no pagus de Tours, que pertenceria a um bispo, cujo nome não era conhecido
por ninguém. Esse nome é revelado graças ao roubo, narrado nesse capítulo.
Após a morte de seu ilho, um pauper não pôde encontrar uma cobertura
para o sarcófago, por isso, foi até o túmulo do bispo e tirou a tampa, que, de
tão grande, necessitou da força de três bois para ser puxada. E, em seguida,
cobriu a sepultura do seu ilho. Mas, ao fazer isso, icou surdo, mudo, cego
e paralisado durante quase um ano. O bispo apareceu-lhe em um sonho,
revelando seu nome e ordenando que devolvesse a tampa ao seu túmulo, se
quisesse ser curado; do contrário, morreria:
[...] Qual é o mal que eu iz a você e à sua família para você me descobrir removendo
a cobertura de meu túmulo? Vai agora se quiser ser curado e ordene que a tampa seja
rapidamente restabelecida. Se não o izer, você morrerá imediatamente. Pois sou o
Bispo Benignus, que veio como um estrangeiro a esta cidade[...].

O ladrão, com um movimento da cabeça, teria ordenado aos seus servos


que devolvessem a tampa do túmulo do bispo 18. Os prodígios do bispo, que
pune o ladrão, e recupera a tampa de seu túmulo, estão diretamente associados
à sua fama. Na narrativa gregoriana, o roubo de bens dos santos e das igrejas
é mais do que um evento, cuja função é promover a faculdade dos santos de
perdoar; ele serve para assentar a reputação desses personagens, e, também,
promover a doação de bens às igrejas e aos monastérios.
É o que se pode observar na descrição feita por Gregório de Tours, no
Liber in gloria martyrum, dos prodígios de Sergius, mártir no início do século
IV. Esse teria realizado numerosos milagres entre o povo, curando as doenças
e as fraquezas daqueles que oravam por ele. Em consequência, diz Gregório,

18 Liber in gloria confessorum, 17: “In alio loco pago Turonico erat inter vepres et rubos sepulchrum
positum, in quo ferebatur episcopum quendam fuisse sepultum; nomen ignari erant [incolae, et
licet pauci, tamen oicium inpendebant]. Contigit vero, ut cuiusdam pauperis ilius moriretur.
Quo sepulto, cum operturium sarcofagi non inveniret, ad hunc locum accessit, ablatumque de hoc
sepulchro cooperculum, qui tam inmanis erat, ut trium duceretur paria boum, texit corpusculum
ili furto alterius de sepulchri. Quod cum fecisset, surdus, mutus, caecus ac debilis est efectus;
mansitque in hoc supplicio integrum fere annum. Dehinc apparuit ei quidam sacerdos per visum,
dicens: “Quid”, inquid, “tibi tuisque vim intuli, o vir, quia detexisti me, auferendo operturium
tumuli mei? Vade nunc, si vis sanus ieri, iube eum velociter revocari. Quod si nolueris, protinus
morieris. Ego enim sum Benignus episcopus, qui in hac urbe peregrinus adveni. At ille suis in-
nuens, accessit ad monumentum ilii sui, elevatumque lapidem plaustro inposuit, reportatumque
ut sarcofago reddidit, ilico sanus efectus est. Nam ad redeundo ita lapis levis erat, ut, quem tria
paria boum evexerant, boves deinceps duo revocarent”.

113
os habitantes izeram votos e levaram presentes à sua grande igreja. Devido
ao fato de que não era permitido a ninguém tirar ou levar esses presentes sem,
imediatamente, sofrer a pena da vergonha ou da morte, várias pessoas teriam
consagrado suas possessões ao santo, de modo que pudessem ser protegidas
pelo seu poder, e não ser roubadas pelos ladrões. Com o relato da história de
uma velha mulher que, mesmo pobre, teria coniado duas galinhas à igreja do
santo-mártir, Gregório quer demonstrar a eicácia do santo na proteção dos
bens que eram coniados à sua propriedade, isto é, à sua autoridade: quando os
habitantes se reuniram para a festa do santo, segundo Gregório, dois homens,
que tinham visto uma vez essas galinhas, concluíram um acordo secreto e
roubaram uma delas. Apesar de seus esforços, a carne roubada não pôde ser
cozida. De acordo com o bispo de Tours, o jantar que eles preparavam teria
sido transformado em pedra, os anitriões icaram consternados, os convidados
embaraçados, e todos abandonaram a refeição, envergonhados19.
Nesse capítulo, Gregório associa, claramente, o volume das doações
recebidas pela igreja à capacidade do santo em proteger esses dons da ação
dos ladrões. O santo age, inclusive, como a própria autoridade civil teria agido,
aplicando a pena de morte (Quod si quis fecerit, mox iudicium aut nothae
aut mortis incurrit). Não há contradição formal entre o tema do perdão e da
libertação dos prisioneiros (ladrões, sobretudo), desenvolvido por Gregório
em várias pequenas vitae, e o da punição dos ladrões dos bens eclesiásticos.
O primeiro tema serve para reforçar a associação com o Cristo, ao passo que
o segundo compõe a estratégia de defesa dos bens da Igreja. A comparação
dos temas permite, inclusive, mostrar que os bens eclesiásticos são tratados
de maneira distinta dos bens que não pertencem à Igreja: a punição pelo
roubo desses é maior, e os casos de perdão, bem mais raros. Esse tratamento
diferenciado, que não é o resultado de nenhuma diferenciação atávica dos

19 Liber in gloria martyrum, 96: “Sergius quoque martyr multa signa in populis facit, curans inir-
mitates sanansque languores ideliter deprecantium. Unde agitur, ut ex hoc ingentia basilicae vel
promittantur vota vel munera deferantur, ex quibus nihil omnino licet subtrahi aut auferri. Quod
si quis fecerit, mox iudicium aut nothae aut mortis incurrit. Ob hanc vero defensionem multi res
suas sancto devovent, scilicet ut eius virtute munitae non diripiantur a malis. Denique anus erat
exigua et, credo, euangelicae illi pauperculae similis, quae quondam duo minuta, cum nihil aliud
haberet, in gazophilatium devotae iactavit. Ergo haec pauculos gallinarum pullos habebat, quos
ex voto basilicari ditioni subdiderat, datura in domo ipsius, cum necessitas lagitasset. Igitur cum
ad festivitatem sancti multi populi advenissent, duo, conventione facta, qui hos pullos olim vide-
rant, unum furto subtrahunt, incisoque capite, detractis plumis truncatisque pedibus, positum
in vase cum aqua super ignem levant instanterque succendunt. Fervet autem latex validissime,
sed caro furtiva non coquitur. Etiam fervendo aqua consumitur, nec prorsus pullus ille mollitur.
Temptant crebro manibus et unguem conantur inigere, sed duriorem sentiunt, quam misissent.
Interim adsunt convivae evocati ad aepulum, nullatenus sumpturi de apparatu. Extat mensa ni-
veis velata mantilibus, opere plumario exornata. Conversis cibis in nova duritia, catinus limphis
saepe diluitur, sed nihil coctum, quod in eo exhibeant, invenitur; sicque novo miraculo aepulis
redactis in saxo, confusis invitatoribus, verecundantibus invitatis, a caena cum pudore discessum
est”.

114
bens, produz, de fato, duas categorias de bens. E, como na legislação civil e na
legislação eclesiástica, o ponto de partida de tal diferenciação são os diferentes
estatutos de seus proprietários.
No capítulo 81 do Liber in gloria confessorum, Gregório descreve os atos
de Eusicius, eremita que vivia recluso na região de Bourges. Ele se afastou da
intimidade dos homens no meio dos arbustos selvagens, rejeitando o ouro e as
riquezas deste mundo. Seus colegas monges tinham duas colmeias de abelhas.
Quando um homem dos arredores foi acometido de febre, procurou Eusicius,
recebeu desse os cuidados habituais, e sua saúde foi restaurada. No caminho
de volta para sua casa, ele viu essas colmeias em uma árvore. Imediatamente,
segundo Gregório, sua cupidez foi despertada e ele decidiu roubar as colmeias.
Durante a noite, o homem retornou com um cúmplice e subiu na árvore para
apanhar as colmeias e entregá-las a seu comparsa, que esperava embaixo da
árvore. Quando Eusicius se aproximou, o comparsa fugiu, mas não preveniu
o seu companheiro. O eremita estava sob a árvore e pegou uma colmeia que
o ladrão tinha lançado ao chão. Segundo Gregório, quando quis roubar as
outras também, Eusicius disse:
‘Filho, esta é suiciente por enquanto, deixe as outras para os homens que nelas
trabalharam’. O ladrão caiu no chão, o eremita o apanhou e o conduziu a sua célula,
dizendo: ‘Meu ilho, por que tu seguiste o diabo como teu guia? Não vieste ontem e
recebeste a benção do Senhor? Se o mel te agradou, tu deverias ter vindo até mim e
eu teria o bastante para te oferecer, sem crítica e sem nenhum aborrecimento’. Depois
de tê-lo admoestado, Eusicius deu-lhe um ninho de abelhas e deixou que ele partisse
são e salvo, pedindo que ele não roubasse mais” 20.

O perdão, acordado nesse relato, é acompanhado da concessão de uma


parte dos bens que o ladrão pretendia roubar. Não se trata, obviamente, de

20 Liber in gloria confessorum, c. 81 : “Fuit in hoc territurio et Eusicius vir virtutum, qui tamquam
heremita inter spinarum condensitatem ab hominum se familiaritate removerat, qui aurum vel
divitias mundi huius tamquam stercora exhorrebat… Habebant clerici eius dua vasa apium.
Cumque unus ex vicinis eius quartani tipi vexaretur ardore, ad eum veniens, solitam ab eodem
accipiens medicinam, sanus est redditus; et redire domum cupiens, vasa illa eminus cernit in ar-
bore. Inlammante protinus cupiditate, quae radix omnium malorum esse describitur, cogitat ea
furtim auferre. Inventum similem sibi satellitem, nocte ad arborem illam petit. Cumque in ea as-
cendisset, ut socio porregens vasa deponeret, ecce ab alia parte senex advenit! Quo viso, ille qui ad
terram erat fugam petiit nec socio quid caveret exposuit. Senex vero sub arbore stetit et vas unum,
quod fur porrexit, mutuo accepit. Cumque et alterum velit auferre, ait sacerdos: “Suiciat nunc,
ili, iste; alterum vero ei qui eum laboravit reserva”. Qua ille voce perterritus, se deorsum iactat.
At ille adprehensum eum ad cellulam deducens, ait: “Cur”, inquid, “ili, diabolo praecedente tu se-
queris? Nonne hesterno die ad me veniens benedictionem Domini accepisti? Si”, inquid, “ex melle
delectabaris, ad me petisses, et ego sine ullo inproperio et tuo inpedimento, ut tibi fuerat copia,
tribuissem”. Tunc et aliis multis verbis arguens eum, favum ei mellis largitus est et inlaesum abire
permisit, dicens: “Cave, ne ultra repetas, quia furtum satanae pecunia est”.

115
uma promoção do roubo, mas da prerrogativa soberana do santo de colocar
em circulação seus próprios bens. Mas ele não o faz sem contrapartida: mais
do que o perdão ou o desprendimento em relação aos bens, ou o auxílio aos
mais necessitados – os potentes não se beneiciam desse desprendimento
–, o santo reairma seu direito à propriedade. O que se vê nesse relato é a
capacidade do santo em dispor do bem de acordo com sua preferência (como
um proprietário) e em reativar, de forma legítima, o circuito da circulação de
bens. O santo anula o roubo, contrapondo a essa prática ilegítima a doação do
bem pretendido pelo ladrão. A doação é uma forma legítima de circulação,
e também, um instrumento de combate ao roubo, ao mesmo título que a
punição pura e simples do ladrão. E seu exemplo na hagiograia serve para
promover doações que tenham como destinatária a Igreja.
Os relatos gregorianos sobre o roubo de bens eclesiásticos são os primeiros
no século VI a mencionar roubos no interior do edifício eclesial, ao passo que
seus predecessores, se contentavam em descrever o roubo de objetos dos santos
(luvas, calçados e cavalos). As referências a esses objetos não desaparecerão das
hagiograias francas: a Vida de São Filiberto é um bom exemplo da segunda
metade do século VIII. Pode-se citar, também, o roubo do cavalo na Vida de
São Corbiniano, o que mostra a permanência desse tema, mesmo fora da Gália
(mais precisamente na Baviera), durante a mesma época. Porém, o recurso,
notadamente a partir do inal do século VI, aos relatos que colocam em cena
a invasão e o roubo de oratórios, monastérios, igrejas e basílicas, parece ser
uma resposta aos ataques dos bens eclesiásticos, e aproxima, decisivamente, a
hagiograia franca das disputas em torno desse problema. Esses relatos também
assumem uma conotação jurídica mais pronunciada: vê-se a multiplicação de
qualiicativos jurídicos e um recurso crescente a elementos do procedimento
judiciário. O santo-proprietário é um desses qualiicativos que se consolida
nas vidas de santos em meados do século VI; ao longo das próximas páginas,
outros serão examinados. Já o procedimento judiciário está presente no papel da
vingança divina (ultio divina) na punição ao roubo e, por vezes, na recuperação
dos bens roubados. A ultio divina é recorrente na obra de Gregório, e funciona
como um complemento à justiça real, na punição dos crimes e dos atos que
promovem o mal e a discórdia21. E no Liber in gloria martyrum, 58, que trata
do roubo da igreja de Yseurs, o bispo de Tours menciona o iudicium divino.
A relação entre o relato hagiográico e o procedimento judiciário não se
restringe ao empréstimo de fórmulas. Ursinus, em sua Passio Leudegarii, relata
o roubo dos bens de um padre encarregado do serviço do oratório do santo.
Esse padre teria visto, durante a noite, uma luz brilhar no local sem nenhuma
intervenção humana. De acordo com o relato da Passio, ele jurou que ouviu os

21 Sobre a ultio divina na Gália merovíngia, ver Cândido da Silva, M. Autoridade pública e
violência no périodo merovíngio: Gregório de Tours e as ‘Bella Civilia’. In: Friguetto, R. Lopes
Guimarães, M. (org.), Instituições, Poderes e Jurisdições, Curitiba, 2007: 181-195.

116
anjos cantarem um cântico, e que fugiu, tremendo, para não assistir de maneira
insolente ao que ocorria. O rumor, então, se espalhou em todos os arredores,
contribuindo para aumentar o prestígio do mártir que lá estava sepultado.
Multidões de doentes atingidos por diversas enfermidades vinham invocar
suas santas orações. Ele fez os coxos andarem, os cegos enxergarem, libertando
os demônios daqueles que estavam possuídos e realizando muitos prodígios
no local onde estava o seu corpo. Uma noite, um clérigo, guardião da igreja e
servidor do padre que cuidava do oratório, teve todos os seus bens roubados,
inclusive a sandália do bem-aventurado mártir que guardava com respeito,
e que o ladrão levou sem saber. Ele foi rapidamente ao sepulcro do santo,
suplicou que o ajudasse a reaver o que havia perdido, e passou todo o dia e toda
a noite em orações e jejum no túmulo do santo, sempre continuando a cantar
salmos. Assim que terminou sua oração, retornou à sua célula e encontrou,
sem que nada faltasse, tudo o que havia perdido, inclusive a sandália do mártir.
O senhor do ladrão, que jurou que o seu escravo não havia cometido o crime,
morreu ao retornar para casa. O autor termina airmando, de maneira vaga,
que o crime do escravo também não terminou bem para ele22.
A presença das sandálias do santo entre os pertences do padre é
fundamental para a recuperação desses bens. A associação dos seus próprios
bens aos do santo funciona como um “alarme”, que desencadeia a reação
desse. Uma das leituras que pode ser feita desse relato é o fato de que os
bens pessoais do clérigo não recebem a mesma proteção que os bens dos
santos. Eis aqui outra forma de distinção entre os bens da Igreja, e os bens
que não lha pertencem. Mas há algo ainda mais eloquente: a punição do
senhor do escravo. Retomando-se os títulos XI e XII do Pactus legis Salicae:
um homem livre que é julgado culpado do roubo de um objeto, no valor de
40 denários, do exterior de uma casa, deve pagar 1400 denários de multa,
além da restituição do objeto roubado, ou seu valor, mais o pagamento pelo
tempo durante o qual o uso do bem foi perdido por aquele que o possui de

22 Ursinus, Passio Leudegarii II, 21: “His itaque diebus sacerdus quidam, qui huius oraturii fun-
gebat oitium, lumen splendidum absque ministerio humano in eodem cognovit noctibus fulsisse
locum. Unde rumor magnus aemanavit in circuitu loci huius. Qui venientes ad eius beati martyris
venerandae orationis, multa turba languentium, diversis inirmitatibus detentus sanavit, clodis
scilicet gressum dedit, caecis lumen tribuit, obsessus a demonibus mundavit multisque virtutibus
in huius loci venerando habitaculum aemicuit. Hoc itaque eiusdem ecclesiae adtestatur sacer-
dus. Nam et huius sacerdoti minister clericus, ipsius ecclesiae custus, quadam nocte latrocinium
passus, ita ut ab latronibus omnem substantiam suam fuisset ablatam: inter quam caligolam,
inquiunt, beati martyres, quam pro reverentia sibi reservaverat, habebat absconditam. Quam
latro nesciens secum portavit. Qui mature ab oraturio consurgens, ad domicilium suum pergens,
invenit omnia sua furata. Festinus pergit ad huius viri Dei sepulchrum, deprecans, ut ei redderet,
quod furtim perdiderat. Nam tota illa die et sequenti nocte in oratione ad eius tumulum ieiunans
et psalmodia insistens adstetit. Cum vero, expleta oratione, ad suam cellolam remeasset, omnia
que perdiderat, nihil ex eis deminuto, cum caligola beati martyris salvam invenit. Domnus vero
latronis pro servo iure iuraverat, nequaquam hoc malo egisset; reversus domo protinus inivit
vitam. Servus vero scelus quod fecerat male consummavit”.

117
direito (XI, 2). Se um escravo rouba um objeto do mesmo valor e nas mesmas
condições, deve ser castrado ou pagar 240 denários de multa. O senhor do
escravo que cometeu o roubo deve devolver o objeto roubado (ou seu valor)
ao seu proprietário legítimo, além do pagamento pelo tempo em que o uso
do objeto foi perdido (XII, 2). Observa-se, no relato de Ursinus, a mesma
extensão da responsabilidade do ladrão (quando esse é um escravo) para o
seu senhor, tal como é prevista pela lei civil.
O inal do período merovíngio e o início do período carolíngio marcam,
nas vitae francas, a especialização dos santos no combate ao roubo, e a integração
nos relatos hagiográicos de técnicas do procedimento judiciário. A Vita Sancti
Eligii, a mais prolíica sobre o roubo de bens, mostra, no capítulo 12 do livro
II, o santo conseguindo recuperar as correias com as quais o servo de um de
seus amigos conduzia um camelo de carga. Essa é uma consequência direta da
multiplicação das intervenções dos santos na defesa dos bens. No entanto, o
autor da vita airma tratar-se de um milagre menor; desde o início do capítulo,
previne o leitor: “Não devo omitir este fato, ainda que ele seja pouco importante,
que o homem bem-aventurado conheceu por experiência durante a mesma
viagem” (“Neque illud praeterendum puto, quamvis sit ignobile, quod eodem
itinere vir beatus experimento cognoverat”). No relato, a hierarquia entre os
bens permanece: a defesa dos bens da Igreja é um milagre mais importante
do que a defesa dos bens dos laicos”23.
A Vita também descreve um episódio de roubo na basílica da virgem
Santa Colomba. Um dia, pela manhã, o guarda dessa basílica procurou o santo
e lançou-se aos seus pés, anunciando que, durante a noite, enquanto dormia,
a basílica fora despojada de seus ornamentos. Ao ouvir isso, Elói reconfortou
o guarda e, em seguida, dirigindo-se ao mesmo oratório após ter feito sua
oração, dirigiu-se à santa:

[...] Escute o que digo, Santa Columba. Meu Redentor sabe que se não izeres tudo
para trazer rapidamente de volta os ornamentos deste santuário que foram roubados,

23 Vita Sancti Eligii II, 12: “Neque illud praeterendum puto, quamvis sit ignobile, quod eodem iti-
nere vir beatus experimento cognoverat. Itaque cum suicienter cuncta pro quibus advenerat ex-
perisset, omnibus sibi amicis et episcopis in Provintiae partibus visitatis necnon et domo Aspasii
sobolis Iuvini christianissimi viri lustrata, parat iam Eligius cum suis omnibus remeare ad pro-
pria. Postremo igitur omnium cum, apud Aurelianum Uzecensem episcopaum convívio peracto,
eidem vale dicere pararet, contigit, ut inter satagentium utrorumque frequentiam ministrorum,
unus ex famulis eius canuam, cum quo camelum onerarium secum semper ducere consueverat,
subito perderet, ob quod in diversa discurrens, prolixius arcebat iter. Tunc Eligius, accito ad se
secretius famulo, indicat ei hominem sui conscium furti; iubet insuper dicens: “Vade’, inquid, ‘in
illam quae cetimum sita est rupem. Illic inter vepres repperies legatum funda et absconsum quod
quaeris; solutoque eo, accipe, quod tuum est et absque ulla iniuria, absque verbo etiam gravi redde
homini tibi designato ex quo ligatus tenetur fundibalum’. Quod cum ille fecisset, nímio fur pudo-
re atque stupore perculsus, veniam facti sui praecabatur, oferens insuper homini redemptionem
piaculi”.

118
certamente mandarei barrar esta porta com espinhos de tal forma que a partir de
hoje nunca mais lhe será feita homenagem neste local.

A ameaça de humiliatio surtiu efeito, pois no dia seguinte, ao se levantar


pela manhã, o guarda encontrou na igreja todos os bens que haviam sido
roubados recolocados em seus devidos lugares. Ao saber do ocorrido, Elói
louvou a mártir e gloriicou o nome do Senhor24. A ameaça dirigida à santa é
um indício de que a recuperação dos bens roubados, além de um dos atributos
dos santos, torna-se uma de suas obrigações para com as igrejas às quais estão
associados.
Os dois relatos da Vita Sancti Eligii sobre o roubo de bens no interior do
edifício eclesial trazem milagres post-mortem do santo. O primeiro acontece
no dia da morte de Elói, quando um diácono apropriou-se de uma pele de
cabra de grande valor que havia sido colocada sobre a mobília que sustentou
o caixão do santo. A identiicação do ladrão e a recuperação da pele de cabra
foram essenciais para que, nas palavras do autor, todos começassem “[...] a
temer muito o santo bispo e a apresentar a ele cada vez mais a veneração que
lhe era devida”25. No segundo caso, o ladrão é um leigo que tenta roubar os
pingentes e uma corrente de ouro que ornamentavam o túmulo do santo26.
Em ambos os casos, os ladrões são perdoados.
É provável que, na Vita Sancti Eligii, o perdão acordado pelo santo aos
ladrões fosse mais que um topos de imitatio Christi. No caso do roubo praticado
pelo diácono, o santo não apenas indica quem é o ladrão e onde está o objeto
roubado, mas também deine a natureza e a extensão da punição: Elói ordena

24 Vita Sancti Eligii I, 30: “Alio rursus tempore dum apud Parisius commoraret, quandam die
mane confugiit ad eum tremebundus custos basilicae sanctae Columbae virginis, provolutusque
pedibus eius, nuntiavit eadem se quiescente nocte vastatam omni ornatu fuisse basilicam. Quod
Eligius audiens, tristis adodum efectus, cito tamen ad solita spei praesidia recurrens, clemen-
ter refovit custodem, deinde ad eundem oratorium pergens, oratione praemissa, haec loquebatur
verba: ‘Audi’, inquit, ‘sancta Columba, quae dico. Novit meus redemptor, nisi cito ornamenta
tabernaculi huius furata reduxeris, equidem spinis adlatis faciam hanc ianuam ita obserari, ut
numquam tibi in hoc loco veneratio praebeatur ab hodie. Dixit haec et discessit. Et ecce! sequenti
die custos maturius surgens, invenit omnia vel usque ad minimam pallam, sicut prius fuerant, res-
tituta. Tunc concito cursu, quantum pridie truculentior, tanto nunc laetior nuntiavit Eligio, atque
ille accedens omniaque, sicut dudum fuerant, suis in locis conposita carnens, martyram quidem
laudavit, sed Christi nomen, sicut et semper, uberius cum hilaritate magniicavit”.
25 Vita Sancti Eligii II, 39: “Ex quo facto coeperunt omnes sanctum antistitem ex ipso die obitus
eius magnopere pertimescere ac venerationem ei debitam de die in diem iugiter exhibere”.
26 Vita Sancti Eligii II, 65: “Quadam itaque die, vergente iam in vesperam sole, cum clerici con-
suetas explessent praeces vespertinas, contigit, ingruente negligentia, ut omnes egrederentur ba-
silicam, cunctisque in diversa occupatis, nullus ad horam ex custodibus superesset introrsus: cum
subito vir quidam conscientia saucis, cupiditate accensus, captato ut fur amico vesaniae suae
secreto, velociter accurrit ad sepulchrum, et inpellente nefanda cupiditate sollicite huc illucque
circumspiens, cum nullum adesse cerneret, non timiut miser ex pendentiis aureis, quae illuc pro
ornatu sepulchri innumerae dependebant, quaedam clancule praesumere”.

119
aos monges que repreendam o ladrão, mas que não o castiguem com varas
(“Mox autem, accersito diacono, durissimis eum verbis increpaverunt, non tamen
acerviter verberibus vindicarunt, quia et hoc idem a sancto Eligio in mandatis
acceperunt”). Ao concluir, airmando que, desde esse dia, todos começaram a
temer o santo, o hagiógrafo descreve a ação de Elói em termos que lembram
o temor inspirado pelos juízes.
Nenhuma outra vita franca descreve a ação dos santos de uma forma tão
próxima da ação dos juízes. O melhor exemplo, nesse sentido, é o capítulo
62 do livro II, que relata um roubo cometido na região de Noyon. Enquanto
eram feitas buscas ao autor do crime, um indício conduziu à acusação, diante
da justiça de um jovem. Esse jovem estava em disputa com seu pai e, por isso,
segundo a vita, “ele se esforçava para preparar-lhe armadilhas”. Diante da
ocasião que se apresentava, e tendo refutado a acusação que era feita, pretendeu
lançá-la contra seu pai. Por causa dessa querela, ambos foram conduzidos
diante do povo; uma grande multidão se reuniu, e eles compareceram diante
do bispo e do conde. Disputando-se, então, violentamente, o ilho esforçou-se
em lançar o erro sobre seu pai, e, ao contrário, o pai se defendia, dizendo que
era inocente do crime do qual o acusavam, prolongando a disputa diante do
conde e do bispo. Entre os assistentes, alguns aderiram ao partido do ilho, mas
outros, com razão, julgavam que não era justo crer no ilho contra o pai. Como
o debate já durava muito tempo e seria difícil tomar uma decisão qualquer,
o bispo, tendo entrado em acordo com o duque, colocou o julgamento nas
mãos do santo, já que não seria possível conhecer a verdade: “Uma vez que
não sabemos em qual dos dois devemos crer, é a ti Santo Elói, que, com a
opinião de Deus, remetemos humildemente este julgamento”. Eles colocaram
os dois homens diante do túmulo do santo e esperaram o julgamento que
Deus daria sobre seus julgamentos. Então, quando começou a pronunciar
seu juramento, o rapaz, tomado pelo demônio, foi violentamente lançado ao
chão e rasgando-se com violência, rolando pelo chão, tremendo, espumando
e empalidecendo. Diante disso, todos os assistentes, surpresos e aterrorizados,
proclamaram o julgamento que Deus todo-poderoso havia feito. Assim, o
abuso tendo sido “publicamente e manifestadamente descoberto”, todos saíram
da Igreja. Depois que o rapaz foi cruel e longamente punido, muitas pessoas
foram tomadas de piedade e procuraram o padre para que rezassem juntos
por ele. Tendo se ajoelhado, junto com todos os padres da igreja, eles pediram
com insistência a Santo Elói para que, da mesma forma que ele os escutou no
julgamento, que os escutasse novamente e tivesse piedade. Como perseverou
muito tempo na oração, enim, “pela graça misericordiosa do Cristo”, o rapaz
recuperou a saúde27.

27 Vita Sancti Eligii II, 62: “Post hos autem dies fuerat quoddam furtum in rure Noviomagense
admissum, cumque persona admissi facinoris quaereretur, iuvenis quidam per indicium eidem
culpae conscius conpellabatur. Habebat autem idem iuvenis eo tempore cum genitore suo quan-

120
Os termos empregados nesse capítulo são idênticos àqueles utilizados
no procedimento judiciário da Alta Idade Média para descrever a atuação
dos juízes. O santo participa de uma das etapas do procedimento judiciário;
é chamado a interferir diretamente no decorrer do processo, e revela o oculto
e o segredo da ação criminal. A revelação do segredo e do oculto associados
à actio criminalis não é um monopólio da divindade na Alta Idade Média. Os
juízes da Alta Idade Média também tornavam público o segredo e o oculto ao
longo do processo judicial. No Pactus legis Salicae, por exemplo, o regime de
prova, a partir do qual os valores da composição pecuniária são deinidos, é
usado para auscultar e revelar a intenção oculta da actio criminalis28.
No caso do relato acima, a revelação do oculto se dá por meio de um
ordálio, ou iudicium Dei. Essa prática, excepcional, consistia em provas
físicas cerimonialmente administradas, às quais se submetiam as partes ou
testemunhas, e nas quais Deus era chamado a revelar o verídico, o inocente,
naquele que resiste à prova, ou revelar o culpado, o mentiroso, naquele que
sucumbe a ela 29. Através dos “ordálios” unilaterais, aquele que pretendia
provar sua inocência, era submetido ao rito de uma prova física, cujo
resultado, acreditava-se, era dirigido pela vontade de Deus: se o acusado saísse
incólume, era considerado inocente, e se sucumbisse, sua culpabilidade estava

dam contentionem, ob quam videlicet et insidias ei moliebatur intentare. Tum ergo, occasione
reperta, et satis accurate repellens a se huiusce opinionem, coepit eadem super patrem velle delec-
tere. Ducuntur igitur in huiusmodi iurgium uterque in oublicum, et conglobatis undique multis,
sistuntur in examine episcopi et comitis. Ubi multa vicissim altercantes, satagebat ilius magnope-
re in patrem calumniam relectere; e contra pater, ut res erat, innoxium se huius facinoris esse
defendebat, atque in hunc modum contendebant coram duce atque episcopo. Tunc itaque vidimus
impleri, quod Dominus in euangelio olim praedixit: Exsurgent, inquit, ilii in parentes et odio eos
eicient. Quidam ergo circumstantium partibus ilii favebant, alii vero rectius quid promulgantes,
non esse rectum credi ilium super patrem iudicabant. Cumque diu huiuscemodi altercatio inter
eos verteretur nec facile aut temere a quoquam deineretur, tandem episcopus cum duce, accepto
consilio, cum nullatenus possent rei veritatem cognoscere, iudicio eos comittunt beatissimo con-
fessori: ‘Quia’, inquiunt, ‘nescimus, cui ex his potius credi decernamus, tibi, sanctae Eligi, cum Dei
sententia hoc supplices iudicium commitimus’. Tunc statuentes utrumque coram sancti sepulchro,
expectabant per sacramentum Dei fore iudicium. Et ecce! repente dum iuramentum coepisset pro-
mere, arreptus iuvenis a daemone, conlisus in terram est graviter, sicque se vehementer decerpens,
volutabatur miser, tremens et spumans atque pallescens. Ex quo facto cuncti adstantes adtoniti
nimioque timore perterriti, Dei omnipotentis magniicabant iudicium ieri. Sic ergo in publicum
facinus manifestatae prolatum, ab ecclesia est discessum. Post haec autem acerrime diuque iuvene
castigato, condolentes multi pro eodem misero conveniunt patrem, ut pro eo simul facerent oratio-
nem, et ita prostrati omnes ecclesiae ministri beato confessori rogabant innixe, ut quemadmodum
eos audierat ad iudicandum, sic iterum exaudiret ad miserandum. Cumque diutissime in praece
persisterent, tandem miserante gratia Christi, efugata maligni infestatione, iuvenis restitutus est
sanitati”.
28 Pactus legis Salicae, XVII, 1: “Si quis alterum <uulnerauerit aut> uoluerit occidere et colpus
praeterfallierit et ei fuerit adprobatum, mallobergo seolandouefa hoc est, MMD denarios qui fa-
ciunt solidos LXII semis culpabilis iudicetur”.
29 Barthélemy, D. Ordalies. In: Gauvard, C. et alii (org.), Dictionaire du Moyen Âge, Paris, 2002:
1020-1022.

121
demonstrada. Entre os ordálios unilaterais, havia, por exemplo, a prova da água
quente: o acusado devia colocar sua mão em um recipiente repleto de água
fervente, e ao retirá-la, imediatamente ela era enfaixada e selada. Após três dias,
a faixa era removida e se a mão estivesse intacta, ele era considerado inocente,
caso contrário, proclamava-se sua culpa. O resultado do ordálio unilateral
dependia muito menos dos sinais físicos que o rito deixava, do que de uma
leitura desses mesmos sinais, à luz de uma crença pré-existente e socialmente
legitimada daqueles que participam do julgamento quanto à inocência ou
culpabilidade do acusado. O recurso ao iudicium Dei supõe uma ampliação
extraordinária do alcance da justiça dos homens. Todas as verdades ocultas,
a dos sujeitos, e mesmo a verdade divina, podiam ser reveladas aos juízes. A
verdade do acusado, bem como aquela da soberania divina, eram colocadas em
um mesmo plano: ambas podiam ser reveladas pelo procedimento judiciário.
No relato da Vita Sancti Eligii, o próprio santo é chamado a revelar a verdade.
Nas hagiograias francas, os ladrões ou seu estatuto social importam
tão pouco diante do estatuto social do proprietário que animais, pauperes,
potentes e representantes do poder real são punidos com rigor semelhante
quando desobedecem as exortações dos santos, ou se recusam a devolver os
bens roubados. A Vita Columbani descreve dois casos de roubo praticado
por animais: no primeiro, um monge, chamado Leobardo, discípulo de São
Bertrulfo, guardava um vinhedo, quando encontrou um ilhote de raposa
que comia uvas. Ele o admoestou com ameaças e o proibiu de voltar a tocar
nelas. Quando saiu, o animal voltou, pois, segundo o hagiógrafo, “estava
habituado a viver de alimentos roubados”. Mas assim que colocou o alimento
proibido em sua boca, o ilhote de raposa morreu. Logo depois, Leobardo,
ao fazer a ronda do vinhedo, encontrou o animal morto, tendo em sua boca
o alimento proibido30. A punição sofrida pelo ilhote de raposa relaciona-se,
sem dúvida, à capacidade, tantas vezes enunciada nos textos hagiográicos,
dos santos em comandar os animais. A Vida de São Cuteberto, de Beda, o
Venerável,31 traz vários exemplos da capacidade dos santos em inluenciar
o comportamento dos animais e mesmo da natureza: uma águia alimenta
o santo e seu companheiro quando estes sentem falta de alimento32, o santo

30 Vita Columbani II, 25, 21: “Alius rursum monachus nomine Leubardus, cum ad vineae cus-
todiam alio tempore depotatus fuisset, invenit vulpiculam uvas vorantem; quam comminando
corripuit, ac ne amplius adtingerit, imperando prohibuit. Cumque ille abisset, adsueta furtivis vi-
vere fera advenit advenit cibis, cumque gustasset, prohibitos in ora cibos gerens, spiravit. Moxque
Leubardus de studio vineam circumiens, repperit vulpem mortuam, in ore prohibitos tenentem
cibos”.
31 Escrita por Beda em verso (716) e depois em prosa (c. 721), a partir da versão de um monge
anônimo de Lindsfarne (c. 700), esta versão da Vita Cutberth é a mais difundida durante a Idade
Média: dela sobreviveram 37 manuscritos, contra 7 da versão anônima.
32 Vita S. Cutberth, c. 12.

122
expulsa os pássaros que devoravam as plantações33, e mesmo o mar obedece
às suas ordens34.
Mas o que encontramos no relato da Vita Columbani vai além da simples
demonstração do poder do santo sobre os animais: há um paralelismo com
a legislação na descrição daquilo que ocorre com o animal que depreda o
vinhedo. O que é importante notar não é tanto a dimensão exemplar da
punição sofrida (e que valia seguramente para outros ladrões), mas a operação
pela qual o ilhote de raposa transforma-se em algo distinto de um animal.
Tem-se aqui, um exemplo das fronteiras móveis entre sujeitos e coisas na
hagiograia da Alta Idade Média. Nesse texto, o animal é um qualiicativo
jurídico, e possui o mesmo estatuto dos ladrões que, em outras vitae francas,
não devolvem os bens roubados aos seus legítimos proprietários – os santos.
E sua punição é a mesma que atinge o ladrão das luvas de São Filiberto. É
possível observar, na hagiograia, uma operação semelhante àquela que nas
leges e nos textos conciliares transforma as pessoas, bem como o próprio
Deus, em qualiicativos jurídicos.
O Liber Constitutionum, em seu título LXXXIX, prevê o assassinato de
animais que invadem os vinhedos:

[...]1. Na medida em que estamos preocupados com o prosseguimento e utilidade da


agricultura, uma queixa geral foi trazida até nós não só em relação às nossas terras, mas
também em relação às terras de outros proprietários, salientando que os vinhedos são
guardadas em muitos locais com negligência tal que são arruinadas constantemente
pelo gado e outros animais. Como resultado, ou as vinhas são despedaçadas e cortadas
por animais ou, pisadas e arrancadas do próprio solo, são puxadas para cima pela
raízes; daí o edito do nosso pai de gloriosa memória que foi emitido nos tempos
antigos no que se refere ao abate de todos e cada um desses animais ou o pagamento
de compensação. No entanto, reconhecemos que isto não tem sido observado, devido
à negligência de todos. 2. Por isso, ordenamos que quaisquer que sejam os pequenos
animais, ou seja, caprinos, ovinos ou suínos, que forem encontrados em um vinhedo,
como muitas vezes é o caso, alguns podem ser escolhidos entre eles e, em seguida,
mortos e mantidos pelo senhor da vinha. 3. Se, então, após uma terceira advertência,

33 Vita S. Cutberth, c. 19 (trata-se de um acréscimo de Beda em relação à versão anônima).


34 Vita S. Cutberth, c. 21. De um modo geral, os relatos de ataques aos bens têm uma importân-
cia maior nas hagiograias francas do que nas hagiograias do Reino dos Visigodos e das Ilhas
Britânicas. Isso não signiica de modo algum que os ataques aos bens fossem mais frequentes no
mundo franco do que em outros lugares, mas apenas que os hagiógrafos das Ilhas Britânicas,
por exemplo, estavam mais preocupados com as relações com Roma, com a navegação até o
continente (daí a frequência de milagres envolvendo o mar). Não se deve dar um tratamento
quantitativo às diversas narrativas sobre o roubo, mas tentar compreender o signiicado da im-
portância que esses relatos assumem nos textos francos. Pode-se questionar, nesse sentido, se as
disputas em torno da propriedade eclesiástica não possuíam uma importância maior entre os
francos do que na Irlanda ou na Espanha.

123
uma vaca é encontrada em uma vinhedo, ele pode ser morta e mantida pelo senhor
do vinhedo. 4. Com efeito, no caso de bois, cavalos de carga, asnos, ou cavalos de
montaria, se os referidos animais forem encontrados, o senhor ou aquele que cuida
da vinha pode mantê-los consigo; e que seu proprietário pague um único tremissis
para aqueles que os detém em custódia35.

No entanto, os animais discriminados no Liber Constitutionum não


roubam; a preocupação do legislador é com a destruição dos vinhedos causada
pela pastagem de caprinos, ovinos, suínos, vacas, bois e cavalos. No Cântico
dos Cânticos, o versículo 15 do capítulo 2 convida a capturar as pequenas
raposas que destroem as vinhas: Capite nobis vulpes parvulas quae demoliuntur
vineas. Todavia, em momento algum, o Liber ou o Cântico utilizam a palavra
“furto” para caracterizar o ato dos animais ou “latro” para designá-los No
exemplo da Vita Columbani, o ilhote de raposa estava acostumado a “viver
de alimentos roubados”.
E, no caso analisado a seguir, ainda na Vita Columbani, um corvo é
claramente designado como um “ladrão”. O caso do “corvo-ladrão” envolve
diretamente São Columbano. Durante a pausa para o almoço no monastério de
Luxueil, o santo depositou sobre uma pedra na porta do refeitório um par de
luvas, que costumava portar quando trabalhava. Assim que a calmaria retornou,
um corvo, que o hagiógrafo chama de pássaro-ladrão (“corvus rapax”), pousou
no local, tomou uma das luvas com seu bico e a levou embora. Terminada a
refeição, Columbano procurou e não encontrou suas luvas, e declarou que,
aquele que ousou tocar em alguma coisa sem permissão, nada mais é que o
pássaro que foi solto por Noé e não voltou à arca. Ele jamais poderá alimentar
seus ilhotes, acrescentou Columbano, se não trouxer rapidamente o objeto
roubado. Sob os olhares dos irmãos, o corvo pousou no meio da assembleia,
trazendo, em seu bico, o objeto roubado. Em vez de tentar voar e fugir, ele
permaneceu tranquilamente diante de todos, esperando seu castigo, até que
o santo ordenou que ele partisse36. O objeto roubado pelo pássaro é o mesmo

35 Liber Constitutionum, LXXXIX: “1. Cum de cultura studio et utilitate tractamus, generalis
ad nos tam de nostris quam de possessorum agris querela pervenit, diversis locis tali negligentia
vineas custodiri, ut omni tempore ab animalibus et pecoribus evertantur, dum aut evertuntur
ipsae vites, pascendo truncantur aut conculcatae et fractae a solo ipso radicibus evellantur. Unde
iam gloriosae memoriae patris nostri edictum processerat, in quo de singulis quibusque animali-
bus aut occidendi aut solvendi ordinem dicitur statuisse; quod praetermissum omnium abutione
cognovimus. 2. Proinde iubemus, ut quolibet tempore minora animalia, id est: capra, vervices
aut porci in vinea inventa fuerint, unum de ipsis, quotiens inventa fuerint, iubemus occidi a vi-
neae domino praesumendum. 3. Vacca vero post tertiam conventionem si in vinea inventa fuerit,
occidatur a vineae domino similiter praesumenda. 4. De bubus vero et caballis, asinis aut equis
animalibus iubemus, ut dominus aut custos vineae inventa supradicta animalia includat, et per
singula animalia singulos tremisses inferat, cuius sunt, ei a quo tenentur”.
36 Vita Columbani I 15, 25: “Aliaque vice cum ad cibum capiendum veniret (beatus igitur
Columbanus) in sepefacto caenubio Luxovio, tegumenta manuum, quos Galli wantos vocant, quos

124
que, em outros textos hagiográicos, é apropriado pelos ladrões. O animal
escapa da morte ao trazer de volta ao santo o objeto roubado, da mesma
forma que, em outras vitae, os ladrões recebem o perdão e escapam da morte
ao devolverem os bens dos santos ou das igrejas.
Os casos dos animais acusados de roubo e, em seguida, condenados ou
perdoados pelos santos, são o melhor exemplo de que as hagiograias nem
sempre descrevem “sujeitos” redutíveis a pessoas ou a individualidades. Nesses
textos, o imperativo da descrição dos fatos, no caso dos animais-ladrões,
não é outro, senão aquele criado pelas normas conciliares, cujo objetivo era
proteger os bens das igrejas contra todos aqueles que tentassem se apropriar
deles. Mais do que uma metáfora que servia para condenar quem se apropriava
dos bens dos santos e das igrejas, o exemplo do animal-ladrão consistia em
uma qualiicação jurídica que equiparava o animal dos textos hagiográicos
ao ladrão das leges e dos textos conciliares. Claro, as normas não previam a
condenação de animais por roubo, mas isso mostra a capacidade dos textos
hagiográicos de modiicar coisas, relações e signiicações.
Os relatos de roubos praticados por animais têm um desfecho semelhante
aos dos roubos praticados pelos ladrões dos textos legislativos. Isso não elimina
o caráter exemplar desses relatos, e o fato de que são destinados a coibir o roubo
de bens eclesiásticos, além de mostrar que todos os que roubam bens da Igreja
são punidos – qualquer que seja sua condição ou estatuto. É exatamente isso
que prevê, por exemplo, o cânone 18 do Concílio de Clichy. Ao exempliicar
esse princípio, o texto hagiográico também abre mão de formas jurídicas
que não se reduzem a sujeitos ou individualidades. O “animal-ladrão” das
vitae francas é um qualiicativo jurídico, da mesma forma que o “escravo-
ladrão” da Passio Leudegarii. As normas conciliares não previam a condenação
de animais por roubo, mas essa variação mostra a força dos qualiicativos
jurídicos, sua presença nas vidas de santos. Essa ampliação da personiicação
do ladrão abrangendo animais, por exemplo, testemunha o deslocamento da
norma para um campo documental que, a princípio, considerar-se-ia livre
de inluência normativa.
O Direito transforma o mundo social em uma linguagem que o
distingue, pois o transporta em um registro normativo que realiza o que há

ad operis labore solitus erat habere, supra lapidem qui ante fores refecturii erat deposuit; mox-
que,quiete reddita, corvus alis rapax advolavit, unumque ex eis rostro ferens, abstulit. Peracta
refectionis hora, foris vir Dei rediens, tegumenta manuum requirit. Cumque omnes inter se con-
quererunt, qui abstulissent, vir sanctus ait, nullum alium esse, qui sine comeatu aliquid adtingere
presumpsisset, nisi alitem, qui a Noe dimissus, ad arcam non remeavisset, addiditque nullo modo
suos pullos aliturum, si rapacem furtum celeri volatu non referret. Expectantibus fratribus, in
medio omnium corvus advolat, male sublatum furtum rostro reportat nec se pennigera conatur
eripere fuga, sed mitis ante omnium conspectum, oblitus ferocitatus, ultionem expectat, quem vir
sanctus abire imperat. O mira aeterni iudicis virtus! qui tanta suis famulis prestat, ut non solum
hominum honoribus, sed etiam avium oboedientia clarescant”.

125
nesse mundo de obrigatório, como a moeda realiza o valor no momento da
troca37. Inicialmente, há apenas as coisas: sujeitos inumeráveis, de uma ininita
variedade, que nada ainda determina, senão os limites que circunscrevem as
atividades da política e do tribunal. A partir da controvérsia, a res torna-se
uma “causa”. A causa é essa coisa transformada em “locus” da controvérsia.
Essa é a primeira etapa de uma formalização verbal, por meio do contrato, de
todas as violências, que se resolvem em processo. A segunda etapa marca a
passagem da causa à questio. Tal como está, a causa ainda é demasiadamente
concreta. É necessário, então, depurar todas as determinações - circunstâncias
diversas, pessoas - que impeçam de ver o que ela contém de essencial: um puro
problema. Essa abstração conduz a um “gênero”, ao qual toda causa se reduz.
Assim, a “res” é deinitivamente ultrapassada. Sua redução analítica consiste
em uma extração, pelo sujeito, da substância do objeto; uma eliminação de
uma parte da controvérsia em proveito de uma parte irredutível e central: a
“natura” e o “genus causae” manifestam a presença de uma “questio universa”,
que permite que se descole uma causa especíica. Esse método projeta sobre
o objeto uma estrutura artiicial, reconhecida como uma estrutura real. Esse
procedimento, fundado, inicialmente, em uma visão distinta das coisas e das
palavras, “res” e “verba”, acaba produzindo um mundo de palavras que são
coisas, de nomes que não são mais instrumentos intelectuais, mas essências.
Das palavras às coisas, o Direito não se contenta em estabelecer equivalências,
mas opera uma espécie de mediação, que produz, entre os dois, um mundo
especíico de realia38.
Ao longo deste trabalho, buscou-se mostrar como as “palavras”, tornadas
“coisas”, ultrapassam o campo da retórica do procedimento judiciário, para se
instalarem na documentação hagiográica. O estudo dos casos de roubo nas
hagiograias francas permite observar essa passagem, e tentar compreender de
que forma essas “essências” impactam a coniguração narrativa das relações
entre pessoas e coisas, transformando-os em sujeitos e bens.
As operações jurídicas não se contentam em qualiicar as pessoas, as
coisas e suas relações; elas as transformam. Não há uma fronteira rígida,
deinida aprioristicamente, entre, de um lado, o mundo da “icção” e, de
outro, o mundo “real”, mas uma linha lexível cujo deslocamento se faz em
função da necessidade de construção da sociedade. As coisas, por exemplo,
as relíquias, podem se tornar pessoas: P. Geary, em seu estudo sobre o roubo
de relíquias, mostra como essas podem escolher permanecer onde estão, ou
partir com os ladrões. É o que acontece com o corpo de Santo Elói: o local de
seu sepultamento provocou uma querela entre a rainha Batilda, que pretendia
enterrá-lo em Chelles, onde ela se encontrava exilada, e os habitantes de Noyon,

37 Maille, M. Une introduction critique au droit, Paris, 1976: 100.


38 homas, Y. Le droit entre les mots et les choses. Rhétorique et jurisprudence à Rome. Archives
de Philosophie du Droit, 1978: 93-114.

126
que pretendiam conservá-lo em sua cidade; outros ainda queriam levá-lo para
Paris. O corpo do santo teria se recusado a se mexer, indicando sua escolha
por Chelles. Também a Vita Vedasti, de Alcuíno, relata que, quando ia ser
enterrado fora da cidade, no oratório que o próprio santo havia preparado
para isso, seu caixão teria sido levantado pelo povo e pelo clero com a maior
facilidade, o que indicaria o consentimento do santo39. Mesmo os animais
podem se tornar sujeitos, como o ilhote de raposa ou o corvo, culpados de
roubo na Vita Columbani.
Os relatos de roubo nas vidas de santos mobilizam coisas e pessoas,
transformando-os em formas jurídicas próximas daquelas encontradas nas leges
e nos textos conciliares. Essa projeção atende aos imperativos de defesa dos bens
eclesiásticos. É possível pensar a punição do ladrão nos textos hagiográicos
como uma forma de preservação da propriedade ou como um instrumento
de construção do proprietário? A leitura dos relatos de roubo nas vitae francas
mostra que nelas o proprietário é mais importante que o direito à propriedade:
as hagiograias não reletem sobre os direitos de propriedade, mas sobre os
direitos do proprietário. A propriedade é um princípio absoluto, no sentido
de que não pode, ela própria, anular-se, romper-se. É necessário, para tanto,
a intervenção de um princípio, ou de uma prática, oriunda do exterior, o
roubo, a doação, a venda. Nos textos estudados anteriormente, os santos,
muitas vezes, abrem mão desse direito: os direitos do proprietário incluem a
prerrogativa de abrir mão de seus bens. É assim que se constrói sua “soberania”,
ou seja, o próprio direito de propriedade. O direito de dispor livremente dos
bens é elemento capital na construção da noção de propriedade. A soberania
do proprietário e sua autonomia em face dos diversos tipos e estatutos de
ladrões participarão da construção da ideia de propriedade. Nas hagiograias,
o proprietário se impõe a todos os tipos de ladrões, a todos os tipos de bens
roubados, exatamente como previa o Concílio de Clichy.
Há outro indício de que as vidas de santos se preocupam com os
proprietários, e não com a propriedade. O roubo é descrito como uma iniuria
cometida contra o proprietário, muito mais que um atentado à relação entre
o proprietário e seus bens. A punição serve para restabelecer o honor da
vítima, ou seja, do proprietário. O retorno do bem roubado, nesse caso, não
é essencial. O perdão acordado por Eusicius no relato de Gregório Magno
reforça o estatuto do proprietário, e também promove a circulação de bens. Há
dois mecanismos para a promoção das doações: o primeiro, e mais evidente

39 “Qui mox facillime leuentes feretrum portabant sanctum corpus cum luminibus, laudibus et
hymnis ad locum sibi placitum, sepelientes eum cum magno honore iuxta altare eiusdem ora-
torii, nobile terrae condentes thesaurum” (Veyrard-Cosme, C. L’œuvre hagiographique en prose
d’Alcuin. Vitae Willibrordi, Vedasti, Richarii. Édition, traduction, études narratologiques.
Firenze: Edizioni del Galluzzo, 2003: 104-106). A versão da Vita Vedasti, escrita por Jonas de
Bobbio no século VII, relata o mesmo fato, em seu capítulo 9 (SRM III, 1896, ed. Krusch, B.: 406-
413).

127
e recorrente, é aquele que propaga a capacidade dos santos em proteger os
bens que lhes são doados. O segundo, mais sutil, e também mais raro na
hagiograia franca, expõe a propensão dos santos em distribuir bens, mesmo
àqueles que tentam roubá-los.
Há cerca de 30 anos, P. Geary, em seu estudo sobre o roubo de relíquias,
airmava que as relíquias em si, restos físicos de santos, são essencialmente
passivas e neutras, e, portanto, não são de primordial importância para
historiadores. São os indivíduos que entraram em contato com esses objetos,
dando-lhes valor e assimilando-os à sua história, quem são os sujeitos da
pesquisa histórica40. O valor atribuído pelos sujeitos às relíquias cumpre
um papel semelhante àquele identiicado por M. Godelier: ele modiica a
natureza das coisas.
Todavia, o que se procurou estudar aqui é o papel das normas, não de
indivíduos singulares, nesse processo de reconiguração dos limites entre
coisas e pessoas. Não é possível subestimar a capacidade dos qualiicativos
jurídicos em fabricar pessoas e coisas no mundo franco da Alta Idade Média.
Uma questão que ainda não foi suicientemente explorada é: em que medida
essas construções jurídicas tornaram-se sujeitos da história social, até o ponto
de tornarem-se quase imperceptíveis aos historiadores como aquilo que eram
inicialmente, isto é, qualiicativos jurídicos.

40 Geary, P. Furta Sacra: 3.

128
Considerações finais

Retornando-se à questão inicial, sobre as distintas punições para o roubo


presentes na Vida de São Filiberto, questiona-se: como explicar que o ladrão
do cavalo foi perdoado, enquanto o das luvas não o foi? Isso não signiica que
os potentes eram exortados a serem magnânimos entre eles, evitando, assim,
que o roubo degenerasse em faida, enquanto exerciam uma justiça mais severa
em relação aos mais fracos (os pauperes). Se este fosse o caso, poder-se-ia,
a partir dos dois exemplos de punição de roubo presentes na Vita Filiberti,
proceder a uma história social do roubo, tentando compreender por quais
razões, por exemplo, os potentes não são punidos com o mesmo rigor que os
pauperes. No entanto, os relatos de roubo presentes em outras hagiograias
mostram potentes e membros do séquito real castigados por causa do roubo
(Liber in gloria martyrum, 65), e pauperes perdoados (Vita Sanca Genovefa,
Liber in gloria confessorum, 17).
Além disso, para que esta hipótese se conirmasse, seria necessário que
a Vita Filiberti descrevesse dois indivíduos, um potente e um pauper. Essa
abordagem dos textos hagiográicos radicaliza os pressupostos da “historical
approach” defendida por P. Fouracre. Nem todos os elementos da narrativa
desta vita conduzem a um retrato da Gália franca no século VIII e de seus
diversos grupos sociais, suas mentalidades ou suas ideias. No repertório de
roubos estabelecido nos títulos do Pactus legis Salicae, tem-se, aparentemente
camponeses, mais precisamente criadores de animais. Mencionam-se
igualmente homens livres, escravos, servos. Os cânones conciliares mencionam
tesouros em ouro e prata, bem como terras, imóveis pertencentes à Igreja e
aos bispos. As crônicas, as histórias, as hagiograias e as correspondências
mencionam a riqueza dos reis, mas também dos grandes personagens laicos e
eclesiásticos. As hagiograias descrevem santos que possuem, como únicos bens
objetos que serviam à sua atividade pastoral, especialmente luvas, sandálias
e cavalos. Há uma grande variedade de personagens, de bens e de nível de
riquezas. Seria um equívoco, no entanto, tentar repertoriar esses diversos
personagens dos textos e seus diferentes níveis de riqueza para estabelecer
um quadro da sociedade franca da Alta Idade Média. Os textos francos não se
referem a proprietários e ladrões, no sentido estrito de indivíduos ou membros
de grupos determinados; da mesma forma, não estabelecem um quadro
sistemático de coisas que são roubadas pelos ladrões na Alta Idade Média.
Não se pode perder de vista o caráter performático do texto hagiográico,
sua faculdade de projetar sobre os fatos uma forma que atende a determinados
imperativos de construção social. Essa forma, posteriormente, confunde-se

129
com a própria natureza dos fatos. Os casos de roubo servem para demonstrar
o princípio da inviolabilidade da propriedade dos santos: nenhum dos dois
ladrões da Vita Filiberti, apesar de seus diferentes estatutos, e as diferentes
intensidades de suas punições, consegue levar a termo sua empreitada. É
muito provável, aliás, que os bens descritos sejam uma forma de qualiicação
dos bens eclesiásticos: as luvas e o cavalo – objetos recorrentes nos relatos
hagiográicos de roubo – são instrumentos da atividade evangélica do santo.
A preocupação com os bens eclesiásticos é essencial nos relatos hagiográicos:
a maioria dos roubos descritos nas vidas de santos diz respeito aos bens dos
santos, das igrejas e dos monastérios. E, quando mencionam o roubo de bens
que não pertencem às igrejas, as vitae são bem menos prolixas.
Saliente-se que, apesar do aumento da intensidade da punição ao roubo
nos editos reais do século VI, não se assiste a um aumento considerável do
número de milagres de libertação de prisioneiros. Os textos hagiográicos dos
séculos VI e VII na Gália estão em sintonia com o problema dos bens da Igreja:
não há porque querer escrever, a partir do estudo desses textos, uma história
das práticas judiciárias no mundo franco. O que se pode acompanhar por meio
das vidas de santos é uma história da criação e da difusão de formas jurídicas.
O fundamental, em ambas as descrições de roubo da Vita Filiberti, é o
destino dos bens roubados. As luvas e o cavalo do santo são recuperados, seja
pelo arrependimento de um dos ladrões (o forestarius), seja pela punição terrível
advinda da ausência de arrependimento do segundo (o pauper). Em ambos
os casos, o santo desempenha papel essencial na recuperação dos bens: os
prodígios que se manifestam, tanto o fogo na casa do forestarius, quanto aquele
que consome o peito do primeiro ladrão, testemunham a excepcionalidade
do santo, sua relação com o Além, em suma, seu estatuto. Esse desfecho do
roubo, aliás, é comum a absolutamente todos os relatos hagiográicos francos:
os santos conseguem sempre reaver seus bens.
O tema do roubo, como se viu, ocupa um lugar predominante na legislação
real franca: quase um terço dos títulos do Pactus legis Salicae, editos, preceitos
e capitulares dedicados ao tema. O Pactus legis Salicae e a legislação real franca
constroem um esquema de qualiicação jurídica do roubo que também está
presente nos cânones conciliares e nas hagiograias francas, especialmente no
que se refere à preeminência do proprietário na avaliação da gravidade da
actio criminalis e na avaliação da natureza dos bens. Os textos hagiográicos
participaram com os cânones conciliares da defesa dos bens eclesiásticos e
monásticos.
A qualiicação dos bens como um dos elementos centrais (ao lado das
circunstâncias agravantes) na deinição da gravidade do roubo é um fenômeno
moderno. Tal qualiicação mobiliza uma série de elementos essenciais da
modernidade, como o mercado, o comércio e a contabilidade racional. Nada
disso se veriica no mundo franco da Alta Idade Média: nos textos conciliares,

130
na legislação real, nas crônicas, nas histórias e nas hagiograias, o proprietário
constitui o epicentro da qualiicação do roubo. O roubo não era considerado
um crime contra os bens. Eles são secundários. É a partir do proprietário que
todos as formas de qualiicação, inclusive aquelas que conduzem à deinição
da natureza dos bens, são elaboradas e projetadas sobre os diversos casos de
roubo. A qualiicação do roubo no mundo franco não considerava o valor de
mercado dos bens roubados, mas o estatuto daquele que era vítima do roubo.
Não há melhor indício do vigor das normas civis que a transformação de
Deus, nos textos conciliares, de proprietário de todas as coisas, em proprietário
dos bens da Igreja. Essa transformação é eicaz para as igrejas sob dois pontos
de vista: em primeiro lugar, ela retira, pelo menos teoricamente, os bens
eclesiásticos do espaço das trocas, da prescrição pelo uso e, sobretudo, do
roubo, santuarizando-os. A “santuarização” dos bens da Igreja é uma resposta
ao roubo, e um instrumento de defesa dos proprietários, muito mais do que
a defesa da propriedade. Ou, como está escrito em Mateus, 6:19-20: “Não
ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde
os ladrões minam e roubam; mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça
nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam”.
A proteção desses bens, ou em outras palavras a acentuada punição para
aqueles que os roubassem, era uma proteção do estatuto do Seu proprietário,
o que conigurava uma nítida reprodução da qualiicação jurídica do roubo,
elaborada no Pactus legis Salicae e na legislação real dos séculos V-VIII. Essa
qualiicação, além disso, modiicava o estatuto dos bens a ponto de parecer
transformar suas características intrínsecas. A distinção entre bens da Igreja,
de um lado, e bens públicos ou privados, de outro, não resultava, no mundo
franco, de diferenças ontológicas entre eles, mas de um procedimento que
produzia e organizava categorias jurídicas, e cuja incidência não se limitava
às coisas. Os cânones conciliares sacralizavam os bens, ao legislarem sobre os
ataques a eles: proclama-se, em primeiro lugar, que os bens da Igreja não estão
submetidos às prescrições pelo uso. O usucapio é, portanto, a primeira zona
de demarcação da natureza distinta desses bens. A segunda é a airmação de
que os bens da Igreja pertencem a Deus. A terceira corresponde ao uso que é
feito desses bens. A quarta é a punição prevista para o roubo desses bens. Por
último, cronologicamente falando, é a airmação de que, qualquer que seja o
estatuto do ladrão, a penalidade é a mesma: a excomunhão. A natureza dos bens
não era autônoma, e sua deinição era uma resposta aos diversos ataques que
sofriam: sua natureza era deinida em circunstâncias de apropriação (roubo,
questionamento da legitimidade da doação, reivindicações diversas). Nessa
deinição, eram invocados o estatuto de Seu proprietário (Deus), bem como
a função desses bens em proveito dos pobres (pauperes). A julgar pelo que se
observa no Testamento de Bertrand de Mans, nas regras de doação de bens
e nas vidas de santos, as normas conciliares conseguiram criar, de fato, dois
tipos de bens: os bens que pertencem à Igreja e os bens que não lha pertencem.

131
A construção de uma fronteira entre os bens é somente a mais nítida
manifestação da qualiicação jurídica do roubo nos cânones conciliares. De
uma maneira global, a produção dessas categorias, bem como sua aplicação
nos textos hagiográicos, deslocavam as fronteiras entre os bens e os sujeitos,
entre os próprios sujeitos, e entre a divindade, os sujeitos e os bens. O Deus
proprietário dos cânones conciliares e das hagiograias é, em boa medida,
uma categoria jurídica. As normas que combatem o roubo no mundo franco
criam icções jurídicas? Não é o que se observou ao longo deste trabalho. No
entanto, elas realizam uma operação jurídica igualmente criadora, embora
menos criativa e mais recorrente, e que consiste na qualiicação do “ladrão”,
da “vítima”, do “roubo” e da “propriedade”, a partir da redução de fatos, de
indivíduos e de casos singulares.
As leges e os cânones conciliares no mundo franco se interessam mais
pelos sujeitos que pelas coisas: os instrumentos de qualiicação jurídica do
roubo são, sobretudo, meios para avaliar, qualiicar e hierarquizar as pessoas. Os
qualiicativos jurídicos projetam sobre os sujeitos novas formas que os envolvem
e deinem de maneira bastante plástica sua nova identidade social. É assim que
os bispos, convertidos em pauperes nos textos conciliares, aparecem nesses
mesmos textos como doadores de bens aos próprios pauperes, cujos bens são
identiicados aos bens da Igreja. A norma conciliar estabelece um campo de
indistinção entre bens da Igreja e os bens dos pobres, que alimenta o circuito
de doações às igrejas, enquanto tenta proteger todos eles das apropriações
praticadas pelos potentes.
Não se deve enganar com o fato de que as diversas coisas que são objetos
de litígio nas leis francas e em outras leges bárbaras são avaliadas em termos
pecuniários: a hierarquização pecuniária traduz as posições relativas dos
qualiicativos jurídicos dos proprietários e dos ladrões no interior da própria
norma.
Mas há outra diferença importante entre os concílios e as leges francas:
os primeiros não buscam atribuir um valor ao roubo dos bens da Igreja; o
ato em questão conduz à excomunhão, pena máxima na legislação conciliar,
mas aplicável independentemente do estatuto social dos ladrões, como se
viu. Nas leges francas, o roubo do porco que pertence à igreja é objeto de
uma multa pecuniária mais importante do que aquela que atinge os porcos
que não lha pertencem. Isso não signiica que os bens da Igreja não tinham
valor patrimonial (o Testamento de Bertrand de Mans mostra o contrário),
mas simplesmente que eram inestimáveis na legislação eclesiástica – tanto
do ponto de vista de seu proprietário quanto do ponto de vista daqueles que
eram seus beneiciários.
Tanto quanto o combate ao roubo, as formas jurídicas serviam à deinição
dos lugares relativos dos sujeitos no seio de uma sociedade extremamente

132
hierarquizada. Nesse sentido, menos do que “criar a propriedade”1, a
qualiicação jurídica do roubo cria o “proprietário”. A luta contra o roubo
conduz à construção de uma hierarquia social, na qual as pessoas, e o próprio
Deus, tornam-se sujeitos jurídicos, que servem para dar forma à vida social.
Segundo M. Godelier, os homens não vivem somente em sociedade, como os
primatas e outros animais, mas produzem a sociedade para viver. A partir do
exemplo da qualiicação jurídica do roubo, este trabalho pretendeu analisar
os meios pelos quais as normas, mesmo sendo fruto de uma construção não
apenas institucional, são capazes de criar formas da vida social, que podem ser
bastante distintas daquelas que existiam quando as normas foram elaboradas.

1 Numa alteração deliberada da expressão de U. Ewald, segundo a qual o “trabalho cria a pro-
priedade” (“Arbeitschat macht Eigentum”) (Ewald, U. Arbeitschat macht Eigentum: die ‘pas-
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1ª edição: Janeiro, 2014
formato: 15,5cm x 22,5cm | 144 p.
tipologia: Myriad Pro
papel da capa: Supremo 250 g/m2
papel do miolo: Of Set 90g/m2

Memória Produção Editorial


produtora editorial: Maíra Nassif
revisão de textos: Erick Ramalho
revisão de provas: Cláudia Rajão
diagramação: Carmen Barbi
capa & projeto gráfico: Ana C. Bahia

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