Você está na página 1de 12

EICHMANN ALÉM DE JERUSALÉM: APONTAMENTOS

PARA UM DEBATE SOBRE O LUGAR DAS VÍTIMAS


NA JUSTIÇA INTERNACIONAL

Roberta Cerqueira Reis


Professora de Direito Internacional Público e Direitos Humanos no departamento de Relações Internacionais da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Doutoranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais;
Mestre em Direito Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

RESUMO of the Jewish people. The paper shows how, in


many ways, we can still learn with this debate
O presente artigo realiza uma releitura do when we study international courts and the
canônico livro de Hannah Arendt, Eichmann em recognition of victims, narratives and memory
Jerusalém (1963), de modo a contrapor as ideias constructions.
ali delineadas com o debate atual sobre o lugar
das vítimas nos julgamentos internacionais Keywords
de graves violações de Direitos Humanos. A
posição defendida por Arendt acerca das funções International Justice; memory; trauma;
do tribunal, enquanto instância neutra e sóbria, recognition; Eichmann in Jerusalem.
conflita com a posição da promotoria do caso
que explorou os aspectos simbólicos daquele 1. INTRODUÇÃO
evento jurídico, utilizando-se do tribunal Em 16 de fevereiro de 1963 o jornal The
enquanto espaço de reconhecimento das vítimas New Yorker publicou o primeiro de cinco artigos
e construção da memória do povo judeu. O artigo escritos por Hannah Arendt sobre o julgamento
busca explorar esse embate e mostrar como, em de Adolf Eichmann, oficial nazista responsável
grande medida, podemos ainda hoje aprender pela logística de transportes e especialista nos
com ele nos estudos sobre a relação dos tribunais “assuntos judaicos” no Terceiro Reich.
internacionais com o reconhecimento de vítimas
O nome de Eichmann havia aparecido
e construção de narrativas e memórias.
com frequência desconfortável durante os
procedimentos do Tribunal de Nuremberg
Palavras chave (1945-1946) como um dos executores por trás
Justiça Internacional; memória; trauma; da “Solução Final” que acelerou o genocídio dos
reconhecimento; Eichmann em Jerusalém. judeus (e outros grupos) no final da Segunda
Guerra Mundial. O oficial conseguiu escapar do
ABSTRACT julgamento fugindo para a Argentina, onde foi
localizado e capturado pelo Estado de Israel já no
This paper proposes a reading of Hannah início de 1960. (cf. LIPSTADT, 2011, pp. 31-40)
Arendt’s book Eichmann in Jerusalem (1963) Hannah Arendt foi a enviada do The New
in order to analyse the ideas presented in the Yorker para relatar o julgamento no qual os
book with the current debate on the role of the judeus, pela primeira vez, fariam justiça aos
victims in international tribunals adjudicating milhares de civis vitimados pela Alemanha
gross violations of human rights. The argument de Hitler. A presença de Arendt se mostraria
defended by Arendt that the Court’s function repleta de simbolismo. As suas impressões
should be that of neutrality and sobriety conflicts sobre Eichmann, as vítimas, o promotor
with the decision made by the prosecutor’s Gideon Hausner e os juízes causariam imenso
office to explore the symbolical aspects of that impacto no universo intelectual e, até hoje,
juridical event, using the Court as a place for servem de base para muitas análises acerca de
recognizing victims and construct the memory

289
julgamentos internacionais. (cf. LIPSTADT, ater aos atos e crimes perpetrados pela pessoa
2011, p. 119-120) de Eichmann e não pelo Nazismo em geral.
Arendt descreve Eichmann como um sujeito Arendt argumentava que o Holocausto não fora
comum, incapaz de reflexão1 e de mensurar ou um crime apenas contra os judeus, mas sim um
compreender a gravidade de sua atuação, apenas crime contra a humanidade perpetrado na pessoa
um “dente da engrenagem” burocrática que dos judeus2.(cf. LIPSTADT, 2011, pp. 120-122)
vitimou milhares de pessoas. Um burocrata, A promotoria, por sua vez, adotou uma
plenamente substituível, executor de ordens que postura muito mais ampla e trouxe a debate
ele nunca questionou ou problematizou. vários tópicos sobre a estrutura de massacres
A descrição dada por Arendt fundamentava da Alemanha nazista, uma verdadeira indústria
aquilo que ela denominou como a “banalidade da morte. Com efeito, traçar uma linha geral
do mal”, a possibilidade de o horror ser do conflito é fundamental para se estabelecer o
perpetrado por pessoas comuns, pais de família dolus specialis (fim especial de agir) necessário
que voltavam para a casa com a impressão de para aperfeiçoar o crime de genocídio3.
missão cumprida após um dia de “trabalho”. O Arendt desferiu duras críticas às escolhas
criminoso do século não precisaria ser sádico adotadas pelo promotor do caso Eichmann4,
ou louco, mas sim indivíduo incapaz de pensar acusando-o de promover um espetáculo que
que estava praticando o mal. Arendt demonstra extrapolava os limites das ações efetivamente
seu argumento com o seguinte diálogo entre um realizadas pelo réu. Para a autora não era correto
jornalista americano e um prisioneiro de guerra responsabilizar um único homem por um
alemão em um campo soviético: “sucesso” coletivo. Haviam, para ela, inúmeros
P.: Vocês matavam gente no campo? R.: outros participantes que deviam ser chamados
Sim à responsabilização, entre eles, os chefes dos
Conselhos Judaicos aos quais ela acusa de serem
P.: Vocês usavam gás para envenená-las?
cúmplices nos massacres. (cf. LIPSTADT, 2011,
R.: Sim.
pp. 119-144)
P.: Vocês as enterravam vivas? R.:
Os juízes, por sua vez, são elogiados por
Aconteceu algumas vezes.
Arendt, pois teriam conseguido manter alguma
P.: As vítimas vinham de toda a Europa? R.: neutralidade e objetividade, apesar dos esforços
Acho que sim. de Hausner de trazer o assunto antissemitismo
P.: Você pessoalmente ajudou a matar e nazismo ao palco do julgamento a despeito das
alguém? R.: De jeito nenhum. Eu era só o ações efetivamente promovidas pelo réu. Para
funcionário que fazia os pagamentos no campo. Arendt (2004, p. 93):
P.: O que você achava sobre o que estava Pois como os juízes se deram o trabalho
acontecendo? R.: No começo foi ruim, mas de apontar explicitamente, na sala de um
depois a gente se acostumou. tribunal não está em julgamento um sistema,
P.: Você sabe que os russos vão enforcá- uma história ou tendência histórica, um ismo,
lo? R.: (explodindo em lágrimas) Por que fariam o antissemitismo (sic), por exemplo, mas uma
isso? O quê que eu fiz? (ARENDT, 2008, p.156, pessoa, e se o réu é por acaso um funcionário,
grifo nosso) ele é acusado precisamente porque até um
A perspectiva da banalidade do mal e sua funcionário ainda é um ser humano, e é nessa
qualificação de Eichmann como um indivíduo qualidade que ele é julgado.
que se enquadraria como exemplo de sujeito banal A opção de Arendt em desqualificar os
gerou revolta e repulsa na comunidade judaica e esforços da promotoria como sendo verdadeiros
acadêmica, sendo Arendt considerada traidora truísmos sensacionalistas e, em grande medida,
do povo judeu e por alguns, exageradamente, desqualificar as testemunhas (sobreviventes de
antissemita. campos de concentração entre elas) gerou uma
A polêmica envolvendo a cobertura dada infinidade de cartas e protestos.
por Arendt ao julgamento de Eichmann se deve, Ao defender uma objetividade e neutralidade
em grande medida, à sua visão sobre quais no julgamento, que deveria se pautar em
deveriam ser as bases e limites da jurisdição. provas cabais e direito à ampla defesa (a qual,
Arendt entendia que a promotoria deveria se de fato, ficou severamente prejudicada no caso

290
Eichmann) a autora perdeu de vista a dimensão Através da linguagem, a verdade se
simbólica do julgamento. Algo que não passou constrói dicotomicamente, pela contraposição
despercebido pela promotoria que buscou julgar dos elementos de prova e argumentos trazidos
o nazismo na figura de Eichmann. pelas partes litigantes. Analisando o complexo
A linha defendida por Arendt de que não argumentativo narrado por cada parte o juiz
é papel de um julgamento escrever história decide qual é a verdade (oficial e institucional)
ou trabalhar elementos simbólicos, pois isto dos fatos. Pode-se dizer que, judicialmente, a
representa a perda de objetividade e neutralidade verdade é o discurso construído que foi mais
dos procedimentos legais vem sendo base da forte e capaz de demover o juízo.
doutrina liberal-legalista que entende que o Trata-se de uma construção negativa de
objetivo de um julgamento deve sempre ser o de verdade, ou seja, prevalecerá uma narrativa entre
apurar responsabilidade do réu e sua pena. (cf. muitas, a versão dos fatos que eliminou e calou
WILSON, 2011, p.3) as outras vozes discordantes, impondo-se como
Propomos, nesse trabalho, alternativas à uma única possibilidade entre os vários outros
visão delineada por Arendt para o julgamento de caminhos possíveis. Para Garapon6 (2002, pp.
Eichmann e que tem sido, em grande medida, 165-166):
repercutida nos julgamentos internacionais. O processo também permite impor
A suposta neutralidade, uma ideia de verdade uma coerência baseada em provas esparsas e
objetiva pode, muitas vezes, significar a testemunhos fragmentários, ao atribuir um
prevalência de uma narrativa5 violenta que grau de intencionalidade e de organização com
re-vitimiza e perpetua o trauma. A verdade, o objetivo de elaborar uma narrativa coerente
de fato, é sempre a verdade de alguém, uma e explicativa – logo, tranquilizadora – dos
relação de poder. factos. A verdade judiciaria é, de alguma forma,
Trabalha-se a hipótese de que os formatada pelo procedimento. O juiz está sempre
julgamentos de crimes como genocídios não constrangido por elementos constitutivos e
têm uma pretensão neutra e isenta. Eles fazem regras de competência.
parte da história e são uma instância política Não só de elementos objetivos, contudo,
que permite devolver a humanidade da vítima, estruturam-se as narrativas prevalecentes
constituí-la como tal e redefinir a narrativa do (oficiais). Os juízes possuem identidades
conflito por meio de seu testemunho. próprias, culturas, uma história de vida que
Abordaremos, na primeira parte do trabalho, influem diretamente nas suas interpretações
as demais funções - de natureza política, simbólica dos fatos e, consequentemente, nas decisões
e histórica - desempenhadas pelos julgamentos proferidas. Os juízes carregam esse conjunto de
internacionais e que ultrapassam, em muito, conceitos prévios no momento de decidir (cf.
sua atribuição de apurar responsabilidades ARAÚJO, 2012, p. 7-96).
criminais. Em seguida passamos a discutir o O mesmo ocorre nos julgamentos
caso Eichmann sob esse olhar abrangente para os internacionais, talvez em maior medida, pois
julgamentos, contrapondo com as perspectivas temos o problema da cultura e das assimetrias
trazidas por Arendt. globais de forma bastante exacerbada. Isso se
manifesta na maior e mais severa crítica que
2. JULGAMENTO E A BUSCA PELA se dirige ao Tribunal Penal Internacional (TPI)
VERDADE DOS FATOS que é, justamente, tratar-se de uma corte de
europeus (ocidentais) para julgar os africanos.
Ricoeur entendia que o Direito não é (cf. BASSIOUNI; HANSEN, 2014). De fato, ao
o campo da verdade, mas sim, o campo da longo dos últimos quatro anos o TPI sofreu uma
prudência pautado por uma sabedoria prática. debandada de países africanos7 que se retiraram
Essa perspectiva nos permite ver os julgamentos do órgão por considerá-lo tendencioso.
a partir de uma luz bastante interessante. O
A crítica ao TPI e aos julgamentos de um
processo judicial possui uma função política
modo geral é pertinente. Existe - e talvez seja
apaziguadora, capaz de traduzir conflitos da
inevitável - bias na condução dos procedimentos
esfera da violência para a da linguagem. (cf.
judiciais (cf. ARAÚJO, 2012, pp.7-96). Os juízes
CALVET DE MAGALHÃES, 2002, p. 113)
julgam o mundo a partir de suas referências e
isso se refletirá nas suas decisões8.

291
Apesar de sabermos dos limites do REPOLÊS, 2010, p.32). O julgamento refaz uma
judiciário e seus componentes, nada disso retira relação política através do reconhecimento da
o prestígio e a importância desse órgão como vítima e do acusado. A vítima é devolvida ao seu
primeira referência na solução dos conflitos. lugar de pessoa humana (detentora de direitos e
O Conselho Nacional de Justiça traz dados deveres) e ao réu é devolvida a faculdade de usar
verdadeiramente alarmantes sobre o número da sua liberdade. É o momento para o réu voltar
de processos que ingressam anualmente no a ser humano, como uma “bofetada simbólica”
judiciário brasileiro (CNJ, 2016). No Direito (GARAPON, 2002, p.152). O criminoso se
Internacional assistimos a um aumento separa do seu crime.
expressivo da judicialização com o crescimento A justiça surge com uma função
das demandas e maior atuação de Cortes nos humanizadora, oferecendo ao acusado retornar
mais diversos ramos (Tribunal do Mar, cortes à comunidade política, respondendo pelos seus
regionais de Direitos Humanos, Tribunais atos. A pena atribui ao acusado a sua dignidade,
Penais etc.) (cf. CANÇADO TRINDADE, 2017, aplaca a vingança e acerta as contas. A justiça
pp.11-60). renuncia aniquilar seu inimigo e devolve aos
O conflito é inerente à sociedade humana indivíduos envolvidos no processo, vítimas
e “a demanda de justiça (...) surge em situações e autores, a igualdade, um mesmo lugar no
de conflito (as circunstâncias, ou ocasiões, da espaço público. Reconhecer alguém é “repatriá-
justiça) às quais o direito dá a forma do processo lo na humanidade comum” (GARAPON, 2002,
(...) a função primária do processo consiste p.157).
em transferir os conflitos do nível da violência A justiça penal internacional se concentra
àquele da linguagem e do discurso.” (CALVET em crimes que se aperfeiçoam, justamente, com
DE MAGALHÃES, 2014, p. 4) a desumanização das vítimas. Os crimes contra
A busca pela justiça pública em detrimento a humanidade e genocídio excluem o indivíduo
da vingança privada representa a primazia do de seu pertencimento a uma comunidade
Direito sobre a força. De acordo com Calvet de política10 o que torna ainda maior a necessidade
Magalhães (2002, p. 114) de reintegrar réus e vítimas em uma humanidade
À finalidade curta do “ato de julgar” (l›acte comum. Geralmente, esses crimes ocorrem
de juger) no sentido judiciário dessa palavra sob o olhar do Direito que os reveste com um
(“estatuir na qualidade de juiz”), que consiste manto de legalidade. Politicamente estipula-se
em decidir (trancher), ou seja, em separar as que algumas vidas não merecem ser vividas11 e
partes, Ricoeur opõe uma finalidade longa, o poder judiciário dá sua chancela de autoridade
talvez mais dissimulada, a saber, a contribuição racional a “uma violência pior do que a morte e a
do julgamento à paz pública. crueldade” (GARAPON, 2002, p.109). Homens
confundidos por coisas, esvaziados, submetidos
De qualquer maneira que se analise
não apenas a morte real, mas à morte simbólica12.
o um julgamento não é só apuração de
responsabilidades, ele é mais que isso. São Os crimes contra a humanidade e
inúmeras as funções desempenhadas pelo poder genocídios se inserem em uma política
judiciário e pelo Direito sendo que, entre elas, orquestrada pelo Estado. Não se trata de uma
a função legitimadora é evidente. A perspectiva criminalidade comum, na qual podemos
tecnicista e de neutralidade que envolve o individualizar facilmente as condutas delituosas
poder judiciário favorece a que suas decisões se cometidas por cada autor (perpetrator), trata-se
revistam de autoridade9. Apaga-se a dimensão de uma criminalidade perpetrada por um Estado
política e se confia na decisão como se ela fosse empenhado no que Humphrey (cf. 2002, p.8)
“verdadeira” e destituída de embates ideológicos denomina “políticas de atrocidade” (politics of
e políticos. (cf. HIRSCHL, 2004, p.50-99) atrocity).
As decisões judiciais corporificam uma As vítimas, confrontadas com sua
ideia de verdade, de correto, de justo. Ter um fragilidade (ou superfluidade), perdem a
determinado posicionamento pelo judiciário confiança no mundo, nas instituições e na
fortalece a parte vencedora e representa, por realidade normativa (cf. HUMPHREY, 2002,
sua vez, respeito e reconhecimento à parte ré. pp.1-10). A desumanização elimina a própria
Litigar no judiciário, em última instância, é morte que deixa de ser um evento social, o luto
sinal de ser um sujeito de direitos e deveres (cf. (socialização da experiência da dor) é suprimido

292
completamente isolando as vítimas. Uma Não é qualquer narrativa que se constrói
experiência dessa natureza constitui um trauma em um julgamento dessa natureza, mas sim,
que corrói os laços sociais e terá implicações uma narrativa capaz de refazer os laços sociais
imensas no futuro de toda a sociedade. e impulsionar a superação do conflito. Por isso
A ideia de uma política aleatória de é tão importante a participação das vítimas e de
matanças, perpetrada pelo próprio Estado seus testemunhos. São elas que darão o tom da
enquanto uma instituição existente para garantir reconstrução. São elas os documentos vivos do
a segurança dos seus cidadãos, é responsável passado que se busca reescrever.
por parcela importante do trauma sofrido pelas O relato pormenorizado torna palpável
vítimas. O trauma se alimenta desta perda de um crime inacreditável. Os crimes contra
confiança nas instituições e no mundo, de a humanidade e genocídio contam com a
modo que o judiciário, enquanto instituição que sua abrangência para torná-los irreais. Os
preserva e propaga a memória, possui um papel testemunhos, por sua vez, desfazem este efeito,
na restauração da confiança perdida. imprimindo um sentido temporal e espacial à
A reconstrução pós-conflito dos laços sociais ação, tornando-a concreta. A história deixa de
surge como a principal maneira de superação da ser uma memória pessoal para se tornar pública,
violência. A sociedade precisa construir uma partilhada. Inicia-se um processo de superação da
narrativa sobre o passado que faça sentido do negação, o que permite o luto e a reconciliação.
caos, explique o que ocorreu e socialize a dor de “O testemunho confronta o mal cometido com o
modo a reintegrar as vítimas e a sociedade em mal sofrido.” (GARAPON, 2002, p.175).
uma história comum. O ato de julgar, ao colocar O julgamento possibilita a criação de um
os eventos em ordem cronológica e estruturada, encadeamento de experiências individuais em
pode ajudar nessa construção histórica. As provas torno de uma narrativa coletiva que passará de
e as testemunhas são organizadas e apresentadas geração em geração. A narrativa que se forma
de modo a demonstrar certa linearidade para em um julgamento é aquela que se baseia no
eventos até então caóticos. (cf. LOSI, 2001, p.6) sofrimento das vítimas e na recuperação da
Fazendo isso o julgamento cumpre a função de sua linguagem. A memória é construída no
desenhar o quadro do conflito, com começo, bojo do processo, como algo novo e diferente
meio e fim, apontando responsáveis e motivos. da historiografia, pois oriunda da voz até então
Ao realizar essa tarefa o tribunal acaba inaudita das vítimas.
extrapolando sua função de mero aplicador da Este fenômeno se explicitou no julgamento
lei. Cumpre ele, um tanto a contragosto, uma de Eichmann e foi repetido por outros julgamentos
função muito significativa enquanto arena internacionais: o próprio julgamento se torna
simbólica ao construir uma narrativa acerca do parte da história. A história da vítima não é
conflito e sua memória. (cf. GARAPON, 2002, repetida, mas sim criada pela primeira vez.
p. 140) Os inúmeros traumas privados são
reunidos em uma narrativa única que compõe 3. CASO EICHMANN: UMA VERDADE
uma história coletiva, reorganizando jurídica e PARA AS VÍTIMAS
politicamente as esferas pública e privada. Para
Felman (2014, p. 41, destaque no original): Este fenômeno dos julgamentos enquanto
cenário simbólico para a celebração da memória
A significação de todos esses casos legais
chamou a atenção de Hannah Arendt quando da
que submetem a história a julgamento (...) não é
sua análise do caso Eichmann. Para a autora, o
apenas que são revolucionários no sentido de que o
discurso do promotor de justiça que falava em
que julgam é tanto “o privado” quanto “o público”,
nome dos mortos e das vítimas teria retirado
mas também, ainda mais significativamente,
do julgamento a sua sobriedade. Quem estava
que neles o tribunal proporciona um palco para a
sendo julgado não era o indivíduo Eichmann,
expressão dos oprimidos. O julgamento permite
mas sim o nazismo, o que não deveria ocorrer
(o que Benjamin chamou de) a “tradição dos
aos olhos da filósofa.
oprimidos” articular sua reivindicação de justiça
em nome de um julgamento – de uma acusação Arendt (2010) defendeu que o processo
explícita ou implícita – da própria história. O criminal deveria se focar no acusado (réu) e
julgamento contribui para que seja expresso o não na vítima ou seu sofrimento. A autora não
que historicamente restou “sem expressão”. aceitava a escolha de Hausner que falava em

293
nome das vítimas. Em seu discurso de acusação, As testemunhas ouvidas pela acusação
Hausner (apud FELMAN, 2014, p. 157) diz: foram, muitas delas, ridicularizadas e tidas
Quando me ponho diante dos senhores, como oportunistas. Foi o caso de Yehiel Dinur,
juízes de Israel, nesta corte para acusar Adolf um sobrevivente de campos de extermínio que
Eichmann, eu não estou sozinho. Aqui comigo apenas conseguia narrar sua experiência de
neste momento estão seis milhões de promotores. modo metafórico. Ao ser pressionado pelo juiz
Mas eles não podem levantar o dedo acusador na a testemunha desmaiou e entrou em um coma
direção da cabine de vidro e gritar J’accuse contra noticiado pelos jornais da época. (cf. LIPSTADT,
o homem ali sentado (...) Seu sangue clama aos 2011, p.126-127) No afã de desmoralizar a
Céus, mas sua voz não pode ser ouvida. Por testemunha, Arendt afirmou, incorretamente,
isso cabe a mim ser seu porta-voz, pronunciar a que Dinur pedira para testemunhar, sendo que
infame acusação em seu nome. foi Hausner, quem insistiu em seu depoimento,
já que ele era uma das poucas testemunhas que
A perspectiva do promotor era a de construir
haviam estado frente a frente com o réu.
uma história a partir da perspectiva das vítimas
e, muitas vezes, fez escolhas deliberadas em A autora considerava ouvir as testemunhas
termos de provas e depoimentos. Foi o caso, algo desgastante e ficava constrangida pela
por exemplo, de sua opção por deixar de lado exposição das vidas privadas no âmbito (público)
o tema dos líderes dos Conselhos Judaicos a do tribunal. Ignorando a faceta do julgamento de,
quem Arendt atribuiu colaboracionismo com o justamente, ser o espaço para reorganizar fatos
nazismo. Para Lipstadt (2011, p. 124, tradução que intercalam a esfera privada com a pública.
nossa13) Trata-se de um momento de tradução dos
traumas privados em uma narrativa socialmente
Ela os considerava responsáveis [Conselhos
compartilhada. (cf. FELMAN, 2014, p.166-169)
Judaicos] pela morte de milhões, defendendo
que “se o povo judeu fosse desorganizado ou O julgamento de Eichmann permitiu às
sem liderança, teria havido caos e miséria, mas vítimas saírem de sua condição de sub-humanos
o total de vítimas dificilmente teria sido entre para assumirem o protagonismo narrativo
quatro e meio e seis milhões de pessoas”. De e escreverem sua própria história, o que foi
acordo com ela, o seu comportamento “patético deliberadamente realizado por Hausner. Para
e sórdido” era um dos “capítulos mais negros” Felman (2014, p. 168):
do Holocausto. Para ela era mais negro que os Porque a história, por definição, silencia a
fuzilamentos em massa e as câmaras de gás, vítima, a realidade da degradação e do sofrimento
pois mostrava como os alemães puderam virar – os próprios fatos do caráter da vítima e
vítimas contra vítimas. do abuso – é intrinsecamente inacessível à
Lipstadt (cf. 2011, pp.123-126) demonstra história. Mas a visão juridicamente criativa do
que o ataque de Arendt aos líderes dos Conselhos julgamento de Eichmann é o julgamento das
Judaicos era uma generalização maldosa e vítimas somente na medida em que são agora
a-histórica. Desconsiderava, por exemplo, as as vítimas que, ainda que fosse muito difícil e
diferentes atuações que cada líder teve sendo improvável, estão precisamente escrevendo sua
que, em muitos casos, tiveram de tomar decisões própria história. (...)
difíceis para salvar algumas vidas. Por outro Arendt não aceitava a agenda que Hausner
lado, superestimava o seu poder de liderança. defendeu abertamente: utilizar o julgamento
O silêncio da promotoria sobre o papel dos como uma forma de educar as gerações vindouras
Conselhos revoltou Arendt que o interpretou e construir a identidade do povo israelense. (cf.
como uma opção política da administração de LIPSTADT, 2011, p.76) O discurso do promotor
Adenauer. se revelou uma poderosa ferramenta de incluir as
Arendt, na sua crítica às escolhas vítimas na sociedade do ainda jovem estado de
deliberadas do promotor chega a tratar de forma Israel, marcando historicamente o julgamento
mordaz os Sonderkommandos, aqueles judeus como revolucionário. Para Felman (2014,
escolhidos para trabalhar nas câmaras de gás, pp.168-169)
a quem ela define como os que efetivamente Nesse sentido, o julgamento de Eichmann é,
promoveram o trabalho da matança e como eu o admitiria, um julgamento revolucionário. É
tendo sido escolhidos pelos nazistas entre os essa transformação revolucionária da vítima que
criminosos. (cf. LIPSTADT, 2011, pp.125-126) faz a história da vítima acontecer pela primeira

294
vez, e acontecer como um ato legal de autoria do antissemitismo arraigado na cultura europeia
de história. Essa revolução historicamente (cf. LIPSTADT, 2011, p. 77).
sem precedentes na vítima, que foi operada A sua agenda pessoal impediu que
no julgamento de Eichmann e por ele, é, eu o Arendt observasse inúmeros elementos que
sugeriria, a mais importante contribuição do envolveram o julgamento de Eichmann e o seu
julgamento não só para os judeus, como para a significado político e histórico. O julgamento foi
história, para o direito, para a cultura – para a amplamente transmitido (por rádio e televisão)
humanidade em geral. e possibilitou que toda a sociedade partilhasse
Aquela era a primeira vez que se ouvia, daquela narrativa e dos testemunhos das vítimas,
em primeira mão, vítimas contarem sobre o reconhecendo-as e comungando sua dor. O
que sofreram para que aquele Estado pudesse julgamento, em si, era um acontecimento. As
ser uma realidade. Foi uma ponte entre as vítimas estavam adquirindo autoridade histórica
gerações. O julgamento de Eichmann constituiu sobre si mesmas e sobre os outros.
parte importante da narrativa identitária que Houve, portanto, um ativismo judicial
configuraria o Estado de Israel, desenhou uma de memória, incentivado pela forma como
história comum na qual todos os membros da Hausner conduziu o processo (cf. GARAPON,
sociedade participam e se reconhecem. 2002, p.140). A história da vítima encontrava
Assim, ainda que os historiadores e os um espaço público e oficial para reconhecer seu
presentes conhecessem as histórias dos lager, sofrimento, o que foi criticado por Arendt. “O
aquela era a primeira vez que se ouvia a história reconhecimento público transforma um saber
pela vítima. O julgamento de Eichmann cria em verdade oficial, aumenta-o na versão da
uma nova visão sobre o judiciário, na qual ele história tornada autoridade (...) obriga a passar do
não reproduz uma história consumada, mas knowledge ao acknowledgment.” (GARAPON,
promove um “evento narrativo inovador que 2002, p.179, grifo no original)
é, ele mesmo, histórica e juridicamente sem Entre as muitas histórias contadas sobre
precedentes.” (FELMAN, 2014, p. 165) o nazismo, Hausner optou deliberadamente
Do mesmo modo que Hausner promovia por dar voz a uma, a das vítimas. Das muitas
abertamente uma agenda de ativismo judicial, verdades que se possa relacionar ao Holocausto,
Arendt também promovia a sua, disfarçada de no julgamento de Eichmann, o promotor
defesa da objetividade dos julgamentos. Em só estava interessado naquela que pudesse
grande medida, ao dividir a culpa do Holocausto reverberar o sofrimento e superação do povo
com os judeus (como por exemplo, com os líderes judeu, fortalecendo a identidade da nação e
do Conselho Judaico) ela relaxava a culpa alemã recolocando as vítimas em seu devido lugar
e, consequentemente, a de Martin Heidegger, político e social.
notório apoiador do regime nazista e que Arendt
ajudou a retornar à academia no pós-guerra. 4. CONCLUSÃO
O envolvimento pessoal de Arendt (que Derrida (cf. 2002, pp.34-35) em sua
ela buscou fortemente se distanciar) tornou-se introdução à História da Mentira: Prolegômenos
insuperável. O livro Eichmann em Jerusalém defende que mentir é um ato deliberado,
é um marco nos estudos dos julgamentos intencional de se dirigir a alguém de modo a
internacionais e não podemos nos esquecer que modificar sua ação ou suas declarações. É um
ele ilustra os conflitos que a própria Hannah ato destinado a enganar e gerar consequências
Arendt sofria com relação à sua identidade (como danosas ao outro. Ao contrário da mentira
mulher, judia, alemã e imigrante). Arendt, ao política tradicional que apenas mascarava a
chegar a Israel, não sentiu pertencimento ou verdade, a mentira moderna substitui o objeto
qualquer identidade com aquela nação. (cf. de referência original e o destrói. Em outras
LIPSTADT, 2011, pp.120-123). palavras, a história é reescrita.
Arendt também viu no julgamento a chance Koyré (1943) em pleno curso da 2ª
de provar sua tese de Origens do Totalitarismo Guerra Mundial identifica que a mentira havia
(1951) e alertar sobre os perigos do regime adquirido em seu tempo uma função política. O
totalitário e, nesse tocante, comete um erro espírito totalitário destruiu a verdade - enquanto
dramático ao não reconhecer que o nazismo não um acordo com a realidade – e a substituiu com
foi uma ruptura (algo novo), mas sim o resultado

295
uma noção de verdade como espírito de raça. O A mentira total precisa ser confrontada
pensamento não serve para informar o real, mas com a realidade e cabe aos tribunais atuarem
para modificá-lo. para recompor narrativas que se contraponham
O regime totalitário tem a mentira à propaganda que corrompia as massas. O
como premissa14. A mentira não é apenas o julgamento pode oferecer uma narrativa oficial,
rompimento do acordo com a realidade, mas institucional, que derruba a narrativa do regime
também, perversamente, transforma a própria totalitário.
verdade em instrumento de enganação. Para Ao privilegiar as vítimas, no julgamento
Koyré (1945, pp.299-300, tradução nossa)15 de Eichmann, Hausner contribuiu para
A massa acredita em tudo que lhe é dito, recuperar essa narrativa abafada do Holocausto.
contando que seja dito e repetido inúmeras Ele contribuiu para a superação da mentira
vezes. Contando que suas paixões, ódios, medos totalitária que calou as vozes de milhões de
sejam atendidos. Nem é preciso tentar manter- pessoas que simplesmente desapareceram dos
se nos limites do plausível: ao contrário, quanto anais da história:
maior, mais grosseira e crua a mentira, mais No projeto nazista, a intenção era extinguir
prontamente ela é seguida e acreditada. Nem é essa narrativa como parte da extinção do povo
preciso tentar evitar contradições: a massa nunca judeu. A articulação dessa narrativa como uma
nota; não é necessário correlacionar o que é dito força histórica e jurídica viva, ativa é, portanto,
a uns com o que é dito a outros: cada pessoa ou em si mesma um ato de justiça histórica (e não
grupo acredita apenas naquilo que é dito a ela, apenas de justiça jurídica). O genocídio pela
não ao que é dito a todo o resto; não é preciso mera existência do julgamento, sofre oposição
buscar coerência: a massa não tem memória; e é derrotado por um ato de sobrevivência
não precisa fingir qualquer verdade: a massa é histórica. A injustiça inexplicável do genocídio
incapaz de percebê-la (...) é compensada por um procedimento
A propaganda nazista atuava para moldar rigorosamente aplicado de restauração de estrita
essas massas, sustentando a sociedade em responsabilidade legal e de meticulosa justiça.
mentiras que destruíam qualquer referência (FELMAN, 2014, pp.156-157)
com a realidade. Os julgamentos no pós-guerra Ao longo desse trabalho discutimos que
tiveram, em certa medida, a pauta de restaurar a os julgamentos internacionais exercem uma
realidade, confrontando os criminosos nazistas função mais ampla do que a de apenas aplicar a
com o horror por eles perpetrado. Quando, lei e apurar responsabilidades, eles modificam o
no Tribunal de Nuremberg, foram exibidos mundo político construindo narrativas históricas
os vídeos dos campos de extermínio, muitos que são alçadas ao patamar de verdade.
oficiais ficaram abalados e chocados, como se Considerar essa faceta do ativismo
vissem aquelas imagens pela primeira vez. memorial do judiciário não é defender o
Para muitos daqueles oficiais, aquela era a abandono da lei, ao contrário, é discutir a
primeira vez que viam seus atos pelo que eles maneira como essa lei é aplicada e a necessidade
realmente eram: crimes. Até mesmo o idioma de se ter em conta a questão ético-moral (cf.
alemão foi modificado pelo totalitarismo CALVET DE MAGALHÃES, 2002, pp.104-
e mascarava a realidade como descrito por 107). O judiciário pode contribuir para refazer
Klemperer em A Linguagem do Terceiro Reich os laços de uma sociedade e, em certa medida,
(1947). Identificamos isso no depoimento dado recompor a história de um povo.
por um sobrevivente no filme Shoah (FELMAN, A tribuna constitui, juridicamente, aqueles
2014, p. 168): que sofreram na condição de vítimas, sua história
Os alemães até mesmo nos proibiram de nasce com o processo. A elas é dado o direito de
empregar as palavra “cadáver” ou “vítima”. Os falar e de ouvir. De seres subjugados e anulados,
mortos eram blocos de madeira, merda. Qualquer elas voltam a ocupar o lugar de atuantes,
um que pronunciasse a palavra “cadáver” ou deixando a vitimização para trás. “A vida à qual
“vítima” era espancado. Os alemães faziam com a justiça pode restituí-las não é a vida biológica,
que nos referíssemos aos corpos como Figuren mas a vida política, isto é, a que concede um
(isto é, marionetes, como bonecos), ou como peso legal às palavras de cada indivíduo (...)”
Schmattes (que significa farrapos). (GARAPON, 2002, p.139). A palavra daqueles

296
indivíduos ignorados volta a ter peso e ser levada e se tornam politicamente ativos ao serem
em consideração. Para Garapon: confrontados com seus atos e com as vítimas.
O testemunho torna-se o resgate poético- O julgamento de Eichmann, nesse sentido,
narrativo de uma vida naufragada pela História, foi revolucionário. O promotor deliberadamente
dado que a narração é o primeiro modo de defendeu a pauta de utilizar o julgamento
reconstrução de uma identidade. A experiência como uma esfera de reconhecimento para as
narrada deixa de ser simplesmente vivida: torna- vítimas e narração histórica. Mais do que julgar
se comunicável e permite a entrada de um um evento, o julgamento foi um evento em si
acontecimento indizível na configuração de uma mesmo. Toda a sociedade se mobilizou para
narrativa. (GARAPON, 2002, p.139) acompanhar, ouvir e partilhar da experiência dos
O papel do tribunal é, também, tornar a sobreviventes que ali contavam suas histórias. O
história das vítimas partilhada e uma realidade luto suprimido foi vivido tardiamente, a partir
transmissível. Os próprios réus se humanizam da socialização da dor na tribuna.

297
REFERENCIAS

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um FELMAN, Shoshana. O Inconsciente Jurídico:


relato sobre a banalidade do mal. Tradução de julgamentos e traumas no século XX. Tradução
José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia de Ariani Bueno Sudatti. São Paulo: EDIPRO,
das Letras, 2010 [1963]. 2014.
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. GARAPON, Antoine. Crimes que não se
Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: podem punir nem perdoar: Para uma justiça
Companhia das Letras, 2004. internacional. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
ARAÚJO, Marcelo Cunha de. Só é preso quem HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the
quer: bastidores do sistema de punição seletiva. origins and consequences of the new
3. ed. rev., ampl. e atual. Niterói, RJ: Impetus, Constitutionalism. Cambridge, Massachusetts:
2012. Harvard University Press, 2004.
BASSIOUNI, M. Cherif; HANSEN, Douglass. HUMPHREY, Michael. The Politics of Atrocity and
The Inevitable Practice of the Office of Reconciliation. New York: Routledge, 2002.
the Prosecutor. In: Africa Question: Is the KLEMPERER, Victor. LTI: A linguagem do Terceiro
International Criminal Court targeting Africa Reich. Tradução de Miriam Bettina Paulina
inappropriately. (Topic for March 2013 Oelsner. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009
– January 2014). Disponível em <http:// [1947].
iccforum.com/africa> Acesso em 25 de junho
de 2017. KOYRE, Alexandre. The Political Function of the
Modern Lie. Contemporary Jewish Record.
CALVET DE MAGALHÃES, Theresa. A reflexão The American Jewish Committee, New York,
de Ricoeur sobre o justo. Síntese - Rev. de v. VIII, p.290-300, 1945.
Filosofia. v. 29, n. 93, p.103-115, 2002.
LIPSTADT, Deborah E. The Eichmann Trial. New
CALVET DE MAGALHÃES, Theresa. O processo York: Schocken Books, 2011.
e a sanção em Ricoeur: A tarefa de dizer o
direito e o fracasso da justiça. In: MELLO, LOSI, Natale. Beyond the archives of memory.
Cleyson M.; COELHO, Nuno M.M.S. e. (Org.). In: IOM International Organization for
As Dimensões Sociais, Jurídicas, Políticas Migration. Archives of Memory: Supporting
e Econômicas do Processo: Estudos em Traumatized Communities through narration
Homenagem ao Professor Antônio Pereira Gaio and remembrance, Psychological Notebook,
Júnior. Juiz de Fora: Editora Editar Associada Geneva, v. 2, pp.5-15, 2001.
Ltda, 2014, pp. 31-38. Disponível em <https:// REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. A identidade
www.academia.edu/9502304/The_process_ do sujeito constitucional e controle de
of_the_trial_and_the_sanction_declaring_the_ constitucionalidade: Raízes históricas da
law_and_the_failure_of_justice_Portuguese_ atuação do Supremo Tribunal Federal. Rio de
version_> Acesso em 25 de junho de 2017. Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2010.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Os WEBER, Max Os três tipo puros de dominação
Tribunais Internacionais e a realização da legítima. Traduzido por Gabriel Cohn. In:
Justiça. Belo Horizonte: Del Rey, 2017. WEBER, Max. Sociologia: Coleção Grandes
CNJ – CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Cientistas Sociais, n.13, São Paulo: Ática, 1979.
Justiça em Números 2016 - Infográficos: ano WILSON, Richard Ashby. Writing History in
base 2015. Brasília: CNJ, 2016. Disponível em International Criminal Trials. Cambridge:
<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/ Cambridge University Press, 2011.
2017/05/4c12ea9e44c05e1f766230c0115d3
e14.pdf> Acesso em 21 de junho de 2017.
DERRIDA, Jacques. History of the lie: Prolegomena.
In: Without Alibi. Stanford: Stanford University
Press, 2002, pp. 28-70.

298
NOTAS

1. Thoughtlessness é o termo usado no postscript com a história dos tribunais e neste tocante a
do texto em inglês de Eichmann em Jerusalém crítica é exata. No entanto, o que o Autor não
e que foi traduzido por “irreflexão” no texto em faz - e nem é sua preocupação - é estender
português. (cf. ARENDT, 2010, p. 311) também à História a sua crítica. Imperativo
2. Apesar de Arendt tratar o Holocausto como que se pontue que a verdade histórica não
um crime contra a humanidade e não contra se difere daquela construída pelos tribunais,
os judeus especificamente (os judeus apenas sendo também ela uma versão de fatos, uma
representariam o corpo onde se materializou interpretação, um texto que, por um motivo ou
a conduta criminosa), ela defende em cartas outro, saiu vitorioso e tomou para si o status de
enviadas a Karl Jaspers que o julgamento verdade.
deveria ser realizado em Israel, pois é lá que 7. Só em 2016, Gâmbia, África do Sul e Burundi
estão as partes prejudicadas, os sobreviventes. notificaram o Secretário Geral das Nações
(cf. FELMAN, 2014, p.152; LIPSTADT, 2011, Unidas sobre sua saída do Tratado de Roma
p. 70.) que instituiu o Tribunal
3. De acordo com a Convenção de Genocídio 8. Reconhecer a humanidade dos juízes, a
(1948) o crime de genocídio implica que o realidade de suas identidades e seu lugar
agente tenha a intenção (o dolo especial) social que acaba por influir no julgamento
de destruir, no todo ou em parte, um grupo não significa, em absoluto, autorizar ou
nacional, étnico, racial ou religioso. justificar ações criminosas por parte dos órgãos
4. As críticas desferidas por Arendt contra judicantes (forjar ou sumir provas, mentir –
Hausner têm uma faceta perversa que em nada aqui no sentido dado por Derrida (2002, p.34-
se relaciona com o caso Eichmann. Arendt 35) de um querer dizer algo incompatível com
tinha inúmeros preconceitos com o promotor a verdade – conhecida do falante – e que vai
motivados por sua origem no leste europeu, prejudicar o outro.)
chegando a criticar seu sotaque de alemão (cf. 9. Uma autoridade “racional-legal”, nos termos
LIPSTADT, 2011, p. 66). Por outro lado, ela weberianos, na qual aceita-se o resultado pela
considerava que os juízes eram o melhor das confiança racional e técnica que se tem no
“jóias alemãs”. Neste tocante, Arendt deixa órgão (cf. WEBER, 1979, pp. 128-131).
escapar seu preconceito de alemã, contra os 10. A dispersão das vítimas pelo território tem o
outros povos do leste, ainda que judeus. objetivo de separar as famílias, de desagregar os
5. A palavra “narrativa” será utilizada nesse indivíduos ao máximo, para que ninguém possa
trabalho com o sentido de contar uma saber onde seus entes queridos se encontram.
determinada sequência de eventos. Conforme Priva-se as vítimas ao acesso aos bens jurídicos.
discutiremos, a maneira como se contam os Torna-se impossível a identificação do povo
eventos pode gerar uma releitura do passado com a sua história. No caso dos judeus, de
(transforma-se o passado), do presente e forma ainda mais violenta, “qualquer elemento
impactar profundamente o futuro. susceptível (sic) de identificar uma pessoa,
6. É preciso tecer algumas ponderações acerca de ligá-la a uma comunidade política (...), era
da classificação que Garapon (cf. 2002, p.161- eliminado, de modo a que não subsistisse
175) utiliza dos termos História (aquela dos qualquer vestígio nem da sua passagem pela
historiadores) e história (judicial). O Autor terra (...)” (GARAPON, 2002, p. 114)
constrói um paralelo entre a verdade judicial e a 11. Entender a artificialidade da condição humana
verdade histórica (construída por historiadores). é fundamental para compreender o processo
O argumento de Garapon leva a uma armadilha de desumanização que resulta em genocídios e
em que o leitor pode, por vezes, concluir que a crimes contra a humanidade que assombram
História é mais correta, por basear-se em fatos a história. Antes de ser exterminada a vítima
completos e em um todo, já a história (dos é completamente despida de seus atributos
tribunais) seria mais frágil por ser apenas uma humanos (seu nome, família, roupas, história,
visão limitada dos eventos. É preciso notar que cultura, individualidade, etc). No caso do
o argumento funciona no texto de Garapon, Holocausto, por exemplo, as normas do
pois sua preocupação não é com a História, mas governo nazista minavam os direitos civis

299
e políticos dos judeus alemães, culminando mentira é tolerada, basicamente em casos de
nas Leis de Nuremberg e na possibilidade de guerra e contra o inimigo (nós vs. outros). A
desnaturalização e de desnacionalização dos auto-preservação do grupo autoriza mentir
próprios cidadãos.Ao retirar dos alemães a para o inimigo, nesses casos a mentira pode até
qualidade de cidadão, eles já não pertenciam a ser uma virtude. O problema ocorre quando a
nenhuma comunidade política e poderiam ser guerra deixa de ser uma situação episódica e
eliminados, sem qualquer embaraço legal. se torna a rotina, quando a inimizade atinge
12. A política de eliminação da pessoa em todos o nível total, a mentira torna-se a única
os sentidos possíveis passa pela destruição dos possibilidade de sobrevivência, uma regra de
seus templos - para aniquilar a presença secular comportamento que aproxima os membros do
dos grupos -, destruição de bibliotecas - para grupo (como uma sociedade secreta).
por fim a uma cultura em que aquela população 15. The mob believes everything it is told, provided
participou - e, no caso grave da Bósnia - pela only that it be repeated over and over. Provided
concepção forçada que transmitia às crianças too that its passions, hatreds, fears are catered
uma nova identidade étnica. to. Nor need one try to stay within the limits
13. She held them responsible for the death of of plausibility: on the contrary, the grosser, the
millions, contending that, “If the Jewish people bigger, the cruder the lie, the more readily is it
had been really unorganized and leaderless, believed and followed. Nor is there any need
there would have been chaos and misery but to avoid contradictios: the mob never notices;
the total number of victims would hardly have needless to pretend to correlate what is said to
been between four and a half and six million some with what is said to others: each person
people.” According to her, their “pathetic and or group believes only what he is told, not
sordid” behavior was the “darkest chapter” what anyone else is told; needless to strive for
of the Holocaust. For her, it was darker than coherence: the mob has no memory; needless
mass shootings and the gas chambers, because to pretend to any truth: the mob is radically
it showed how the Germans could turn victim incapable of perceiving of perceiving it (...)
against victim.
14. Koyré (cf. 1945, pp. 293-296) desenvolve seu
raciocínio a partir das situações em que a

300

Você também pode gostar