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Ele por ele mesmo

Resisti bravamente à tentação de fazer um ou outro comentário sobre o que se segue. Fui contido
por uma idéia, até bem simples: ou um católico medianamente formado é capaz de entender do que
se trata, ou milhares de comentários — mesmo que ilustrados com desenhos coloridos e setinhas
indicativas — são completamente inúteis. Até porque poucas vezes vi um homem descrever a
(verdadeira) razão de sua vida, suas (verdadeiras) crenças, seus (verdadeiros) objetivos e seus
(verdadeiros) motivos de alegria e orgulho com tanta clareza. Só não entende quem não quer.

Alexandre Ramos da Silva

Lutar pela implantação do socialismo até o último dia das nossas vidas

Palavras finales de Frei Betto

Manuel Piñeiro sempre nos apoiava, se interessava pelas pautas da revista. Era colaborador da
revista e sobretudo nos dizia, entre tantas dificuldades que temos para manter viva a América Livre,
que deveríamos continuar. Nosso último encontro foi em janeiro de 98. Ele faleceu em março de 98
em Havana. Eu lo vi por ocasião da visita do Papa. Eu havia sido convidado pelo governo cubano
para prestar uma assessoria teológica, no qual estava também Giulio Girardi e outros companheiros
na área de igreja. Piñeiro era um internacionalista nato, e aí, talvez, a gente possa fazer um paralelo
curioso com a padroeira das missões. A padroeira das missões da igreja católica é uma monja que
nunca saiu do mosteiro, Santa Teresinha do Menino Jesus.
Piñeiro praticamente nunca saiu de Cuba, mas eu não conheço outro cubano tão internacionalista
quanto ele. Com a maneira de como ele conduziu esta política de solidariedade internacional com a
revolução cubana, inclusive grupos, em seus próprios países, grupos e partidos sequer mantinham o
dialogo entre eles, graças a magia política de Piñeiro, aqueles dois grupos quando se tratava de
solidariedade à Cuba se faziam presentes. Então eu queria que a gente fizesse, uma salva de palmas
em homenagem ao exemplo do companheiro Manuel Piñeiro.
Vamos permanecer de pé mais um momento para homenagear mais dois companheiros que
completam datas redondas este ano. Companheiros que tombaram lutando pelos mesmo ideais, as
mesmas utopias que consistiram nas nossas discussões dos debates destes dias. O companheiro
Miguel Enriquez que foi secretario geral no MIR de Chile, que tombou em combate há vinte e cinco
anos. Uma salva de palmas ao companheiro Miguel Enriquez.
E este ano estamos comemorando no Brasil, tivemos agora em outubro e novembro homenagens
intensas em varias cidades brasileiras, trinta anos da caída, do assassinato do companheiro Carlos
Marighella. Carlos Marighella foi comunista do Partido Comunista Brasileiro. Esteve preso durante
a ditadura de Getulio Vargas. Terminada a ditadura foi eleito deputado para a assembléia
constituinte. Quando novamente o PCB, o Partido Comunista, foi obrigado a retornar à
clandestinidade, ele se tornou um dos mais expressivos dirigentes na organização dos trabalhadores,
sobretudo do estado de São Paulo. E após o golpe militar de 1964, rompeu com a linha pacifista do
partido, que ao seu ver era concordista com a ditadura militar. Participou da famosa conferência em
Havana e ao retornar criou no Brasil o agrupamento comunista que se torna conhecido na história
por Ação Libertadora Nacional (ALN). Eu guardo a honra de ter sido militante da Ação Libertadora
Nacional, de ter convivido com Marighella e ter recebido dele, por coincidência, a missão de me
deslocar de São Paulo para o Rio Grande do Sul e organizar aqui neste estado um esquema de
fronteira, de fuga de companheiros militantes que participavam de operações armadas, através das
fronteiras deste estado com a Argentina e o Uruguai.
Aqui me mantive ao longo de quase um ano, tendo tido a alegria de tirar do país por essas vias, os
companheiros responsáveis pelo primeiro seqüestro político da historia da esquerda, o seqüestro do
embaixador norteamericano em setembro de 1969. Então eu queria que nós também prestássemos
uma homenagem aos trinta anos do assassinato do companheiro Carlos Marighella.
Nós homenageamos todos aqueles outros companheiros que lutaram na América Latina, no Caribe,
que derramaram o seu sangue para que o nosso ideal libertador permaneça vivo e que novas
relações possam se integrar nesta luta, como é o exemplo hoje de tantos jovens do Movimento do
Sem Terra no Brasil, que já despontam como combatentes corajosos, decididos, sem temor,
enfrentando, nas ocupações que realizam tanto na terra, quanto nos prédios públicos e praças
públicas, as forças policiais e o governo Fernando Henrique, que estão a serviço dos interesses do
FMI, governo do capital, em nosso país.
Ao final deste seminário, cada um de nós sai com o coração cheio, primeiro de gratidão. Gratidão
pelo esforço, pelo trabalho, pela dedicação dos companheiros e companheiras do estado do Rio
Grande do Sul, mas em especial dos companheiros e companheiras da prefeitura de Caxias do Sul.
Nós somos muito gratos a Isabel Freitas e sua equipe que desde de Porto Alegre ajudaram articular
este evento, a Luis Brambatti e sua equipe, que aqui em Caxias nos propiciaram desde la
alimentação à possibilidade de ocuparmos este espaço durante estes quatro dias, e em especial
agradecemos ao governador Olívio Dutra, ao vice governador Miguel Rosseto. Agradecemos ao
prefeito Pepe Vargas, a viceprefeita Marisa Lavequia pela acolhida, mas sobretudo pela maneira
interessada e a sintonia política, ideológica, que tiveram com os nossos trabalhos nestes dias. Até
este seminário, eu pensava que, em se tratando de eventos internacionais, o único dirigente político
que não tinha o que fazer durante o evento era Fidel Castro. Porque nos eventos de Cuba, Fidel
participa da primeira à ultima hora, dia por dia, como se o mundo todo parasse e ele não tivesse que
se preocupar com mais nada. Mas agora eu vejo que a Marisa e o Pepe Vargas também são capazes
de fazer parar a roda da história em Caxias para estar aqui durante quatro dias, de manha até a
última hora da noite, convivendo e participando dos nossos trabalhos. Eu queria uma salva de
palmas.
Um agradecimento especial na pessoa de Claudia Korol, ao grupo da redação da revista América
Livre na Argentina, não só de Buenos Aires. Há pessoas de Rosário e de Córdoba, de outras
províncias da Argentina, que são os verdadeiros artistas de todo este processo. Eu sou apenas o
diretor virtual. Vocês sabem que existe hoje cidadania virtual, ética virtual, democracia virtual que
predomina em toda a América Latina e há entre o virtual e o real uma grande distancia. Inclusive na
teologia a gente tem um grande problema hoje de como qualificar o pecado, o adultério virtual. O
sujeito que namora a vizinha pelo computador. Então, eu sempre falo: sou o diretor virtual. A gente
tem que reconhecer que a revista e estes seminários têm sido possível pelo empenho de equipes da
Argentina, de Cuba e de tantos países que tornam realidade este sonho. E por isso, na reunião que
fizemos ontem da revista, junto com a coordenação do encontro, decidimos mudar um pouco o
sistema da pauta de direção da revista. A revista possui uma secretaria executiva que acompanha os
trabalhos e que é a Claudia Korol, eu sou o diretor da revista e do conselho de redação.
Agora dividimos o conselho em conselho de redação e conselho de direção, de modo que aqueles
que estão mais próximos das nossas atividades e participam efetivamente dos nossos projetos e das
nossas decisões passem a integrar o conselho de direção da revista. E eu queria anunciar a admissão
de dois novos membros, porque os conselhos da revista não são integrados por entidades, partidos,
sindicatos ou movimentos, são integrados por pessoas que, efeitivamente, trazem, de sua prática em
seus países, uma representatividade. Então, eu tenho a honra de anunciar a integração nos nossos
conselhos o integrante da Frente Zapatista de Libertação Nacional, do México, o companheiro
Javier Elorriaga. E por parte do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil, o companheiro
João Pedro Stédile.
Companheiros, nós vamos partir, depois de 4 dias de reflexões, de debates, de estudos, preservando
o caráter específico, singular e precioso de América Livre que é a nossa unidade na pluralidade. Os
nossos seminários, como a nossa revista, são de todos nós, de todas as nossas organizações,
partidos, sindicatos e movimentos. Não são do Vaticano, embora o diretor seja um frade, não são
deste ou daquele partido, deste ou daquele movimento. A riqueza de América Livre é este espaço
ecumênico de discussão onde procuramos intensamente trazer uma pauta de questões importantes,
pertinentes com a conjuntura que estamos vivendo no momento, mas deixando que cada
companheiro, cada companheira ao retornar para o seu país, ao retornar para o seu trabalho de base,
leve as teses que absorveu, as teses que assimilou, as teses que aderiu, para que possamos ir tecendo
nesta pluralidade de forças libertadoras latinoamericanas e caribenhas o futuro da transformação
radical deste continente e da implantação do socialismo que queremos.
Foram dias muito ricos. Dias que a solidariedade se efetivou, aqui, através da troca de experiência,
mas sobretudo através da sensibilidade tocada pelos relatos daqueles companheiros e companheiras
que estão neste momento mais na linha de frente. Não vou citar todos, mas eu me lembro dos
companheiros que hoje são prisioneiros políticos na Argentina, os companheiros e companheiras
que estão combatendo nas selvas da Colômbia, daqueles que integram o Exército Zapatista de
Libertação Nacional, daqueles que tentam na Venezuela construir um novo projeto político
nacional, daqueles que aqui no Brasil realizam ocupações de terra e ocupações do solo urbano.
Tudo isto se constitui um quadro que deixa vivo para todos nós o que é um pacto. A luta continua.
Não estamos aqui pensando no que vamos fazer, nós estamos fazendo. Viemos de uma prática e
vamos retornar abastecidos, fortalecidos, enriquecidos para esta prática. Uma prática complexa, que
não tem nada de geométrica, cristalina, cartesiana, porque a realidade em que vivemos no
continente latinoamericano e caribenho é uma realidade complexa e talvez falte em nosso discurso,
em nossas teorias, mas sobretudo em nossa prática, a capacidade de abarcar toda esta complexidade
que nos foi chamada a atenção aqui. Ainda nos falta trabalhar melhor os nossos gritos de luta com
os povos indígenas do continente. Povos que no próximo ano, o Brasil vai comemorar, a palavra
comemorar significa fazer memória, 500 anos do genocídio promovido pelos portugueses ao invadir
o nosso país na sua empresa colonizadora. Aqui viviam cinco milhões índios, hoje reduzidos para
um pouco mais de 300 mil. Uma riqueza antropológica única.
Quando me perguntam no exterior, o Brasil é um país tão grande, quantas línguas, quantos idiomas
se falam no Brasil? Com muito orgulho, eu respondo 187, porque um é o português, porque os
povos indígenas brasileiros falam 186 diferentes idiomas. Agora, riqueza para qual inclusive nós da
esquerda ainda não prestamos a devida atenção. Precisamos avançar também na questão dos negros.
O movimento negro se articula, cresce nos países da América Latina, sobretudo naqueles que
tiveram o processo da escravatura trazida pelos colonizadores, com a mescla de nossas raças, que
são Cuba e Brasil. Pessoas do Brasil que nunca foram a Cuba, quando me perguntam como é Cuba,
a resposta mais simples é que Cuba é uma Bahia que deu certo. Porque há uma semelhança muito
grande entre a vida e a alma do povo cubano e a vida e a alma do povo baiano. O Brasil é a segunda
nação negra do mundo, depois da Nigéria, nós somos 163 milhões de habitantes dos quais mais de
50 milhões são negros. Mas o Brasil guarda a marca profunda de ser, de todos os países das três
Américas, aquele que suportou o mais longo período de escravatura, trezentos e vinte anos. E foi
por força das elites brasileiras, que sempre impediram este país de realizar Reforma Agrária ao ser
decretada a abolição oficial da escravatura, porque todavia ainda existe o trabalho escravo neste
país, sobretudo na Amazônia. Aos negros foi negado o acesso à terra, principalmente as melhores
terras do país nesta região sul para onde foram trazidos, como diz bem as expressões culturais,
imigrantes europeus, sobretudo italianos e alemães. Daí a maioria da população negra do nosso país
permanecer duplamente marginalizada, por ser negra e por ser pobre.
Temos que avançar na questão da mulher e das relações de gênero. Ainda a esquerda é herdeira de
categorias próprias do racionalismo europeu da primeira metade deste século, onde não se sabia
como se enquadrar o índio, o negro, os movimentos sociais e também a questão das relações de
gênero e especificamente da mulher. Ou seja, talvez umas das maneiras mais explícitas e cruéis que
o capitalismo utiliza para reforçar a sua dominação ideológica, sem duvida nenhuma é o uso da
figura da mulher na sua publicidade e na sua produção de filmes. O uso degradante, humilhante,
onde a mulher é reduzida a mero objeto de consumo e isto reforça as nossas estruturas patriarcais e
machistas que passam também pelos nossos movimentos, pelos nossos sindicatos, pelas nossas
igrejas, em especial pela católica, onde a mulher pode ser cultuada no altar como santa, pode ser
proclamada doutora da igreja, mas não pode ser padre, não pode ser bispo, não pode ser cardeal,
não pode ser Papa. E por que se ela é tão criação de Deus quanto o homem? Por mero
patriarcalismo e machismo, e isso passa pelos nossos partidos políticos.
Uma questão também da maior importância na conjuntura que vivemos neste fim de século e
milênio, mas que lamentavelmente não se tocou aqui, é a questão ecológica, da preservação do meio
ambiente. Esta é uma bandeira que nós da esquerda não podemos deixar nas mãos da direita, porque
se deixarmos nas mãos da direita as crianças vão continuar chorando porque a televisão mostrou os
peixinhos sujos de gasolina no Alasca ou no Golfo, mas não vão continuar sensibilizadas pela
destruição da principal espécie em extinção que é o bicho homem e o bicho mulher, que estão sendo
extintos pela fome como resultado da exploração e da globocolonizaçao.
Ecologia é a do Chico Mendes, ecologia é aquela que abarca a natureza tendo como o centro a
libertação do homem e da mulher. Ecologia é aquela que nos integra neste processo holístico em
que nenhum ser pode ser separado do outro, seja ele considerado vivo ou não vivo. Somos todos
frutos da mesma maravilha de evolução do universo, disto que os gregos chamam de cosmos, que é
a mesma raiz de cosmético, aquilo que trás beleza. No entanto somos os únicos seres que pelos
nossos olhos e pela nossa inteligência permite ao universo contemplarse a si mesmo e reconhecer a
própria beleza. E se mais belo não é, não é por culpa do Criador e muito menos das leis da
evolução, é por culpa da nossa ambição, do nosso egoísmo, mas sobretudo das estruturas de
dominação, exploração e humilhação que hoje estão fortalecidas pela face neoliberal do
capitalismo.

É este o nosso compromisso e desafio, sair daqui com a disposição de combater o sistema
capitalista e lutar pela implantação do socialismo até o último dia das nossas vidas, ainda que cada
um de nós tenha, como eu tenho, a convicção subjetiva de que não vamos participar da colheita,
mas estamos dispostos a correr como sementes. Este é o desafio. Neste processo, companheiros, é
muito importante que façamos uma profunda autocrítica do que significou o socialismo no leste
europeu. Não devemos ter vergonha nem de reconhecer os erros daqueles que nos precederam, para
com um melhor reconhecimento do passado evitar a repetição dos mesmos erros do presente, de
modo a construir um futuro melhor. Para isso nós precisamos sim, fazer uma autocrítica profunda.
Em que medida os nossos grupos, os nossos movimentos, os nossos partidos ainda trazem marcas
de autocracias, de burocratismos, de teoricismos? Em que medida, o povo é um conceito na nossa
boca ou faz parte do nosso compromisso de vida, das nossas atividades cotidianas, da nossa
consagração de vida? Em que medida, nós enchemos nossa cabeça de teorias revolucionarias, mas
na nossa cotidianeidade não somos capazes de viver uma ética, um compromisso da comunhão com
aqueles que efetivamente são os oprimidos, os excluídos?

Precisamos passar por isso, para que, a partir desta autocrítica, sejamos capazes de construir uma
alternativa latinoamericana efetivamente viável. Chega de equívocos que sacrificam gerações.
Chega de sangue derramado por erros que poderiam ser evitados. Chega de entusiasmo que não é
acompanhado de análises profundas, mas chega também de movimentos que se fazem da vaidade
pessoal, daqueles que acabam colocando o partido em função da sua carreira política individual e
trocam o nós pelo eu, esquecendo que ele é um processo coletivo, onde não se trata de chegar ao
poder fulano ou sicrano, se trata de trazer o poder na mão do povo de maneira que a gente construa
com o socialismo uma democracia real.

Este desafio, nós vamos enfrentálo, não reinventando a roda e nem reinventando processos de
orientação. Vamos enfrentálo incorporando à nossa memória, à nossa pratica, o patrimônio
revolucionário e teórico da esquerda na América Latina e também em outros países do mundo. Não
podemos de maneira alguma ignorar este patrimônio. Não podemos de maneira alguma ficar à
espera que um novo iluminado surja para fazer uma obra melhor do que a de Marx. A obra do
Marx, como foi dito aqui, é de suma importância para nossa atuação revolucionária, como a obra do
Gramsci, como a obra do Che, como a obra de tantos outros companheiros que embora sejam
menos conhecidos, mas têm obras importantes e companheiros que hoje, me permitam dizer,
publicam ensaios de transcendental importância para a nossa luta, na nossa revista América Livre.
Vamos incorporar este patrimônio e ao mesmo tempo saber conciliar a nossa teoria revolucionária
com os nossos princípios subjetivos. Para isso é preciso que os nossos esforços atinjam, isto que
tanto foi falado e discutido principalmente nos trabalhos de grupo, a nossa subjetividade como ser
humano. É aí, no trabalho da nossa realidade espiritual, que poderemos, também, no diaadia da
nossa prática, através do processo social, criar, desde agora, não à espera da revolução que virá, mas
desde agora, o homem e a mulher novos, que sejam dignos e capazes de fazer da revolução, de fazer
do socialismo, uma obra de amor.

Autor: Frei Betto


Fonte: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/freibetto/betto_socialismo.html

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