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2016/2017 PMMC

Psicologia Médica e Medicina Comportamental

Cláudia da Silva Mendes


NMS-FCM UNL
INTRODUÇÃO
Esta sebenta surgiu com o objetivo de desenvolver os vários pontos abordados nos 7 temas.
Como tal foi realizada com base em:
 Apontamentos das aulas
 Sumários disponibilizados pelo professor
 S. Ayers, R. de Visser: Psychology for Medicine. Sage, 2011
 Alder et al: Psychology &Sociology applied to Medicine. 3rd ed. Churchill Livingstone, Else-
vier, 2009
 Zeldow: Psychodynamic approaches to human behavior, in D. Wedding, M.L. Stuber: Beha-
vior & Medicine. 5th Edition. Hogrefe Publishing, 2010
 Rebelo L (2007): Genograma familiar: o bisturi do médico de família. Rev Port Clín Geral,
309-17.
 “Uma Sebenta”

CONTEÚDO
1 Tema 1: Psicologia e medicina. Modelos do funcionamento mental e bases biológicas,
psicológicas e sociais do comportamento. .......................................................................................... 3
1.1 Algumas definições ........................................................................................................... 3
1.2 Perspetiva geral sobre alguns “modelos” importantes para entender o desenvolvimento e o
funcionamento mental (ou psíquico) ................................................................................................ 3
1.2.1 Modelos biológicos ..................................................................................................... 4
1.2.2 Modelos psicodinâmicos (ou de inspiração psicanalítica) ........................................... 5
1.2.3 Modelos cognitivo-comportamentais ........................................................................ 11
1.2.4 Modelos sistémicos .................................................................................................. 15
1.2.5 Modelos biopsicossociais ......................................................................................... 15
2 Tema 2: Aprendizagem, processos cognitivos, motivação e emoções em contextos clínicos e de
saúde pública. Personalidade: conceito e estrutura. ......................................................................... 17
2.1 Processos Cognitivos ...................................................................................................... 17
2.1.1 Perceção .................................................................................................................. 17
2.1.2 Atenção .................................................................................................................... 19
2.1.3 Memória ................................................................................................................... 22
2.2 Motivação e Emoção ....................................................................................................... 25
2.2.1 Motivação ................................................................................................................. 25
2.2.2 Emoções .................................................................................................................. 28
2.3 Personalidade ................................................................................................................. 32
2.3.1 Dimensões relacionadas com a personalidade......................................................... 35
2.3.2 Modelos de desenvolvimento da personalidade ....................................................... 35
2.3.3 Avaliação da personalidade...................................................................................... 36
3 Tema 3 - Desenvolvimento humano e ciclo de vida: infância, adolescência, idade adulta e
envelhecimento. O morrer, a morte e o luto em medicina ................................................................. 37
3.1 Perspetivas do Desenvolvimento Humano ...................................................................... 37
3.1.1 Perspetivas psicodinâmicas clássicas ...................................................................... 37
3.1.2 Perspetiva de E. H. Erikson – desenvolvimento psicossocial ................................... 38
3.1.3 A Infância ................................................................................................................. 42
3.1.4 A Adolescência......................................................................................................... 49
3.1.5 A Vida adulta ............................................................................................................ 50
3.1.6 O Envelhecimento .................................................................................................... 51
3.2 O Morrer e a Morte em medicina ..................................................................................... 54
3.2.1 Doença terminal ....................................................................................................... 54
3.2.2 A “morte boa” ........................................................................................................... 56
3.3 Luto em Medicina ............................................................................................................ 56

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4 Tema 4: Comportamentos, saúde e doença. stress e coping. Adaptação à doença e à
incapacidade. Reações psicológicas à hospitalização e aos cuidados de saúde. Efeito placebo, adesão
terapêutica. ....................................................................................................................................... 60
4.1 Stress .............................................................................................................................. 60
4.1.1 Modelo transacional do Stress (Lazarus & Folkman) ................................................ 63
4.1.2 Curva de Yerkes-Dodson ......................................................................................... 64
4.1.3 Stress e saúde ......................................................................................................... 65
4.2 A perceção dos sintomas ................................................................................................ 68
4.2.1 Influência dos fatores psicológicos ........................................................................... 69
4.2.2 Efeitos da perceção dos sintomas na saúde ............................................................ 70
4.2.3 Efeitos Placebo e Nocebo ........................................................................................ 74
4.2.4 Representações e crenças sobre a doença .............................................................. 75
4.3 Doença crónica ............................................................................................................... 79
4.3.1 O impacto da doença crónica ................................................................................... 80
4.3.2 Encontrar significado e benefício .............................................................................. 80
4.3.3 Modelo de Lazarus et al  Stress-Appraisal-Coping................................................ 81
4.3.4 Formas de adaptação à doença crónica ................................................................... 82
4.4 Adesão ao tratamento ..................................................................................................... 83
4.4.1 Razões para a não adesão: não-intencionais ou intencionais .................................. 83
4.4.2 Razões para a não adesão: Modelo Multidimensional .............................................. 84
4.4.3 Estratégias para melhorar a adesão ao tratamento .................................................. 85
5 Tema 5: Aspetos avançados de comunicação em saúde e relação médico-doente. Técnicas de
entrevista clínica, situações difíceis e como dar más notícias. .......................................................... 87
5.1 Como comunicar ............................................................................................................. 87
5.2 Entrevista clínica ............................................................................................................. 90
5.2.1 Modelo médico-doente ............................................................................................. 90
5.2.2 Modelo de Calgary-Cambridge ................................................................................. 91
5.3 Casos concretos de comunicação em medicina .............................................................. 94
5.3.1 Alguém que fala demais ........................................................................................... 94
5.3.2 O silêncio... .............................................................................................................. 95
5.3.3 A agressividade... ..................................................................................................... 95
5.4 Dar más notícias.............................................................................................................. 97
6 Tema 6: Famílias na saúde e na doença. Impacto da doença na família e fatores familiares com
influência no curso das doenças. ...................................................................................................... 99
6.1 Famílias em geral e na Saúde ......................................................................................... 99
6.1.1 Ciclo vital da família – Duvall, 1977 ........................................................................ 101
6.1.2 Formas de avaliação da família .............................................................................. 102
6.2 Famílias e doença ......................................................................................................... 104
6.2.1 As doenças agudas e crónicas nas famílias ........................................................... 104
6.2.2 Cuidar de um familiar com doença crónica ............................................................. 110
7 Tema 7: Saúde e doença na matriz laboral e na matriz sociocultural. Stress e burnout em geral
e em medicina. Aspetos psicológicos das doenças cardiovasculares ............................................. 114
7.1 Matriz Laboral................................................................................................................ 114
7.1.1 Stress ocupacional ................................................................................................. 114
7.1.2 Reações à situação de desemprego ...................................................................... 115
7.1.3 Reforma ................................................................................................................. 116
7.1.4 Burnout profissional ................................................................................................ 116
7.2 Matriz Socio-cultural ...................................................................................................... 119
7.2.1 Classe social, saúde e doença ............................................................................... 119
7.2.2 Condições de habitação, saúde e doença .............................................................. 120
7.3 Fatores psicossociais e doença cardiovascular ............................................................. 121
7.3.1 Fatores de risco psicossociais para doença cardíaca ............................................. 121
7.3.2 Impacto da doença cardíaca .................................................................................. 125
7.3.3 Tratamento e reabilitação ....................................................................................... 125
7.3.4 EM SUMA… ........................................................................................................... 126

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1 TEMA 1: PSICOLOGIA E MEDICINA. MODELOS DO FUNCIONAMENTO
MENTAL E BASES BIOLÓGICAS, PSICOLÓGICAS E SOCIAIS DO COMPORTA-
MENTO.

1.1 ALGUMAS DEFINIÇÕES

Psicologia – é a disciplina que trata dos processos mentais normais; como ciência básica, aborda
a complexidade dos comportamentos. Podemos dividi-la em vários grupos de especializações, tais
como da saúde, clínica, educacional, ocupacional, neuropsicologia, etc.

Psicopatologia - Estudo das funções psíquicas anormais nos doentes mentais; o especialista
chama-se psicopatologista. Inclui o estudo dos sintomas, síndromes e doenças mentais e ainda aspe-
tos mais vastos do que esta “semiologia”.

Psiquiatria - especialidade médica responsável pelo diagnóstico, tratamento e intervenção das per-
turbações mentais.

Saúde mental – em 2001 a OMS definiu-a como sendo “o estado de bem-estar no qual o indivíduo
realiza as suas capacidades, pode fazer face ao stress normal da vida, trabalhar de forma produtiva e
frutífera e contribuir para a comunidade em que se insere”. Num certo sentido, uma abordagem mais
abrangente do contínuo saúde-doença; noutro sentido, traduz uma intervenção multidisciplinar, não
apenas médica, focada na prevenção da doença/promoção da saúde.

Saúde (definição da OMS) – estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a
mera ausência de doença ou enfermidade. As definições de saúde continuam em discussão, tratando-
se de um conceito multidimensional. A saúde pode ser entendida como um contínuo. O conceito de
“saúde mental positiva” abarca o que vai além da ausência de sofrimento psíquico. Os modelos salu-
togénicos estudam os fatores de manutenção/promoção da saúde (Antonovsky), complementando a
visão tradicional centrada nos fatores de risco de doença.
A importância da Psicologia em Medicina relaciona-se com a relevância do trabalho em equipa
multidisciplinar na saúde, incluindo especialidades da psicologia (e.g. clínica, ocupacional).

1.2 PERSPETIVA GERAL SOBRE ALGUNS “MODELOS” IMPORTANTES PARA ENTENDER


O DESENVOLVIMENTO E O FUNCIONAMENTO MENTAL (OU PSÍQUICO)
Neste contexto, entendemos por “modelo” como um conjunto de teorias científicas que permite in-
terpretar o funcionamento mental ou, como se estudará em Psiquiatria, as perturbações e doenças
mentais. Para melhor discutir a utilidade (relativa) destes modelos, é útil rever os conceitos de “com-
preender” (verstehen) e “explicar” (erklären) em Psicopatologia, no sentido de Karl Jaspers. A “com-
preensão” estará mais próxima da intuição empática; a “explicação” recorre a algo extrínseco, como

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uma teoria científica. Noutras palavras, “compreendem-se” os significados pessoais, subjetivos dos
comportamentos e “explicam-se” os comportamentos através da sua regularidade e padrões.
Os modelos são incompletos, têm evoluído e continuarão a evoluir: nenhum constitui uma “verdade”
absoluta, embora no passado alguns dos seus defensores assim tenham pensado (ou levado outros a
pensar). Em casos concretos, ajudam-nos a interpretar os comportamentos e intervir. Nalgumas situ-
ações uns serão mais adequados que os outros, noutras sucede o inverso.
Não podemos negar a interação entre o biológico, o psicológico e o social: a importância relativa
dos três tipos de determinantes varia consoante as situações e a dimensão temporal. Independente-
mente dessa variabilidade, o comportamento humano radica em (ou é modulado por) múltiplos fatores.
Os vários modelos atualmente existentes são os seguintes:
A. Modelos biológicos: as alterações (neuro)biológicas, físicas e químicas permitem explicar
satisfatoriamente, (quase) só por si, os comportamentos (ou as doenças).
B. Modelos psicodinâmicos: recurso a postulados como a existência do inconsciente e de
conflitos intrapsíquicos para compreender melhor a génese de comportamentos e sintomas
que não têm uma explicação imediata, aparente (foco em padrões de sentimentos, dos quais
muitas vezes não nos apercebemos – e isto por mais importantes que sejam).
C. Modelos cognitivo-comportamentais: foco na análise de comportamentos e pensamentos
(cognições), ao nível consciente.
D. Modelos sistémicos: foco na interpretação dos comportamentos no contexto dos sistemas
que estão em relação com o indivíduo (e.g. matriz familiar).
E. Modelos bio-psico-sociais: valorizam (mais do que os outros modelos) a interação entre
os fatores de tipo biológico, psicológico e social.

1.2.1 Modelos biológicos


Este modelo assume que a doença pode ser explicada com base em processos fisiológicos; como
tal, o tratamento atua na doença e não na pessoa. Defende que há uma progressão linear de causali-
dade entre o patogénio e a pessoa, que não há outra forma de a doença acontecer. Os processos
fisiológicos e sociais são separados e nunca se encontram. Como tal, não há consideração da pessoa
como um todo.

tratamento

mecanismos recuperação,
estímulo estado de
fisiológicos e estado crónico
patogénico doença
biomecânicos ou morte

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Apesar de este modelo ter dominado a medicina e permitido grandes avanços, também tem vindo
a ser criticado em muitos aspetos, especialmente pelo facto de não considerar a influência dos fatores
(1) sociais e (2) psicológicos na saúde.
Historicamente, a influência dos fatores sociais na saúde da população é clara. Temos como exem-
plo o declínio acentuado das doenças infeciosas que se verificou nos últimos anos, onde é de notar
que os maiores decréscimos nem sempre sucedem o aparecimento de uma nova vacina. Tal deveu-
se às alterações no que toca a compreensão das doenças e o efeito nos estilos de vida.
Por outro lado, os fatores individuais também desempenham um papel importantíssimo, nomeada-
mente a personalidade, os comportamentos relativos à saúde e as crenças. Por exemplo, indivíduos
bastante conscientes têm menor probabilidade de vir a assumir comportamentos que coloquem em
risco a sua saúde. Por outro lado, temos como exemplo do papel das crenças o caso do “efeito pla-
cebo”: as pessoas recuperam porque acham que vão recuperar, e não pelo efeito farmacológico de
alguma substância.
Este modelo tem as suas potencialidades assim como as suas críticas associadas:
Potencialidades Críticas
 Trouxeram benefícios inquestionáveis à medi-  O princípio do reducionismo – a tentativa de in-
cina em geral: melhoria do conhecimento sobre terpretar fenómenos complexos como o adoe-
mecanismos fisiopatológicos, descoberta de cer (especialmente em saúde mental) através,
novos fatores etiológicos, avanços no diagnós- por exemplo, de reações neuro-químicas, é
tico e tratamento muitas vezes insuficiente.
 É um modelo teórico (sólidos e claros) o que  Mesmo doenças com mecanismos fisiopatoló-
permite que sejam testados gicos bem documentados, como a diabetes,
têm apresentações diferentes dependendo da
pessoa afetada (contexto psicossocial e cultu-
ral)
 Se o anterior é verdade para doenças com fisi-
opatologia bem documentada, o que dizer em
relação às perturbações do estado mental?

1.2.2 Modelos psicodinâmicos (ou de inspiração psicanalítica)

to a large extent we are characters living out a


script written by the unconscious
in Psychodynamic psychiatry in clinical practice
Gabbard (2005)

Neste modelo, o inconsciente é a determinante primária daquilo que somos e do que fazemos. Ou
seja, qualquer formulação psicodinâmica do comportamento humano parte da noção de que as nossas
vidas são reguladas por forças internas das quais não estamos conscientes, forças essas que incluem
imagens, pensamentos e sentimentos.
As formulações psicodinâmicas do comportamento humano começam com a inevitabilidade do con-
flito, tanto intrapsíquico como interpessoal. Para explicar melhor a noção de conflito psicológico, Freud
procedeu à divisão da personalidade humana em 3 partes: o Id, o Ego e o Superego.

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O Id é a representação de todos os impulsos e instintos biológicos, incluindo a fome, a sede e a
sexualidade. Na maior parte das situações, os humanos não estão conscientes dos seus conteúdos e
funções. É governado pelo “princípio do prazer”, o que significa que tende a evitar a dor e a atuar em
busca do prazer, não suportando o atraso da gratificação. Como tal, diz-se que atua de acordo com o
processo primário, uma forma primitiva de desejo e de pensamento mágico; por exemplo, se o orga-
nismo tem fome o processo primário providencia uma imagem mental de comida.
O Ego desenvolve-se para permitir uma transação mais efetiva para o ambiente. Ao contrario do
Id, o Ego age sobre o “princípio da realidade”, que pretende adiar a gratificação até que o objeto apro-
priado seja encontrado; por outras palavras, o Ego não vai aceitar uma imagem mental de comida.
Atua de acordo com o processo de pensamento secundário, que é quase um sinónimo de pensamento
realista e resolução de problemas. As funções do Ego incluem a cognição (perceber, relembrar, dis-
curso e linguagem, testar a realidade, atenção, concentração e julgamento), relações interpessoais,
movimento voluntário e mecanismos de defesa.
Por fim, o Superego é a representação interna dos valores, normas e proibições dos pais do indi-
víduo e da sociedade. Tem duas componentes: (1) consciência, que tanto pune a pessoa por aceitar
ações e pensamentos proibidos como também a recompensa por tomar condutas moralmente aceitá-
veis; (2) “ego ideal”, que representa a perfeição moral que os humanos pretendem e que nunca obtêm.

1.2.2.1 Mecanismos de defesa


Os mecanismos de defesa, primariamente sistematizados pela filha de Freud, Anna Freud, descre-
vem a forma como o ego evita a ansiedade e controla impulsos inaceitáveis e torna desagradável
afetos ou emoções (unpleasant affects or emotions). São por definição inconscientes e podem ser
divididos em duas categorias:
1. Mecanismos maduros: incluem um componente consciente variável; Ex: supressão, humor,
altruísmo ou antecipação;
2. Mecanismos imaturos: implicam algum grau de distorção da realidade; Ex: denegação, pro-
jeção.

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Alguns dos mecanismos de defesa descritos incluem os seguintes (NOTA: os 3 sublinhados são os mais
importantes para exame):

A. Denegação – mecanismo primitivo pelo qual os factos ou implicações da realidade externa


não são reconhecidos, em troca de fantasias geradas internamente.
– implica uma grande distorção da realidade;
– comum em crianças saudáveis até aos 5A de idade;
– exemplo: homem de 50A, médico, que ignora os sintomas clássicos de um
EAM e continua a fazer o que estava a fazer.
B. Projeção – os impulsos ou desejos reprimidos ou inaceitáveis são atribuídos a outra pessoa
(e não aceites como próprios).
– é também um mecanismo primitivo, pelo que também implica um considerável
grau de distorção da realidade;
– exemplo: indivíduos intolerantes que se convencem de que membros de um grupo
minoritário são todos preguiçosos, reles, porcos, desonestos, imorais, etc., o mais provável é
que estejam a projetar características que desaprovam neles próprios.
C. Regressão – retorno parcial a um estadio prévio do desenvolvimento e a formas de compor-
tamento mais infantis.
– tem como objetivo escapar à ansiedade retornando a um nível prévio de ajusta-
mento no qual a gratificação estava assegurada;
– à semelhança de denegação, a regressão é um mecanismo muito comum nos
doentes crónicos e nos doentes internados. Nestes doentes os sintomas e as incapacidades
são desproporcionais à doença física subjacente;
– pode ser precipitada pela fadiga, fármacos, dor crónica ou stress, ou qualquer
outra circunstância que prive o doente da sua autonomia. Por exemplo, não é incomum tes-
temunhar um comportamento de regressão moderada num estudante que passou a noite
acordado a estudar para um exame a realizar no dia seguinte;
D. Fixação – incapacidade persistente de desistir de um padrão de comportamento infantil ou
imaturo por outros mais maduros.
– pode acontecer devido a privação ou gratificação excessivas na fase em que o
desenvolvimento parou.
– por exemplo, todos os seres humanos têm a necessidade de reconhecimento, aten-
ção e valorização. Porém, há formas diferentes de se obter essas gratificações narcisísticas
em diferentes pontos da maturidade. Assim, um miúdo de 4 anos que desata a fazer uma birra
pode estar apenas à procura de atenção; pode ser a única forma que ele conhece de a obter.
No entanto, os adultos não deveriam expor tal necessidade; espera-se que procurem gratifi-
cação de formas mais maduras.
E. Identificação – mecanismo psicológico através do qual alguns traços ou características de
outra pessoa são tidos como sendo do próprio indivíduo.

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– este processo é o principal fator de desenvolvimento do superego, a dimen-
são moral da personalidade.
– como exemplo do mecanismo de identificação na sua vertente defensiva te-
mos as reações de luto patológicas – reações de perda de um ente querido nas quais a tris-
teza, a aflição e a aceitação de perda foram bloqueados. Para a maioria das pessoa a morte
do pai ou da mãe é uma experiência profundamente ambivalente: ao mesmo tempo que o
indivíduo experiencia dor profunda e tristeza, também pode vivenciar outros sentimentos mais
perturbadores, como raiva por ter sido abandonado, alívio por ter terminado o sofrimento da
outra pessoa e, possivelmente, culpa por ter esses sentimentos. Em tais circunstâncias, o
processos normal de luto pode ser inibido, e a identificação pode contribuir para isso. Por
exemplo, se o pai morreu de EAM, o filho vai sentir dor precordial; com isso, vai manter o pai
vivo de uma forma mágica através da identificação.
a. Identificação com o agressor – variante da identificação na qual o indivíduo vai mas-
carar a ansiedade gerada pela sua vitimização através da imitação involuntária.
– exemplo: vítimas de campos de concentração e re-
féns de terroristas por vezes identificam-se com os seus captores, assumindo as suas
características e aceitando os seus pontos de vista políticos. Tal identificação pode
reduzir temporariamente a sua dor, mas à custa da sua própria vítima.
F. Repressão – é o esquecimento motivado, é o processo através do qual memórias e senti-
mentos associados a impulsos dolorosos e inaceitáveis são excluídos do consciente.
– segundo Freud, é o mecanismo de defesa base; apenas se este falhar ou for
incompleto é que os outros mecanismos entram em ação;
– é muitas vezes confundido com “denegação” ou com “supressão”:
 A “repressão” representa sempre a luta contra estímulos internos, contra
instintos; por seu lado, a “denegação” acontece relativamente a estímulos
externos;
 Enquanto na “repressão” há exclusão de algo do consciente, na “supres-
são” há um esquecimento voluntário, consciente.
G. Supressão – reflete o esforço para o esquecimento voluntário ou intencional.
– é um dos mecanismos mais maduros.
H. Formação de reação – mecanismo de defesa através do qual motivos reprimidos são tradu-
zidos nos seus opostos.
– por exemplo, numa formação de reação contra a dependência, uma
pessoa que inconscientemente é muito necessitada muitas vezes vive a sua vida com inde-
pendência exagerada, recusando a ajuda de todos
I. Isolamento e intelectualização – são dois mecanismos de defesa que têm em comum o
facto de selar os afetos.
– no isolamento do afeto, apenas a componente emocional
de uma ideia é reprimida, enquanto a componente cognitiva se mantém.

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– por exemplo, para os médicos e outros profissionais de
saúde, o isolamento providencia a distância e objetividade relativamente ao sofrimento dos
seus doentes que são necessárias para prosseguir o tratamento. No entanto, se esse isola-
mento se der de forma exageradamente rígida, essa pessoa está em risco de se tornar de-
masiado distante.
– a característica que distingue a intelectualização é o alte-
rar do enfase do conflito interior e interpessoal para ideias abstratas e tópicos esotéricos.
– por exemplo, quando um estudante de medicina entra pela
primeira vez no teatro anatómico para a sua primeira aula de disseção, ele tem que encontrar
uma forma de lidar com os sentimentos de repulsa e aversão que são as reações normais
face à morte; ao se focar apenas na aula de anatomia, ele é capaz de lidar com muitos destes
sentimentos e aprender.
J. Deslocamento – envolve o redireccionamento de uma emoção do seu objeto original para
um substituto mais aceitável.
– a emoção mais frequentemente envolvida é a “raiva”. O exemplo clássico é
o exemplo de um homem que trabalha num escritório onde é maltratado pelo chefe e que
chega a casa e maltrata a mulher e o cão.
a. Virar-se contra o próprio – forma especial de deslocamento na qual os impulsos e
fantasias direcionados a alguém são redirecionados para si próprio.
– é uma característica comum das pessoas deprimidas
que são provocadas ou lesadas por outra, mas que não demonstram qualquer raiva;
em vez disso, ficam cada vez mais deprimidas.
K. Anulação – mecanismos de defesa desenhado para desfazer algum pensamento ou desejo
inaceitáveis, ou até mesmo uma transgressão do passado.
– um bom exemplo é o dos pais negligentes que dão imensos presentes aos seus
filhos, na tentativa de “desfazer” o mal que fizeram antes.
L. Sublimação – mecanismo no qual vários instintos são deslocados ou convertidos noutros
socialmente aceitáveis.
– por exemplo, um impulso sádico de infligir dor no próprio pode ser sublimado
noutro socialmente aceitável como a necessidade de recorrer a cirurgia; o cirurgião pode cor-
tar e magoar o doente com vista a um “bem maior”.

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EM SUMA…
Mecanismo Tipo de
Descrição
de defesa mecanismo
Denegação Primitivo (ima- os factos ou implicações da realidade externa não são reconhecidos, em
turo) troca de fantasias geradas internamente
Projeção Primitivo (ima- os impulsos ou desejos reprimidos ou inaceitáveis são atribuídos a outra
turo) pessoa (e não aceites como próprios)
Regressão retorno parcial a um estadio prévio do desenvolvimento e a formas de com-
portamento mais infantis
Fixação incapacidade persistente de desistir de um padrão de comportamento infantil
ou imaturo por outros mais maduros
Identificação mecanismo psicológico através do qual alguns traços ou características de
outra pessoa são tidos como sendo do próprio indivíduo
Repressão esquecimento motivado;
processo através do qual memórias e sentimentos associados a impulsos
dolorosos e inaceitáveis são excluídos do consciente
Supressão Maduro esforço para o esquecimento voluntário ou intencional
Formação de mecanismos de defesa através do qual motivos reprimidos são traduzidos
reação nos seus opostos
Isolamento processo de repressão da componente emocional de uma ideia, mantendo-
se a componente cognitiva
Intelectualiza- mecanismo no qual se altera o enfase do conflito interior e interpessoal para
ção ideias abstratas e tópicos esotéricos
Deslocamento As emoções são redirecionadas do seu objeto original para um substituto
mais aceitável.
Anulação desenhado para desfazer algum pensamento ou desejo inaceitáveis, ou até
mesmo uma transgressão do passado
Sublimação Relativamente mecanismo no qual vários instintos são deslocados ou convertidos noutros
maduro socialmente aceitáveis

O determinismo psíquico refere-se à importância do passado no presente: os acontecimentos do


passado, principalmente infantil, têm influência profunda no nosso comportamento enquanto adultos.
Perspetiva do desenvolvimento psicossexual (Freud): ‘zonas erógenas’ e fases do desenvolvimento.
Importância da relação com o corpo no desenvolvimento.

O modelo psicodinâmico, como todos os outros, tem os seus pontos fortes e as suas limitações:
Pontos fortes Limitações
 Aceita a complexidade humana e tenta escla-  subjetividade – grande variabilidade entre ob-
recê-la; servadores diferentes;
 reveste grandes potencialidades clínicas, inclu-  dificilmente testável, pelo que alguns críticos
indo o uso diagnóstico e terapêutico da relação têm contestado uma base verdadeiramente ci-
médico-doente; entífica;
 estudos recentes promissores no esclareci-  tudo pode ser interpretado…;
mento das ligações entre “mente” e “cérebro”,  utilização clínica pode ser demorada e cara.
numa reformulação de alguns princípios da psi-
codinâmica.

A génese da psicanálise clássica freudiana deve ser vista no seu contexto histórico. Mesmo que
muitas conceções psicodinâmicas iniciais possam estar ultrapassadas pela ausência de evidência ci-
entífica, o legado de Freud, dos seus discípulos mais diretos e de muitos outros autores mais recentes
(e.g. Yalom) continua a revestir utilidade em muitas situações clínicas e interpessoais, no geral.

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1.2.3 Modelos cognitivo-comportamentais
Os modelos comportamentais e modelos cognitivos são uma resposta possível às lacunas dos
modelos psicodinâmicos, nomeadamente a impossibilidade de observar e manipular os elementos
envolvidos no processo explicativo do funcionamento mental. Surgem como corolário de contribui-
ções de duas correntes: o comportamentalismo ou “behaviourismo” e o cognitivismo.

O comportamentalismo é uma corrente baseada nos princípios da aprendizagem.


A aprendizagem associativa é a forma como nós aprendemos a relação entre dois eventos que
acontecem juntos. Por exemplo, se um evento acontece ao mesmo tempo que outro, isso indica
uma relação temporal; se um evento sucede sempre outro, então há uma relação causal.
Os processos chave de aprendizagem incluem o condicionamento clássico, o condicionamento
operante, a modelação e a imitação. Os processos de condicionamento são especialmente úteis
quando se trabalha com crianças pequenas ou com pessoas com dificuldades cognitivas, as quais
mais dificilmente vão mudar o seu comportamento como resposta ao discurso verbal.
 Condicionamento clássico: A reação da pessoa (resposta condicionada) acontece automatica-
mente na presença de um estímulo condicionado que previamente não produzia qualquer reação.
Esta resposta surge como o resultado de uma aprendizagem, que decorre da associação (através
de emparelhamentos) de um estímulo neutro com um estímulo incondicionado. A resposta que
era evocada pelo estímulo incondicionado (resposta incondicionada) passará também a ser evo-
cada na presença de um estímulo igual/semelhante ao estímulo neutro, designado então por es-
tímulo condicionado. Este processo é na sua maior parte implícito e involuntário para a pessoa.
Existe alguma evidência neurofisiológica do condicionamento clássico, nomeadamente com o es-
tudo dos mecanismos de facilitação pré-sináptica e da memória implícita.
Um exemplo clássico é o trabalho de Pavlov com os seus cães. Sabemos que os cães têm um
reflexo normal de salivação quando na presença de comida. Desta forma, a comida é o
estímulo incondicionado e a salivação é a resposta incondicionada, uma vez que acontece
naturalmente, sem ter sido necessário aprender. Pavlov reparou ainda que os cães come-
çavam a salivar noutras situações, como quando entravam na divisão onde comiam, porque
a tinham associado à comida. Para provar a sua teoria, Pavlov começou a tocar uma cam-
painha imediatamente antes de alimentar
os cães. No início, a campainha era um
estímulo neutro, uma vez que não era as-
sociado à comida e não causava saliva-
ção. Porém, pouco tempo depois os cães
começaram a salivar quando ouviam a
campainha; ou seja, essa tornou-se num
estímulo condicionado e a salivação face

11
à campainha uma resposta condicionada, porque os cães aprenderam a as-
sociação entre a campainha e a comida.
A ordem e o timing do estímulo também determinam se vai ou não haver
condicionamento. O estímulo neutro deve ser apresentado imediatamente
antes (Ex: meio segundo) do estimulo incondicionado; se o estímulo apare-
cer depois vai haver pouco ou mesmo nenhum condicionamento.
Algumas características a ter em atenção nesta forma de condicionamento
são:
 Extinção – acontece quando estímulo condicionado (ex: campainha) é apresentado fre-
quentemente e durante muito tempo sem o estímulo incondicionado (ex: comida).
 Generalização – estímulos diferentes, mas com semelhanças ao estímulo condicionado,
podem igualmente produzir respostas condicionadas.
 Ofuscação – acontece quando um estímulo condicionado é composto por vários elemen-
tos. No caso em que um desses elementos é mais pregnante (i.e. se impõe com mais
facilidade) a resposta condicionada que esse elemento evoca isoladamente pode ser mais
forte em comparação com a evocação isolada do elemento menos preponderante.
 Bloqueio – acontece quando um estímulo condicionado (previamente condicionado por as-
sociação a um estímulo incondicionado) impede que um estímulo neutro novo se possa
associar a este emparelhamento, mesmo que seja apresentado várias vezes em conjunto
com o estímulo condicionado e o estímulo incondicionado (i.e. o estímulo previamente con-
dicionado impede outro de evocar a resposta condicionada). Por exemplo, quando o som
de uma campainha se torna um estímulo condicionado forte na resposta condicionada de
salivação, será difícil introduzir um novo elemento no emparelhamento. Se houvesse in-
tenção de adicionar outro estímulo a este emparelhamento (ex: luz), o estímulo previa-
mente condicionado (som) iria impedir que a luz se associasse mesmo tentando inúmeros
emparelhamentos (som+luz+comida). Quando testada isoladamente a luz não iria produzir
salivação, mas o som continuaria a produzir essa resposta condicionada.
Condicionamento clássico e sintomas físicos: muitas respostas físicas podem ser condicionadas
classicamente, incluindo respostas imune e neuroendócrina, sintomas alérgicos e náuseas. Um
bom exemplo é o condicionamento clássico que envolve a quimioterapia, e que se deve ao efeito
citotóxico dos fármacos, nomeadamente náuseas e vómitos. Depois da primeira ou segunda ses-
são, cerca de 30% dos doentes vão sentir náuseas e vómitos antecipatórios quando voltam às
sessões; o que se deve ao facto de terem associado determinados aspetos do ambiente hospitalar
a esses sintomas. Sabendo isto, podemos atuar com vista à diminuição desses mesmos sintomas;
além disso, sabemos também que o condicionamento acontece muito mais facilmente face a lí-
quidos ou comida e que uma vez feito o condicionamento, esse pode bloquear que um terceiro
estímulo se torne condicionado. Assim, estudos confirmaram que se dermos uma bebida nova aos
doentes antes de cada sessão de quimioterapia conseguimos prevenir as náuseas antecipatórias
e ainda diminuir a duração daquelas que surgem durante a sessão, uma vez que esse sintoma

12
passa a estar associado à bebida e não à quimioterapia. Outro exemplo implica a toma de uma
bebida nova imediatamente antes à toma de um anti-histamínico; se a pessoa o fizer durante 5
dias, depois desse período a bebida por si só passa a desencadear os mesmos afeitos no que
toca a atividade dos basófilos e na melhoria dos sintomas, tal como o fármaco fazia. Assim, per-
cebemos que o condicionamento clássico é muito importante no papel de efeito placebo e pode
retirar muitos dos efeitos das terapias alternativas.
Condicionamento clássico e problemas psicológicos: o condicionamento clássico pode estar im-
plicado em problemas psicológicos como as fobias. Para as tratar temos que extinguir a associa-
ção aprendida através da exposição da pessoa ao objeto; porém, numa pessoa com fobia isto
pode ser muito difícil de se conseguir. Então podemos fazer a dessensibilização sistemática, um
procedimento mais gradual no qual se ensinam técnicas de relaxamento à pessoa e gradualmente
vamo-la expondo a versões cada vez mais fortes do objeto temido.
 Condicionamento operante: as consequências de um comportamento determinam a probabi-
lidade de esse comportamento ocorrer no futuro. A aprendizagem explica-se pela ocorrência de
contingências de reforço, nomeadamente reforços positivos (recompensas), reforços negativos e
punições (NOTA: há autores que sobrepõem os conceitos de reforço negativo e punição); a pessoa pode estar
consciente do processo de aprendizagem e pode ter algum controlo voluntário sobre ele;
 Reforço positivo – aumenta a probabilidade de um comportamento ocorrer no
futuro. A pessoa terá maior probabilidade de exibir um comportamento numa deter-
minada situação (aprende a adotar um comportamento numa situação) se nessa
situação (ou semelhante) esse comportamento for imediatamente seguido por um
estímulo reforçador positivo (recompensa). Essa probabilidade será mais forte
quanto maior for o número de ensaios (estímulo, comportamento e consequência).
 Punição – é o oposto do reforço positivo. Diminui a probabilidade de um comportamento. A
pessoa tende a deixar de exibir um comportamento numa situação se esse comportamento
for seguido por um estímulo reforçador desagradável ou aversivo, ou caso seja removido um
reforçador positivo (i.e. custo da resposta).
 Reforço negativo – tal como o reforço positivo, aumenta a probabilidade de um comporta-
mento acontecer. A pessoa aprende a exibir um comportamento para evitar ou remover/ces-
sar um estímulo reforçador negativo, desagradável ou aversivo (presente inicialmente na
situação). A recompensa resulta da remoção do estímulo desagradável. Exemplo: utilização
de analgésicos de ação rápida eficazes no controlo da dor.
Algumas definições importantes:
 Reforço diferencial – reforço positivo do comportamento apenas quando ele é exibido nas
situações desejadas. A pessoa aprende a exibir comportamento apenas naquela situação.
 Extinção – o comportamento deixa de ser seguido pelo estímulo reforçador e extingue-se.
 Reforço intermitente – o estímulo reforçador é apresentado apenas nalguns ensaios. O
intervalo de reforço pode ser de razão fixa ou variável. Quando um comportamento é ad-
quirido por reforço intermitente pode ser mais difícil de extinguir (ex: casinos).

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 Reforço por aproximações sucessivas (moldagem/shaping) – comportamentos reforçados
positivamente são aproximações do comportamento final desejado.
 Sistema de economia de fichas (token economy) – utiliza-se um mediador do estímulo re-
forçador positivo que a pessoa vai acumulando até obter a recompensa final (ex: sistema
de pontos nos estabelecimentos comerciais – pode ser usado para adesão a um trata-
mento).
Princípio Definição Efeito no comporta- exemplo
mento
Reforço positivo Fornece consequências ↑ a probabilidade de o Médico congratula o paci-
benéficas, agradáveis comportamento se repetir ente por este cumprir a dieta
Reforço nega- Retira uma condição ne- ↑ a probabilidade de o Ajuste da postura para evitar
tivo gativa, desagradável comportamento se repetir uma dor
Punição Remove um reforço posi- ↓ a probabilidade de o Muitas
tivo ou aplica um estí- comportamento se repetir
mulo aversivo
Aproximações Reforça aproximações ao ↑ gradualmente a proba- Ensinar alguém com dificul-
sucessivas (sha- comportamento desejado bilidade de o com- dades de aprendizagem
ping) portamento se re-
petir

 Aprendizagem social: aprendizagem de comportamentos pela observação e imitação de mo-


delos (‘modelagem’/modelling); muito importante na aprendizagem médica.

Quanto ao cognitivismo, os pensamentos são considerados mediadores dos comportamentos e


sentimentos da pessoa numa determinada situação. As pessoas podem focar-se nas suas atribuições
e interpretações acerca das situações, sem integrar todos os aspetos da realidade. Estes erros do
pensamento são as distorções cognitivas. Exemplos, frequentes no dia-a-dia e, de forma mais siste-
mática, em certos estados emocionais ou mesmo quadros patológicos:
 Pensamento dicotómico – classificar as situações em extremos (tudo ou nada);
 Conclusões apressadas – tirar uma conclusão ou interpretar uma situação considerando
apenas uma explicação possível ou um número muito reduzido de hipóteses;
 Raciocínio emocional – classificar uma situação ou prever algo em relação ao futuro com
base nos sentimentos que está a experimentar no momento, não considerando elementos
objetivos da situação;
 Generalização excessiva – quando acontece algo muito relevante, a pessoa tende a sobres-
timar a probabilidade dessa situação ocorrer novamente (quando na realidade essa probabi-
lidade pode ser baixa);
 Abstração seletiva – classificar uma situação apenas com base num elemento da mesma,
sem considerar o todo (interpretar a situação fixando-se apenas num aspeto);
 Personalização – achar que um acontecimento se refere a si sem base aparente para tal (ex:
achar que um grupo de pessoas se está a rir de si, sem motivo aparente);
 Pensamento autoinjuntivo – utilização recorrente na linguagem de “devo…” e “tenho de…”.
A pessoa orienta as suas ações demasiado em conformidade com a desejabilidade social e
ideais de perfeição.

14
À semelhança dos restantes modelos, também este tem os seus pontos fortes e as suas limitações:
Pontos fortes Limitações
 A sua aplicação na clínica é facilmente mensu-  Considerado por alguns críticos como superfi-
rável e tem dado resultados (base na evidência cial. Por exemplo, pode não procurar explicar o
científica) que leva ao aparecimento das distorções cog-
 Foco concreto (a nível do consciente), o que nitivas
torna a sua utilização geralmente menos mo-  Possibilidade de “substituição de sintomas”, na
rosa e consequentemente mais económica opinião de alguns autores psicodinâmicos; por
exemplo, em fobias (a evidência tem contrari-
ado esta crítica)

1.2.4 Modelos sistémicos


Baseados na teoria geral de sistemas (von Bertalanffy) e na teoria cibernética. Grande ligação ao
estudo das famílias e às terapias familiares.
Refere princípios como os da totalidade (um sistema é mais que a soma das partes), da circulari-
dade (o indivíduo e o sistema de que faz parte são inseparáveis; influenciam-se reciprocamente e
continuamente) e da equifinalidade (caminhos diferentes podem levar a um mesmo resultado).
Um comportamento pode permanecer inexplicado até ser colocado no seu contexto, i.e. observado
no contexto de crenças, situações, relações e ações que constituem a sua ‘matriz’ (exemplo comum -
fenómenos de triangulação, termo proposto por Bowen).

1.2.5 Modelos biopsicossociais


Foi primariamente proposto por Engel, em 1977, como sendo um modelo que tem em conta os
efeitos dos fatores biológico, psicológico e social. Mais tarde foi expandido de forma a incluir também
os fatores como a etnia e a cultura.

Podemos distinguir os fatores pessoais dos externos:


Os fatores externos incluem:
 Ambiente sociocultural, nomeadamente pobreza, disponibilidade das estruturas de suporte,
acesso aos cuidados de saúde e a outras instituições e legislação;
 Estímulos patogénicos, que podem ir desde a exposição a microrganismos, como ao fumo de
tabaco, a viver numa zona com elevada densidade de gás radão;

15
 Tratamento que a pessoa recebe, que pode atuar no agente patogénico ou na pessoa;
Todos estes fatores externos tanto influenciam a pessoa como são influenciados pela mesma.
Por seu lado, os fatores pessoais englobam:
 História pessoal, que envolve múltiplos fatores como a etnia, a carga genética, comportamen-
tos aprendidos, processos de desenvolvimento e doenças anteriores
 Processos psicológicos, como o estilo de vida, socialidade, personalidade, humor, perceção
dos sintomas, comportamento, adesão ao tratamento;
 Mecanismos fisiológicos e mecânicos
Todos estes fatores se influenciam uns aos outros.
Ou seja, o modelo biopsicossocial surge numa tentativa de contrariar certas perspetivas então do-
minantes, demasiado centradas nos fatores biológicos. A doença passou a ser causada por vários
fatores que atuavam a diferentes níveis, ao invés de ser puramente causada pelo agente patogénico,
como defendia o modelo biológico. Isto resulta no facto de a saúde e a doença passarem a ser res-
ponsabilidade do indivíduo e da sociedade, e não apenas do médico. Da mesma forma, o tratamento
também passa a incidir sobre as vertentes física, psicológica e social, e não apenas na física.

Comparação dos modelos biológico e biopsicossocial


Biológico Biopsicossocial
Relação mente-corpo Separadas; independentes Parte de um sistema dinâmico; influ-
(dualismo) enciam-se um ou outro
Causa da doença Patogénios Múltiplos fatores a diferentes níveis
Causalidade Linear Circular
Fatores psicossociais Irrelevantes Essenciais
Abordagem à doença Reducionista Holística
e ao tratamento
Foco do tratamento Erradicação ou contenção da patolo- Fatores físicos, psicológicos e sociais
gia contribuem para a doença
Foco na promoção da Evitar patogénios Redução dos fatores de risco físicos,
saúde psicológicos e sociais

No fundo, o modelo biopsicossocial pode ser considerado um modelo do tipo sistémico.


Atualmente, traduz-se numa filosofia subjacente à prestação dos cuidados e num conjunto de prin-
cípios práticos com aplicação clínica, adaptando a prática clínica às necessidades específicas de cada
um (Borrell-Carrió et al, 2004).
O modelo biopsicossocial tem pontos fortes e as suas limitações:
Pontos fortes Limitações
 Permite uma perspetiva abrangente, dita “holís-  é considerado por alguns críticos como “ateó-
tica”, com grandes potencialidades clínicas; rico” ou (e.g. Ghaemi, 2009) como redutível a
 ligação a uma visão mais “centrada na pessoa”, mero electicismo;
em comparação com os modelos predominan-  seria desejável desenvolver formas de testar o
temente biológicos; seu funcionamento empírico
 ajudou a que os cuidados fossem pensados de
forma integrada, em equipas multidisciplinares.

O termo biopsicossocial tornou-se omnipresente e quase lugar-comum, sem que exista (em muitos
contextos) uma aplicação equivalente dos seus princípios na prática clínica quotidiana.

16
2 TEMA 2: APRENDIZAGEM, PROCESSOS COGNITIVOS, MOTIVAÇÃO E
EMOÇÕES EM CONTEXTOS CLÍNICOS E DE SAÚDE PÚBLICA. PERSONALI-
DADE: CONCEITO E ESTRUTURA.

2.1 PROCESSOS COGNITIVOS


Definir cognição é difícil, mesmo para quem trabalha diariamente na avaliação de processos cogni-
tivos como a perceção, atenção e memória. Podemos sempre recorrer a definições alargadas mais
consensuais e tentar definir cognição como o conjunto de processos mentais relativos à perceção,
atenção, aprendizagem (já falada no capítulo anterior) e memória (e se quisermos complicar um pouco
mais podemos incluir também a tomada de decisões, resolução de problemas e produção de lingua-
gem). É uma definição mais descritiva e menos conceptual, mas provavelmente a mais segura por
agora.

2.1.1 Perceção
A perceção é o processo pelo qual o nosso cérebro recebe, interpreta e organiza os estímulos
sensoriais (externos e internos) do nosso ambiente. Não se trata da receção passiva destes sinais mas
da sua modulação por processos cognitivos que envolvem aprendizagem prévia, memória e atenção
(começa, assim, a tornar-se óbvio como os processos cognitivos estão interligados).
É importante distinguir “perceção” de “atenção”:
 Perceção – forma como a informação do ambiente, que nos chega através dos nossos sen-
tidos (audição, tato, cheiro, sabor e visão) é transformada em experiência;
 Atenção – refere-se a algo mais lato; inclui os aspetos do ambiente nos quais nos focamos
e que processamos.
Vejamos o caso da perceção visual: a luz do ambiente que nos envolve é projetada na nossa retina
e transformada em impulsos elétricos pelos cones, bastonetes e células ganglionares da retina; estes
impulsos são então transmitidos via nervo ótico até ao córtex visual, onde a imagem é “vista”. Porém,
a nossa mente tem uma grande influência sobre a forma como interpretamos o estímulo. Ou seja, a
perceção visual acaba por ser uma combinação do estímulo virtual (processamento bottom-up) e o
nosso conhecimento, informações contidas em estruturas superiores do nosso
SNC (processamento top-down).
Um bom exemplo de processamento top-down é a constância de forma e ta-
manho e a perceção da profundidade. Na constância de forma e tamanho, nós
interpretamos que um objeto se mantém igual, independentemente de parecer
maior ou mais pequeno, conforme esteja mais perto ou mais longe respetiva-
mente, ou ainda de parecer ter outra forma quando mudamos o ponto de vista
através do qual o observamos. A nossa mente sabe que os objetos não alteram
a forma, pelo que conclui que ele se está a mover e que o estamos a ver sob
diferentes perspetivas. Este conhecimento é usado na perceção de profundidade;
vejamos o exemplo da imagem à esquerda: nós sabemos que as pessoas são

17
aproximadamente do mesmo tamanho; como tal, concluímos que o homem da
imagem à esquerda está mais longe da câmara que a mulher. Nestas circunstân-
cias, o nosso conhecimento prévio dá-nos pistas relativamente à profundidade. A
nossa perceção disso acontece muito rapidamente e a um nível subconsciente.
Comparando o tamanho das duas pessoas na imagem, quão mais pequeno diria
que o homem lá atrás está? Se olharmos para a imagem à direita, na qual o ho-
mem foi “trazido” para a frente; provavelmente não consideramos a imagem tão
pequena quando de facto é, o que se deveu à constância de tamanho e à perce-
ção da profundidade que automaticamente toldam o nosso julgamento.
O estudo da perceção definiu que não só nós não somos capazes de nos aper-
ceber da verdadeira dimensão de algumas diferenças (Ex: diferença de tamanho nas imagens anteri-
ores), mas também que somos muito seletivos e influenciáveis naquilo que percebemos. O conceito
aqui subjacente é o de conjuntos percetuais, onde a influência da atenção, experiências anteriores e
motivação são combinados de forma a que nós percebamos a informação que nos é relevante. Um
conjunto percetual é influenciado pelos seguintes fatores: (1) limiar da perceção, (2) experiências pas-
sadas, (3) motivação, emoções, valores individuais, ambiente, background cultural e experiência.
O limiar da perceção refere-se à intensidade mínima que um estímulo deve ter para ser percecio-
nado. Por exemplo, se alguém gritar “fogo”, é muito mais provável que capte a nossa atenção do que
alguém que grite “ar”; da mesma forma, se estivermos numa sala cheia de barulho, é muito provável
que mesmo assim consigamos perceber que alguém na outra ponta da sala disse o nosso nome; isto
porque naturalmente temos um limiar de perceção mais baixo para “ouvir” o nosso nome.
A influência das experiências passadas é evidente nos efeitos de constância de tamanho e per-
ceção de profundidade. As experiências passadas, as expectativas e os valores individuais vão
combinar-se para influenciar a perceção numa forma que se adeque melhor. Por exemplo, experiên-
cias com sintomas têm mostrado que dizer às pessoas que um estímulo pode doer aumenta a proba-
bilidade de que no fim eles venham a referir dor.
A motivação afeta aquilo que nós percecionamos de diferentes formas. Primeiro, o nosso nível de
excitação determina quanta atenção que vamos prestar ao ambiente; por exemplo, quando estamos a
dormir, não percebemos conscientemente muita coisa, ou mesmo nada, relativamente ao ambiente
externo, a menos que haja uma grande alteração como um barulho alto ou uma alteração brusca da
temperatura. Em segundo lugar, o nosso estado motivacional também vai determinar ao que presta-
mos atenção; por exemplo, quando estamos com fome vamos mais facilmente reparar em estímulos
relacionados com comida.
As emoções também vão afetar o que nós percebemos. Por exemplo, foi bem estabelecido que a
ansiedade aumenta a nossa perceção das situações de perigo que nos possam rodear.
O ambiente providencia um estímulo externo que nós interpretamos para a experiência. Apesar
das influências top-down e do nosso conjunto percetual, a maior parte de nós é bastante preciso na-

18
quilo que observa. Isto deve-se em parte às nossas experiências anteriores do ambiente que nos aju-
dam a interpretar o que está a acontecer. Porém, por vezes o nosso conhecimento do ambiente pode-
se sobrepor ao que nós estamos a ver e resultar numa distorção da perceção.
Os fatores culturais influenciam menos a perceção do que seria de esperar; muitos aspetos da
perceção visual são consistentes ao longo das várias culturas. Um dos efeitos mais fortes da cultura é
o facto de identificarmos mais rapidamente pessoas que pertencem à mesma cultura que nós. Isto
pode influenciar a forma como os profissionais de saúde interagem com os doentes de diferentes et-
nias. Um estudo revelou que para doentes de etnias menores, os médicos tinham menor envolvimento
emocional e que esses doentes eram menos verbais com os seus doentes.

Até agora falamos da influência dos conjuntos percetuais na perceção visual. Porém, também é
importante compreender as alterações nos processos de perceção, que são relevantes em muitas
patologias, nomeadamente no autismo e na esquizofrenia:
 Pessoas com autismo ou com comportamentos antissociais têm uma reduzida perceção das
expressões faciais de emoção.
 A esquizofrenia e outras experiências psicóticas são particularmente interessantes porque im-
plicam a perceção de eventos ilusórios. Estudos recentes têm vindo a sugerir que o pensa-
mento psicótico têm maior probabilidade de ocorrer nas pessoas com características esquizo-
frénicas quando essas são colocadas em situações de ambiguidade percetual.

Em suma, entender o que é a perceção e que fatores a modulam é importante no contexto clínico.
Não apenas para perceber melhor as alterações da perceção como as ilusões e alucinações (que
acompanham várias doenças), mas também para compreender porque é que doentes diferentes per-
cecionam sintomas semelhantes de forma diferente.

2.1.2 Atenção
Atenção  capacidade de selecionar informação do ambiente para acolher e processar; capaci-
dade de nos focarmos em determinado estímulo ou estímulos que nos chegam do ambiente (externo
ou interno).

Como tal, a atenção é uma parte importante da perceção, da aprendizagem e da performance,


particularmente em situações onde temos que distribuir a nossa atenção (multitask).
Aquilo a que nós prestamos atenção e quanta atenção damos a algo depende da nossa excitação
física, da motivação e da emoção.
A atenção pode ser:
 Voluntária, como quando nos concentramos para prender algo ou para desempenhar uma
tarefa;
 Involuntária, como quando um som alto ou um movimento repentino capta a nossa atenção.

19
Além disso, a atenção tem vindo a ser comparada a um filtro, que pode ter um foco mais alargado
ou mais estreito. Quando a atenção está focada, a informação central é processada em detalhe, mas
a informação periférica pode ser ignorada ou perdida.

A atenção está intimamente relacionada com os processos cognitivos de perceção (aquisição de


informação) e memória (capacidade de armazenar informação) – ver esquema abaixo.

Buffers Capacidade
Estímulo sensoriais limitada da Memória a
Respostas
externo (memória memória a longo termo
imediata) curto prazo
Atenção
A informação que é mantida na memória de curto prazo depende de a qual ou quais buffers senso-
riais é que “prestamos atenção”. Os buffers sensoriais são então armazenamentos de curto termo da
informação que chega que podem ser usados para selecionar a informação que vamos atender cons-
cientemente. Por exemplo, os buffers sensoriais auditivos registam todos os sons que nos chegam
durante alguns segundos, informação essa que é potencialmente recuperável durante um certo perí-
odo de tempo; isto é especialmente útil quando alguém nos acusa de não termos ouvido o que a
pessoa disse.
Muitas teorias sobre atenção propõem que tenhamos um processador com capacidade limitada,
o que restringe a quantidade de informação a que, conscientemente, somos capazes de dar atenção.
porém, essa capacidade não é fixa. Além disso, há evidência de que mesmo inconscientemente somos
capazes de reter informação à qual não prestamos atenção: continua a haver neuro-estimulação, em-
bora mais fraca, das mesmas zonas que seriam ativadas se estivéssemos a prestar atenção ao estí-
mulo.

2.1.2.1 Atenção e habilidades clínicas


As habilidades médicas (entrevista clínica, exame objetivo e cirurgia) são essenciais na prática mé-
dica. A aquisição dessas habilidades toma o processo descrito no esquema anterior: aprender uma
habilidade nova requer a nossa atenção concentrada, memória a curto prazo, processos motores cog-
nitivos e respostas ao esforço. Inicialmente, precisamos da atenção tanto para a perceção como para
a resposta; à medida que vamos aprendendo a capacidade, essa torna-se gradualmente mais fácil e
vai requerendo menos atenção ou concentração. Assim, definem-se 3 fazes na aquisição de uma ca-
pacidade:
1. Fase cognitiva: desenvolvimento de uma representação mental da habilidade e da forma como
a realizar. Esta fase baseia-se em instruções explícitas através dos ensinamentos de um pro-
fissional, demonstração, e observação do que o próprio está a fazer; exemplo: confiamos num
instrutor de condução para nos ensinar a conduzir;
2. Fase associativa: programa motor efetivo que foi desenvolvido com o intuito de que a pessoa
seja capaz de desenvolver uma habilidade mas para a qual ainda não tem grande aptidão, não

20
a conseguindo desenvolver com grande fluência. O desenvolvimento é guiado pelo conheci-
mento ou feedback; exemplo: no início somos capazes de conduzir, estando conscientes de
todas as ações que realizamos, desde o virar de rodas ao carregar na embraiagem para por a
mudança.
3. Fase autónoma: a habilidade já se tornou automática, baseando-se em conhecimento empírico
e coordenação motora, em vez de em instruções explícitas; ou seja, as ações muito treinadas
e habituais são menos dependentes da atenção. Por exemplo: com o treino passamos a ser
capazes de conduzir automaticamente, sem esforço consciente.

Os estudos mostraram que o treino é mais importante que a aptidão. Por exemplo, a habilidade
musical relaciona-se muito mais com o número de horas de treino do que com a aptidão musical nata,
aptidão dos pais ou classe social. Além disso, aprendemos melhor se os treinos forem espaçados no
tempo.

Voltando às fases da aprendizagem anteriormente referidas, conseguimos perceber que com o


treino vamos precisando cada vez menos de atenção para realizar uma determinada tarefa, já que
esta se vai tornando automática. É isto que permite o multitasking: se precisamos cada vez menos de
atenção para realizar uma dada tarefa, e tendo em conta que a nossa capacidade de prestar atenção
é limitada, então tal significa que podemos dividir a nossa atenção com outra coisa que também re-
queira pouca atenção. De notar que isto só é possível quando as habilidades já são automáticas e
quando não são muito parecidas. Por exemplo, podemos escrever um texto enquanto ouvimos música
ou falar com alguém enquanto conduzimos. Porém, sob as condições de multitasking há processos
competitivos que vão influenciar a forma como realizamos as várias tarefas. Por exemplo, está provado
que falar ao telefone enquanto se conduz, seja com auriculares ou não, aumenta o nosso tempo de
reação, diminui a capacidade de perceber que o carro da frente se está a aproximar e diminui a atenção
que temos ao que nos rodeia.
Assim, a vantagem de tornar uma habilidade autónoma é o facto de podermos libertar a nossa
atenção e com isso fazer multitasking. Por outro lado, quando dispersamos a nossa atenção é provável
que, na presença de ações alternativas, utilizemos as mais habituais, mesmo se não forem as mais
adequadas. Isto é uma das origens do erro médico. Os médicos, frequentemente assoberbados por
trabalho e por múltiplas exigências do meio, podem resvalar para desenvolver ações mais habituais
(que por vezes não são as mais adequadas, dada a variabilidade e complexidade dos casos que vão
surgindo). Por isto, é importante no contexto clínico compreender o que é a atenção e quais as suas
limitações, não só por causa das manifestações patológicas, mas também porque nos poderá ajudar
a proteger do erro médico.

2.1.2.2 Atenção tendenciosa


Como a perceção, a atenção também pode ter tendência a dirigir-se mais a certos estímulos. Alguns
dos viéses ditos “normais” incluem o facto de termos tendência a prestar mais atenção a faces e a

21
emoções. As crianças passam muito mais tempo a olhar para faces ou para formas semelhantes a
faces do que para outra coisa qualquer. Da mesma forma, pesquisas neurofisiológicas demostraram
que os estímulos emocionais produzem respostas neurológicas mais fortes do que estímulos neutros,
sejam eles visuais ou auditivos; ou seja, ouvir uma voz emocionada ou ver uma expressão emocionada
desencadeia uma resposta neurológica mais forte do que uma voz ou uma expressão neutra.

2.1.3 Memória
A capacidade de armazenar e recuperar informação tem sido uma das questões mais abordadas
pelas ciências cognitivas. A compreensão deste processo cognitivo é, mais uma vez, importante na
clínica dada a elevada prevalência de doenças que cursam com alterações da memória (e.g. doença
de Alzheimer) mas é também importante para sabermos como melhor fornecer informação aos doentes
(de modo que a retenham).
A aprendizagem e a memória envolvem 3 fases: codificação, armazenamento e recuperação. A
codificação ocorre quando o estímulo está presente e quando a memória é criada. O armazenamento
inclui os locais onde a informação é organizada e armazenada. A recuperação implica a forma como
acedemos e relembramos a informação armazenada. Os problemas de memória podem acontecer em
qualquer uma destas fases: a informação pode ser armazenada já de forma errada, o armazenamento
pode ser apenas parcial ou a recuperação pode falhar.
Por outro lado, pensa-se que a memória seja aplamente estruturada, tal como está representado
no esquema abaixo (já descrito no capítulo sobre “atenção”).

Buffers Capacidade
Estímulo sensoriais limitada da Memória a
Respostas
externo (memória memória a longo termo
imediata) curto prazo
Atenção

Podemos olhar ainda para a memória do ponto de vista do tempo de armazenamento de informa-
ção. Como referimos anteriormente a informação está primeiro disponível numa memória imediata
que corresponde a um buffer sensorial (por exemplo quando nos perguntam se ouvimos o que nos
acabaram de dizer, nós conseguimos viajar alguns segundos no tempo e recuperar essa informação);
alguma desta informação é então processada pela memória a curto prazo ou memória de trabalho
e aquela relevante ou que foi realmente aprendida é armazenada na memória a longo prazo.
A memória a curto prazo é usada para manipular e adquirir temporariamente a informação que nos
chega. Esta memória tem componentes visual e auditiva e ambas têm capacidade limitada; aliás, so-
mos apenas capazes de reter tantas palavras quantas aquelas que conseguirmos ler em voz alta em
2 segundos. Porém, caso a informação tenha significado ou seja agrupada, a capacidade desta forma
de memória aumenta significativamente. Outras características deste tipo de memória são a primazia
e os efeitos recentes: os efeitos recentes significam que uma pessoa tem maior probabilidade de se
lembrar daquilo que foi dito mais recentemente, tais como as últimas palavras de uma lista; isto prova-
velmente deve-se ao facto de essa informação estar mais acessível à nossa memória de trabalho. Por

22
outro lado, o efeito da primazia significa que as pessoas vão mais facilmente lembrar-se dos itens do
início de uma lista, comparativamente aos que foram referidos no meio; isto possivelmente porque
tiveram mais tempo para os repetir e, assim, sedimenta-los na memória. Como tal, quando damos
informação a um doente, devemos apresentar as indicações mais importantes no início e no fim e
agrupá-la em categorias, de forma a que o doente memorize o máximo conteúdo possível.
Por outro lado, a memória a longo prazo retém a informação para futura recuperação, e está de-
pendente da formação de associações entre grupos de informação que estejam na nossa memória de
trabalho. A consolidação das memórias a longo prazo não parece ter uma localização restrita no cére-
bro. Foi colocada a hipótese de que estas memórias existam em engramas (tradução livre do inglês
engrams), isto é, uma correspondência biofísica ou bioquímica no cérebro que quando ativada nos
permite recuperar estas memórias. Pensa-se que estes engramas correspondam a redes neuronais,
que podem ser compostas por neurónios de diferentes regiões do cérebro ligados entre si. Esta teoria
é compatível com o que se observa do ponto de vista cognitivo:
 A repetição espaçada da recuperação de informação facilita a futura recuperação dessa mesma
informação. Do ponto de vista biológico sabe-se que a ativação repetida de um conjunto de neu-
rónios reforça as suas ligações (postulado de Hebb: “neurons that fire together wire together”).
 A associação de novas memórias a memórias já consolidadas facilita a memorização. Se já exis-
tir uma rede neuronal que representa uma memória bem consolidada, associar um novo conjunto
de neurónios a esta rede poderá facilitar a ativação destes neurónios quando o engrama anterior
for ativado.
 Enriquecer a informação com ‘pistas’ variadas. Ao ligarmos várias pistas para nos lembrarmos
de uma determinada informação, provavelmente vamos recrutar mais neurónios para estabele-
cer o engrama correspondente, aumentando assim a probabilidade de ativação da informação
de que nos queremos lembrar.
Além disso, a memória é dependente do contexto; por outras palavras, é mais provável que nos
lembremos da informação se estivermos no mesmo contexto em que estávamos quando essa infor-
mação foi aprendida.
Sabendo isto, há varias atitudes que podemos passar a tomar de forma a melhorarmos o rendimento
do nosso estudo:
 Sumarizar as nossas notas e desenhar mapas mentais  passamos a usar não só a com-
ponente visual da memória como também a auditiva, o que aumenta a sua performance;
 Concentrar no significados da informação em vez da aprendizagem mecânica;
 Elaborar a informação tanto quanto possível e tentar perceber como é que ela se encaixa
naquilo que já sabíamos, na nossa experiência pessoal e na forma como podemos usar essa
informação na clínica;
 Agrupar a informação em categorias com significado;
 Usar mnemónicas para relembrar listas – lembramo-nos mais facilmente de mnemónicas
distintas;
 Espaçar o estudo – é melhor do que rever tudo numa única sessão;

23
 Recuperar a informação recorrentemente através da realização de testes;
 Estudar com outros em grupos de revisão onde possamos explicar e fazer perguntas a ou-
tros;
 Caso tenhamos uma “branca” durante o exame, devemos relembrar o contexto em que es-
távamos quando aprendemos aquela matéria.

A memória a longo prazo subdivide-se em dois grandes grupos: memória explícita ou declarativa e
a memória implícita. O primeiro tipo de memória corresponde àquilo que a maioria das pessoas iden-
tifica como sendo memória. A recuperação de informação deste tipo de memória é acompanhada da
sensação clara de que estamos a recordar algo. Pode tratar-se de factos, ideias ou conceitos (memória
semântica) ou de episódios vivenciados pelo próprio (memória episódica). Por exemplo, a palavra ‘Pa-
ris’ pode evocar uma memória semântica que corresponde ao facto de que se trata da capital de
França, ou a recordações de quando se esteve em Paris de férias. Por outro lado, a memória implícita
não é uma memória de factos ou episódios e, quando informação é recuperada, esta não é acompa-
nhada da sensação de que nos estamos a recordar. É o tipo de memória que nos permite guiar um
carro, colocando a 2ª velocidade após a 1ª, sem termos que “pensar” como puxamos a manete das
mudanças. Mas se nos recordarmos da primeira vez que guiámos um carro (aqui temos que voltar a
utilizar a memória episódica e evocar esse momento único das nossas vidas), os movimentos eram
todos realizados com total concentração requerendo a nossa total atenção à manete das mudanças e
a como movê-la. É por isto que a memória implícita é também chamada de memória de procedimentos.
Se alguma vez estiverem a perder a jogar ténis, experimentem perguntar ao vosso adversário como é
que ele consegue bater tão bem na bola e peçam-lhe para explicar o movimento que faz. Da próxima
vez que ele bater na bola poderá falhar porque a evocação consciente dos movimentos do seu braço
poderá atrapalhar a memória implícita do movimento, sedimentada em anos de treino. Daqui percebe-
mos que a memória implícita funciona num plano “inconsciente” (daí que recentemente se tenha pro-
curado operacionalizar este conceito no contexto do modelo psicodinâmico) e mais independente da
atenção.
Esta distinção entre memória implícita e memória explícita é talvez um dos casos (arrisco dizer
raros), em que conceitos cognitivos encontraram uma correspondência estrutural e biológica clara.
Vejamos o caso de Henry Molaison, um homem americano com epilepsia que se submeteu a uma
cirurgia a 25/08/1953 numa tentativa de a abulir; para tal foram-lhe removidos os 2 lados do seu hipo-
campo. Após a cirurgia, que foi bem-sucedido no seu objetivo principal, H.M. passou a sofrer de uma
grave amnésia anterógrada (aquela que mantém a memória de trabalho e memória anterior à operação
intactas, mas o seu cérebro não podia absorver novos eventos à sua memória explícita) e o paciente
passou a viver o resto da vida como se estivesse a acordar um dia depois da operação. Assim, sabe-
se hoje que a formação de novas memórias explícitas é dependente de estrutura temporais medianas
como o hipocampo, mas que lesões destas estruturas deixam os mecanismos de memória implícita
intactos. Por outro lado, estas estruturas não são necessárias para a recuperação de memórias explí-
citas previamente armazenadas.

24
2.1.3.1 Aplicações clínicas
Há várias aplicações clínicas que podemos dar ao conhecimento sobre o funcionamento da memó-
ria, não só para perceber como melhor tratar doenças relacionadas com ela, como também como dar
a informação aos nossos doentes de forma a que retenham o máximo conteúdo possível.
Por exemplo, memórias vividas particulares são frequentemente reportadas depois de eventos cho-
cantes ou traumáticos, tais como acidentes de carro ou EAM, que geralmente são eventos com grande
conteúdo emocional. Re-experienciar estas memórias através de flashbaks pode ser um sintoma de
stress pós-traumático.
Relativamente ao dar informação aos doentes, há uma série de coisas que podemos fazer para
aumentar a quantidade de informação que o doente se vai lembrar depois de sair da consulta:
1. Dar a informação mais importante no princípio e no fim da consulta;
2. Dar enfase à informação mais importante;
3. Agrupar a informação em categorias com significado;
4. Tornar essa categorização explícita; por exemplo: dizer “agora vamos falar daquilo que tem
que alterar no seu estilo de vida”;
5. Usar a repetição;
6. Tornar a informação saliente para a pessoa;
7. Usar palavras simples e frases curtas;
8. Ser específico;
9. Evitar sobrecarregar a pessoa com informação.
Para além disso, ajuda se evitarmos distrações, usar informação escrita ou visual, pedir aos paci-
entes para repetir o importante por palavras deles, corrigir qualquer erro e estar atento ao impacto das
emoções durante a consulta.

2.2 MOTIVAÇÃO E EMOÇÃO


A motivação, a emoção e a forma como respondemos ao stress moldam a nossa vida de várias
formas. As emoções são motivadores poderosos, que podem chegar a fazer-nos arriscar as nossas
vidas em casos extremos, como os pais que arriscam as suas vidas para salvar um filho.

2.2.1 Motivação
A motivação é aquilo que nos leva a atuar. As pessoas são motivadas a fazer ou a deixar de fazer
algo pelos mais variados fatores. Alguns motivos são biológicos, como a fome, a sede, o sexo, a
necessidade de nos cobrirmos ou destaparmo-nos para regular a temperatura, necessidade de dormir
e descansar, necessidade de eliminar os nossos desperdícios, agressão, etc.; outros são sociais,
como a necessidade de sobressair, de criar laços, de independência, de nutrir e proteger os outros, de
influenciar e controlar os que nos rodeiam, de causar boa impressão, de organização e de se divertir.
Porém, devemos ter em atenção que esta divisão não é linear; por exemplo, a motivação sexual pode
ser tanto biológica (necessidade de reprodução) como social (necessidade de pertença e de cuidado).

25
Há várias teorias sobre motivação. A primeira é a teoria clássica de necessidades de Maslow,
que defende que cada ser humano se esforça muito para satisfazer as suas necessidades pessoais e
profissionais. É um esquema que apresenta uma divisão hierárquica em que as necessidades consi-
deradas de nível mais baixo devem ser satisfeitas antes das necessidades de nível mais alto. Segundo
esta teoria, cada indivíduo tem de realizar uma “escalada” hierárquica de necessidades para atingir a
sua plena autorrealização.
Assim, Maslow definiu uma série de cinco necessidades do ser:

Auto-
realização

Estima

Sociais

Segurança

Fisiológicas

Aqui distinguem-se as necessidades primárias (básicas) que são as fisiológicas e as de segurança


e as necessidades secundárias, que são as sociais, estima e autorrealização.

A. Necessidades fisiológicas: São aquelas que se relacionam com o ser humano como ser bioló-
gico. São as mais importantes: necessidades de se manter vivo, de respirar, de comer, de des-
cansar, beber, dormir, ter relações sexuais, etc.
B. Necessidades de segurança: São aquelas que estão vinculadas com as necessidades de nos
sentirmos seguros: sem perigo, em ordem, com segurança, de conservar no emprego etc.
C. Necessidades sociais: São necessidades de manter relações humanas com harmonia: sentir-
se parte de um grupo, ser membro de um clube, receber carinho e afeto dos familiares, amigos
e pessoas do sexo oposto.
D. Necessidades de estima: Existem dois tipos: o reconhecimento das nossas capacidades por
nós mesmos e o reconhecimento dos outros da nossa capacidade de adequação. Em geral é a
necessidade de sentir-se digno, respeitado por si e pelos outros, com prestígio e reconhecimento,
poder, orgulho etc. Incluem-se também as necessidades de autoestima.
E. Necessidades de autorrealização: Também conhecidas como necessidades de crescimento.
Incluem a realização, aproveitar todo o potencial próprio, ser aquilo que se pode ser, fazer o que
a pessoa gosta e é capaz de conseguir. Relaciona-se com as necessidades de estima: a auto-
nomia, a independência e o autocontrole.

26
Por seu lado, temos outras teorias que podem ser divididas em 3 categorias: teorias de condução,
teorias evolucionárias e teorias de incentivo.
As teorias de condução usam o conceito de homeostase para explicar a motivação. A homeostase
é o estado de equilíbrio fisiológico que o organismo tenta a todo o custo manter; o comportamento e
os sistemas fisiológicos de um indivíduo podem atuar sinergicamente com o intuito de atingir essa
estabilidade. Esta teoria é mais facilmente aplicável às motivações biológicas, tais como a fome.
Quando estamos com fome, ficamos motivados para procurar comida e comer. A teoria da condução
prevê ainda que depois de comermos deixamos de ter motivação para continuar a comer. Porém, isto
nem sempre é verdade: muitas pessoas continuam a comer mesmo depois de já não terem fome e
muitas outras pessoas recusam-se a comer mesmo quando estão esfomeadas. Como tal, esta teoria
serve apenas para algumas motivações biológicas, mas tem uma aplicação limitada no comportamento
humano.
As teorias evolucionárias defendem que as características sociais são moldadas pelos processos
de seleção natural da mesma forma que as características físicas o são: características sociais dese-
jadas maximizam a probabilidade de sucesso reprodutivo. Desta forma, pensa-se que as motivações
do tipo social, como a necessidade de ser bem-sucedido, de afiliação e de domínio, existam porque
aumentam as hipóteses de sobrevivência e reprodução. Há alguma evidência a suportar estas teorias,
como o facto de mulheres que estejam na fase fértil do seu ciclo menstrual terem tendência a dar
melhores pontuações a homens que são fisicamente mais masculinos e mais bem-parecidos. No en-
tanto, se lhes pedirmos para pontuar os homens tendo por vista uma relação de longo termo, este
efeito desaparece completamente, o que sugere que essa decisão se baseia noutros critérios como
capacidade de suportar e proteger a família.
Por fim, as teorias de incentivo enfatizam o papel dos fatores externos que desencadeiam e regu-
lam a motivação. Por exemplo, um homem pode não estar motivado para procurar uma relação até
encontrar uma pessoa que lhe seja particularmente desejável.
Estas teorias não são incompatíveis. Enquanto a teoria da condução dá enfase os estados interno
como motivações, a teoria de incentivo dá mais importância aos estímulos externos e prémios; ou seja,
dependendo das situações vamos ser mais puxados por uma ou pela outra.

2.2.1.1 Motivação e Saúde


É evidente que a motivação é relevante para a saúde. Perceber as motivações biológicas pode
ajudar-nos a tratar comportamentos anormais extremos, como a obesidade, distúrbios alimentares,
tabagismo, dependência, comportamento sexual de risco e insónia. Compreender as motivações so-
ciais pode ajudar-nos a perceber o nosso próprio comportamento e aquilo que nos motiva a trabalhar
como profissionais de saúde. Também nos pode ajudar a lidar com os comportamentos de outras
pessoas que possamos não perceber.
Se conseguirmos compreender os motivos das pessoas que as levam a ter determinado comporta-
mento, conseguimos manejar a situação de forma mais construtiva. Intervenções, como a entrevista
motivacional, foi desenvolvida para que possamos tratar patologias com uma grande componente

27
motivacional, tais como a dependência. Também pode ser usada para encorajar comportamentos, tais
como o cessar do tabagismo, exercício físico e dieta. A entrevista motivacional tem como princípio o
não julgamento do paciente ou a imposição dos nossos próprios pontos de vista; em vez disso tenta-
mos perceber a situação da pessoa que temos à frente e ajudamo-la a chegar à suas próprias conclu-
sões e motivações.

2.2.2 Emoções
A vida humana envolve uma grande variedade de emoções.
Em psicologia o termo “afeto” é usado para nos referirmos de forma geral às emoções, ao humor e
aos impulsos.
Estão descritas 6 emoções básicas comuns:

Mnemónica:
Medo Nojo Surpresa
N
MoSTRA
j
o

Tristeza Raiva Alegria


As emoções têm um grande impacto na nossa vida; no contexto dos cuidados de saúde, onde os
doentes enfrentam situações stressantes e dificuldades pessoais, as emoções têm um grande impacto
na sua atitude, recuperação e qualidade de vida. Por exemplo, uma pessoa diagnosticada com um
cancro terminal pode fazer um copping com humor e rever a forma como vê a vida, enquanto outra
com um cancro tratável pode sentir-se devastada, deprimida e estar convencida de que vai morrer.
Devido à sua complexidade e importância, acabaram por surgir muitas teorias da emoção. A maior
parte dessas teorias começa com a premissa de que as emoções têm 3 componentes: cognitivo, fisi-
ológico e comportamental.
A componente cognitiva é a experiência consciente da emoção, incluindo o significado que lhe é
conferido. Esse significado é crucial para a forma como a pessoa responde à situação. Por exemplo,
se uma mulher sentir um caroço no peito pode (A) interpretá-lo como sendo um quisto inofensivo e não
ficar muito preocupada ou (B) vê-lo como um caroço cancerígeno, ficando assim muito assustada e
ansiosa.

28
Podemos definir 3 elementos cognitivos:
1. Forma como as pessoas avaliam a situação quando ela acontece, ou significado imediato
que lhes conferem (por exemplo, se é perigoso, ameaçador, inofensivo).
2. Como as pessoas rotulam o seu estado emocional. A excitação fisiológica experienciada em
muitas emoções é muito similar. Por exemplo, a excitação do SN simpático quando estamos
ansiosos ou excitados é muito parecida, pelo que a forma como identificamos o nosso estado
emocional vai acabar por determinar a nossa experiência emocional.
3. Classificação da emoção como sendo positiva ou negativa.
Este processo de avaliação, rotulagem e classificação molda as nossas respostas emocionais futu-
ras. Os ataques de pânico são um bom exemplo disto. O pânico está associado a uma excitação
fisiológica extrema, que pertence ao mecanismo de fight or flight e que, apesar de não ser nada agra-
dável de experienciar, não é potencialmente fatal. As pessoas que experienciam o seu primeiro ataque
de pânico de uma forma catastrófica, que os classificam como sendo extremamente negativos, estão
mais suscetíveis a vir a ter distúrbio do pânico a longo termo. Além disso, se uma pessoa associar o
seu primeiro ataque de pânico a uma situação específica, na próxima vez que voltar a experienciar
essa situação vai ficar mais ansiosa, por ter medo de voltar a ter um ataque de pânico, ficando assim
mais suscetível a ter de facto um novo ataque. Porém, apesar de a componente cognitiva ser neces-
sária à emoção, não é suficiente por si só. Ou seja, as emoções raramente são iniciadas consciente-
mente – não nos podemos forçar a ter pânico ou raiva. A resposta física que acompanha a emoção é
uma parte importante da forma como nos sentimos.
A componente fisiológica é complexa e envolve o SNC, o SN autónomo e o sistema endócrino. Ela
tem início no cérebro, numa série de estruturas que no seu conjunto formam o Sistema límbico e que
controlam o SNA e o SE, além de estarem envolvidas na aprendizagem e modulação da emoção. As
emoções envolvem ainda o córtex frontal. Pensa-se que o sistema límbico providencie uma resposta
inicial rápida e que o córtex é responsável pela resposta mais lenta, secundária, e que vai regular a
resposta inicial. Isto pode explicar o porquê de primeiro “sentirmos” e só depois “pensarmos”. O papel
do córtex na inibição das respostas emocionais e comportamentais foi primariamente sugerido pelo
caso de Phineas Gage:

O CASO DE PHINEAS GAGE

PG era um homem que trabalhava nas ferrovias em 1848 quando uma explosão fez com que um tubo de
metal o atingisse na cabeça, entrando por baixo da bochecha esquerda e passando através do seu córtex
frontal. Admiravelmente, ele sobreviveu e ficou consciente momentos depois.
Depois da sua lesão, Gage passou de um homem trabalhador, gentil e educado para ser um homem
impulsivo, imprudente e que dizia muitas obscenidades.

Desde aí, os estudos têm vindo a demonstrar que o córtex orbitofrontal desempenha um papel
especialmente importante na inibição das respostas emocionais e comportamentais. Assim, lesões
dessa área cerebral têm vindo a ser associadas a aumento da raiva, ansiedade, orgulho, depressão,
choro e riso inapropriados e incapacidade de filtrar informação emocional.

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Por fim, a componente comportamental da emoção pode ser dividida em: tendência para a ação,
respostas não verbais e expressão facial. Pensa-se que a componente comportamental das emoções
seja parte do seu propósito, isto é, fazem com que nós queiramos fazer algo. As emoções intrometem-
se naquilo que estávamos a fazer e tomam prioridade. Como tal, as emoções são sinais de alarme
precoces de que há algo mais importante a que devíamos estar a prestar atenção.
Estudos mostraram que as emoções negativas levam a um estreitar do foco de atenção naquilo que
despoletou essa emoção. Por seu lado, emoções positivas levam a um alargar da atenção.
Ou seja, as emoções dirigem a nossa atenção. as respostas fisiológicas preparam o nosso corpo
para a ação.
A componente comportamental da emoção inclui ainda as expressões não verbais, como a postura
corporal, o cerrar de punhos, etc., e as expressões faciais. Estudos relativos às expressões faciais
sugerem que elas próprias podem afetar as emoções em si: pediu-se a um grupo de pessoas que
contraísse determinados músculos faciais, em algo que se parecesse com um sorriso; essas reporta-
ram mais emoções positivas em resposta a estímulos, tais como um clip de vídeo ou fotografias. De
acordo com a hipótese do feedback-facial, há sinais que viajam dos músculos faciais para o cérebro,
que os interpreta e associa a determinada emoção.

2.2.2.1 Teorias da emoção


As primeiras teorias da emoção concentravam-se na relação entre os diferentes componentes da
emoção. Num debate tipo o da galinha e do ovo, os teoristas discutem se as respostas físicas prece-
dem ou não o reconhecimento da emoção. O consenso atual é de que a avaliação da emoção dá início
à nossa experiência fisiológica, comportamental e consciente da emoção. O processo de avaliação da
emoção pode ser pré-consciente e consciente, o que se adequa à hipótese de que o sistema límbico
oferece uma resposta rápida (pré-consciente) e o córtex frontal dá uma resposta mais lenta, consci-
ente.
As teorias da emoção variam no seu
foco. Uma forma de conceptualizar a emo-
ção é dividi-la em afeto positivo e negativo;
assim, todas as emoções podem ser cate-
gorizadas, sejam elas positivas (apreciá-
veis) ou negativas (angustiantes). Numa
segunda dimensão podemos classifica-las
quanto à intensidade (alta Vs baixa). Com
isto conseguimos a divisão das emoções
que se observa no esquema à esquerda.

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2.2.2.2 Emoção e Saúde
Um bom exemplo da ligação entre emoções e saúde é a associação entre patologias psicológicas
e a depressão clinica, que aumenta o risco de morbilidade e de mortalidade.
Estudos laboratoriais revelam que qualquer emoção aguda, forte ou extrema está associada a ex-
citação fisiológica, independentemente de a emoção ser positiva ou negativa. Essa excitação física
tem efeitos potencialmente negativos na saúde ao influenciar sistemas como o CV e o imune. Porém,
os estudos indicam também que as emoções positivas têm efeitos menos negativos do que as emo-
ções negativas.
Estudos epidemiológicos em larga escala sugerem que ser feliz está associado a um melhor estado
de saúde. Pessoas com afeto positivo reportam menos sintomas e têm menos doenças, tais como
AVC’s, constipações ou acidentes; em pessoas com 55 anos ou mais, o afeto positivo está associado
a uma maior vida mais longa. Porém, a associação entre felicidade e saúde não quer dizer que a
primeira seja a causa da segunda. A melhor saúde pode levar a que as pessoas sejam mais felizes,
as pessoas felizes podem estar mais propícias a afirmar que são saudáveis, ter uma rede de suporte
melhor ou maior probabilidade de ter hábitos mais saudáveis.
Por seu lado, o papel das emoções negativas na saúde ainda é algo controverso. Há evidencias
substanciais de que a hostilidade e a depressão estejam associadas a maior risco de doença cardio-
vascular, e a ansiedade a uma mais lenta recuperação de alguma cirurgia ou doença. Algumas das
vias através das quais as emoções podem influenciar a nossa saúde estão descritos no esquema em
baixo. Os pontos importantes a reter são o facto de a emoção poder influenciar a nossa saúde através
de mecanismos sociais, comportamentais e biológicos.

As disposições emocionais são tendências para sentir determinadas emoções que fazem parte
da personalidade. Aquelas associadas com os cuidados de saúde são o otimismo e o pessimismo. O
otimismo é a disposição geral para esperar que no futuro aconteçam coisas boas; o pessimismo é
esperar que aconteçam coisas más. Elas não são mutuamente exclusivas; é possível sermos otimistas
relativamente à maior parte das coisas que nos rodeia e sermos pessimistas para um assunto em
particular.

31
O otimismo está associado a um melhor estado geral, assim como a uma melhor recuperação de
um EAM ou de uma cirurgia cardíaca. Porém, também aqui continua a ser difícil distinguir os mecanis-
mos subjacentes. Alguns estudos imunológicos sugerem que em eventos ligeira a moderadamente
stressantes os otimistas têm uma função imunológica melhor, comparativamente aos pessimistas. Po-
rém, eventos altamente desafiantes, são os otimistas quem tem a pior função imunológica. Isto pode
dever-se ao facto de os otimistas reagirem às situações stressantes tentando resolve-las; como tal,
em situações muito difíceis, tal requer muito mais força psicológica aos otimistas do que aos pessimis-
tas, que desistem logo.
Por fim, vamos falar da expressão das emoções. Por um lado, sabemos que a não expressão de
emoções fortes, a sua retenção, não é boa para a saúde. Por outro lado, já vimos que a hostilidade e
a raiva aumentam o risco de doença cardíaca.
Uma pesquisa sobre o impacto da escrita de eventos negativos ou traumatizantes na saúde revelou
que esse comportamento leva a uma melhor saúde no grupo controlo e um ligeiro (mas significativo)
aumento da saúde de pessoas com doença.
A forma como a expressão das emoções afeta a saúde ainda não é clara. Foram propostas algumas
explicações como o facto de as pessoas encontrarem algum significado naquilo que lhes aconteceu,
esperarem sentir-se melhor depois de expressarem a emoção, estarem mais abertas a falar desse
assunto com outras pessoas, etc.

2.3 PERSONALIDADE
Personalidade – características ou atributos relativamente estáveis que definem o indivíduo e o
diferenciam em termos comportamentais.
– É a personalidade, juntamente com o papel social, que molda o comportamento
do indivíduo.

Os “traços de personalidade” são aglomerados de diferenças individuais no que toca as emoções e


o comportamento observados em diferentes pessoas, em diferentes contextos. As “teorias dos traços
de personalidade” podem ser usadas para prever diferenças nos comportamentos e saúde dos indiví-
duos. Ou seja, as perspetivas dos “traços de personalidade” tentam descrever a personalidade usando
um conjunto padrão de atributos.
 Classificação de Eysenck  a pessoa como um equilíbrio entre duas características anta-
gónicas.
1. Introversão Vs Extroversão
2. Estabilidade Vs Neuroticismo (instabilidade emocional)
3. Controlo dos impulsos Vs Psicoticismo (despreocupação pelos outros; antissocial)
De notar que o termo “psicoticismo” tem um significado diferente de “psicótico”:
 Psicoticismo - Maneira, tendência de ser: ter dificuldade em controlar impulsos, o que faz com
que a pessoa se torne antissocial e tenha dificuldade em criar empatia.
 Psicótico - Quadro de sintomas com ideias delirantes.

32
 Big Five: OCEAN  o que atualmente se Abertura
Estável Consciente
usa, que considera que a personalidade re-
sulta de variações de 5 grandes traços: Hóstil Extrovertido
1. Openess to new experiences – aber-
tura à experiência: intelecto e inte- Introvertido Agradável
resse na cultura. Pessoas com alto
Inconsciente Instável
score de O poderão ter maior apreci- Fecho
ação pelas artes e ser envolvidas em trabalhos intelectuais mas também poderão
aborrecer-se mais facilmente. Pessoas com baixo score preferem familiaridade e al-
guns tipos de trabalho focados em rotina e procedimentos se calhar são mais ade-
quados. Existe pouca evidência ligando entre scores O e saúde.
– Relacionado com a curiosidade, insatisfação com o
que se tem, imprudência (alto score) Vs cautela, contentamento, prudência (baixo
score).
2. Consciência – Indivíduos altamente conscientes (score alto) são mais organizados,
cuidadosos, confiáveis, autodisciplinados e orientados para objetivos do que aqueles
com baixa consciência (score baixo). Scores altos de C estão associados, face a
desafios da vida, a maior procura de suporte e de resolução focada no problema.
Dados longitudinais também sugerem que C em infância prediz longevidade, sendo
que crianças com alto C viviam uns adicionais 2 anos comparando com crianças com
baixo C. Isto pode ser porque indivíduos com alto C têm maior probabilidade de abar-
carem em ações protetoras da saúde, como praticarem exercício físico, atenderem
a rastreios e simultaneamente terem menor probabilidade de prejudicarem a sua sa-
úde fumando.
– Podemos ser minuciosos, arrumados, perseverantes Vs negligentes,
desorganizados, desistentes.
3. Extroversão – Extrovertidos (com alto score em E) tendem a ser enérgicos, outgoing,
socialmente envolventes e assertivos. Procuram sensações e acolhem novos desa-
fios mas aborrecem-se facilmente. Em contraste, os Introvertidos (baixo score em E)
apresentam um padrão de comportamentos oposto. A extroversão está associada a
melhor bem-estar psicológico e melhor saúde física. Por exemplo, extrovertidos ten-
dem a sofrer menos de doença coronária, úlceras, asma e artrite.
– Há quem seja falador, aberto, ousado, sociável Vs calado, reservado,
prudente, retraído.
4. Amabilidade – Pessoas com amabilidade alta estão mais preocupadas com a har-
monia e valor social e com o darem-se bem com todos. Tendem a ser amigáveis,
atenciosos, prestáveis e têm uma perspetiva otimista e de confiança para com os
outros. Consequentemente, scorers altos de A tendem a ser mais “gostados” e têm

33
maior suporte social. Tal permite lidarem mais eficazmente com experiências stres-
santes. Em contraste, aqueles que têm score baixo de A tendem a desconfiar dos
outros, a serem menos amigáveis e cooperativos. Assim, A tem sido visto como o
oposto de hostilidade, que foi descoberto ter associação com a doença coronária.
– Podemos ser simpáticos, afáveis, altruístas Vs antipáticos, competiti-
vos, egoístas.
5. Neuroticismo – Pessoas com alto neuroticismo sentem emoções negativas incluindo
ansiedade, medo, raiva e culpa mais frequentemente e mais intensamente. Referem
preocuparem-se muito e chatearem-se mais vezes e mais intensamente que os ou-
tros. Em adição, referem que sentem sintomas cada vez mais intensos de doença.
Pessoas com alto N podem ser mais afetados por stress e sentirem menor suporte
social. São também mais passíveis de consumir mais álcool e fumarem. Todavia, a
investigações procurando relacionar N com medidas objetivas de saúde encontrou
poucas associações. Assim, N está fortemente associado a reportagem de sintomas
mas não a doença em si. Isto enfatiza a importância de atentar aos efeitos de N
quando se usa relatos de sintomas como medidas de efeito/desfecho.
– Relacionado com a ansiedade, insegurança, pessimismo Vs calma,
confiança, otimismo.
Como foi dito anteriormente, os “traços de personalidade” pretendem prever o comportamento do
indivíduo. Porém, o comportamento de uma pessoa depende não só da sua personalidade (ou conjunto
de traços) mas também do seu papel social e contexto em que se encontra. Assim, mesmo que co-
nheçamos uma pessoa é impossível prever o seu comportamento pois, apesar de os traços de perso-
nalidade prevalecerem, a situação altera bastante a forma como as pessoas se comportam. Exemplo:
um rapazinho agressivo e mal-educado pode comportar-se bem na consulta única e exclusivamente
por estar no médico.
Por outro lado, podemos encontrar estudos que relacionem os Big Five com a longevidade.
Relativamente à abertura à experiência existem poucas evidências, mas no que toca à conscienci-
osidade, as pessoas com maior empenho e/ou facilidade em resolver problemas supostamente viverão
mais tempo. A extroversão, quando associada ao bem-estar e a uma boa saúde física (graças a com-
portamentos saudáveis como a prática de desporto), reduz o stress e a incidência de várias doenças,
como, por exemplo, úlceras. A amabilidade, por melhoria do suporte social inerente a este traço de
personalidade, está associada a uma maior longevidade. Por outro lado, o comportamento tipo A (re-
lacionado com uma ansiedade exagerada) e competitividade estão associados a doença coronária. O
neuroticismo tem uma robusta associação à doença mental e à expressão de queixas que nem sempre
implicam doença somática, mas também.

34
2.3.1 Dimensões relacionadas com a personalidade
Locus de controlo – convicção de uma pessoa sobre a origem das coisas que lhe acontecem na
vida; atribuição da pessoa sobre a capacidade de conduzir o seu comportamento e fazer a integração
correspondente com as suas consequências. A origem percecionada pode ser:
 Interno – assumir responsabilidades, comportamentos socialmente aceitáveis, confiança nos
seus comportamentos;
 Externo – desresponsabilização, falta de empenho e “desligamento”. São os outros que con-
trolam o que lhe acontece.
 Misto
Autoconceito – crenças em relação aos seus atributos; perceção que o indivíduo tem de si próprio.
– Inclui as identidades: conteúdo do autoconceito, designadamente os vários papéis
desempenhados na sua vida; exemplo: um homem não é só a sua profissão, para além de ser enge-
nheiro, é pai, é filho, joga futebol e toca saxofone.
– inclui a autocomplexidade, que pode ser:
 Alta: a pessoa assume vários papéis
 Baixa: a pessoa centra-se num dos papéis que desempenha.
– Pode também incluir a autoestima: avaliação que o indivíduo faz acerca do seu
valor (relacionada com crenças em relação ao próprio).
Resiliência – capacidade de a pessoa retomar o seu nível de funcionamento psicológico habitual
depois de suportar contextos/ situações adversas (aptidão para recuperar tão rapidamente quanto pos-
sível da doença ou de outras adversidades); as pessoas mais resilientes tendem a ter mais autoconfi-
ança.
– não é resistir sem abanar! É antes a capacidade de depois de cair ao chão, levantar-se.

2.3.2 Modelos de desenvolvimento da personalidade

A. Modelo psicodinâmico de Freud: a personalidade estrutura-se


tendo como base as soluções de compromisso e defesas na tenta-
tiva de resolver os conflitos entre desejos e interdições.
B. Modelo cognitivo-comportamental: Tem por base os processos
de aprendizagem; a experiência e o processamento da informação
que dela resulta condicionam a construção e ativação/hipervalência de esquemas cognitivos
e aprendizagens; estes irão definir a personalidade do indivíduo.
C. Modelo biológico: personalidade determinada por genes e neuroquímica.
D. Modelo psicobiológico do temperamento e carácter (Cloninger e col.):
a. Temperamento – tendências herdáveis que predispõem para determinados comporta-
mentos e atitudes; ou seja, tem uma raiz biológica, não estando relacionado com a edu-
cação. Inclui:
i. Procura da novidade (comportamentos exploratórios, impulsividade, etc.)

35
ii. Evitamento da punição (pessimismo antecipatório, passividade, etc.)
iii. Dependência da gratificação (vinculação social, dependência da aceitação de
terceiros, etc.)
iv. Persistência (manutenção de comportamentos, debalde a frustração/fadiga).
b. Carácter – processos do desenvolvimento influenciados pelo ambiente; ou seja, tem que
ver com o que nos é trazido pela educação  psicossocial. Inclui:
i. Auto-direção (o caminho da autonomia individual)
ii. Cooperação (o indivíduo como parte integrante da sociedade)
iii. Autotranscendência (o indivíduo como parte da unidade das coisas do
mundo)
Alguns traços são fortemente influenciados por determinantes genéticos; por exemplo: extroversão/
introversão; neuroticismo/ estabilidade emocional.

2.3.3 Avaliação da personalidade

Os testes de personalidade podem ser de 2 tipos:


 Estruturados – com perguntas específicas; tem como vantagens a validade de constructo
e a quantificação/tentativa de objetividade.
1. Inventário Multifásico de Personalidade do Minnesota – MMPI
2. Inventário Psicológico de Califórnia
 Projetivos – o sujeito resolve uma tarefa não estruturada e projeta os seus desejos recal-
cados e conflitos inconscientes. Tem como vantagem a menor probabilidade de viés positivo
ou negativo; além disso, é um bom complemento para articular com informação recolhida na
prática clínica.
1. Teste de Rorschach (dizer o que perceciona quando olha para uma mancha de
tinta)
2. Teste de Aperceção Temática – TAT.

Figura 1 - Teste de Rorschach Estes testes requerem procedimentos e formação específicos, acabando por
ser efetuados por psicólogos clínicos. Assim, na maioria dos casos o médico não
tem necessidade de solicitar estes testes: usa a informação recolhida nas consultas para conhecer a
personalidade do paciente (com base nas teorias dos traços e nos modelos de desenvolvimento da
personalidade)  avaliação informal. Esta competência deve ser adquirida pelos estudantes de Medi-
cina.

36
3 TEMA 3 - DESENVOLVIMENTO HUMANO E CICLO DE VIDA: INFÂNCIA,
ADOLESCÊNCIA, IDADE ADULTA E ENVELHECIMENTO. O MORRER, A MORTE
E O LUTO EM MEDICINA

3.1 PERSPETIVAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO


3.1.1 Perspetivas psicodinâmicas clássicas
Determinismo psíquico – importância do passado no presente. Os eventos da infância como de-
terminantes do comportamento do adulto. Noção de experiência precoce, gratificação e repetição de
mecanismos de ação/pensamento.
Importância da relação com o corpo no desenvolvimento da personalidade (as diferenças sexuais,
o reconhecimento do corpo e do prazer, e o seu impacto na construção da identidade).

A perspetiva do desenvolvimento psicossexual identificado através de estádios definidos na infância


e adolescência, correspondendo (a cada um) uma forma predominante de obtenção de prazer: fase
oral, anal, fálica/edipiana, de latência e genital. Esta perspetiva foi introduzida por S. Freud, postulando
que o desenvolvimento progrediria à medida que o foco da energia libidinal da criança fosse mudando
entre diferentes áreas “erotogéneas”.
 Fase oral (1º ano de vida): a criança encontra prazer em levar coisas à boca, chuchar, morder; ou
seja, ela foca mais a atenção na boca;
 Fase anal (~2-3A): o prazer é obtido através do controlo dos esfíncteres;
 Fase fálica ou epidiana (~3-5A): a zona mais erógena são os genitais;
 Fase de lantência (~6-11A): a atividade libidinal é “adormecida”, reprimida, e a sua energia é
recanalizada para o desenvolvimento intelectual e social;
 Fase genital (>11A): no fim da adolescência, o desenvolvimento psicossexual culmina na sexua-
lidade dos adultos tal como a conhecemos, com a capacidade para o orgasmo e relações inteligí-
veis e mutuamente gratificantes. Nem todas as pessoas atingem esta fase; para Freud representa
o maior nível possível de desenvolvimento.
O excesso de gratificação ou a sua privação são vistas, nesta perspetiva psicanalítica, como
determinantes de alguns traços de personalidade. Assim, a privação do prazer na fase oral estará
associada a traços de pessimismo, dependência, necessidade de aprovação ou tendência a ex-
cessos alimentares e/ou de consumo de substâncias, como álcool. Problemas na fase anal, tais
como treino de esfíncteres demasiado precoce ou severo, podem conduzir a higiene compulsiva,
teimosia e desafio, ambivalência e indecisão, e mesquinhez. Durante a fase fálica, as crianças
devem chegar a um acordo relativamente ao seu amor pelo progenitor do sexo oposto e às suas
fantasias homicidas em relação ao progenitor do mesmo sexo; uma consequência da dificuldade
em conter tais sentimentos é a procura vitalícia pelo falhanço.

37
3.1.2 Perspetiva de E. H. Erikson – desenvolvimento psicossocial
Erikson começa a construir a sua teoria psicossocial do desenvolvimento humano repensando vá-
rios conceitos de Freud, sempre considerando o ser humano como um ser social, antes de tudo, um
ser que vive em grupo e sofre a pressão e a influência deste. Erikson optou por distribuir o desenvol-
vimento humano em fases, tal como Freud, mas o modelo de Erikson detém algumas particularidades:
1. Desviou-se o foco fundamental da sexualidade para as relações sociais;
2. Considera que o desenvolvimento acontece ao longo de toda a vida do indivíduo, desde o nas-
cimento até à morte, e não apenas até à adolescência;
3. Os estádios psicossociais envolvem outras artes do ciclo vital além da infância;
4. A cada etapa o indivíduo cresce a partir das exigências internas do seu ego;
5. Em cada estádio, o ego passa por uma crise (desafio ou conflito), e esta crise pode ter um
desfecho positivo (ritualização) ou negativo (ritualismo);
6. Da solução positiva, da crise, surge um ego mais rico e forte; da solução negativa temos um ego
mais fragilizado;
7. A cada crise a personalidade vai-se reestruturando e se reformulando de acordo com as experi-
ências vividas

Princípio epigenético (termo tomado da embriologia por empréstimo) – a resolução de cada fase
de desenvolvimento determina em muito o funcionamento psicossocial da fase seguinte. Cada estádio
é caracterizado por eventos/crises (distintos dos anteriores e dos subsequentes) que devem ser resol-
vidos satisfatoriamente para o desenvolvimento progredir sem sobressaltos, de forma adaptativa. Em
condições ideais é atingido um nível superior de funcionamento. A maioria das pessoas não atingirá
uma polaridade “positiva” perfeita, mas tenderá mais para o pólo “positivo” que para o “negativo”.

Para compreendermos esta teoria devemos ter presentes os seguintes conceitos:


o Crises “acidentais” – provocadas por eventos inesperados. Exemplo: doença, alteração do
estatuto profissional.
o Crises “normativas” – processos esperados no desenvolvimento “normal”; a cada fase cor-
respondem desafios específicos, por exemplo, a adolescência tem como desafio a construção,
ou não, de uma identidade coesa. Alterações físicas, cognitivas, instintivas, sexuais, etc. com-
binam-se para determinar uma crise interna, cuja resolução pode levar a crescimento ou a “re-
gressão” psicossocial.
– Segundo Erikson, uma “crise” não se refere à ameaça de catástrofe
mas antes a um ponto de viragem, um período crucial de aumento da vulnerabilidade e de
elevado potencial e, como tal, uma fonte ontogénica de geração de força ou mau ajuste.

Posto isto, podemos então passar a ver quais as várias crises normativas que Erikson definiu:
A. Confiança básica Vs. Desconfiança Básica – 1º ano
B. Autonomia Vs. Vergonha e dúvida – 1-3 anos
C. Iniciativa Vs. Culpa – 3-5 anos
D. Diligência Vs. Inferioridade – 5-11 anos
E. Identidade Vs. Confusão de identidade/papéis – 11-21 anos

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F. Intimidade Vs. Isolamento – 21-40 anos
G. Produtividade Vs. Estagnação – 40-60 anos
H. Integridade Vs. Desespero - +60 anos

Embora estes desafios sejam de natureza psicológica, saúde e doença podem influenciar a forma
como a pessoa é capaz de os resolver – por exemplo: deficiências físicas podem afetar o desenvolvi-
mento da autonomia da infância. Da mesma forma, a saúde das pessoas é afetada pelas suas expe-
riências de cada conflito de desenvolvimento – por exemplo: comportamentos de risco nos adolescen-
tes, como parte da exploração da identidade.

3.1.2.1 Confiança básica Vs. Desconfiança Básica (1º ano)


A criança desenvolve um sentido de confiança nas outras pessoas quando os seus cuidado-
res providenciam cuidado de confiança e afeto
Fase da infância inicial (corresponde à fase oral freudiana). A atenção do bebé volta-se para a
pessoa que lhe proporciona conforto, que satisfaz as suas necessidades e ansiedades num intervalo
de tempo suportável – a mãe. Assim, estabelece-se a primeira relação social do bebé, e a falta que o
bebé sente da mãe obriga-o a lidar com aquilo a que Erikson denomina de força básica – a esperança:
quando o bebé se apercebe que a mãe não está ali, ou está a demorar a voltar, cria a esperança que
ela volte. Quando o bebé vivencia positivamente estas descobertas, e quando a mãe confirma as suas
expectativas e esperanças, surge a confiança básica – ou seja, a criança tem a sensação de que o
mundo é bom e que as coisas podem ser reais e confiáveis. Por outro lado, quando as expectativas
não são correspondidas num tempo suportável, desenvolve- se o sentimento de desconfiança básica.
Erikson viu a situação da alimentação como o cenário para estabelecer o equilíbrio correto entre a
confiança e a desconfiança – o elemento crítico no desenvolvimento da confiança é o cuidado sensível,
compreensivo e consistente.

3.1.2.2 Autonomia Vs. Vergonha e dúvida (1-3 anos)


A criança desenvolve um sentido de autonomia e dependência derivado da aquisição de capa-
cidades físicas. O falhanço leva a vergonha e dúvida.
A criança já tem algum controlo dos seus movimentos musculares, e direciona a sua energia para
as experiências relacionadas com a atividade exploratória e a conquista da autonomia. Porém, também
começa a perceber que não pode usar a sua energia exploratória à vontade e que tem que respeitar
certas regras sociais. Na aprendizagem do controlo, seja do autocontrolo ou do controlo social, temos
o nascimento da força básica – vontade, manifestada na livre escolha e é o precedente essencial para
o crescimento da autonomia. A restrição ou crítica em excesso nesta fase por parte dos pais pode
levar a dúvidas a respeito de si próprio, ao passo que pedidos para além da capacidade da criança
(como aprender a ir à casa de banho cedo demais) poderão desestimular as iniciativas dela para o
desenvolvimento de novas tarefas, gerando o sentimento permanente de vergonha e dúvida das suas
capacidades e potencialidades. Assim, os pais devem dar à criança a sensação de autonomia e, ao

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mesmo tempo, estar sempre por perto, prontos para a auxiliar nos momentos que as tarefas por ela
pretendidas ultrapassam as suas capacidades.

3.1.2.3 Iniciativa Vs. Culpa (3-5 anos)


Criança começa a ter algum controlo sobre o seu ambiente e desenvolve um sentido de pro-
pósito. Esforços para exercer demasiado poder resultam em desaprovação e culpa.
A criança já conseguiu a confiança (com o contacto inicial com a mãe) e a autonomia (com a ex-
pansão motora e o controlo) – a combinação confiança-autonomia dá à criança o sentimento de deter-
minação, essencial para a iniciativa. Com a alfabetização e a ampliação do seu círculo de contactos,
a criança adquire o crescimento intelectual necessário para apurar a sua capacidade de fazer planos,
realização e responsabilidade (fase em que as crianças pedem aos adultos que lhes atribuam respon-
sabilidades - arrumar a casa, ajudar com as tarefas…). Como tal, é importante que os adultos deixem
as crianças ajudar em algumas atividades, mas deixem claro que há coisas que elas ainda não podem
fazer. Quando a criança se apercebe de que realmente existem coisas que estão (por agora) fora das
suas capacidades, ela contenta-se em realizar uma espécie de “treino” (através de jogos, dramatiza-
ções, interpretação de várias personalidades nela mesma, brincando), conferindo-lhe uma realidade
intermediária. Erikson alerta para o perigo da personificação – quando a criança, ao interpretar/testar
várias personalidades, para tentar escapar à frustração de ser incapaz de fazer algumas coisas, exa-
gera na fantasia de ter outras personalidades.

3.1.2.4 Diligência Vs. Inferioridade (5-11 anos)


Criança necessita de lidar com as novas exigências sociais e intelectuais e desenvolve senti-
mentos de competência.
Segundo Erikson, este é um período marcado pelo controlo da atividade (física e intelectual) no
sentido de equilibra-la às regras do método de aprendizagem formal, já que o principal contacto social
se dá na escola ou noutro meio de convívio mais amplo do que o familiar. Com a educação formal,
além do desempenho das funções intelectuais, a criança aprende o que é valorizado no mundo adulto,
e tenta-se adaptar, ou seja, a criança aprende a valorizar e reconhece que podem existir recompensas
a longa prazo das suas atitudes atuais, despertando nela o interesse pelo futuro (fase em que criança
começa a dizer o que “quer ser quando crescer”). Nesta fase, inicia-se o interesse por instrumentos de
trabalho e a criança sente que adquiriu competências para se dedicar e concluir uma tarefa, e sente
que adquiriu habilidade se essa tarefa for realizada satisfatoriamente. É este prazer de realização que
dá forças ao ego para não regredir; contudo, se falhas seguidas ocorrerem, o ego pode regredir à
mesma.

3.1.2.5 Identidade Vs. Confusão de identidade/papéis (11-21 anos)


O adolescente necessita de desenvolver uma identidade pessoal forte. O falhanço conduz a
confusão do seu papel e falta de sentido do próprio.

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Fase em que Erikson mais se debruçou. O autor afirma que o adolescente precisa de segurança
frente a todas as transformações (físicas e psicológicas), que ele encontra na formação da sua identi-
dade, que foi construída pelo seu ego em todos os estágios anteriores. Esse sentimento de identidade
expressa-se numa série de questões: sou diferente dos meus pais? O que sou? O que quero ser? E,
respondendo a todas estas questões, o adolescente pretende encaixar-se num dado papel na socie-
dade (escolha do par, vocação, objetivos). Assim, toda a preocupação do adolescente em encontrar
um papel social provoca uma confusão de identidade e a opinião alheia faz com que o adolescente
modifique constantemente as suas atitudes, remodelando a sua personalidade. Se neste período o
adolescente se sentir incapaz de encaixar no mundo adulto, tal pode conduzir a uma regressão. Con-
tudo, se a confusão de identidade tiver um bom desfecho, isso possibilitará ao adolescente alcançar a
estabilização da identidade.

3.1.2.6 Intimidade Vs. Isolamento (21-40 anos)


O adulto necessita de relações intimas fortes. O falhanço conduz a solidão.
Ao estabelecer uma identidade definitiva e bem fortalecida, o indivíduo estará pronto para uni-la à
identidade de outra pessoa, sem se sentir ameaçado – existe agora a possibilidade de associação com
intimidade, parceira e colaboração, associando-se um ego ao outro. Quando isso não acontece, ou
seja, quando o ego não é suficientemente seguro, a pessoa irá preferir o isolamento à união, pois terá
medo de compromissos, numa atitude de preservar o seu ego frágil, o que não é negativo desde que
ocorra por um período de tempo curto, possibilitando à pessoa amadurecer um pouco mais o seu ego.
Erikson aponta como risco desta fase o elitismo – ou seja, quando há formação de grupos exclusivos,
onde se limita muito o tipo de ego com o qual se relaciona. Quando um ego é estável, ele é minima-
mente flexível e consegue relacionar-se com um conjunto variável de diferentes personalidades.

3.1.2.7 Produtividade Vs. Estagnação (40-60 anos)


O adulto necessita de criar e nutrir coisas que o “mantenham vivo” (Ex: crianças, mudanças
sociais), de forma a atingir um sentimento de realização e utilidade.
Nesta fase, o indivíduo tem a preocupação com tudo o que pode ser gerado, desde filhos até ideias
e produtos, e dedica-se à geração e ao cuidado com o que gerou, porque existe uma necessidade
inerente ao homem de transmitir/ensinar. Caso esta transmissão de “ensinamento” não ocorra, seja
através de um filho, um sócio, uma empresa ou uma pesquisa, o indivíduo irá sentir que tudo o que fez
e construiu não valeu a pena (não teve um porquê), uma vez que não há forma de dar seguimento. A
produtividade consiste no compromisso para além de si próprio e do seu parceiro, com a família, o
trabalho, a sociedade e as gerações futuras; geralmente é um passo crucial no desenvolvimento na
faixa dos 30-40 anos. Se, por outro lado, as pessoas de meia-idade fracassarem na capacidade gene-
rativa, elas são dominadas pelo tédio e empobrecimento interpessoal (estagnação).

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3.1.2.8 Integridade Vs. Desespero (+60 anos)
Adultos mais velhos necessitam de se sentir realizados quando refletem sobre as suas vidas.
O falhanço conduz a arrependimento e desespero.
Esta é a fase em que o ser humano reflete e revê a sua vida (o que fez, o que deixou por fazer), e
pensa no significado das suas realizações. Esta retrospetiva pode ser vivenciada de diferentes formas
– a pessoa pode entrar em desespero ao ver a aproximação da morte (encarando isso como o fim de
tudo) ou, por outro lado, pode ter a sensação de “dever cumprido” (sentimento de dignidade, integri-
dade, sabedoria).

EM SUMA…
Segundo Erikson, durante o ciclo vital construímos aquilo que ele denomina por plano de vida, um
roteiro segundo o qual as crises do ego se desenrolam de certa maneira, que parece ter sido determi-
nada pela infância, pelas primeiras crises.
Como tal, à luz desta perspetiva, podem-se identificar alguns marcos:
 Construção da confiança básica.
 Iniciativa (onde ficam os ideais e os propósitos).
 Diligência – período onde, pela escolarização, a criança de insere no mundo social e lida
com os papéis que este envolve.
 Adolescência – fase em que são revivenciados todos os conflitos das fases anteriores.
 Produtividade – força propulsora da passagem da cultura humana.

Em suma, E. Erikson reformulou a teoria do desenvolvimento psicossexual em termos psicossoci-


ais, valorizando as interações entre fatores biológicos, psicológicos e socioculturais. Enfatizou que o
desenvolvimento do Eu resulta, não só das dinâmicas intrapsíquicas, mas das interações da pessoa
em crescimento e das influências sociais/culturais. Além disso, esta teoria do desenvolvimento humano
abrange todo o ciclo vital, enquanto as teorias freudianas se centravam no desenvolvimento mais pre-
coce.

3.1.3 A Infância

3.1.3.1 Relação precoce e vinculação


O apego ou vinculação é o laço afetivo forte sentido em relação a outra pessoa.

Descrevem-se várias formas de vinculação. Essas foram identificadas usando-se uma técnica de
pesquisa denominada “Situação estranha”, que consiste no seguinte: sequência de 8 episódios que
dura menos de meia hora; durante esse período a mãe deixa por duas vezes o bebé numa sala não
familiar: na primeira vez com um estranho; na segunda vez deixa o bebé sozinho e o estranho volta
antes da mãe. A mãe então incentiva o bebé a explorar e a brincar novamente, e dá conforto se o bebé

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necessitar. O interesse principal é a resposta do bebé de cada vez que a mãe volta. Com isto, identifi-
caram-se 4 tipos de vinculação:
1. Vinculação segura (a mais frequente): a criança chora ou protesta quando separada do cui-
dador principal, que procura ativamente quando ele retorna. Estes bebés usam a mãe como
a base segura, afastam-se dela e exploram o ambiente, mas retomam ocasionalmente para
recuperar a segurança. Normalmente são cooperativos e relativamente isentos de raiva.
: geralmente associada a uma mãe que responde ra-
pidamente às necessidades físicas e emocionais da criança. Ajuda a criança a lidar com o
stress.
2. Vinculação evitante: a criança raramente chora quando separada do cuidador principal e
evita o contato quando este retorna. Com tendência a ficar zangados e não estendem as
mãos em momentos de necessidade. Não gostam de ser pegados ao colo, mas gostam
ainda menos quando são postos no chão.
: geralmente associada a uma mãe que não responde quando a criança
está stressada. Tenta que a criança pare de chorar e incentiva a exploração e a indepen-
dência.
3. Vinculação ambivalente/resistente: a criança fica ansiosa quando o cuidador principal se
afasta, ficando extremamente contrariada durante a sua ausência (mas pode ser confortada
por um estranho) e, no retorno do cuidador, tanto procura como evita o contacto dele.
Quando ela volta, eles demonstram a sua ambivalência procurando contacto com ela ao
mesmo tempo em que resistem ao contacto. Estes bebés exploram pouco e são difíceis de
consolar.
: geralmente associada a uma mãe que é inconsistente:
varia entre responder rápida e apropriadamente em algumas ocasiões, e não responder
noutras. Como tal, a criança está preocupada que a mãe esteja disponível antes de a poder
usar como base segura.
4. Vinculação desorganizada/desorientada: a criança, depois de ser separada do cuidador prin-
cipal, apresenta comportamentos contraditórios quando ele retorna. Os bebés com este pa-
drão parecem ser desprovidos de uma estratégia coesa para lidar com o stress da situação
estranha, apresentando comportamentos contraditórios, repetitivos ou mal direcionados (Ex:
procurando a proximidade com o estranho em vez da mãe, podem receber a mãe efusiva-
mente quando ela retorna, mas depois afastam-se ou aproximam-se sem a olhar).
: geralmente associada a uma mãe cujo comporta-
mento é negativo, desmontado, inapropriado, com papeis mal definidos; por vezes a criança
é maltratada.

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O modelo funcional de vinculação de um bebé relaciona-se com o conceito de Erikson sobre confi-
ança básica:
 A vinculação segura reflete confiança.
 A vinculação insegura reflete desconfiança.
Bebés com vinculação segura aprenderam a confiar não apenas nos seus cuidadores, mas na sua
própria capacidade de conseguir o que precisam. Assim, bebés que choram muito e cujas mães res-
pondem, acalmando-os, tendem a ter vinculação segura, e as mães de bebés com vinculação segura
tendem a ser sensíveis e compreensivas. Além disso, a vinculação segura promove o desenvolvimento
do sistema límbico (envolvido na regulação emocional) e também resulta em melhor competência so-
cial e da relação a pares, mais autoconfiança, melhor função cognitiva, física e psicológica.
Por seu lado, a vinculação insegura, resultante de negligência ou da falta de estimulação, pode
levar a subdesenvolvimento em determinadas regiões do cérebro.

Consequências da vinculação:
A segurança da vinculação pode afetar as competências emocional, social e cognitiva – quanto
mais segura for a vinculação de uma criança ao adulto que a educa, mais fácil parece ser para a
criança desenvolver boas relações com os outros.
 Crianças até 2 anos:
 Vocabulário maior e mais variado
 Interações mais positivas com amigos
 Tentativas de aproximação amigável têm maior probabilidade de sucesso
 Entre os 3-5 anos:
 São mais curiosas e competentes
 Têm mais autoconfiança
 Melhor relação com outras crianças
 Interação mais positiva com os professores
 Maior capacidade para resolver conflitos
 Na adolescência:
 Amizades mais estreitas e estáveis

Dada a importância da vinculação, é legítimo questionar se tudo está perdido se uma vinculação
segura não se desenvolver ou se não for possível. Diversas pesquisas indicam que as crianças ado-
tadas podem desenvolver vinculação segura com os seus pais adotivos e que a grande maioria tam-
bém terá um certo grau de resiliência, que lhes permitirá recuperar, em certa medida, da negligência
ou abusos que sofreram.

Foram desenvolvidas diversas teorias para o desenvolvimento da vinculação:


 A teoria psicanalítica de Freud propõe que a mãe se torna o objeto de amor primordial na
vida do bebé, porque ela satisfaz a necessidade da criança pelo alimento e o prazer oral.
 A teoria da aprendizagem argumenta que a perceção positiva da mãe é formada porque o
bebé aprende que ela satisfaz as suas necessidades, ao mesmo tempo que a mãe aprende
que satisfazer as necessidades do bebé o acalma.

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 A teoria etológica argumenta que embora a amamentação seja importante na construção da
relação mãe-bebé, esta não depende apenas da satisfação da fome e da prestação do prazer
oral; caso contrário, como justificaríamos a forte vinculação entre a criança e o pai? A visão
de Bowlby, suportada pela pesquisa de Harlow, mostra que a ligação é também formada com
base no conforto; ele argumenta que os seres humanos têm um conjunto de comportamentos
de vinculação destinados a manter o contacto próximo com um cuidador – nos bebés isto
inclui o chorar pela sua atenção e sorrir no seu regresso.

3.1.3.2 Desenvolvimento da linguagem


Aprender a falar é uma das capacidades mais intelectuais que uma criança desenvolverá. É não só
importante para a comunicação como também para o desenvolvimento de outras capacidades.
No que toca a aquisição desta capacidade, os investigadores debatem-se se será algo inato, her-
dado, ou aprendido, derivado da interação com o ambiente. Daqui surgem diversas teorias:
 Alguns investigadores, como Skinner, baseiam-se no comportamentalismo, enfatizando a impor-
tância do condicionamento operante e da aprendizagem observacional. Daqui advém duas teorias:
 Teoria clássica da aprendizagem – as crianças aprendem a linguagem através do condi-
cionamento operante: os bebés pronunciam sons aleatoriamente e os seus cuidadores re-
forçam os sons que se parecem com a fala de um adulto, dando sorrisos, atenção e elogios,
e a criança repete esses sons reforçados.
 Teoria da aprendizagem social – os bebés imitam os sons que ouvem os adultos emitirem
e, novamente, são estimulados a fazê-lo. A aprendizagem de palavras depende do reforço
seletivo (ex.: a palavra “gatinho” é reforçada quando o gato aparece).
 Nativismo – propõe que os seres humanos têm capacidade inata para a aquisição da linguagem.
– Esta teoria foi desenvolvida por Chomsky, que argumentou que as teorias acima
descritas, englobadas no comportamentalismo, não pode por si só explicar totalmente esse de-
senvolvimento, uma vez que as combinações das palavras são tantas e tão complexas que não
podem ser adquiridas por imitação específica e reforço. Além disso, a teoria da aprendizagem não
considera as maneiras imaginativas que as crianças usam para dizer coisas que nunca ouviram.
– Assim, ele defende que os bebés aprendem a falar tão naturalmente como aprendem
a andar. Ele sugeriu que um dispositivo de aquisição da linguagem (DAL) inato programa o cérebro
da criança para analisar a língua que ouve e compreender as suas regras. A sustentação da po-
sição nativista vem da habilidade dos que recém-nascidos têm para diferenciar sons similares
(sugerindo que eles nascem com mecanismos percetivos que são sintonizados de acordo com as
propriedades da fala), do facto de quase todas as crianças dominarem o seu idioma nativo simi-
larmente, de acordo com a faixa etária, e do facto de o cérebro do ser humano ser maior de um
lado (geralmente o esquerdo), sugerindo que um mecanismo inato para processar o som e a lin-
guagem possa estar localizado no hemisfério maior. No entanto, a abordagem nativista não explica
precisamente como tal mecanismo opera e não justifica como algumas crianças adquirem a lin-
guagem mais rápida e eficientemente do que outras.

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 Interacionismo – posição que parece ser uma ponte entre as perspetivas opostas de Skinner
(condicionamento operante e aprendizagem observacional) e Chomsky (nativismo). Define a lin-
guagem como um processo combinado entre competências inatas, desejo de se conectar com o
outro, estimulação ambiental e social e reforço dos seus esforços.
– Evidências para a perspetiva interacionista surgiram da constatação que a co-
municação adulto-criança é muito diferente da comunicação adulto-adulto:
 Maior proximidade física
 Contacto visual mais prolongado
 Expressões faciais e gestuais exageradas
 Uso de “maternês” (motherese) – o termo “maternês” é um nome alternativo para o discurso
“adulto-criança”, que é uma versão alternativa do discurso “adulto-adulto”. Tem como par-
ticularidades o facto de ser:
1. Mais curto
2. Lento
3. Menos complicado: maior uso do presente, uso de nomes próprios em vez de pronomes
(Ex: “o nariz do pai” em vez de “o meu nariz”),
4. Entoação exagerada
5. Maior uso de repetições

Distinguem-se ainda várias fases do desenvolvimento da linguagem. Antes dos bebés usarem pa-
lavras, eles demonstram as suas necessidades e sentimentos através de sons que evoluem do choro
para murmúrios e balbucios, seguido da imitação acidental e depois da imitação deliberada. O “balbu-
ciar” é um sistema generalizado de vocalizações – a natureza providencia às crianças sons que elas
podem vir a precisar, os cuidadores gradualmente moldam o uso desses sons de forma a se tornarem
apropriados para a sua linguagem. É importante que os pais mostrem interesse pelos balbucios da
criança, já que isso indica à criança que ela participa no sistema social; a comunicação dos pais com
o bebé pode ainda ajudá-lo a perceber que os sons têm significados.
 Aos 12 meses (8-18 meses): idade média na qual os bebés costumam dizer a 1ª palavra. O
bebé começa a usar os sons conforme um significado; porém, o significado de uma palavra
nem sempre é claro (Ex: a palavra “orelha” tanto pode significar “a minha orelha” como “a
orelha dói”). Os pais podem ajudar as crianças a aprenderem palavras ao comentarem aquilo
que estão a fazer e usando gestos e expressões para dar pistas.
 Aos 2 anos a criança inicia o “discurso telegráfico”, que contém sobretudo nomes e verbos.
As palavras são usadas para expressar desejos.
 Aos 3 anos há uma rápida progressão para as frases completas. Para além de usarem mais
palavras por frase, começam a usar pronomes possessivos (“meu”), negativos (em vez do
simples “não”), modificadores (adjetivos como “grande” e advérbios como “rápido”). Começa
a usar a linguagem para expressar pensamentos e emoções.
 Aos 5 anos a criança já tem um vocabulário que inclui centenas de palavras e são capazes
de perceber frases relativamente complexas.

46
3.1.3.3 Desenvolvimento intelectual
Teoria dos estadios cognitivos de Piaget
Nesta teoria o pensamento é tido como um processo de construção resultante da interação com o
meio físico e a necessidade intrínseca de equilíbrio (enquanto função biológica).
O centro da teoria de Piaget é a ideia de que a mente de uma criança não é uma versão miniatura
da mente adulta, à espera de ser preenchida com informação. A mente da criança desenvolve-se até
à adulta em 4 discretos estadios, sendo que em cada um desses a mente da criança desenvolve uma
forma de operação; apesar de cada um poder ser subdividido em sub-estadios, o desenvolvimento
acontece sempre na mesma ordem e a ardem dos estadios é universal. Da infância à adolescência,
as operações mentais desenvolvem-se da aprendizagem que se baseia em simples atividade sensorial
e motora para o pensamento, lógico e abstrato.
1. Estadio sensoriomotor - o bebé experimenta o mundo através dos seus sentidos. Não “pensa”
uma vez que vive no momento sem conceitos abtratos. Porém, podem exibir comportamentos
inteligentes, como puxar um cobertor para chegar a um brinquedo que não está ao seu alcance.
Antes dos 8 meses as crianças não percebem o conceito de “permanência do objeto” – cons-
ciência de que as coisas que não estão no seu campo de visão permanecem lá.
2. Pensamento pré-operatório - a aquisição da linguagem acarreta uma mudança fundamental
para o desenvolvimento intelectual, porque a linguagem é simbólica, ou seja, as palavras são
símbolos usados para nos referirmos a coisas reais. Ligada a esta capacidade de pensamento
simbólico, um grande passo a partir do estágio sensório-motor é a capacidade de imaginar
coisas, que se reflete nas brincadeiras (ex: pegar num pau e fingir que é uma espada). Nesta
fase as crianças são egocêntricas. São incapazes de ver as coisas na perspetiva da outra pes-
soa; por exemplo, num jogo de escondidas podem pensar que se não conseguem ver as outras
pessoas, então os outros também não a conseguem ver.
3. Pensamento operatório concreto - as crianças começam a aprender a usar os processos
lógicos; podem manipular objetos reais para resolver problemas (como usar os dedos para
contar), adquirem a capacidade para classificar/agrupar as coisas (Ex: cenouras, laranjas, ma-
çãs e ervilhas podem ser classificadas em fruta/vegetais ou cor-de-laranja/verde) e aprendem
o princípio da conservação (ou seja, que moverem coisas do sítio, espalhá-las e rearranjá-las
não as altera). Nesta fase as crianças adquirem a capacidade de se colocar no lugar do outro.
4. Pensamento operatório formal – a criança torna-se capaz de raciocinar não só com base nos
objetos físicos reais mas também em hipóteses e proposições (Ex: x2+4=13; quanto é o x?).
durante esta fase o pensamento torna-se multi-dimensional (considera várias hipóteses em vez
de considerar apenas a solução mais óbvia para o problema) e há desenvolvimento da meta-
cognição (capacidade de pensar em pensar) e da introspeção (capacidade de pensar sobre as
emoções).

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O modelo de Piaget foi criticado por se considerar que:
 o desenvolvimento da inteligência é mais suave e gradual do que saltos em degrau;
 Piaget parece ter subestimado as capacidades das crianças e sobrestimado as dos adultos
(muitos adultos não são capazes de usar o raciocínio operacional formal)
 Estudos recentes mostram que as crianças pre-operacionais são capazes de se colocar no
lugar dos outros.

Teoria sociocultural de Vygotsky


O princípio fundamental da teoria de Vygotsky é de que o desenvolvimento cognitivo requer intera-
ção social, reforçando a importância da cultura para a aprendizagem – num nível mais amplo a cultura
ensina às crianças o que devem pensar e a forma como o fazem.
Comparando com Piaget, Vygotsky deu mais ênfase à importância da linguagem na aprendizagem
e argumentou que a linguagem é fundamental para a resolução colaborativa de problemas.
Vygotsky argumenta ainda que a aprendizagem ocorre na “zona de desenvolvimento proximal”.
Essa zona é a diferença entre o que uma criança pode fazer sozinha e o que ela pode fazer com a
orientação ou colaboração adequadas; com essa ajuda, as crianças podem executar tarefas que se-
riam incapazes de realizar sozinhas e, se essa ajuda for
ajustada continuamente, permitirá que a
criança se torne mais independente na re-
solução de problemas.

Como vimos à pouco, as crianças pequenas (2-3anos) são egocêntricas, ou seja, não conseguem
ver as coisas pela perspetiva de outra pessoa. Além disso, também carecem de “teoria da mente”: não
percebem que as outras pessoas têm pensamentos, emoções e perceções diferentes das suas. Como
tal, as crianças destas idades usam palavras como “quero”, que refletem o desenvolvimento do conhe-
cimento do “eu” interior. Com o tempo, essa compreensão é aplicada a outras pessoas e as crianças
passam a entender que podem deduzir os estados mentais de outas pessoas  começam a ter “teoria
de mente”. Isso permite-lhes não só criar empatia com os outros, como também lhes permite perceber
que podem fingir que estão doentes para evitar ir à escola.
A própria perceção da criança acerca do que é “estar doente” varia com a idade. A informação
fornecida à criança de acordo com a sua idade aumenta a sua compreensão da doença e da recupe-
ração.
 2-4 anos – Fenomenismo: Sabe que há objetos que a podem magoar, mas não faz ideia dos
mecanismos envolvidos;
 4-7 anos – Contágio: pelo contacto com pessoas doentes ou objetos.
 7-9 anos – Contaminação: por contacto com pessoas doentes; pode ser visto como um castigo
por mau comportamento;
 9-11 anos – Internalização: a doença está “dentro” do corpo mas deve ser causada por fatores
externos.

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 11-16 anos – Fisiológico: doença causada por mau- funcionamento de órgãos ou sistemas; e pode
ser devido a infeções.
 >16 anos – Psico-fisiológico: fatores psicológicos como stress e cansaço podem estar na origem
de doença.

3.1.4 A Adolescência
A adolescência é um período de múltiplas adaptações – fenómeno biopsicossocial que envolve
mudanças físicas, cognitivas e sociais. As alterações psicológicas major são o ajuste ao tamanho e
forma corporal, perceber a sexualidade, o ajuste a novas formas de pensar, a luta pela maturidade
emocional e pela independência económica.
A idade média do início da puberdade é os 13 anos, e começa 1-2 anos mais cedo para as raparigas
do que para os rapazes.

No adolescente verifica-se:
 Imaturidade dos mecanismos cerebrais de controlo da impulsividade
 Imaturidade do córtex pré-frontal  dificuldade na atenção
 Maturação cerebral progressiva
 Processos motivacionais distintos do adulto
 Necessidade de maior e imediata recompensa
 Procura permanente de novidade

O cérebro do adolescente é diferente do da criança e do adulto – na adolescência ocorrem mudan-


ças no desenvolvimento de áreas que envolvem a emoção e as funções cognitivas de nível superior.
A amígdala é uma região do cérebro que lida com o processamento de informação sobre emoções
e o córtex pré-frontal é especialmente importante para as funções cognitivas de nível superior. A amíg-
dala desenvolve-se mais rapidamente do que o córtex pré-frontal, o que significa que a região do cé-
rebro responsável por frear os comportamentos impulsivos e de risco ainda está em construção du-
rante a adolescência  imaturidade do córtex pré-frontal.
Assim, acontece uma ativação precoce de sentimentos fortes e carregados, com uma relativa falta
de “direção” ou de habilidades cognitivas para modular emoções fortes e motivações. Essa caracterís-
tica do desenvolvimento pode ser responsável pelos problemas do tipo colocar-se em situações de
risco.
A teoria de Piaget defende que o pensamento operatório/lógico-formal se desenvolve durante a
adolescência; ou seja, é nesta fase que os adolescentes se tornam capazes de compreender princípios
abstratos e usar a lógica proposicional. Assim, o pensamento torna-se multidimensional e os adoles-
centes adquirem a capacidade de ponderar/imaginar várias situações, pressupondo-se que desta me-
lhoria da capacidade para tomar decisões resulta maior capacidade de:
 Identificar cursos de ação
 Identificar as consequências de cada alternativa

49
 Avaliar a conveniência de cada consequência
 Avaliar a probabilidade de cada resultado

Assim, através da combinação de todas essas informações, espera-se que o adolescente seja ca-
paz de tomar as melhores decisões.
Embora já tenham desenvolvido a metacognição e a introspeção, que deveriam ajudar o adoles-
cente a perceber melhor os outros, os adolescentes são egocêntricos. De notar que o egocentrismo
dos adolescentes é diferente do egocentrismo descrito para a fase pré-operacional, porque as crianças
com egocentrismo pré-operacional não o conseguem evitar, enquanto que o adolescente consegue.
Assim, embora os adolescentes tenham maior capacidade de decisão, o seu egocentrismo pode dis-
torcer a perceção que têm do risco.
A combinação da metacognição, introspeção e o egocentrismo pode levar a sentimentos de existir
uma “plateia” imaginária a observar as suas ações; isto porque os adolescentes podem sentir que o
seu comportamento e a sua aparência são o foco da atenção de toda a gente, podendo levá-los a
desenvolver uma “fábula pessoal” (crença de que todas as suas experiências são novas e únicas), o
que pode ser sobretudo perigoso se aplicado a comportamentos de risco e se adotarem um “otimismo
irrealista” acerca dos riscos associados à sua saúde (“não vou engravidar”, “não me vou magoar”).
Erikson destaca a importância de os adolescentes experimentarem diferentes identidades e com-
portamentos, porque, de facto, uma certa “dose de risco” é adequada para o desenvolvimento do ado-
lescente. Os adolescentes têm fácil acesso a potenciais comportamentos de risco (álcool, drogas,
sexo), e alguns destes comportamentos irão ser importantes na sua socialização na vida adulta. O
papel dos pais e dos adultos deve ser um papel de influência, compreensão, orientação, paciência,
independência, liberdade e responsabilidade.
Os jovens adolescentes estão geralmente insatisfeitos com a sua relação com o médico, sobretudo
por se preocuparem com a falta de privacidade e confidencialidade. Por isso, é importante estar atento
a estas preocupações e lembrar os pacientes que as informações trocadas durante a consulta são
confidenciais.

3.1.5 A Vida adulta


Não existe uma linha clara que separe a adolescência da idade adulta. As diferenças entre
estas duas fases têm sido atenuadas pelo fato de os jovens adultos estudarem até mais tarde, atra-
sando o momento em que adquirem a sua independência financeira e a estabelecem as suas próprias
famílias.
Depois das mudanças rápidas e profundas sofridas na infância e na adolescência, a idade adulta é
um período relativamente calmo. No entanto, podem ocorrer mudanças importantes, nomeadamente
no que diz respeito a alteração nos papéis sociais e adaptação a grandes eventos de vida (Ex: ter
filhos, mudar de casa, mudar de emprego, lidar com a morte de familiares), que podem gerar stress e
ter repercussões físicas e psicológicas.

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Considerando os estágios do desenvolvimento de Erikson, o 7.º estádio (adulto) é marcada pelo
conflito Produtividade vs. Estagnação. Nesta fase os adultos precisam de estar ativamente envolvi-
dos no ensino e orientação da próxima geração (necessidade de se “sentir útil”)  Produtividade. Se,
por outro lado, as pessoas de meia-idade fracassam na capacidade produtiva, elas são dominadas
pelo tédio e empobrecimento interpessoal  estagnação.
A crise da meia idade (Elliot Jaques) é um termo usado para descrever uma forma de insegurança
sofrida por alguns indivíduos que estão a passar pela “meia-idade”. Esta crise pode ser desencadeada
por vários fatores relacionados com essa época de vida: morte dos parentes, casos extraconjugais,
andropausa, menopausa, sensação de envelhecimento, insatisfação com a carreira profissional e a
saída dos filhos de casa.
Sintomas e comportamentos da crise de meia-idade:
 Procura de um sonho ou objetivo de vida indefinido;
 Sentimento de remorsos por metas não cumpridas;
 Desejo de voltar a sentir-se como quando era jovem;
 Procurar relacionar-se com pessoas muito mais jovens;
 Adoção de comportamentos próprios de outros períodos de vida;
 Cuidado exagerado com a aparência – tentativa de parecer mais jovem;
 Vontade de passar mais tempo sozinho ou apenas com determinadas pessoas;
 Depressão.
No final desse período pode ocorrer uma transformação na dinâmica familiar, conhecida como “ni-
nho vazio”, que corresponde ao momento no qual os filhos saem de casa e os pais têm de se reorga-
nizar frente à nova realidade – se alguns casais vivem essa fase como uma segunda lua-de-mel, outros
entram em crise pessoal e/ou conjugal porque o casal não se consegue reconhecer na conjugalidade,
e mantinham-se juntos apenas enquanto um casal parental, pelo que quando essa função é dissolvida
não há qualquer outro ponto de intersecção.

3.1.6 O Envelhecimento
No envelhecimento concretamente as coisas já não são nada desprezáveis e as pessoas confron-
tam-se claramente com o facto de não poderem faltar muitos anos de vida. Isso não é habitualmente
o fim do mundo para quem se confronte com essa realidade. O facto de nos confrontarmos com a
nossa própria mortalidade faz com que certas recordações possam ter um peso ou um valor diferente.
Na perspetiva de Erikson, vão levar a uma discussão entre estes dois elementos da dicotomia que
são, por um lado, a sensação de integridade e por outro a sensação de desespero. Alguém que chega
aos seus 60 e tal, 70 anos vai inevitavelmente olhar para o seu percurso de vida e, se não tiver ten-
dência ou razões para denegar coisas que se passaram, vai ter a noção:
 do que é que fez e do que é que não fez e se conseguiu concretizar aquilo que eram os seus
objetivos mais importantes;
 se está contente com aquilo que conseguiu fazer e se isso se faz sentir ou, por outro lado, se
está tão triste com o facto de não ter conseguido fazer as coisas que queria ou com o facto
de as coisas que fez não fazerem sentido que pode entrar em desespero.
Quando fazemos este tipo de avaliação aos 20, 30 ou 40, se não houver doença grave, temos a
ideia que ainda podemos refazer muita coisa e que ainda temos muito tempo para fazer aquilo que
não tivemos muito tempo para fazer até agora.

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Preconceitos ligados ao envelhecimento
 A inteligência diminui com a idade. Quando falamos das capacidades intelectuais dos idosos
devemos ter presente que a inteligência pode ser dividida em 2 categorias: inteligência crista-
lina, que reflete a experiência e a memória a longo-prazo; inteligência fluida, que reflete a velo-
cidade de processamento e a memória a curto-prazo. Os testes de QI na verdade testam ape-
nas a “inteligência fluida”, que de facto regride nos idosos. Porém, a inteligência resulta da
conjugação das duas componentes, pelo que está errado dizer que há uma diminuição da inte-
ligência (geral), nos idosos; a inteligência cristalina apenas regride em idades muito avançadas
ou em algumas patologias.
 A maioria dos idosos têm demência. A prevalência de demência nas populações acima dos 65
anos não vai além dos 5-7% no mundo ocidental. Pode parecer que é uma prevalência grande,
mas ao mesmo tempo quer dizer que 90% ou mais das pessoas com idade acima dos 65 anos
não têm este problema.
 A maioria dos idosos tem depressão. Podemos pensar “uma pessoa de idade mais avançada
sofre mais perdas, confronta- se com o facto de ter muito menos tempo de vida, está naquela
posição de negociar integridade versus desespero… toda esta gente está deprimida”. Isto não
é verdade. A maior parte das pessoas consegue negociar esta fase de uma maneira saudável
e com um nível apreciável de bem-estar. Do ponto de vista epidemiológico, podemos afirmar
que a maior parte não tem depressão (prevalência de 12-15%). Quando falamos do desespero
no ciclo vital de Erikson, é importante ressalvar que desespero não é igual a depressão! De-
sespero neste sentido é o risco para, eventualmente, nos deprimirmos. Se olhar para a minha
vida, atual e passada, e achar que as coisas que aconteceram não fazem sentido para mim,
posso estar em risco de me ir abaixo com humor depressivo, agonia, falta de energia, pensa-
mentos negativos e tudo aquilo que constitui a depressão. É uma posição existencial, uma
posição do própria face à sua vida, não é um diagnóstico clinico.
 Os idosos são um fardo. Errado! Devem ser vistos como um recurso!!
 Os idosos não têm vida sexual. Alguns de vós podem ter mais dificuldade nas consultas em
perguntar diretamente a alguém de 60, 70 anos alguma coisa em relação à sua sexualidade. A
verdade é que as pessoas continuam a viver a sua sexualidade, embora tenham que o fazer
de uma maneira muito diferente. Para muitas pessoas pode ser uma sexualidade que passa
mais pela parte afetiva e menos pela sexualidade física, para outras pode ser uma sexualidade
em que se tem que lidar com algumas dificuldades como a diminuição da líbido ou a disfunção
eréctil. Certo é que a vida sexual continua a ser importante para muitas pessoas de idade.

Estabilidade e mudança da personalidade durante o envelhecimento


Modelo SOC (seleção, otimização, compensação): Freund & Baltes
Existe uma dinâmica de ganhos Vs perdas: o envelhecimento, como outras fases do desenvolvi-
mento, implica umas e outras. As trajetórias pessoais são muito variáveis, assim como a perspetiva
subjetiva sobre ganhos Vs perdas.

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O modelo SOC concetualiza processos gerais de adaptação/“mastery” ao longo da vida, com apli-
cabilidade específica no envelhecimento; estes processos podem ser assim sistematizados:
֎ Seleção: definição de objetivos e resultados adequados; seleção por escolha Vs seleção ba-
seada na perda (por exemplo, pela incapacidade).
֎ Otimização: aquisição, manutenção e aperfeiçoamento de mecanismos úteis/recursos para
melhorar o funcionamento e alcançar objetivos – processos que promovem ganhos.
֎ Compensação: processos que contrabalançam perdas. Particularmente importante no enve-
lhecimento, pelas perdas de saúde, sensoriais, cognitivas, sociais. Trata-se, por exemplo, de
usar um aparelho auditivo para continuar a ouvir ou uma cadeira de rodas para continuar a
sair.
Vejamos o seguinte exemplo: havia um pianista famoso, Anton Rubinstein, que viveu e atuou du-
rante muitos anos. Com a idade, achou que estava a perder algumas capacidades, pelo que começou
a selecionar mais o repertório, tocando menos peças, dando-lhe oportunidade para tocar melhor as
que escolhia tocar, otimizando o desempenho. Assim, tinha alguma preocupação em escolher essas
mesmas peças de maneira a que conseguisse compensar aquilo que era a perda natural de alguma
velocidade e agilidade devida à idade.
Se formos ver se a personalidade muda no envelhecimento, não há uma resposta clara. Pode-
mos dizer que, de uma maneira geral, a personalidade é estável. Há estudos que apontam para algu-
mas modificações mas não há uma evidência muito clara em relação a isto. Aquilo que temos a certeza
atualmente é que pessoas que tenham um tipo de personalidade em que a sua capacidade de adap-
tação seja maior (“personalidades mais saudáveis”) têm uma maior capacidade de envelhecer com
sucesso. Isto tem a ver com caraterísticas como a resiliência, com o fato de as pessoas terem uma
autoestima apreciável ou um autoconceito maior.
Também os traços de personalidade são importantes para explicar a autoestima e o autoconceito
nesta fase da vida. Se uma pessoa tem um locus de controlo mais interno, acha que aquilo que define
mais o seu destino está dependente de si. Porém, verifica-se uma tendência para que o locus de
controlo deixe de ser tão interno (é um aumento relativo da “externalidade”), embora tal não ocorra
abruptamente. Pensa-se que esse fenómeno estará associado a mudanças biológicas que afetam a
competência e a saúde (Ex: artroses, necessidade de usar bengala), relembrando a pessoa que não
controla por completo os declínios que possam acontecer no seu desempenho. Mas devemos ter em
atenção que não é uma coisa que deixa de ser interna para passar a ser externa! É uma caraterística
da pessoa.

Conceitos importantes
 Envelhecimento ativo (OMS, 2002): processo de otimização de oportunidades para a saúde, par-
ticipação e segurança, aumentando da qualidade de vida no envelhecimento. Pressupõe pessoas
competentes, capazes de vida autónoma e independente. Conceito em discussão.
 Envelhecimento saudável (OMS, 2015): processo pelo qual se desenvolve e mantém a capacidade
funcional que permite o bem-estar nas pessoas mais velhas. A OMS (2015) distingue capacidade

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intrínseca (herança genérica, características pessoais e de saúde) e ambiente, determinando a
funcionalidade do indivíduo e, por decorrência, o seu bem-estar.
Surpreendentemente (ou não) há pouco consenso nas definições e na operacionalização de con-
ceitos como envelhecimento saudável, bem-sucedido, ativo, etc.

3.2 O MORRER E A MORTE EM MEDICINA


A morte é uma coisa certa, inclusive em medicina. Não é algo muito falado, mas é algo com que
todos temos que confrontar. Podemos olhar de uma maneira mais ou menos fria sobre a morte.
A tendência atual é o distanciamento de tudo que está ligado ao morrer. Antigamente já era assim:
o médico estava mais ligado à ciência, enquanto as enfermeiras estavam mais ligadas à caridade,
auxiliando o doente na fase final da sua vida. No entanto, as coisas não estão assim tão distanciadas.
O médico tem também função de acompanhar quem está a morrer e ajudá-lo. Isto põe-se de uma
maneira um pouco diferente nos tempos mais recentes. Até meados do séc. XX, era muito mais fre-
quente morrer em casa do que morrer no hospital. Isto porque não havia tantos hospitais, tantas ajudas
em termos de tratamento para as doenças e, portanto, era muito mais frequente as pessoas morrerem
nas suas casas. Isto tem duas consequências:
 Por um lado, os médicos não se confrontavam tanto com a questão da morte.
 Por outro lado, a morte era vista como algo natural/normal pela sociedade.
Atualmente verifica-se o contrário. Os doentes passam a morrer mais no hospital – medicalização
da morte. A morte passa a estar mais “escondida” na sociedade atual, o que contribui para torná-la
num assunto incómodo, principalmente para os médicos, que são “treinados” para salvar vidas, não
para apoiar a morte.

3.2.1 Doença terminal


As respostas à doença terminal são diferentes de entre os indivíduos, existindo vários desafios que
lhe estão associados, relacionados com a doença, o autoconceito e os aspetos sociais.
Doença Autoconceito Social
1. Sintomas da doença/in- 1. Visão do próprio como do- 1. Depressão/ansiedade que levam ao
capacidade ente isolamento
2. Tratamento contínuo e 2. Visão do próprio como do- 2. Preparação para a perda com isola-
efeitos adversos ente terminal mento dos outros
3. Procedimentos invasivos 3. Alterações físicas devido à 3. Declínio físico e mental que leva a
4. Decisões quanto a conti- doença ou tratamento (Ex: vergonha e preocupação com o im-
nuar o tratamento tremores, dor) pacto nas outras pessoas
5. Ameaça de morte 4. Alterações na aparência 4. Medo de ser um peso para os outros
5. Alterações do estado mental 5. Sentimentos de raiva, ressentimento
(Ex: capacidade cognitiva) para com as pessoas saudáveis
Para além do impacto da própria doença terminal no doente, o seu isolamento resulta também da
dificuldade de comunicação entre profissionais de saúde e doentes acerca deste assunto. O simples
facto de se evitar este assunto agrava o peso negativo que possa estar a representar para as pessoas,
aumentado os pensamentos negativos e contribuindo para o isolamento. Outro conceito importante é

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o de falso otimismo. Os doentes podem ter um falso otimismo acerca do seu prognóstico, o que, apesar
de os ajudar a curto prazo, torna a aceitação da morte mais difícil. Também tem importância noutros
aspetos:
 Adesão ao tratamento: se um tratamento é eficaz no início, este gera falso otimismo que leva
o doente a querer aumentar o tratamento, indo depois abaixo se existe uma recidiva.
 Ânimo do doente.
 Adaptação ou não a esta situação de doença terminal.
Neste tipo de doentes é necessário muitas vezes recorrer aos cuidados paliativos. Estes têm como
objetivo promover a qualidade de vida, aliviando os sintomas de uma doença quando esta não pode
ser curada. Não se refere apenas ao sofrimento físico, mas também aquilo que é a dor interior, dor
emocional e/ou aquilo que é o tratamento e prevenção de depressão. Mas não são só os doentes que
sofrem com as situações de doença terminal. Também os profissionais de saúde estão sujeitos a
grande desgaste emocional, principalmente aqueles que trabalham na área oncológica, tendo que se
confrontar diariamente com a morte dos seus doentes.
Em suma, ao trabalhar com doentes terminais é importante:
 Falar com os doentes sobre a doença e o tratamento e ouvir as suas preocupações;
 Tentar abordar os medos do doente e reduzir a sua ansiedade;
 Envolver os doentes nas decisões sempre que possível;
 Se o doente estiver zangado, não tomar como pessoal;
 Empatizar mas evitando expressões como “Eu sei, eu compreendo”;
 Ajudar o doente a aproveitar o tempo que resta da melhor maneira.

Falando agora mais concretamente à cerca das respostas à doença terminal, a psiquiatra Eliza-
beth Kübler-Ross escreveu e teorizou as várias fases pelas quais os doentes terminais passam face à
morte. Ela sugere que existem 5 fases de adaptação à eminência de morte:
1. Choque e Denegação - o doente apercebe-se da realidade de que se está a morrer. Tem a ver
com as estratégias de coping, o doente usa a denegação como forma de se adaptar ao facto que
está a morrer.
2. Revolta – Resulta de frustração sobre a morte e costuma ser dirigida à pessoa mais próxima. O
doente pensa "Porquê eu?". É importante perceber que esta raiva é direcionada ao fato de estar
a morrer e não às pessoas à sua volta.
3. Negociação - O doente está no hospital e tenta “negociar mais algum tempo”, mostrar que con-
tinua vivo, tentando lutar desta maneira contra aquilo que é a doença. Ex: O doente que pede no
meio dos tratamentos ao médico para ir ao casamento do filho. Nesse dia parece que recupera
as forças e sai muito bem do hospital para depois voltar completamente exausto.
4. Depressão - esta é a fase em que o doente percebe que não tem mais tempo e não há nada
que possa fazer. É a fase da perda, em que se tem que fazer o luto pessoal e sob a expectativa
de que se ia melhorar.
5. Aceitação - o doente aceita a realidade, acabando por encontrar alguma paz neste processo.

Mnemónica: Choque De ReNDA


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Atualmente sabemos que as pessoas com doença terminal não passam por estadios emocionais
distintos ou consecutivos. Os doentes podem nem sequer sentir nenhum destes sentimentos ou ir
alterando de uns para os outros. Muitos doentes nunca chegam à fase de aceitação, o que resulta em
ansiedade e medo da morte. Esta última ocorre principalmente associada a uma série de fatores, como
por exemplo, existência de dificuldades físicas muito grandes, dor dificilmente controlada, depressão
ou uma fraca satisfação pela sua vida.

3.2.2 A “morte boa”


Ter uma “morte boa” implica o doente estar fisicamente confortável, psicologicamente preparado
(em paz consigo próprio) e capaz de morrer da melhor forma possível. O médico pode contribuir de
forma ativa para que a morte seja assim. No entanto, há algumas questões que se põem nestas situ-
ações:
 Até que ponto é que alguém que está a morrer pode ainda ter controlo sobre alguma coisa?
 Até que ponto é que tem a capacidade de participar nas decisões que têm de ser tomadas: decisão
de com quem quer estar, o que quer contar às pessoas, de quem se quer despedir, a dignidade
que pode ter no momento de despedida…
 A oportunidade de poder refazer coisas que foram mal feitas, com pessoas dos seus vários círcu-
los sociais…
É importante frisar que isto não significa eutanásia! É possível ter uma morte boa sem que isso
signifique eutanásia. Apesar de o termo “eutanásia” ser muitas vezes referido como uma morte boa, o
conceito “morte boa” significa criar as condições para que o doente possa enfrentar da melhor maneira
a sua morte.

3.3 LUTO EM MEDICINA


A morte de alguém envolve perda, tristeza e luto. A “perda” acontece quando uma pessoa ou objeto
a quem estamos emocionalmente ligados se torna permanentemente indisponível. A perda é uma parte
integrante da doença terminal – o doente perde a capacidade de funcionar fisicamente, ocupacional-
mente e em casa. A “tristeza” é uma reação normal à “perda”. Envolve reações emocionais (raiva,
culpa, ansiedade, tristeza, desespero), físicas (alterações do apetite e do sono, queixas somáticas) e
sociais (alterações do funcionamento social, incapacidade de trabalhar). O “luto” é o processo através
do qual as pessoas se adaptam à “perda”.
A forma como nos entristecemos e como fazemos o luto depende muito dos costumes culturais e
das regras.
Após a perda, a maioria das pessoas experiencia sintomas em 4 níveis distintos:
 Emoção – é preciso ter em consideração a parte emotiva: saudade, depressão, ansiedade,
culpabilidade, distanciamento, às vezes até alívio. Às vezes as pessoas sentem alívio num
luto, por muito que gostasse da pessoa. Este sentimento surge em relação a uma sensação

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de peso, mal-estar e grande sofrimento. É um alívio mais associado ao mal-estar que a
doença causava do que propriamente face à pessoa que morreu.
 Respostas físicas – Como fadiga, alterações do sono, inquietação ou vulnerabilidade à
doença. São muitos os casos em que num casal morre um elemento e o outro morre passado
pouco tempo.
 Respostas cognitivas – Com diminuição da atenção ou da memória, desconfiança, preo-
cupação, busca de significados. Também há coisas que, não sendo propriamente psicóticas,
podem roçar esse tipo de semiologias, como a sensação de desrealização, a sensação de
quase sentir a presença da pessoa que partiu, e fenómenos que não são alucinatórios, mas
nos quais quase ouvem claramente a voz da pessoa que morreu  pseudo-alucinação.
 Comportamentos – Alterações a este nível com predomínio de irritabilidade, choro ou inca-
pacidade de “funcionar”.
Físicos Comportamentais Emocionais Cognitivos
 Fadiga  Irritabilidade  Depressão  Falta de concentração
 Alterações do padrão  Inquietação  Ansiedade  Diminuição do espectro
de sono  Procura  Hipervigilância de atenção
 Dor  Choro  Raiva/hostilidade  Perda de memória
 Alteração do apetite  Afastamento social  Culpa  Confusão
 Problemas digestivos  Incapacidade de de-  Saudade  Preocupação
 Dispneia sempenhar o seu papel  Solidão emocional  Falta de esperança
 Palpitações  Sentir-se desligado ou  Falta de futuro desfeito
 Inquietação distante  Procura de significado
 Aumento da vulnerabili-  Distúrbios de identi-
dade à doença dade

Apesar de haver variações individuais na forma como as pessoas fazem o luto, a verdade é que
85% dos indivíduos acabam por se ajustar até 2 anos depois da morte da outra pessoa. A duração e
severidade da tristeza associada à perda vão depender de:
 Vinculação: o tipo de relação que se tem com a pessoa que partiu.
 Tempo de luto antecipatório – às vezes há lutos que se prolongam durante muito tempo porque
quem está ao lado, o familiar, tem que se confrontar com a morte eminente e, se o trabalho
psicológico não começar a ser feito na altura, isto pode ser um fator de risco para que as cosias
se compliquem quando o verdadeiro luto vem.
 Circunstâncias da morte e da perda – morte súbita, por acidente, morte por erro médico.
Isto são tudo fatores de risco para um luto mais prolongado e complicado.
A perda de um ente querido está associado a aumento do risco de doença e mortalidade, particu-
larmente nos adultos mais velhos que perdem o seu esposo. Isto deve-se a uma variedade de fatores
nomeadamente ao stress, à depressão e ao estilo de vida.

Mais tarde, Parkes/Payne (1999) descreveram as 4 fases do luto:


1. Entorpecimento (Numbness)
2. Ânsia pela pessoa perdida (Yearning)
3. Desorganização e desespero (Disorganizing and despair)
4. Reorganização (Reorganized behaviour/Recovery)

57
Aquilo que é classificado como normal durante o luto também depende de teoria para teoria. W.
Worden (1991) descreve 4 tarefas do luto:
1. Aceitar a realidade da perda;
2. Trabalhar para além da dor e sofrimento – Aqui também é englobado o sofrimento não dire-
tamente relacionado com a perda da pessoa. Ex1: alguém que está a viver um luto do pai,
marido, etc. com quem tinha uma relação conflituosa. Isto vai ter um “peso”, vai gerar culpa
se, por exemplo, nalgum momento da sua vida desejou a morte dessa pessoa. Ex2: mulher
violada;
3. Adaptação ao ambiente em que já não existe o falecido;
4. Seguir em frente – Muitas vezes isto envolve um distanciamento emocional.

Sobre o luto existe ainda o modelo duplo (Stroebe et al, 2007), que defende que o stress e coping
associados ao luto são parte de um processo dinâmico que envolve alterações na direção da perda ou
da restauração. Quando as pessoas se orientam em direção à perda, vão estar preocupadas com a
sua perda, pensar e sentir falta do falecido, ter comportamentos como procurar lugares que a façam
lembrar a pessoa que morreu, etc. por seu lado, ao se orientar para a restauração, a pessoa vai ajustar
o seu estilo de vida, lidar com a sua vida do dia-a-dia, construir uma nova identidade, distrair-se de
pensamentos dolorosos e levar a cabo tarefas e papeis que antes estavam atribuídos à pessoa que
faleceu.

Apesar de tudo, o luto é uma coisa normal, pelo qual todos nós temos que passar. No entanto, não
é normal não existir luto quando há uma perda de alguém com quem temos uma relação próxima.
Existem assim vários tipos de luto patológico:
 Atrasado ou ausente – a pessoa é incapaz de fazer o luto. Isto pode ser consciente, quando a
situação da pessoa que ficou lhe dificulta o processo de luto; por exemplo, mãe não se permite
fazer luto para proteger os filhos. Também pode ser inconsciente, quando a pessoa não acredita
que a outra morreu; por exemplo, quando não houve confirmação, como acontece no caso dos
soldados que desaparecem na guerra. Isto pode ser denominado como “ausência de luto”. As
reações de luto atrasado podem ser desencadeadas por outras perdas que aconteceram muito
depois da morte em questão; por exemplo, um divórcio ou outra perda não relacionada.
 Exagerado – o processo de luto é exagerado e intenso. Nestes casos a experiência da pessoa
que está em luto pode culminar numa patologia psiquiátrica grave; por exemplo, depressão clí-
nica ou um estado de ansiedade agudo.
 Crónico – Prolonga-se muito no tempo, podendo durar alguns meses ou mesmo até alguns anos.
Como tal, a pessoa é incapaz de seguir em frente no processo de luto e adaptar-se à vida sem
o falecido.
– surge mais frequentemente associado a mortes súbitas ou inesperadas, quando a
pessoa que morreu era uma criança e/ou havia um grande nível de dependência na relação. O

58
risco também está aumentado em pessoas que têm história de problemas psicológicos, falta de
suporte ou stress adicional como dificuldades financeiras.
– Cerca de 15% das pessoas sofrem este tipo de luto.
 Mascarado – a morte da pessoa é mascarada pelo desenvolvimento de sintomas somáticos ou
físicos que surgem na pessoa em luto sem essa se aperceber que estão relacionados com a
perda da outra pessoa. São muitas vezes sintomas físicos que replicam aqueles sentidos pelo
falecido e surgem frequentemente aquando de aniversários da morte do mesmo.
 Não reconhecido/Sancionado – as pessoas reagem a perdas ou doenças da mesma forma que
reagiriam à morte; por exemplo, Ex: pessoas em que é feito o diagnóstico de neoplasia, que é
emputada, tem um aborto ou uma dependência física, que agem como se tivesse morrido alguém
próximo, passando por uma fase de luto tão intensa como se alguém tivesse mesmo morrido. É
uma coisa exagerada, sendo um luto sancionado do ponto de vista social, tornando difícil à pes-
soa que está em luto o fazer abertamente e obter suporte

A intervenção psicológica no processo de perda parece ter pouca influência na depressão, luto ou
sintomas físicos, com exceção das pessoas com alto risco de vir a desenvolver luto patológico. O
suporte parece ajudar, embora não impeça a tristeza. Ou seja, o processo de luto após a perda de
alguém próximo é obrigatório, sendo que o suporte e a intervenção podem ajudar a confortar a pessoa,
mas nunca são suficientes para “resolver” o sentimento de perda.

EM SUMA…
4 respostas ao luto 5 fases de D. terminal 4 fases de luto 4 tarefas de luto
1. Emocionais 1. Choque e denegação 1. Entorpecimento 1. Aceitar a realidade da perda
2. Físicas 2. Revolta 2. Ânsia pela pessoa 2. Trabalhar para além da dor e
3. Cognitivas 3. Negociação perdida sofrimento
4. Comportamentais 4. Depressão 3. Desorganização e de- 3. Adaptação ao ambiente em
5. Aceitação sespero que já não existe falecido
Mnemónica: Choque De 4. Reorganização 4. Seguir em frente
ReNDa

59
4 TEMA 4: COMPORTAMENTOS, SAÚDE E DOENÇA. STRESS E COPING.
ADAPTAÇÃO À DOENÇA E À INCAPACIDADE. REAÇÕES PSICOLÓGICAS À
HOSPITALIZAÇÃO E AOS CUIDADOS DE SAÚDE. EFEITO PLACEBO, ADESÃO
TERAPÊUTICA.

4.1 STRESS
O termo “stress” teve origem na mecânica onde era usado para des-
crever forças internas num sistema causadas por pressões externas, tais
como pressão da água ou do vento numa ponte. Com o tempo a mesma
palavra passou a ser usada para muitas outras coisas, podendo significar
situações negativas, sentir pressão, tensão, emoção negativa. No contexto da psicologia, o stress
acontece quando a situação é avaliada pela pessoa como algo que ultrapasse os seus recursos para
lidar com a mesma.
Um dos autores mais importantes para o estudo do stress foi Lazarus (Modelo de Lazarus and
Folkman), por volta dos anos 70 e tal. Nas palavras dele, o stress "representa a relação entre carga
sentida pelo ser humano e a resposta psicofisiológica que é desencadeada pelo indivíduo".
Stress = Carga sentida × Resposta psicofisiológica desencadeada
No entanto, devemos tem em atenção que stress é ansiedade. O stress não é doença! Está pró-
ximo, tem alguma relação com aquilo que é a ansiedade normal mas não é sinónimo da ansiedade
patológica.

Tal como a emoção, também o stress tem muitos componentes e é importante distinguir entre “even-
tos stressantes” e “respostas ao stress”.
Os eventos stressantes são acontecimentos internos ou externos que desencadeiam as respostas
ao stress. Por exemplo, se nos sentirmos stressados porque estamos a fazer um exame, podemos
dizer que esse exame é uma fonte de stress externa. Por seu lado, se estivermos stressados porque
um amigo nos pede ajuda para algo mas temos que estudar para um exame, então a nossa fonte de
stress vai ser interna (conflito de desejos). Podemos ainda dividir as fontes de stress consoante o tipo
ou duração, tais como eventos agudos (Ex: morte de um amigo), fonte crónica de stress (Ex: cuidar de
um parente doente), maçadas diárias (Ex: problemas em chegar ao trabalho), fatores stressantes trau-
máticas (Ex: ser assaltado) ou choque entre papeis (Ex: balanço entre o trabalho em casa e no em-
prego).
Relacionados com os eventos stressantes temos os acontecimentos de vida (life events), que são
ocorrências graves ou pelo menos significativas que acontecem na vida das pessoas e que aumentam
a probabilidade de haver circunstâncias de doenças na sua própria vida. Neles incluímos coisas como
morrer alguém próximo, divorciar-se, mudar de emprego, um filho sair de casa, etc. devemos ter em
atenção que inclui tanto acontecimentos negativos como positivos! Por exemplo, uma mudança de
casa pode dever-se a uma decisão de partir para outra cidade em busca de outro desafio profissional.
Todos eles (negativos e positivos) representam mudanças que podem contribuir para o aumento do
stress e implicam capacidade de nos adaptarmos a circunstâncias novas.

60
Geralmente os acontecimentos de vida são medidos através de uma checklist de diferentes tipos e
eventos stressantes aos quais são atribuídas diferentes pontuações, sendo que a morte do cônjuge é
o pior (100 pontos) e uma violação minor da lei (Ex: multa de estacionamento) o evento mais baixo (11
pontos); pontuação ≥ 300 significa alto risco de ficar doente (80%), entre 299 e 150 corresponde a uma
probabilidade de 50% de adoecer dentro de 2 anos, e menos de 150 pontos conferia pouco risco/sus-
cetibilidade. Uma das coisas que saiu deste trabalho pioneiro e que depois se tornou numa evidência
científica foi a relação entre o “viver acontecimentos complicados” e um risco maior de ter doença ou
de ter crises de alguma determinada doença. Por exemplo, uma pessoa com artrite reumatoide é pro-
vável que tenha crises depois de passar por um acontecimento de vida complicado; da mesma forma,
pode haver alguma relação entre sofrer um acontecimento de vida complicado e ter um início de uma
depressão ou de outro tipo de doença mental.

Tabela 1 - Escala de stress de Holmes e Rahe; lista de acontecimentos de vida stressantes que contribuem para a doença

Por seu lado, as respostas ao stress são as várias formas que temos de responder a uma fonte
de stress. Essas podem ser divididas em (1) cognitivas, como ter pensamentos repetitivos; (2) emoci-
onais/afetivas, como tristeza; (3) fisiológicas, que inclui as respostas do SNA, hormonal e imunitária;
(4) comportamental, como começar a beber ou a fumar. Curiosamente, não há grande associação
entre as, isto é, uma pessoa pode ter uma grande resposta física ao stress mas não evidenciar resposta
emocional.
Falando agora especificamente da resposta fisiológica ao stress, ela pode ser dividida em duas
fases:
A. Resposta fight or flight, que envolve a porção simpática do sistema nervoso autónomo, sendo uma
resposta rápida; é a primeira onda de resposta. Vai ativar diretamente vários sistemas orgânicos

61
preparando-os para a ação imediata.
Para tal, a medula da glândula suprar-
renal é estimulada a produzir adrena-
lina e noradrenalina que vão estimular
o coração e os pulmões e desviar a
energia disponível das funções que
não são necessárias para atuação
imediata, como a produção de saliva,
digestão e reprodução.
B. Via endócrina do eixo hipotálamo-hi-
pófise-suprarrenal (eixo HHS), que é
uma resposta mais lenta; é a segunda
onda de resposta. Nesta via o hipotá-
lamo é estimulado a produzir fator de
Figura 2 - Sistema Nervoso Autónomo
libertação da corticotropina, que vai
ativar uma série de eventos endócrinos que culmi-
nam na libertação de cortisol e outras hormonas a
partir do córtex suprarrenal. O cortisol é uma hor-
mona esteroide crítica na resposta ao stress.
Vai causar aumento da glicémia e da taxa
metabólica, aumentando a capacidade de
resposta ao fight or flight. Além disso, in-
fluencia também a pressão sanguínea, o
sistema imunitário e a resposta inflamató-
ria. Normalmente, o eixo HHS trabalha em
feedback negativo, pelo que os níveis de cor-
tisol devem regressar ao normal após 40-60 mi-
nutos do estímulo stressante; no entanto, pe-
ríodos prolongados de stress podem re- Figura 3 - Eixo Hipotálamo-Hipófise-Suprarrenal
sultar em desregulação do eixo, com consequente elevação crónica dos níveis de cortisol. A longo
prazo isto traz efeitos negativos, como a acumulação de gordura abdominal e perda de massa
óssea e muscular.
H. Seley propôs que a resposta física ao stress pode ser compreendida através da Síndrome de
adaptação geral, que inclui 3 estadios:
1. Fase de adaptação/alarme – o organismo confronta-se com aquilo que é o desafio e responde,
preparando-nos para o fight or flight.
2. Fase de resistência – o organismo tenta resolver o stress e voltar ao normal, mas se o fator de
stress se mantiver, continuamos num estado fisiologicamente ativo.

62
3. Fase de exaustão – se o fator permanecer indefinidamente é nesta fase que a pessoa fica mais
sensível à inclusão de uma determinada doença; vai haver exaustão, doença e, eventualmente,
morte.
Atualmente sabe-se que a resposta física ao stress vai depender de vários fatores, nomeadamente:
 Natureza da situação: se é nova, imprevisível ou incontrolável. Estudos sugerem que situações
novas estão associadas a respostas físicas mais fortes; por exemplo, saltar de um avião é muito
mais stressante para uma pessoa que o está a fazer pela primeira vez do que para um paraque-
dista profissional. Por seu lado, sentir que controlamos a situação permite-nos reagir menos: es-
tudos demonstram que a falta de controlo está associada a mais stress e um impacto mais nega-
tivo na saúde. Assim, é importante dar poder de decisão aos doentes e encorajá-los a ter o máximo
controlo possível. Porém, isso de nada lhes serve se a situação for de facto incontrolável; aliás,
incentivar alguém a procurar o controlo de algo absolutamente incontrolável pode resultar em
ainda mais stress sobre a pessoa.
 Características da pessoa, que determinam a sua responsividade ao stress; é determinada pela
natureza do indivíduo e pelo cuidado que os pais lhes providenciam nos primeiros tempos de vida.

Para além das componentes nervosa autónoma e hormonal, a resposta fisiológica ao stress inclui
ainda uma parte imune, que é afetada pelas duas anteriores; o SNSimpático aumenta a atividade do
sistema imune, particularmente dos grandes linfócitos granulocíticos; por seu lado, o eixo HHS suprime
alguma atividade imunitária pela produção de cortisol, que tem um efeito antinflamatório, reduzindo
tanto o nº de leucócitos como a produção de citocinas.
Diferentes tipos de eventos stressantes vão causar alterações diferentes no sistema imune:
A. Eventos stressantes curtos (Ex: fazer uma apresentação oral)  resposta imune aguda, que
rapidamente retorna aos níveis basais;
B. Evento stressante contínuo por alguns dias (Ex: estudar para os exames)  afeta mais alar-
gadamente o SI, com ↑ produção de citocinas, o que significa que o corpo vai estar mais
apto a responder à infeção. Isto pode explicar o porquê de a maioria dos alnos adoecer após
a época de exames, já que vão ter uma redução abrupta dos seus níveis de citocinas.
C. Eventos stressantes crónicos (Ex: stress do trabalho)  impacto negativo em quase todos
os aspetos do sistema imunitário; a pessoa vai estar mais propensa a ficar doente, particu-
larmente se já for vulnerável (idosos) ou se tiver patologia de base.

4.1.1 Modelo transacional do Stress (Lazarus & Folkman)


Atualmente sabe-se que a forma como respondemos ao stress depende da interação entre a pessoa
e o ambiente. Lazarus e Folkman defendem que uma pessoa sente stress quando avalia a situação
como algo que ultrapasse as suas capacidades de lidar com a mesma. Assim, os processos de avali-
ação são centrais na forma como as pessoas respondem a eventos stressantes. Na teoria de Lazarus
e colegas definem-se 3 processos de avaliação:
1. Avaliação primária: as exigências de uma situação são avaliadas como sendo benignas, desa-
fiantes ou stressantes/ameaçadores;

63
2. Avaliação secundária: a pessoa avalia os seus recursos e capacidades para lidar com a situa-
ção;
3. Reavaliação: a pessoa reconsidera a situação e tenta lidar com a mesma. Isto pode levar a uma
reavaliação da situação para algo menos stressante do que aquilo que originalmente se pensou,
dependendo da capacidade de lidar com isso.
Vejamos o exemplo que se segue:

4.1.2 Curva de Yerkes-Dodson


Esta curva relaciona o nível de stress com o desempenho da pessoa.

64
Se o stress for pouco, o desempenho é pequeno. Se o stress for demasiado, o desempenho também
não é ótimo. Por exemplo, se estiverem a estudar para um exame com montes de matéria e com duas
horas para estudar tem duas hipótese: ou desistem e o stress não vai ser muito, ou tentam fazer o
exame e o stress vai ser muito grande; no entanto, não se vão conseguir concentrar porque o stress é
demasiado grande. O ponto ótimo está numa zona onde o stress nem é pouco nem demasiado.
Eustress (“bom stress”) vs. Distress (“mau stress”) – o aluno só consegue estudar de uma maneira
apreciável e produtiva se o momento da avaliação se estiver a aproximar. Se o exame não se estiver
a aproximar, não se estuda tão bem. Esse é o bom stress (porção ascendente da curva até ao platô,
onde o desempenho é apreciável). A partir do momento em que o stress começa a ser demasiado,
passa a ser mau, perdemos a concentração, não conseguimos trabalhar e basicamente o desempenho
desce.

Concluindo, o stress não é uma doença; resulta do equilíbrio entre desafio e capacidade de res-
posta; pode eventualmente ser um fator de risco para doença; faz parte da vida, porque sem (bom)
stress pouca coisa faríamos. É desejável que não seja nem muito frequente, nem muito prolongado,
nem muito intenso.

4.1.3 Stress e saúde


O impacto de stress na saúde varia entre diferentes doenças. Há uma forte evidência de que o
stress resulte em aumento dos episódios de:
 Doenças infeciosas, como constipações;
 Doenças cardiovasculares
 Diminuição da capacidade de curar feridas
 Agravamento de doenças autoimunes, como asma, artrite reumatoide, doença inflamatória intes-
tinal e HIV/SIDA
 Agravamento de doença mental, nomeadamente ansiedade, depressão, burnout e distúrbio do
stress pós-traumático.
Assim, o stress pode contribuir para a doença de várias formas, incluindo a vulnerabilidade física
da pessoa, a vulnerabilidade emocional, o ambiente, a capacidade de lidar com a situação, etc. isto
pode ser sumarizado no Modelo de vulnerabilidade-stress, representado abaixo:
Exposição ao stress e
Percursor de doença Doença
respostas

Vulnerabilidade pré-
existente 65
Já vimos que a resposta ao stress é influenciada por diversos fatores; também a sua influência no
indivíduo o é. Alguns dos fatores moderadores do efeito do stress na saúde incluem: (1) personalidade,
(2) métodos que a pessoa usa para lidar com a situação(coping), (3) suporte social e (4) atividade
física.

As dimensões da personalidade são o que mais influencia a forma como a pessoa responde ao
stress. Uma pessoa com um locus de controlo mais interno pode desenvolver mecanismos de coping
mais adaptativos. Ter um melhor autoconceito, melhor autoestima ou maior capacidade de resiliência
são fatores positivos em coping; uma pessoa mais resiliente tende a pôr em prática mecanismos de
coping mais eficazes numa determinada situação. Por seu lado, o neuroticismo é um traço de perso-
nalidade que envolve altos níveis de ansiedade, depressão, hostilidade e instabilidade emocional;
como tal, pessoas que tenham mais neuroticismo tendem a ter mais dor e a reportar mais sintomas.
Em suma, no que toca a personalidade temos:
 Fatores protetores: internalidade, autoestima elevada, resiliência, otimismo, sentido de humor,
etc.
 Fatores de vulnerabilidade: externalidade, autoconceito de baixa complexidade, catastrofiza-
ção, procrastinação, neuroticismo, etc.

O coping é uma parte vital do processo de stress. A forma como lidamos com o stress vai determi-
nar parte das nossas respostas física e emocional.

Coping – qualquer tentativa de lidar com um evento


stressante, seja bem-sucedida ou não.

De notar que os mecanismos de coping são conscientes, pelo que não devem ser confundidos com
os mecanismos de defesa do eu (teoria psicodinâmica de Freud), que são inconscientes.
Podemos categorizar as estratégias de coping de 2 formas diferentes: distinguir aquelas focadas
na emoção das outras focadas no problema; coping confrontativo Vs. coping de evitamento.
 Com foco nas emoções: têm por objetivo a redução do stress; incluem:
1. Ventilação/Partilha de emoções – falar com alguém, dizer quão complicadas as coisas an-
dam. Ajuda a diminuir o grau de emoções negativas que as dificuldades representam para
nós.
2. Reformulação/Reinterpretação Positiva – perante uma coisa que não está a ser muito agra-
dável, consegue-se encontrar algo de positivo. Ex.: “A minha sogra vem passar o fim-de-
semana cá a casa mas, pelo menos, vou ter a possibilidade de sair com a minha mulher pois
a minha sogra pode ficar a tomar conta das crianças”.
3. Normalização – isto acontece-me a mim mas também acontece a outras pessoas.
4. Denegação e evitamento – a pessoa conscientemente faz um esforço para dizer “Ok isto
está a acontecer na minha vida mas talvez não seja assim”;

66
5. Aceitação – bastante saudável quando há realidades que não se consegue dar a volta.
Quando há coisas intransponíveis na vida, mais do que lutar contra elas temos de aceitá-
las.
6. Procurar suporte social – por razões predominantemente emocionais.
7. Desinvestimento comportamental – reduzir esforços para lidar com o problema, desistir.
8. Desinvestimento mental – distrair-se com outros focos de atenção.
 Com foco no problema: concentram-se em lidar com o problema;
1. Enfrentar o problema – passos concretos para tentar solucionar os problemas ou diminuir o
seu impacto negativo. Ex.: perante o exame, ir arranjar a bibliografia e estudá-la.
2. Contenção – esperar pela melhor oportunidade para agir;
3. Procurar informação;
4. Procurar suporte social – principalmente na vertente de auxílio prático, instrumental;
5. Planear – pensar em como lidar com as fontes de stress;
6. Supressão de atividades concorrentes - coisas que se não deixarmos de fazer, não nos
conseguimos concentrar na resolução do problema.
 Coping confrontativo: estratégias que tentam lidar com a situação de forma proactiva; há alguma
sobreposição com as estratégias focadas no problema;
 Coping de evitamento: estratégias que tentam evitar o problema; Exemplo: negação; não querer
falar sobre o assunto
Os mecanismos de coping são maneiras de se lidar com as situações, o que não quer dizer que
sejam boas maneiras; por exemplo, alguém que num dia tem uma notícia péssima e, nessa mesma
noite, decide embriagar-se  está a utilizar um mecanismo de coping que não podemos dizer que seja
muito positivo. Quando as estratégias de coping são positivas, a pessoa consegue normalmente, me-
diante o seu uso, sentir-se um pouco melhor. Quando são mais negativas ou não adaptativas, normal-
mente o que se faz é adiar o problema e sentir-se um pouco melhor durante algum tempo, até que
chega uma altura em que tudo volta. (alívio transitório do mal-estar; é o caso do que acontece no
exemplo acima, na pessoa que recebe a má notícia e lida com isso usando álcool). Vejamos o caso
das estratégias de evitamento:
 Pode ser muito boa na redução da ansiedade a curto prazo, como no caso de um cirurgião antes
de uma cirurgia; uma vez terminada a cirurgia, a estratégia deixa de ser eficaz mas também já
não há fator stressante, pelo que podemos dizer que neste caso foi uma estratégia de coping
com efeito positivo;
 No caso da doença crónica, uma pessoa que adote como estratégia de coping o evitamento não
vai querer ouvir o que o médico tem para lhe dizer sobre a doença, possíveis efeitos adversos
do tratamento e possíveis complicações; além disso, o mais provável é que a pessoa tenha uma
má aderência ao tratamento. Assim, podemos dizer que neste caso estra estratégia de coping é
negativa.

67
Também o suporte social é muito importante na qualidade de vida e saúde das pessoas, sendo
importante não só para ajudar a lidar com o stress como também para moldar a forma como o fazemos.
Estudos demonstram que:
 Pais e crianças expostos aos mesmos eventos stressantes têm respostas similares;
 Pais ansiosos criam filhos ansiosos, ao terem estilos de parentalidade controladores;
 Alunos que se sentem apoiados pelos pais lidam melhor com efeitos stressantes usando es-
tratégias de coping mais ativas e reavaliações positivas.
 Face a um evento stressante, ter alguém conhecido presente reduz as respostas do SNA e S
endócrino.

Por fim, a atividade física, que como todos nós sabemos é por si só boa para a saúde, também
influencia a nossa resposta ao stress. Pessoas que praticam atividade física regular têm menos pro-
babilidade de fumar, vão adotar uma dieta saudável mais facilmente e têm mais suporte social.

4.2 A PERCEÇÃO DOS SINTOMAS


A compreensão dos sintomas é fundamental para uma boa prática clínica – os sintomas são um
sinal de que algo pode estar errado; motivam a procura de ajuda em instituições prestadoras de cui-
dados de saúde; ajudam os médicos a diagnosticar o problema; dão indicação sobre a eficácia de um
tratamento e melhoria do doente. Contudo a relação sintoma-doença não é linear:
֎ Os sintomas são muito frequentes. A maior parte das pessoas experiencia 2-3 sintomas por
semana; de notar que os sintomas não têm que estar associados a doença! Pode ser apenas
uma cefaleia ou cansaço.
֎ A maioria das pessoas que tem algum sintoma não recorre ao médico – a motivação de ir ao
médico depende da persistência ou intensidade dos sintomas, assim como do significado pes-
soal atribuído aos mesmos.
֎ Um terço das pessoas que recorrem ao médico não têm diagnóstico preciso.
Ou seja, os sintomas são muito comuns e relativamente ambíguos: são muito influenciados por
fatores psicológicos, tais como o grau de atenção prestado aos sintomas, a forma como são interpre-
tados e as crenças relativamente à saúde e aos cuidados de saúde.
Os sintomas são não só um sinal de início de doença como também indicam a sua progressão. A
doença crónica, como a artrite reumatoide ou a esclerose múltipla, inclui o agravamento progressivo
dos sintomas e da incapacidade. Também aqui as crenças das pessoas têm um papel importante na
forma como as mesmas se ajustam à doença crónica e como preveem o agravamento dos sintomas e
a incapacidade. Por exemplo, uma pessoa que acredite que a sua doença é incontrolável, incurável, e
que vai afetar todas as vertentes da sua vida vai estar mais stressada e mais focada nos seus sintomas,
preocupando-se com o facto de a doença estar a agravar; por seu lado, o indivíduo que acredita que
a sua doença é controlável, que requer ajustes, mas que não vai afetar toda a sua vida vai estar menos
stressado e menos focado nos seus sintomas.

68
O sintoma pode ser definido como qualquer variação fisiológica ou do estado emocional que seja
interpretada como incomum e classificada como potencialmente danosa. Assim, e tal como acontecia
com a emoção e com o stress, a avaliação e a interpretação dos sintomas são processos críticos.
Porém, geralmente as pessoas não são muito boas na interpretação do seu estado físico.

4.2.1 Influência dos fatores psicológicos


Os fatores psicológicos podem afetar a perceção e interpretação dos sintomas de diferentes formas,
nomeadamente pelo (1) papel da atenção na perceção dos sintomas, (2) efeito do ambiente na perce-
ção e interpretação, (3) diferenças individuais na interpretação dos sintomas e (4) influência das emo-
ções na perceção e interpretação.

O grau de atenção que prestamos ao nosso estado físico interno tem uma grande influência na
nossa perceção dos sintomas. A maioria das teorias sobre atenção assume que temos uma capaci-
dade limitada de prestar atenção a diferentes estímulos ao mesmo tempo. Como tal, alterações do
nosso estado interno têm que competir com aquilo que está a acontecer em nosso redor; temos como
exemplo o atleta que continua a jogar mesmo tendo feito uma lesão grave. Isto pode ser explicado a
diferentes níveis: fisiologicamente, o nosso corpo liberta opióides endógenos, como endorfinas, que
reduzem o nível de dor que sentimos; psicológica e socialmente, as necessidades da situação imediata
significam que a pessoa vai estar menos apta a perceber o que se passa no seu interior.
Assim, as pessoas estão mais suscetíveis a reparar nos seus sintomas se estiverem em ambientes
aborrecidos. A importância disto nos cuidados de saúde prende-se com o facto de ao desviarmos a
atenção da pessoa dos seus estímulos internos, usando estratégias como a distração, vamos conse-
guir reduzir a sua perceção dos sintomas; como tal, a distração poderá ser uma ferramenta útil na
abordagem aos doentes com sintomas como dor.
As pessoas diferem na quantidade de atenção que prestam aos estados internos, mas também a
que tipo de sintomas tendem a dar mais atenção. a maior parte das pessoas tem um conjunto de
crenças, os “esquemas”, sobre a que doenças estão mais vulneráveis, quais os sintomas potencial-
mente indicadores de doença e quais as doenças potencialmente ameaçadoras da sua vida. A maioria
dos esquemas é desenvolvido durante a infância e nem sempre são racionais. Eventos da vida adulta
podem levar a mudanças nesses mesmos esquemas. Assim, as crenças que as pessoas têm acerca
da sua saúde e doença são influenciadas pela sua experiência passada de doença e pelas atitudes de
outros (particularmente os pais) perante a doença. As crenças geralmente influenciam inconsciente-
mente quais os sintomas a que as pessoas prestam atenção e o modo como os interpretam. Por exem-
plo, até 1/3 dos alunos de medicina preocupam-se com o facto de ter a doença que estão a estudar;
isto provavelmente deve-se ao facto de eles esquadrinharem os seus sintomas na tentativa de encon-
trar algum que encaixe nessa.
Este processo de interpretação da causa de algo é denominado “atribuição”. De uma forma muito
simples, as pessoas podem atribuir os seus sintomas a causas somáticas, psicológicas ou ambientais.
Por exemplo, se tiver febre posso atribuir esse sintoma ao facto de ter uma infeção (causa somática);

69
ao facto de estar a trabalhar muito (causa psicológica); ou ao facto de estar muito calor (causa ambi-
ental). Além disso, dentro de cada categoria existem muitas potenciais explicações. A explicação que
cada pessoa adota vai influenciar o seu comportamento (procurar ou não procurar ajuda médica). Por
exemplo, um episódio de mialgias pode ser atribuído a exercício físico intenso (causa somática, mas
benigna) ou ao início de uma gripe (causa somática, mais preocupante). Além disso, pessoas diferen-
tes têm diferentes estilos de atribuição, isto é, cada pessoa atribui uma origem do que está a sentir a
causas que podem ser muito diferentes. Grande parte das pessoas tem um “estilo atributivo” próprio.
Por outras palavras, algumas pessoas têm tendência a atribuir os sintomas (febre, dor, cansaço) inter-
namente (a eles próprios), enquanto outros tendem a atribui-los externamente (ao ambiente, ou aos
outros). Possivelmente, os indivíduos que têm um estilo atributivo interno/somático, podem também
ter mais tendência a procurar ajuda médica em resposta aos sintomas.
Por fim, a emoção está fortemente associada á perceção e reportagem de sintomas; emoções
fortes estão associadas a alterações fisiológicas que podem ser mal-interpretadas como sendo sinto-
mas de alguma doença. Assim, emoções negativas, como ansiedade, aumentam a probabilidade de a
pessoa reportar sintomas e os interpretar como potencialmente ameaçadores; estudos sobre a ansie-
dade revelaram que essa resulta num estreitamento do foco de atenção e em viés em direção à per-
ceção de ameaça. Por seu lado, um humor hipotímico (grau menos profundo de humor depressivo)
aumenta a tendência para uma perceção pessimista dos sintomas (valorização de sintomas que pro-
vavelmente seriam ignorados se o humor não fosse tão negativo ou associação dos mesmos a doença
mais complicada). Por exemplo, num estudo concluiu-se que após um programa de vacinação, o grupo
de pessoas em quem tinha sido induzido um humor hipotímico, tinha mais tendência a reportar efeitos
adversos da vacinação.

4.2.2 Efeitos da perceção dos sintomas na saúde


As principais consequências da perceção de sintomas resultam da interpretação e perceção errada
de sintomas. De facto, a eficácia da prestação de cuidados de saúde pode ser comprometida, nome-
adamente através do:
֎ Atraso na procura de ajuda, se os sintomas são interpretados como não preocupantes.
֎ Uso excessivo ou insuficiente dos serviços prestadores de cuidados de saúde, se os sintomas
são interpretados erradamente.
֎ Comprometimento do tratamento, se as pessoas se automedicam ou se não aderem ao trata-
mento porque atribuem os seus sintomas a uma causa errada.
Por exemplo, um indivíduo pode parar de tomar um antibiótico por se sentir melhor, apesar de ainda
não estar “curado” - isto traduz um desperdício de recursos e pode comprometer o tratamento.
Deste modo, a compreensão dos processos que afetam a perceção dos sintomas pode ajudar-nos
a delinear intervenções mais eficazes, particularmente no tratamento de doenças crónicas (em que as
pessoas têm que aderir a regimes de tratamento intensivos).

70
No caso da dor, é um sintoma comum e muitas vezes é um sinal importante de que existe alguma
lesão ou que algo está mal. De facto, a dor aguda é necessária para nos proteger de lesões ou infe-
ções. Por outro lado, a dor crónica (dor com duração superior a 3meses), que é também muito fre-
quente (10-20% da população), apresenta algumas diferenças. Dores prolongadas geralmente indicam
que existe lesão ou que está a haver reparação de alguma parte do nosso corpo. Contudo, se a dor
dura 3 meses (ou mais), é possível que a lesão física original esteja “curada” mas que as vias da dor
se tenham tornado sensibilizadas ou desreguladas de modo que a dor ainda é sentida, apesar de não
existir uma lesão física. Estudos demonstram que depois de 3 meses de estímulos dolorosos aconte-
cem alterações moleculares na via nociceptiva, nomeadamente a nível do RNA dos neurónios da me-
dula espinhal; como tal, esses neurónios adaptam-se e mudam face a estímulos constantes. Isto tem
implicações no tratamento da dor crónica; em vez de “esperar e ver” (a dita “esperoterapia”), a inter-
venção precoce é importante para prevenir estas alterações neuronais.
Antes de mais, devemos tornar claros alguns conceitos:
o Nocicepção – estimulação de recetores nociceptivos periféricos, que enviam mensagens ao SNC.
o Sensação de dor – forma como essa mensagem é interpretada, o que vai ser influenciado por
muitos fatores tais como a atenção, os “esquemas”, emoções, etc.
o Sofrimento – perceção da dor, aflição e incapacidade que podem vir da dor e de outros fatores
relacionados
o Limiar da dor – ponto a partir do qual um estímulo se torna doloroso; é similar para a maior parte
das pessoas, independentemente do género, raça ou cultura.
o Tolerância da dor – grau até ao qual a dor é tolerada; varia muito entre indivíduos, cultura e con-
textos. Por exemplo, o humor pode aumentar a tolerância à dor.
Assim, o ponto a partir do qual uma pessoa refere que tem dor vai depender do seu passado e
características, aquilo que aprenderam com os outros sobre expressão de dor e o contexto imediato.
A implicação disto no contexto dos cuidados de saúde é que a dor de cada pessoa deve ser tratada
de acordo com a necessidade, sem referencia a estereótipos sobre quanta dor “devia” ser sentida.
Recentemente surgiu a teoria multidi-
mensional da dor, que reconhece que a dor Comportamentos de dor

acontece num contexto social e que é com-


posta por diferentes aspetos: nocicepção, Sofrimento

sensação e respostas emocional, cognitiva


e comportamental. Em grande parte, re- Emoções

flete a abordagem biopsicossocial.


Por seu lado, a teoria portão (Melzack) Pensamentos

baseia-se na ideia de que existe um portão


entre os nervos periférios e os nervos da Sensação de dor

medula espinhal. Assim, os sinais


nocicetivos provenientes dos nervos Dano
tecidular
periféricos competem com outros sinais

71
neuronais ao chegar a esse portão; esse pode ser aberto (ou seja, as pessoas sentirem a dor de forma
mais intensa) ou fechado por diferentes fatores, podendo eles ser físicos ou psicológicos. Assim, esta
teoria providencia uma ponte entre os fatores físicos e os psicológicos na dor. Também proporciona
uma explicação para o facto de a dor ser atenuada pelo toque, como acontece quando uma criança se
magoa e os pais “esfregam para passar”.

Figura 4 - Psicofisiologia da dor

A teoria do portão é uma ferramenta útil e importante em programas de controlo da dor, uma vez
que ajuda as pessoas com dor crónica a perceber que a sua atitude mental e comportamento podem
influenciar a sua dor. Tal pode ajudá-las a sentirem-se menos desamparadas e com mais controlo

72
sobre a dor. Providencia-lhe conhecimento sobre o que podem fazer para abrir e fechar o portão, de
forma a que possam atuar ativamente na sua dor, melhorando a qualidade de vida.
Fatores que tendem a “abrir” o portão Fatores que tendem a “fechar” o
portão
Físicos  Lesão  Uso apropriado de medicação
 Inatividade física  Quente/frio
 Uso prolongado de álcool/drogas  Massagem
Comporta-  Fazer demasiado  Exercício
mentais  Mau sono  Treino de relaxamento
 Meditação
Emocionais  Ansiedade, depressão  Bom humor
 Stress, angústia  Amor
 Sem esperança  Prazer, felicidade
Cognitivos  Foco na dor  Foco noutras coisas (Ex: hobbies)
 Preocupação em relação à dor  Distração
 Catastrofizar (pensar no pior)  Estratégias de coping positivas
 Foco nas consequências negativas da dor
 Desejar que a dor desaparecesse

No que toca o controlo da dor crónica, temos que ter em atenção que a dor é multidimensional, pelo
que intervenções eficazes na dor crónica devem abranger os fatores fisiológicos, psicológicos e sociais
envolvidos na dor. Efetivamente, os programas de controlo da dor crónica envolvem médicos, fisiote-
rapeutas, psicólogos e enfermeiras especializadas que trabalham em equipa usando abordagens far-
macológicas, comportamentais e técnicas psicológicas. O objetivo destes programas é ajudar indiví-
duos a lidar melhor com a sua dor, de modo a conseguirem levar uma vida funcional e positiva.
De facto, estes programas são muito eficazes (especialmente se envolvem a componente psicoló-
gica) na redução da dor, depressão e outras emoções negativas, coping e comportamentos não adap-
tativos. Podem também aumentar/ melhorar os níveis de atividade, coping adaptativo e funcionamento
social.
A componente psicológica envolve a educação dos pacientes sobre as diferentes dimensões da dor
e sobre como podem surgir ciclos viciosos, como o exemplificado em baixo.

Figura 5 - Ciclo vicioso da dor

73
4.2.3 Efeitos Placebo e Nocebo
Estes conceitos exemplificam claramente a influência das crenças nos sintomas.

O termo “placebo” vem do latim e significa “agradar” (I shall please). O efeito placebo ocorre quando
as pessoas reportam melhoria dos sintomas apesar do tratamento dado não conter nenhum princípio
ativo. Obviamente, este efeito é muito variável de pessoa para pessoa e de situação clínica para situ-
ação clínica. Logicamente, é muito mais provável que um placebo atue mais numa situação em que
existam fatores psicológicos diretamente envolvidos (como dor, depressão, insónia, asma) do que
numa situação com uma base claramente biológica (como anemia, hiperglicemia ou infeção). Além
disso, as características do placebo também influenciam a sua eficácia:
 Injeções ou ampolas podem resultar melhor do que comprimidos;
 Um comprimido para o sono de cor azul resulta melhora do que um comprimido vermelho;
 Morfina “falsa” resulta melhor que aspirina “falsa”;
 Placebos resultam melhor se o médico mostrar que acredita no seu resultado.

Por seu lado, “nocebo” vem também do latim onde significa “magoar” (I shall harm). O efeito nocebo
ocorre quando as pessoas desenvolvem sintomas que encaixam nas suas crenças, apesar de não
terem sido expostas a um patogénio. Por exemplo, os psicofármacos, nomeadamente antidepressivos,
têm fama de causar dependência, engordar, etc. Na realidade, apesar dos psicofármacos terem efeitos
adversos e contraindicações, não causam dependência a curto prazo: se uma pessoa tomar um anti-
depressivo durante 5 anos, pode parar/abandoná-lo de um dia para o outro ou numa semana sem
problema. Assim, percebe-se que é muito importante esclarecer o doente e discutir os possíveis efeitos
adversos deste tipo de fármacos (o que pode ou não causar) antes de prescrevê-los a alguém. Além
disso, se o doente não tiver sido esclarecido e tiver a coragem de começar a tomar o fármaco anti-
depressivo, vai sentir muito mais efeitos adversos e mais complicações do que se tomasse outro tipo
de fármaco, por exemplo um anti-hipertensor. Tal tem que ver com as crenças que se tem acerca do
medicamento que se está a tomar e da atribuição que se faz.

Aquilo que subjaz aos efeitos placebo e nocebo ainda é alvo de muito debate. Algumas explicações
incluem:
 Condicionamento clássico  um estímulo (fármaco ativo) é emparelhado a uma resposta (me-
lhoria do estado de saúde); com o tempo, essa resposta passa a ser associada também a outro
estímulo, neutro, que ocorresse no mesmo contexto do emparelhamento anterior (comprimidos,
injeções, ações do médico). O estímulo neutro torna-se o estímulo condicionado, originando a
mesma resposta que o estímulo ativo inicial;
 Modelagem  acontece quando uma pessoa observa um efeito que algo tem noutra pessoa e o
aprende.
 Expectativas da pessoa  a pessoa espera ficar melhor, por isso fica.

74
4.2.4 Representações e crenças sobre a doença
Como vimos anteriormente, os “esquemas” inconscientes influenciam a perceção dos sintomas.
Além disso, as pessoas têm representações conscientes sobre a doença, que vão condicionar o seu
comportamento em resposta a esses sintomas. Essas representações, que são um conjunto organi-
zado de crenças sobre uma doença (experiências, resultados, ect.), vão determinar as ações que uma
pessoa escolhe realizar, a informação que fornecem ao médico, o tipo de tratamento que querem, a
adesão ao tratamento, assim como as suas respostas emocionais, comportamentais e cognitivas à
doença. Contudo, estas representações da doença nem sempre correspondem à verdade ou são co-
erentes – são únicas a cada individuo e vão ser moldadas por diversos fatores nomeadamente a sua
história pessoal, experiência de outras doenças e aprendizagem cultural e social.
Aqui surge o modelo de autorregulação das cognições e comportamentos da doença (Leven-
thal et al., 1984), no qual se consideram 5 dimensões principais da representação da doença:
1. Identidade da doença – forma como a pessoa identifica a doença e os sintomas; as pesosas têm
modelos mentais de quais os sintomas que surgem para cada doença. Quantos mais sintomas se
identificarem com o modelo que a pessoa tem de determinada doença, maior a probabilidade de
ela se autodiagnosticar com essa mesma doença. Por exemplo, uma dor de cabeça pode ser
causada por uma meningite, cansaço, tumor cerebral, ressaca, etc. (qual é a identidade que dou
a este problema clínico?). Fazer um autodiagnostico é importante na procura por ajuda; estudos
sugerem que é mais provável que uma pessoa procure ajuda médica depois de se autodiagnosti-
car com uma patologia específica.
2. Curso no tempo – tempo que a pessoa acredita que a doença dura e padrão que acha que ela
toma. Por exemplo, crónico, agudo, remitente ou cíclico). Isto vai afetar a forma como a pessoa
lida com a doença e a sua adesão ao tratamento. Por exemplo, uma pessoa que acredite que a
sua doença é crónica tem maior probabilidade de reportar incapacidade e angústia comparativa-
mente a pessoas que acreditam que a sua doença é cíclica ou aguda.
3. Causa – o que a pessoa acha que causou os sintomas ou a doença.
4. Controlo/cura – se a pessoa acredita que a sua doença poderia ser prevenida, controlada ou
curada. Pessoas que acreditam que a sua doença é controlável têm maior probabilidade de tomar
um papel ativo no seu tratamento e reabilitação; por seu lado, pensar que uma doença é incontro-
lável está associada a estratégias de coping passivas (Ex: evitamento) e aumento da taxa de
hospitalizações. Assim, num doente crónico ou terminal devemos encorajá-lo e focar-se nos as-
petos controláveis da sua patologia, tais como os sintomas, a incapacidade e o curso de tempo.
5. Consequências –relacionadas com os efeitos da doença, sejam eles físicos, psicológicos, sociais
ou económicos. A perceção das consequências está interligada com a gravidade dos sintomas
sentidos. Assim, alguns indivíduos julgam que doenças assintomáticas, como a hipertensão ou a
DM, não têm consequências; neste caso, a probabilidade de adesão ao tratamento é menor.

75
Figura 6 - Modelo de autorregulação das cognições e comportamentos da doença (Leventhal et al.,1984)

O modelo de autorregulação ilustra o modo como os sintomas são percebidos e interpretados por
um indivíduo, com base nas suas representações de doença, e como isso vai influenciar os seus com-
portamentos de coping (mecanismos mais relacionados com resolução de problemas). Além disso, o
sintoma vai também evocar uma reação emocional, que motivará estratégias de coping para controlo
dessa emoção (coping emocional). As duas vertentes (emocial e cognitiva) vão influenciar-se mutua-
mente. O coping e a reavaliação da situação podem motivar alterações/ ajustes nas crenças, emoções
e estratégias de coping.

Exemplos práticos
Tânia, mulher de 48A, tem dor torácica após de ter comido um grande jantar e ter discutido com o marido.
O seu tio morreu de EAM há alguns anos, com 65A. A Tânia pensa que os homens são particularmente
vulneráveis a ter ataques cardíacos, ao contrário das mulheres (identidade). Ela sabe que a indigestão ou asia
podem causar dor torácica (causa). A Tânia também sabe que que as discussões e o stress podem afetar o
estômago (causa). Como tal, ela interpreta a dor como sendo uma indigestão, que vai passar se ela relaxar
(consequência). Assim, ela faz um chá calmante e vai deitar-se (coping).

Tomás, homem de 48 anos tem dor torácica após de ter comido um grande jantar e ter discutido com o
parceiro. O seu tio morreu de EAM há alguns anos, com 65A. O Tomás sabe que os homens nos seus 40
anos são particularmente vulneráveis (identidade), e que podem ser causados por stress (causa). Como tal,
ele interpreta a dor como sendo um possível EAM, que tem consequências potencialmente fatais (consequên-
cia). Fica ansioso e sente o coração a palpitar. Chama uma ambulância e vai imediatamente para o hospital
(coping).

Concluindo, o que as pessoas pensam sobre os seus sintomas e sobre a sua doença influencia os
seus comportamentos. É importante ter isto em conta de maneira a conseguir, se necessário, explorar
e mudar as representações dos pacientes sobre as doenças, de modo a maximizar as probabilidades
de estes gerirem a sua doença apropriadamente, quer através de mudanças nos seus estilos de vida,
quer através da adesão aos tratamentos. Estas intervenções de autocontrolo/“self-management inter-
ventions” são geralmente eficazes no autocontrolo da DM, asma, HIV e cancro.

76
Depois, temos ainda modelos de alteração dos comportamentos em saúde, onde se incluem os
seguintes dois:
 Modelo transteórico de Porchaska e DiClemente (1983) ou “estadios de mudança”
Muitos modelos têm procurado explicar o processo de mudança no que se refere aos comporta-
mentos relacionados com a saúde. Já se percebeu que a perceção de autoeficácia é uma variável de
grande importância neste processo. Se a pessoa não estiver convencida que é capaz de mudar, não
terá motivação suficiente para dar início ao processo, a menos que existam pressões exteriores muito
fortes.
O Modelo Transteórico é um dos principais modelos sobre mudança dos comportamentos. É cons-
tituído por 4 estádios:
1. Estadios de mudança
2. Decisão equilibrada
3. Confiança e Tentação
4. Processos de mudança
Os estadios de mudança são uma série de fases pelas
quais se pensa que as pessoas passem quando estão a
passar por um processo de alteração do comportamento.
Incluem:
 Pré-contemplação – a pessoa ainda nem considera
a alteração do comportamento; Ex: fumador não
considera que tenha um problema, não se preocu- Figura 7 - Estadios de Mudança
pando com o seu comportamento e não tendo qualquer intenção de mudar.
 Contemplação – a pessoa começa a pensar em mudar; Ex: já começa a preocupar-se com os
seus comportamentos mas ainda se encontra numa postura ambivalente em relação a deixar
de fumar.
 Preparação – a pessoa prepara-se para mudar; Ex: o fumador começa a delinear um plano
para mudar a curto prazo (1 mês).
 Ação – pessoa faz a alteração do comportamento a curto prazo; Ex: o fumador conseguiu mu-
dar o seu comportamento: deixar de fumar.
 Manutenção – pessoa consolida e mantém a alteração do comportamento a longo-prazo;
No entanto, em muitos casos ocorre uma Recaída.
 Recaída – Ex: o doente mantém os comportamentos durantes meses ou até anos e, achando
que está bem, retoma o consumo de tabaco.
Caso haja uma recaída, a pessoa volta então à fase de Contemplação ou, em casos mais graves,
pode sair mesmo desta roda e voltar à fase de Pré-Contemplação. Em muitos casos as pessoas têm
que passar por este ciclo várias vezes até que a mudança do comportamento se torne permanente.
Este modelo pode ser aplicado em problemas de dependência, mas também noutras situações
como fazer ou não fazer exercício ou questões ligadas à obesidade. Ou seja, pode ser utilizado para
todas as situações que envolvam a mudança de comportamentos.

77
A decisão equilibrada envolve a relação entre os prós e os contras. Podemos pedir à pessoa que
faça a lista de prós e contras em relação à alteração do comportamento. Isto ajuda a clarificar se há
mais prós ou contras e pode tornar a pessoa mais propícia a alterar o seu comportamento (ou seja, a
passar da fase de pré-contemplação para a contemplação).
A confiança refere-se à confiança que o doente tem na sua capacidade de mudar. Isto tem que ver
com autoeficácia, de se achar que se consegue controlar melhor ou pior, ou seja, com mais ou menos
eficácia, algum tipo de comportamento. As tentações são os fatores que vão tentar a pessoa a manter
comportamentos menos saudáveis em situações particulares. Por exemplo, uma pessoa que está a
tentar deixar de fumar pode dizer que essa alterações de comportamento se torna mais difícil quando
os amigos decidem fumar ao pé de si.
Por fim, este modelo especifica 10 processos de mudança que podem ser usados para ajudar as
pessoas a alterar o seu comportamento:
1. Ter consciência da situação
2. Abordagem por recompensas
3. Controlo do estímulo
4. Contra condicionamento
5. Reavaliação do próprio
6. Reavaliação do ambiente
7. Alívio dramático
8. Libertação social
9. Libertação do próprio
10. Relações que ajudem

 Modelo PRIME da estrutura da motivação humana (West, 2006)


Muito poucas teorias do comportamento em saúde consideram o papel das emoções ou o porquê
de as pessoas comportarem-se sem pensarem ou de maneiras que não tencionam. A teoria de PRIME
constitui uma tentativa de incorporar motivações, emoções, impulsos e fatores cognitivos num só mo-
delo. Assim, a teoria PRIME consiste em 5 fatores que se pensa determinarem o comportamento rela-
cionado com a saúde:
1. Planos: representações conscientes de futuras ações, incluindo a vontade de atuar;
2. Respostas: iniciam, param e modificam qualquer ação;
3. Impulsos ou forças inibitórias que são experienciadas como urgências;
4. Motivos: experienciados como desejos;
5. Evaluations ou crenças avaliadoras.

Figura 8 - Teoria PRIME

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Como vemos na figura 8, as respostas momentâneas são influenciadas por estímulos externos, tais
como fatores desencadeantes, e por estados internos, tais como excitação e emoção, e depois são
modeladas diretamente por impulsos e inibições. Por seu lado, os impulsos e inibições são influencia-
dos por motivos e avaliações. Os motivos e avaliação podem ser experienciados conscientemente mas
não têm necessariamente que o ser. Por fim, os motivos e intenções para ações futuras podem ser
modelados por motivos e avaliações.
A teoria PRIME baseia-se em 4 suposições sobre motivação e comportamento na saúde:
A. Temos que perceber o controlo momento a momento do comportamento na saúde antes de
percebermos as influências a longo prazo no comportamento;
B. O sistema tem plasticidade, isto é, é capaz de modificar ou ser alterado pela experiência;
C. A autoidentidade é muito importante no nosso comportamento, motivos e planos;
D. O sistema pode parecer complexo mas é determinado por processos relativamente simples.
Em suma, esta teoria tenta explicar a importância e eficácia da mudança de motivações que condi-
cionam comportamentos errados. De modo a melhorar a saúde, encoraja o doente de uma forma que
o próprio efetivamente valoriza, ou seja, uma motivação com maior peso para o doente, mais forte e
que o ajuda a mudar os seus comportamentos em vez de os perpetuar.

4.3 DOENÇA CRÓNICA


À medida que nos tornamos mais eficazes a combater a doença e a prolongar a vida, a percentagem
de pessoas que vive com doença crónica aumenta. O tratamento da doença crónica representa um
grande desafio para os profissionais de saúde, já que eles deixam de se poder focar tanto na cura para
terem que ter em conta também a manipulação dos sintomas.
O grupo de doenças crónicas inclui doenças muito variadas: epilepsia, artrite, cancro, diabetes,
síndrome da fadiga crónica, asma, hipertensão, doença hepática, demência.

O início e diagnóstico de uma doença crónica acarretam alterações profundas na vida de uma pes-
soa que podem levar a redução da qualidade de vida e bem-estar da pessoa. O início e diagnóstico
de uma doença crónica levantam desafios significativos, incluindo:
 Ajustar-se aos sintomas e à incapacidade
 Manutenção do balanço emocional
 Preservação de uma autoimagem satisfatória e sentido de competência
 Aprender sobre os sintomas, tratamentos e autogestão
 Manter relações com família e amigos
 Formar e manter relações com profissionais de saúde
 Preparar para um futuro incerto

A teoria da crise da doença crónica assume que precisamos que equilíbrio social e psicológico,
semelhante à homeostase. O diagnóstico de uma doença pode colocar uma pessoa num grande risco
de desequilíbrio, que é acompanhado por emoções negativas como medo, ansiedade e depressão;

79
uma vez que as pessoas não conseguem permanecer num estado de desequilíbrio, acabam por ter
que encontrar uma solução. Além disso, as pessoas em desequilíbrio são mais suscetíveis a influên-
cias exteriores, tais como as ações dos profissionais de saúde. Por fim, o equilíbrio de uma pessoa
com doença crónica é muito frágil e pode ser destruído por qualquer contratempo, por mais pequeno
que seja; isto pode explicar o porquê de os doentes poderem “fazer uma tempestade num copo de
água” face a dificuldades mínimas.

4.3.1 O impacto da doença crónica


Reações emocionais comuns à doença crónica incluem negação, ansiedade e depressão. A nega-
ção é uma defesa psicológica que permite às pessoas não pensar na doença e nas suas consequên-
cias. Os doentes podem recusar aceitar que têm a doença, subestimar a sua severidade ou insistir que
vão recuperar e ficar curados. Esta forma de defesa não é útil na doença crónica já que interfere com
a adesão ao tratamento e autogestão. Porém, a negação pode ser útil a curto-termo, especialmente
se os doentes estiverem fisicamente fracos e, por isso, incapazes de lidar com a situação naquela
altura; assim, a negação temporária da situação pode permitir-lhes recuperar para posteriormente po-
derem lidar com o assunto. A ansiedade e a depressão são comuns nas pessoas com doença crónica;
ambas podem ser uma resposta à doença, estar presentes antes da doença ou ambos.
Ansiedade Depressão
Doenças cró- Doença cardíaca, AVC, cancro Doença cardíaca, AVC, DM, asma, can-
nicas mais cro, artrite e osteoporose
frequentes
Estados fisio- estimulação do SNSimpático e eixo alterações neuroendócrinas que podem
lógicos asso- HHS afetar as vias inflamatória e imune
ciados
Riscos asso- Sintomas mais frequentes e mais se- risco de DCV e a mortalidade
ciados veros em patologias como a asma e a
Síndrome do cólon irritável
Forma de Resposta à ameaça. No caso da do- Resposta à perda, ao falhanço, à falta
avaliação de ença crónica, essa constitui uma ame- de esperança. Na doença crónica isto
que resultam aça ao bem-estar, ao trabalho e à au- inclui a perda de saúde ou de capaci-
toimagem dade física, perda do estatuto social, fa-
lha em se enquadrar nos standards de
saúde, falta de esperança face à sua do-
ença.

4.3.2 Encontrar significado e benefício


Apesar de ainda só termos falado dos aspetos negativos da doença crónica, há muitas pessoas que
relatam alterações positivas na sua vida, nomeadamente:
 Melhoria das relações – os doentes precisam do apoio dos outros, pelo que as relações que
tinham podem sair fortificadas;
 Alteração da forma como se veem – as pessoas podem desenvolver um melhor sentido de
resiliência e força pessoal, aceitar as suas vulnerabilidades e limitações, um estar mais consci-
entes da fragilidade da vida;

80
 Alteração da filosofia de vida – a preocupação com a doença pode resultar em incapacidade
e uma vida mais curta pode conduzir a alteração das prioridades e valores, diferentes aborda-
gens à vida e maior apreciação do viver.

4.3.3 Modelo de Lazarus et al  Stress-Appraisal-Coping


No que toca o appraisal, ou avaliação da situação, já vimos que acontece em três fases:
1. Avaliação primária (da situação) - o que é esta doença? O quê que ela representa?
2. Avaliação secundária (dos recursos, pessoais e sociais) – autoconselho; autoestima; “ideia
de autoeficácia”- o que posso fazer para mudar alguma coisa? Uma pessoa que foi diagnos-
tica e tem que fazer tratamento pode não sentir que tem capacidade para mudar o curso da
doença.
3. Reavaliação
Recursos para fazer face à doença: avaliação secundária:
 Recursos pessoais – por exemplo, a personalidade
 Suporte social:
 Emocional - relacionado com a estratégia de coping “ventilação de emoções”: falar com
alguém sobre os problemas pode baixar o grau de emoções negativas.
 De autoestima – por exemplo, é importante em pessoas que se sentem desvaloriza-
das/em baixo, ter um amigo que o elogie/relembre as qualidades de que o próprio está
esquecido.
 Instrumental – por exemplo, acompanhamento às consultas; cuidar do filho enquanto o
doente vai às consultas.
 Informativo – por exemplo, como é que a consulta funciona; onde é que se pode ir bus-
car informação sobre a doença.
O suporte social, em especial da família, é fundamental - estratégias emocionais, de coping e de
resolução de problemas. De fato, perante um diagnóstico recente de artrite reumatoide, neoplasia, DM
complicada, etc., o tipo de apoio social com o qual o doente pode contar pode influenciar muito o modo
como o doente se sente.
Revendo as estratégias de coping:
Adaptativas:
 Foco nos problemas
1. Enfrentar o problema, confrontação
2. Buscar auxílio ou informação
3. Planear
4. Supressão de outras atividades concorrentes
 Foco nas emoções
1. Ventilação/partilha de emoções
2. Reformulação positiva
3. Normalização

81
4. Denegação e evitamento
5. Aceitação
A abordagem de uma doença aguda difere da abordagem de uma doença crónica. Claramente, em
muitas doenças agudas, as estratégias de resolução de problemas têm que estar em 1º lugar porque
há um problema a resolver (dores, febre, etc.).

Ex: Alguém com diagnóstico de DM há 1-2 anos. Que tipo de estratégias de coping seriam mais
úteis: estratégias com foco nas emoções ou nos problemas? Se tiver uma DMII relativamente estável,
em que tudo está a ser feito corretamente no sentido de controlar a glicémia e, no entanto, existem
algumas limitações em relação ao cumprimento de um tratamento/programa de mudança de compor-
tamentos, não há muito mais a fazer em termos médicos. Nesse caso, se o modo de encarar a doença
e o seu impacto é a base do problema poderão existir estratégias focadas nas emoções que serão
mais úteis.
Ex.: Se o diagnóstico de uma doença já está feito, e o paciente não o aceita e está revoltado; acha
que o médico está errado e por isso continua a procurar outros médicos e opiniões; repete exames,
arrastando a situação por meses ou anos. Esta é uma estratégia de resolução de problemas clara-
mente desadaptativa, uma vez que causa mais mal-estar. Contudo, a estratégia mais adequada de-
pende sempre muito da situação e da pessoa em questão. Não podem existir regras absolutas - deve-
mos tentar perceber, para aquela pessoa e para aquela situação, qual dos tipos de estratégia será
mais adequado e benéfico.

4.3.4 Formas de adaptação à doença crónica


 Normalização – o doente reconhece os sintomas mas redefine-os como parte da experiência
normal, diminuindo o seu potencial ansiogénico; tem vantagens e desvantagens;
 Denegação – o doente não reconhece a existência do problema/doença; pode haver vantagens
iniciais, mas a longo prazo este mecanismo impede que o doente se confronte com as dificulda-
des decorrentes da doença e pode mesmo impedir a adesão ao tratamento;
 Evitamento – não existe propriamente negação, mas o doente evita as situações que possam
exacerbar os sintomas ou levar a dificuldades adicionais; pode permitir alguma adaptação, mas
acarretando potenciais problemas;
 Resignação – o doente abraça o papel de doente, com algumas vantagens psicológicas; a do-
ença é o centro da sua vida; pode ser uma forma de adaptação apropriada a doenças graves
mas, em situações de menor gravidade, a resignação total pode levar a uma “invalidez” fictícia;
 Acomodação – o doente reconhece e lida com os problemas de forma construtiva; o manejo
diário da doença tende a ser considerado parte da vida.

82
4.4 ADESÃO AO TRATAMENTO
A melhor adesão ao tratamento origina melhores resultados clínicos. Como tal, é preocupante o
facto de 30% dos doentes, entre as várias condições médicas, não tomarem a sua medicação tal como
prescrito. Devemos ter em atenção que o tratamento aqui referido inclui não só fármacos como também
medidas não farmacológicas, como o exercício físico e a fisioterapia, e comportamentais, nomeada-
mente alterações da dieta, cessação tabágica ou alcoólica, etc.
Antes de mais, devemos distinguir os termos “adesão” e “complacência”. A “adesão” é o termo
preferível e implica o envolvimento ativo do doente no processo de tratamento; por seu lado, a “com-
placência” implica que o doente simplesmente segue as ordens do médico.
No que toca a adesão/ não adesão, devemos pensar nela não em termos binários (adere ou não
adere) mas sim num contínuo de “mais ou menos” adesão. Esta visão contorna a ideia de que exite
um “tipo de doentes” que não adere à terapêutica, e reconhece que mesmo os doente muito motivados
podem não ter uma adesão perfeita; além disso, temos que pensar na adesão em termos mais alarga-
dos e considerar várias formas através das quais o doente pode falhar o tratamento prescrito, que
incluem:
 Tomar pouco do tratamento prescrito  fazer menos exercício que o recomendado;
 Tomar demasiado tratamento prescrito  exceder as dosagens do fármaco;
 Não fazer o tratamento nos intervalos recomendados  exercitar-se não tão frequentemente
quanto o necessário;
 Não fazer o tratamento na duração prescrita  parar o antibiótico porque já se sente melhor;
 Tomar outras medicações sem dar conhecimento ao médico que prescreveu o tratamento.

4.4.1 Razões para a não adesão: não-intencionais ou intencionais


Há várias razões para a não adesão não intencional a um tratamento:
֎ Doente não percebe as instruções do médico
֎ Doente esquece-se das instruções do médico
֎ Regime de tratamento difícil de seguir
֎ Doente esquece-se de fazer o tratamento
Para reduzir a não adesão não intencional, devemos considerar:
 O que o doente percebe e se lembra
 Motivação do doente
 Recursos de forma a facilitar a adesão
Ou seja, a má comunicação médico doente está na base de muitos dos motivos da não adesão
não-intencional.
Por seu lado, a não adesão intencional acontece quando o paciente decide não seguir o regime
de tratamento. Nestas, é importante relembrar o modelo da autogestão da representação da doença,
que enfatiza a necessidade de prestar atenção ao que é a compreensão do doente sobre a sua doença,
incluindo a causa e tratamento. De acordo com este modelo, há 3 aspetos importantes no processo
autoregulatório:

83
1. Planeamento racional da resposta à doença
2. Resposta emocional à doença e ao tratamento
3. Monitorização do doente e sua avaliação do seu comportamento e progresso do tratamento
Assim, este modelo enfatiza a importância da refleção do doente sobre as suas ações e suas con-
sequências, assim como a constante interação entre as 3 componentes: crenças, emoções e avalia-
ção.

4.4.2 Razões para a não adesão:


Modelo Multidimensional
Apesar de a distinção intencio-
nal/não-intencional ser útil, os mode-
los multidimensionais da adesão são
provavelmente ainda mais úteis na
promoção da identificação do pro-
blema por parte dos clínicos e depois
na ajuda a resolver os mesmos.

 Fatores da doença
Os doentes tendem a aderir melhor ao tratamento se:
 Experienciarem sintomas da doença; isto traz implicações para condições médicas com sinto-
mas flutuantes (como a asma) ou assintomáticas (como a hipertensão arterial).
Para condições menos sérias, há melhor adesão por parte dos doentes com menos saúde. No
entanto, em condições mais graves os doentes com menos saúde são aqueles que aderem menos ao
tratamento. Isto pode dever-se ao facto de quando as pessoas estão com uma doença mais grave
terem mais barreiras físicas, práticas e psicológicas à adesão do tratamento.

 Fatores do tratamento
Há menor adesão para:
 Regimes de dosagem mais complexos; geralmente é mais fácil para os doentes aderir a trata-
mentos de dose diária única do que para aqueles com múltiplas tomas e timings de administra-
ção associados;
 Medicação múltipla (vários fármacos)
 Tempos de toma específicos
 Necessidades dietéticas específicas
 Doentes que experienciam efeitos adversos da medicação

 Fatores do doente
A adesão não é muito afetada por fatores demográficos como idade, sexo ou estatuto sociocultural.
Porém, o mesmo já não se pode dizer sobre as suas crenças. Há melhor adesão quando:
 Os doentes acreditam que a sua doença é grave
 Percebem que há mais benefícios se se tratarem

84
 Há menos barreiras à adesão
 Doentes estão motivados
As barreiras ao tratamento incluem não concordar com o seu diagnóstico e tratamento; também
podem incluir preocupações com os efeitos adversos e efeitos a longo prazo da medicação.

 Fatores psicossociais
A adesão tende a ser pior se:
 O doente está deprimido
 O doente tem pouco suporte social

 Fatores dos cuidados de saúde


A adesão pode também ser afetada por problemas práticos como a acessibilidade aos cuidados de
saúde e tempo de espera. Um dos aspetos dos cuidados de saúde que tem vindo a ganhar especial
importância é a comunicação médico-doente e a relação médico-doente; como já vimos, a má comu-
nicação pode ser uma das causas da não adesão. A adesão tende a melhorar se:
 As consultas durarem mais tempo;
 Houver uma relação de confiança com o médico, que expresse interesse genuíno na saúde do
doente.
A adesão ao tratamento é ainda influenciada pelo fornecimento de informação ao doente e a efici-
ência com que esse a usa. A troca de informação não se deve focar apenas nos factos sobre a doença
e o tratamento mas também nas preocupações emocionais do doente. São necessárias boas capaci-
dades de comunicação para descobrir as crenças do doente, responder-lhes com sensibilidade e inclui-
las no desenvolvimento do plano de tratamento.
Os doentes aderem melhor ao tratamento quando estão satisfeitos com a quantidade de informação
que receberam e quando são capazes de perceber e reproduzir essa informação.
Os doentes precisam de informação para:
 Poderem aderir ao tratamento
 Contornar medos e equívocos que possam ter sobre o tratamento
 Não ficarem com a ideia de que não receberam atenção.
Porém, informação a mais pode levar a uma redução da adesão ao tratamento; informação sobre
os efeitos adversos e baixa eficácia do tratamento também reduzem a adesão.

4.4.3 Estratégias para melhorar a adesão ao tratamento


 Monitorizar a adesão. Ver marcadores de não adesão como faltar à consulta, não ir buscar mais
medicação, não responder à medicação;
 Expressar aprovação pela adesão e encorajar a continuar. Quando apropriado, incluir medidas
objetivas na melhoria devida ao tratamento
 Questionar o doente relativamente à não adesão e barreiras para a mesma, de uma forma com-
preensiva e não-julgadora.

85
 Se não parecer muito provável que o doente ande a aderir ao tratamento, prescrever uma forma
de medicação mais “perdoadora”, isto é, medicação cuja eficácia não seja tão afetada pelas
doses em falta; opções incluem fármacos com maior tempo de semivida, fórmulas de libertação
prolongada ou fórmulas transdérmicas.
 Combinar a informação oral com a informação escrita.
 Usar formas de lembrar de tomar a medicação, como lembretes eletrónicos ou monitores de
medicação.
 Enfatizar a importância do tratamento antes sequer de o doente o iniciar; tem mais eficácia do
que se for feito depois de o doente não lhe ter aderido.

86
5 TEMA 5: ASPETOS AVANÇADOS DE COMUNICAÇÃO EM SAÚDE E RELA-
ÇÃO MÉDICO-DOENTE. TÉCNICAS DE ENTREVISTA CLÍNICA, SITUAÇÕES DI-
FÍCEIS E COMO DAR MÁS NOTÍCIAS.

5.1 COMO COMUNICAR


Mesmo com todos os desenvolvimentos tecnológicos e terapêuticos, não existe nada que substitua
uma boa entrevista médica. Contudo, nenhuma história clínica pode ser verdadeiramente completa
(Bates & Hoekelman, 1983). Existem elementos cruciais que afetam o elaborar de uma história clínica,
como por exemplo o ambiente em que se está a desenrolar a entrevista, o contexto psicossocial do
doente e a comunicação verbal e não-verbal.
O ambiente inclui fatores como a falta de privacidade, intrusões/interrupções e barreiras podem
inibir o doente de falar livremente.
Quanto ao contexto psicossocial, a relação e a comunicação médico-doente são também influen-
ciadas por características próprias ao médico e ao doente, que refletem o seu background familiar,
social, cultural, étnico e personalidade. O médico tem que ter isto em conta na sua abordagem a cada
doente.
A comunicação verbal inclui o que dizemos e como o dizemos. Há um grande conjunto de fatores
que é usado para interpretar o que dizemos, incluindo a comunicação não verbal e o contexto social.
Consequentemente, mesmo quando aquilo que dizemos é muito claro, as pessoas podem não o inter-
pretar corretamente devido à influência das expectativas, crenças, contexto social, características do
discurso e comportamento não verbal. A um vível simples, a comunicação pode ser vista da seguinte
forma:

Codificação Mensagem Descodificação

Figura 9 - Mensagens de comunicação

A comunicação pode ser afetada em qualquer um daqueles estadios:


 A mensagem pode ser ambígua  dificuldade resulta da forma como codificamos a mensagem
 Barulho de fundo pode dificultar a transmissão da mensagem
 A pessoa pode interpretar mal a mensagem  a dificuldade surge na descodificação.
Na prática clínica, as palavras que usamos e a forma como as dizemos são ambas muito importan-
tes. A forma como cada pergunta é feita também pode influenciar as respostas do doente.
A realização de perguntas ocupa um lugar central durante a entrevista clínica. Apesar de ser geral-
mente o motor da colheita de dados, a execução correta de perguntas neste contexto é mais complexa
do que pode parecer superficialmente.
Distinguem-se dois tipos principais de perguntas: abertas e fechadas.
 Abertas – Perguntas abertas permitem respostas mais elaboradas por parte dos doentes. No
início da entrevista deve dar-se prioridade a este tipo de perguntas pois permitem que o doente
elabore acerca do motivo da consulta, sobre as suas crenças, temores, opiniões ou sentimen-
tos.

87
 Fechadas – São assim chamadas porque limitam a resposta do doente. São muito úteis quando
queremos clarificar alguns pormenores, quando é necessário estruturar mais a entrevista ou
quando se tem pouco tempo para obter os dados (Ex: abordagem inicial de um doente com
precordialgia no Serviço de Urgência)
As questões abertas não são melhores nem piores que as fechadas. É a utilização de ambas de
forma dinâmica que permite uma boa comunicação médico-doente e uma colheita de dados
eficaz. Uma abordagem frequentemente usada é o “cone aberto para fechado” ou “abordagem
em funil”, na qual as perguntas abertas predominam no início da entrevista e as perguntas fechadas
mais tarde. As perguntas abertas podem ser usadas no início para perceber uma imagem alargada
daquilo que se passa com o doente segundo a sua própria perspetiva; isto proporciona ao médico uma
oportunidade para ouvir o doente e considerar que outras informações podem ser importantes. À me-
dida que a entrevista avança, devemos começar a usar questões abertas mais específicas e questões
fechadas de forma a esclarecer informação e perceber mais detalhes aos quais o paciente possa não
ter dado muita atenção no início.
Por outro lado, há alguns estilos de questionário que devem ser evitados. Isto inclui as questões
múltiplas e as questões sugestivas (que conduzem para uma resposta).
 Questões múltiplas – aquelas em que fazemos duas ou mais questões juntas; exemplo: viu
algum médico por causa disto e que tratamento é que lhe deram?
– este tipo de questões leva a que muitas vezes as pessoas respondam
a apenas uma parte.
 Questões sugestivas – aquelas em que têm uma resposta implícita; exemplo: Não doí pois
não?
– questões deste tipo impõem ou assumem uma resposta e podem inibir
o doente de discordar connosco.
Por fim, também as características do discurso influenciam a interpretação da mensagem. Caracte-
rísticas como o tom, as pausas, os suspiros e a velocidade do discurso estão implicados na interpre-
tação da mensagem, podendo alterar completamente o seu significado. Por exemplo, um tom sarcás-
tico pode indicar que a pessoa quer dizer exatamente o oposto daquilo que está a dizer. Além disso,
as características do discurso também podem ser uma janela para nós percebermos o estado de es-
pirito da pessoa: discurso rápido e agudo geralmente indica excitação, como acontece em casos de
ansiedade; por seu lado, um discurso lento pode ser indicativo de depressão. Por exemplo, se estiver-
mos a falar com uma pessoa que está muito zangada ou ansiosa, tornarmos o nosso discurso mais
lento e num tom mais grave pode acalmá-la.
Por fim, a comunicação não-verbal é muito rica e desempenha um papel crucial na relação mé-
dico-doente. Ela inclui a proximidade, postura, contacto visual, expressão facial, ao acenar com a ca-
beça (demonstra interesse, compreensão), ao tocar, à prosódia e aos silêncios. Todos estes compo-
nentes da comunicação não-verbal são facilmente percebidos pelo doente.
A expressão facial é um importante indicador do humor e das emoções.

88
O contacto visual ajuda a estabelecer uma relação com a outra pessoa. As pessoas olham mais
para quem gostam e o contacto visual mais frequente ou mais mantido é geralmente sinal de atenção;
por seu lado, o contacto visual reduzido pode ser sinal de evitamento ou problemas emocionais, tais
como depressão. No entanto, é importante fazer um bom balanço do contacto visual: por um lado,
queremos mostrar que estamos a prestar atenção ao que a pessoa diz, pelo que devemos manter o
contacto visual, especialmente no início da consulta; por outro lado, o contacto visual prolongado pode
ser interpretado como sendo muito íntimo ou agressivo.
O comportamento espacial é uma forma de comportamento não verbal que tanto pode ser de su-
porte como intimidante. Sugere-se que o espaço pessoal seja dividido em 4 zonas:
 Zona íntima (0-45cm) – só se permite a entrada a amantes, familiares e amigos muito próximos.
 Zona pessoal (45-120cm) – apenas amigos e família.
 Zona social (120-360cm) – conversas com conhecidos e colegas de trabalho.
 Zona pública (360-760cm) – esta zona é muitas vezes usada para se falar para uma audiência.
Estas distâncias aplicam-se nas culturas norte americana e norte europeias;no entanto, há grandes
diferenças culturais no que toca a limitação das diferentes zonas. Por exemplo, culturas como a latino-
americana, a mediterrânea, a árabe, podem ter menores distâncias para as conversações. Estas vari-
ações podem criar problemas quando pessoas de diferentes culturas se encontram; além disso, tam-
bém há diferenças individuais, como é o caso dos doentes esquizofrénicos que precisam de uma zona
pessoal maior em seu redor.
O comportamento espacial tem uma série de implicações na prática clínica. Primeiro, devemos ter
em atenção a forma como nos posicionamos em relação ao doente; não nos devemos aproximar de
tal forma ao doente que invadimos o seu espaço pessoal, nem nos afastar tanto nos posicionamos na
sua zona pública. Segundo, o exame objetivo e os procedimentos devem ser tidos em especial atenção
uma vez que neles vamos estar a entrar na zona intima da pessoa. Finalmente, os espaços pessoais
variam muito entre indivíduos, pelo que devemos ter em atenção a comunicação não verbal da pessoa
de forma a percebermos se ele está ou não confortável.
A postura é um indicador de atenção, interesse, relação social e da atitude da pessoa em relação a
nós. Posturas fechadas, nas quais as pessoas têm os braços e as pernas fechadas, indicam defesa
da sua parte. Boas posturas na prática clínica incluem:
 Postura aberta (nada fechado)
 Nosso corpo na direção do doente
 Postura atentiva (inclinado para a frente)
 Relaxado
Em situações sociais, a postura das pessoas pode ainda ser indicativa de alianças sociais. Por
exemplo, quando as pessoas gostam uma da outra tendem a assumir uma postura em espelho; estu-
dos demonstram que espelhar a postura de outra pessoa fortalece a relação médico-doente. É óbvio
que não é apropriado espelhar uma postura completamente fechada; além disso, esta técnica tem
melhores resultados quando é aplicada depois de uma sessão inicial, podendo mesmo ser negativa
se usada num primeiro encontro.

89
Por fim, o exame clínico envolve o toque, por vezes em zonas muito íntimas. Isto pode ser aceitável
devido aos papeis sociais de “médico” e de “doente”. Há 4 fatores importantes para o uso positivo do
toque:
1. O encontro terapêutico deve ter barreiras bem definidas;
2. O toque deve ser apropriado às circunstâncias;
3. O doente deve sentir que tem controlo sobre o toque;
4. O toque deve ser usado para benefício do doente e não do médico.

5.2 ENTREVISTA CLÍNICA


Antes da entrevista em si, devemos prepará-la:
 Rever o conhecimento prévio acerca da pessoa a entrevista
 Ter em conta o ambiente físico e humano para a entrevista
 Importância das primeiras impressões
 Prever interrupções
 Distância, posicionamento, iluminação
 Importância da apresentação (forma de vestir, questões culturais; crianças e idosos)
 Como cumprimentar a pessoa
 Considerar o conforto da pessoa no decurso da entrevista

Depois temos os modelos de entrevista


clínica que foram desenvolvidos para aju-
dar os médicos a perceber o processo nela
envolvido e melhorar as suas capacidades
de comunicação e entrevista.
Vamos ver 2 modelos: o primeiro, mo-
delo médico-doente, que enfatiza as dife-
renças entre a perspetiva do médico e a do
doente e encoraja uma abordagem mais
centrada no doente; a segunda, o modelo
de Calgary-Cambridge), que enfatiza os
vários estadios da entrevista e as capaci-
dades comunicacionais necessárias em
cada uma.

5.2.1 Modelo médico-doente


Este modelo traz ao de cima a importân-
cia de considerar as diferentes agendas
durante a entrevista clínica.
Figura 10 - Modelo médico-doente

90
A primeira é a agenda do médico: o médico tem que explorar e identificar qualquer doença subja-
cente. Para isso tem que questionar sobre sintomas, levar a cabo a investigação e considerar diagnós-
ticos diferenciais. A segunda é a agenda do doente: aqui incluem-se as preocupações do doente
relativamente à sua condição de saúde (Ex: sua experiência de doença).
Vantagens deste modelo:
 Dá igual importância a ambas as agendas, o que torna os doentes mais propensos a discutir
assuntos mais difíceis como prognóstico de cancro e a reportar maior satisfação. Além disso,
estudos demonstraram que a consideração das crenças e preocupações do doente levam a
menos consultas de seguimento, menos referências para outras especialidades, menos quei-
xas e menos reclamações de má-prática médica.
 Foca-se na colaboração entre o médico e o doente. O modelo especifica que após a conside-
ração de ambas as agendas, deve haver uma integração das mesmas e um planeamento
conjunto do plano de tratamento.

5.2.2 Modelo de Calgary-Cambridge


Este modelo é diferente do anterior na medida em que se foca na estrutura da entrevista clínica e
indica quais as capacidades mais relevantes em cada fase da mesma. Providencia uma estrutura clara
que é muito útil na educação médica, já que nos ajuda a concentrarmo-nos em aprender as capacida-
des mais relevantes em cada fase. Assim, os alunos podem ir construindo as suas capacidades à
medida que se vão tornando competentes em cada uma das fases.

Iniciar a
sessão
Providenciar uma estrutura à entrevista

Juntar a
Construir a relação

informação

Exame
objetivo

Explicação e
planeamento

Encerramento
da sessão

Figura 11 - Modelo de Calgary-Cambridge

91
MODELO DE
Iniciar a entrevista implica estabelecer uma ligação com o
CALGARY-CAMBRIDGE
doente e identificar o motivo da sua vinda.
 Iniciar a entrevista
Usar questões abertas no início da consulta é uma boa Estabelecer uma relação inicial
forma de obter a máxima informação do doente; no entanto, é  Cumprimentar o doente e perguntar
ou confirmar o nome
preciso depois ouvirmos o que ele tem para dizer! Um estudo  Apresentarmo-nos e dizer ao doente
clássico mostrou que os médicos demoram em média apenas qual o nosso papel
 Mostrar interesse e respeito pelo do-
18 segundos a interromper o doente; no entanto, e ao contrário ente
 Manter um bom contacto visual e
da crença popular, quanto mais o médico interrompe mais postura corporal
tempo dura a entrevista clínica. A interrupção impede que o Identificar o motivo da vinda
 Usar questões abertas para perce-
doente se concentre e leva-o a crer que o médico tem apenas ber quais os problemas que o doente
quer discutir
alguns segundos para o ouvir. Como tal, a escuta ativa é tão
 Ouvir cuidadosamente o que o do-
importante como fazer as perguntas certas; essa técnica inclui ente tem para dizer e não interrom-
per
ouvir, facilitar as respostas e estar atento a pistas que os do-  Perguntar se há mais alguma coisa
entes possam dar. Há uma série de habilidades que podem que o doente quer falar.

ser usadas para ajudar o doente a contar o que se passa com


ele:  Juntar a informação
Explorar mais o problema
֎ Encorajar (=facilitar) – pode ser verbal ou não verbal, in-
 Facilitar e clarificar a história do do-
cluindo “uh-uh”, “continue”, “estou a ver”; implica apenas ente sobre o problema
 Usar questões abertas e fechadas
uma interrupção mínima e dá ao paciente a confiança  Usar a escuta ativa
necessária para continuar. Os comentários devem ser  Sumarizar aquilo que o doente diz de
x em x tempo
neutros, isto é, não usar expressões como “muito bem”,  Usar questões ou comentários claros
e concisos e evitar gíria
que podem ser mal-interpretadas como sendo avaliado-
Perceber a perspetiva do doente
ras.  Explorar e dar importância às ideias
do doente e preocupações relativa-
֎ Silêncio – a maior parte de nós tende a considerar o si- mente ao problema
lêncio algo constrangedor e, por isso, a dizer alguma  Determinar como é que isso afeta a
vida do doente
coisa assim que o doente acaba de falar. Uma técnica  Explorar os objetivos e espectativas
do doente
útil é deixar uma pausa maior quando o doente acaba de
 Encorajá-lo a expressar os seus sen-
falar; timentos e pensamentos
 Ter em atenção as pistas verbais e
֎ Reflexão (eco) – repetição das palavras, com o sentido não verbais que o doente vai dando
de um encorajamento para detalhar. Providenciar uma estrutura para a con-
sulta
1. Doente – “Estou preocupado com os resulta-  Sumarizar o que o doente vai di-
dos das análises” zendo
2. Médico – “Está preocupado…”  Ir referindo o ponto da entrevista so-
֎ Parafrasear/Reformulação – Esta técnica permite que o bre o qual se vai falar (Ex: “Voltamos
a esse assunto já a seguir, mas pri-
médico exponha ao doente o que entendeu do que ele meiro gostava de esclarecer alguns
lhe disse, aguardando a sua confirmação (ou não). Caso pontos da sua história familiar”)
 Conduzir a entrevista de forma lógica
o doente não se reveja na formulação do médico, é en-  Usar o timing apropriado para man-
corajado a elaborar sobre isso, podendo depois haver ter a entrevista dentro do tempo
 Exame objetivo
reformulação por parte do médico.
1. Médico – “Então, se percebi bem, as suas queixas começaram há cerca de um ano e desde então
têm-se vindo a agravar.”

92
2. Doente – “Não é bem isso. De facto, come-
çaram há mais de um ano mas só se agra-  Exame objetivo
varam no último mês.
 Explicação e planeamento
֎ Clarificação – exploração de significados; Providenciar a quantidade e tipo de informação
֎ Resumo apropriados
 Estabelecer o que o doente já sabe
֎ Perguntas sobre sentimentos  Dar informação de forma percetível
֎ Respostas empáticas – Estas respostas,  Verificar se o doente percebeu
 Perguntar que mais informação pode ser útil
quer sejam verbais (Ex: através de uma for-  Certificar-se que a informação é dada no timing
correto
mulação, interpretação ou reconhecimento Auxiliar na memorização correta da informação
do estado emocional do doente) ou não ver-  Organizar a informação
 Usar categorização explícita (Ex: “há 3 coisas im-
bais (Ex: escuta atenta e ativa) são basilares portantes”)
no estabelecimento de uma boa relação mé-  Repetir e sumarizar a informação
 Usar afirmações concisas facilmente percetíveis
dico-doente. Vão permitir que o doente expo- e sem gíria
 Verificar se o doente percebeu e clarificar o que
nha as suas principais preocupações sem re-
for necessário
ceio de não ser compreendido. Pressupõem Chegar a uma compreensão partilhada
 Ligar explicações à agenda do doente
também a necessidade de adequação ao que  Encorajar o doente a contribuir
verdadeiramente está a ser sentido pela pes-  Ter atenção a pistas verbais e não verbais
 Eliciar as crenças, reações e sentimentos do do-
soa! ente sobre a informação que lhe é dada
Partilhar o planeamento e a tomada de decisão
֎ Confrontação – em relação a palavras/com-
 Partilhar os nossos próprios pensamentos, ideias
portamentos; sinais não verbais, inconsistên- e dilemas de forma apropriada
 Envolver o doente colocando-lhe questões em
cias; Ex: diz estar tudo bem, mas parece pre- vez de dar ordens, dando ao doente uma escolha
ocupado…  Negociar um plano mutuamente aceitável
 Verificar se o plano é aceitável para o doente e
֎ Interpretação perguntar se tem alguma preocupação.
֎ Perguntas diretas – regras gerais:
 progredir das questões gerais para as mais específicas;
 não induzir respostas;
 pedir quantificações, descrições, exemplos;
 oferecer várias hipóteses de resposta;
 perguntar cada coisa a seu tempo;
 usar linguagem apropriada e acessível.

O segundo passo na entrevista clínica é reunir a informação, que envolve explorar um pouco mais
os problemas relatados, perceber a perspetiva do doente e providenciar uma estrutura para a consulta.
A explicação e planeamento incluem:
 Providenciar o tipo e quantidade corretos de informação
 Ajudar à memorização correta e perceção daquilo que foi dito
 Chegar a uma compreensão partilhada que inclua a perspetiva do doente
 Tomar uma decisão partilhada

A última fase da entrevista é o seu encerramento, o que não é tão linear como possa parecer. Por
um lado, nenhuma história pode ser verdadeiramente completa; por outro, é geralmente possível -
através de uma resposta empática - mostrar ao doente que entendemos as novas queixas como legí-
timas e que as poderemos explorar melhor na consulta seguinte. Por vezes, os doentes não revelam

93
completamente (ou mesmo de todo) qual o motivo
 Encerramento da sessão
de terem vindo até nós (por vergonha, por terem  Sumarizar brevemente a sessão e o plano de tra-
dificuldade em confiar, etc.). A seguinte pergunta tamento acordado
 Dispor e ver se o doente concorda com os próxi-
no final da entrevista pode servir como uma opor- mos passos
 Providenciar uma “rede de segurança”: explicar
tunidade: "Antes de terminarmos, há alguma dú- quaisquer possíveis consequências inesperadas
vida ou alguma questão que gostasse de colocar?". e o que fazer caso o plano não resulte – assim
como como e quando procurar ajuda
Mesmo que esta questão produza um novo motivo  Verificar uma última vez se o doente concorda
para ter vindo à consulta (ou o verdadeiro motivo), com o plano e se está confortável com o mesmo
 Perguntar se tem mais alguma questão ou se
é geralmente possível explorá-lo minimamente de quer discutir mais alguma coisa.
forma a fortalecer a relação médico-doente e reme-
ter uma avaliação mais cuidada para uma próxima consulta.
Depois, fazer um sumário daquilo que foi discutido e concordado confere-nos uma oportunidade
para confirmar que o doente percebeu tudo e está satisfeito com o plano de tratamento. Para além
disso, a “rede de segurança” (safety netting), onde o médico diz ao doente o que fazer caso o trata-
mento não resulte ou caso surjam outros sintomas, pode ajudar a prevenir futuras complicações. Coi-
sas simples como perguntar ao doente se há mais alguma coisa que queira discutir e despedirmo-nos
de forma apropriada pode fazer uma grande diferença na experiência do doente na consulta.

Transições entre as diversas fases da entrevista


Apesar de não ser aconselhável a utilização de um “protocolo” rígido de colheita de dados, é ne-
cessário obter informações sobre tópicos variados. Assim, a capacidade de ir progredindo na colheita
de dados é essencial. Ex: certas frases ajudam na transição da história da doença atual para a história
pessoal, como "Penso que já tenho uma boa ideia do que o trouxe até aqui. Gostaria agora de saber
um pouco mais sobre si".

5.3 CASOS CONCRETOS DE COMUNICAÇÃO EM MEDICINA


5.3.1 Alguém que fala demais
O médico deve reconhecer a sua própria ansiedade ao ver o tempo passar. Algumas estratégias úteis:
1. Baixar a “fasquia” (a história não poderá ser tão completa...)
2. Dar “rédea solta” durante 5-10 minutos e observar
 Ansiedade? Tranquilizar!
 Obsessivo? Agora vamos concentrar-nos nos factos mais simples, vamos aos pormenores
mais tarde.
 Alterações formais do pensamento – Ex: fuga de ideias?
3. Tentar focar a conversa nos tópicos mais pertinentes, mostrar interesse e perguntar mais coisas
nessas áreas.
 Podemos voltar a esse aspeto, mas agora preciso que me conte... Pode ter de se interromper
frequentemente, mas sempre com cortesia.

94
4. Fazer resumos e perguntas concretas logo de seguida (parece então que... pode dizer-me melhor
como...)
5. Acabar a consulta quando necessário e marcar uma outra, definindo desde logo o tempo disponí-
vel nessa mesma entrevista

5.3.2 O silêncio...
Não ter medo do silêncio. O silêncio pode ter muitos significados e grande utilidade clínica.
 Aceitar o silêncio pode ser também uma forma de estabelecer relação. Estar atento aos sinais
não-verbais.
 Depressão? Organicidade? Dificuldade em expressar emoções, em abordar certos tópicos?

Algumas estratégias:
 Repetir a última pergunta ou observação do doente.
 Confrontação com tato: parece estar com dificuldade em falar deste assunto...
 Sugerir que muitas vezes é difícil falar.
 Reconhecer o mal-estar!
 Perguntar a si próprio: será que o silêncio resulta de um erro meu?
 “Bombardeamento”? com demasiadas perguntas em pouco tempo, o doente assume o papel
passivo para que o remetíamos.
 Cometi alguma falta de respeito, mesmo inadvertida? Ex: sinais de reprovação, crítica.
 Não estou a reconhecer um sintoma óbvio de mal-estar na pessoa? (dôr, dispneia, náusea,
vontade de urinar, urgência miccional, etc.)

5.3.3 A agressividade...
Reconhecer o problema. Explorar a origem...
Razões objetivas (ex.: tempo de espera) vs motivos indiretos (deslocamento: sofrimento, culpabili-
dade).

Transferência e contratransferência  perspetiva psicodinâmica (Freud)


A transferência pode ser definida como “atitudes, sentimentos e fantasias que o doente experiencia
relativamente ao seu médico, muitos deles surgindo, aparentemente irracionalmente, das suas pró-
prias necessidades e conflitos psicológicos inconscientes, em vez de circunstâncias reais da relação”.
A relação médico-doente não é totalmente racional. Os doentes têm todo o tipo de desejos, expec-
tativas e sentimentos relativamente aos seus médicos, a maioria dos quais o médico nunca chega a
conhecer. Por exemplo, quando um doente está zangado porque esteve 2 horas à espera, tal não é
uma reação inapropriada e não deve ser categorizada como “transferência”. Porém, se o mesmo do-
ente foi criado numa casa com muitos irmãos com os quais tinha que competir pela atenção dos pais
e teve que suportar mais do que a sua partilha de gratificação atrasada, estar sentado na sala de

95
espera pode trazer ao de cima todo o tipo de memórias dolorosas e
sentimentos associados que, quer conscientemente ou não, vão servir
para intensificar o sentimento de raiva legítimo.
A transferência é uma espada de dois gumes. Pode providenciar
ao médico (ou a qualquer outro profissional de saúde) o poder para
influenciar o doente a aderir a determinado tratamento; também pode
levar a que o doente confie no médico, ante sequer de ter bases para isso.
Uma transferência positiva pode ajudar o doente a ultrapassar ansiedades que acompanham a
maior parte das doenças. Por exemplo: uma mulher que está aterrorizada com o facto de ir fazer radi-
oterapia; chamam o médico para falar com ela e logo no início da conversa a senhora diz que o médico
a faz lembrar o seu neto favorito e aceita prontamente o tratamento.
A transferência, seja positiva ou negativa, pode criar grandes dificuldades quando não é reconhe-
cida e bem abordada. A mesma transferência que permite ao doente atribuir ao médico “poderes má-
gicos”, também o leva a fazer exigências impossíveis de concretizar, levando a desapontamento rela-
tivamente ao médico, ressentimento face à autoridade e medo ou rebelião contra o médico.
A transferência é então um fenómeno regressivo, baseado em fatores psicológicos e não na reali-
dade. Por esse motivo, é importante não ver estas reações como algo pessoal.
Por seu lado, a contratransferência acontece quando o médico tem sentimentos, compreensíveis
mas não profissionais, face à transferência do doente. É importante que o médico saiba reconhecer
tais sentimentos; ele deve ser capaz de julgar se as suas atitudes são apropriadas para a situação ou
se são o resultado da contratransferência. É ainda mais importante que ele seja capaz de evitar reagir
de acordo com os seu impulsos e sentimentos, se tais ações entrarem em conflito com os objetivos do
tratamento racionalmente definidos. Ou seja, faz parte do trabalho do médico reconhecer o irracional
não só do doente como nele próprio; ele deve ser capaz de providenciar a objetividade que está em
falta, sem perder a parte humana, compreensível e empatética.

Estratégias e competências
 Estratégias
A. Lembre-se que a zanga é do doente e não sua...
B. Nunca deixe a agressividade por explorar
C. Utilize os seus próprios sentimentos (se se sente furioso é provável que o doente também
se sinta)
D. Seja paciente: a raiva não costuma durar muito...
E. Apoie sempre os seus colegas e pessoal face à agressividade que na verdade era dirigida
a si.
 Competências
A. Pode ser útil uma confrontação afável (Ex.: estava muito zangado há bocado, porquê? o que
se passou? ou parece aborrecido com alguma coisa…)

96
B. Em termos de comunicação, a zanga tem o objetivo de obter toda a atenção do interlocutor:
deixe que isso aconteça!
C. Mantenha um contacto visual não ameaçador.
D. Estabeleça prioridades nos assuntos discutidos.
E. Reconheça as suas falhas com honestidade.
F. Reconheça que não é omnipotente e observe os efeitos dos seus próprios sentimentos de
culpa.
G. Sempre que haja uma ameaça real de violência e já tenha feito todos os esforços para des-
montar a situação, evite o confronto físico.

5.4 DAR MÁS NOTÍCIAS


Uma das tarefas mais difíceis na medicina é dar más notícias aos doentes ou familiares. Uma “má
notícia” é qualquer notícia que altere drástica e negativamente a visão de uma pessoa relativamente
ao seu futuro. Isto inclui desde a doença crónica até dar notícia sobre a morte de um familiar ou inca-
pacidade; inclui ainda qualquer notícia que acarrete uma restrição ou potencial perda à pessoa: um
tornozelo partido num atleta; uma doença infeciosa um dia antes de uma pessoa partir para a viagem
da sua vida.
Há várias razões pelas quais dar más notícias é especialmente difícil para os médicos, indepen-
dentemente da sua idade, especialidade ou experiência pessoal; estas razões podem ser pessoais
(relacionadas com a própria personalidade ou experiência passada), sociais (relacionadas com a ati-
tude da sociedade) ou legais/políticas.
As pessoas reagem às más notícias de forma muito diversificada. O impacto vai depender parci-
almente na diferença entre aquilo que elas esperam e aquilo que é a realidade médica; experiência
pessoal passada; personalidade e estratégias de coping; a reação pode nem ter muito que ver com o
tipo ou estadio da doença! Por seu lado, a forma como o médico dá uma notícia deste género pode
também influenciar a forma como os doentes se ajustam a ela no futuro, assim como as suas escolhas
no que toca o tratamento.
Investigações nesta área identificaram 3 fatores importantes:
1. As pessoas apreciam que os médicos sejam carinhosos, confiantes, sensíveis e amáveis;
também preferem aqueles que demonstram preocupação e angústia em vez de se demons-
trarem desligados da situação.
2. As pessoas preferem que as notícias lhes sejam dadas de forma clara, usando termos sim-
ples; gostam de ter tempo para colocar as suas questões.
3. As pessoas apreciam que a notícia lhes seja transmitida num local com privacidade.
Foram propostas diversas guidelines sobre como transmitir más-notícias. Aqui apresenta-se uma
abordagem em 6 passos  SPIKESS:
1. Setting up: prepararmo-nos completamente para a entrevista. Ter a certeza que sabemos to-
dos os factos relevantes. Fazer a entrevista num local privado, onde não haja o risco de inter-
rupção; se o fizer sentir-se mais confortável, o médico deve fazer-se acompanhar de alguém,

97
como um colega ou uma enfermeira. Conceder a nós próprios o tempo necessário para dar a
notícia e responder a todas as questões da pessoa.
: devemos também ter em conta a capacidade da pessoa para receber a notícia, o
que inclui não só aspetos físicos como mentais.
2. Patient’s perception: começar por perceber o que é que a pessoa já sabe de forma a podermos
organizar a má notícia apropriadamente. Usar uma questão aberta como “o que é que já lhe
fi dito?”.
3. Information needed: perguntar à pessoa até onde é que elas querem obter informação sobre
a sua condição, nomeadamente o que toca o diagnóstico, o prognóstico e o tratamento. Isto
ajuda a definir o tipo e quantidade de informação que vamos transmitir, de acordo com o que
a pessoa é capaz de lidar.
4. Knowledge given: transmitir conhecimentos relativos à má notícia. Preparar a pessoa pode
ajudar, dizendo, por exemplo, “não é a boa notícia que esperávamos” e depois fazer uma
pausa. Isto confere à pessoa um pequeno período de tempo para se preparar para a má
notícia. Devemos dar a notícia de forma clara e numa linguagem simples. Afirmações ambí-
guas devem ser evitadas (por exemplo, “o resultado do exame veio
positivo”, que para o doente pode significar “resultado bom”). Não
devemos dar demasiada informação de cada vez; dar por blocos e
ir vendo a reação da pessoa.
5. Emotional response: podem advir uma série de respostas emocio-
nais, incluindo choque, descrença, medo, ansiedade, angústia, luto
ou raiva. A melhor forma de lidar com isto é reconhecer essas reações e empatizar. Quando
as notícias são muito más, há muito pouco que se possa fazer para além de se oferecer
empatia e suporte. A evidência demostra que as pessoa apreciam isso. Além disso, não de-
vemos começar a tentar “calar” o doente com frases como “vai ver que corre tudo bem” e “já
aconteceu o mesmo a outro doente meu e ele agora está bem!”.
6. Summarising and strategy: no fim da entrevista o médico deve sumarizar os principais pontos
ou consequências da entrevista e considerar a estratégia futura tais como tratamento curativo
ou paliativo. Isto ajuda a que a pessoa se foque nos próximos passos, dá alguma certeza,
providencia-lhe uma estrutura de suporte e pode mesmo dar alguma esperança.

Em casos de trauma, a tarefa de dar uma má notícia pode ser ainda mais difícil devido à eminência
inesperada de morte, doença ou acidente. Para além disso, geralmente não houve tempo para esta-
belecer uma relação com a pessoa nem para o preparar para o facto de as notícias serem sérias.
Muitas vezes a situação é complicada pelo facto de a vítima poder ser nova, os parentes serem difíceis
de contactar e por ser mais difícil controlar o contexto em que a notícia é transmitida (sala de trauma
ou UCI, por exemplo). Nestas situações, a polícia poderá ser uma ferramenta útil no contacto de fami-
liares próximos.

98
6 TEMA 6: FAMÍLIAS NA SAÚDE E NA DOENÇA. IMPACTO DA DOENÇA NA
FAMÍLIA E FATORES FAMILIARES COM INFLUÊNCIA NO CURSO DAS DOEN-
ÇAS.

“As famílias ditas normais são basicamente muito semelhantes, enquanto


aquelas que são infelizes são-no à sua maneira” Tolstói, in Anna Karenina..
Faz-nos perguntar: O que é uma família feliz?

6.1 FAMÍLIAS EM GERAL E NA SAÚDE


Nas famílias encontramos recursos e aspetos positivos, e a propósito da saúde e da doença, tam-
bém encontramos fatores que podem ser de desafio ou que podem contribuir para que as coisas não
corram bem.

Ackerman foi um dos pioneiros das terapias familiares


e intervenções ditas sistémicas da doença, não apenas da do-
ença mental. A título de curiosidade, escreveu num dos seus primeiros trata-
dos de terapias familiares: “na saúde e na doença, a família está lá e se não está a
sua ausência vai fazer-se sentir de alguma forma”.

A família não só a relação da mãe-bebé, mas antes a relação do bebé ao longo da vida com os
elementos da família mais nuclear ou mais alargada – acaba por funcionar como um laboratório: como
espaços de trabalho, aprendizagem das nossas várias competências. A família funciona como um
“santuário protetor” onde há hipótese de aprender por tentativa-erro.
Então o que é exatamente uma família normal? Mesmo que discutível, qual é a definição? Se en-
tendermos a normalidade como o mais comum, podemos pensar numa família em que haja uma boa
relação com todos os elementos, que haja respeito pela hierarquia, etc. De facto, normal pode querer
dizer muitas coisas: critério do que é mais saudável e funcional vs. critério de frequência. Apesar disso,
esta é uma discussão que não interessa porque não é fácil definir e na clínica não interessa entrar
naquilo que é a definição de família, seja normal ou disfuncional (eufemismo para família anormal ou
doente). A questão importante é que para nós estudarmos as famílias, quer em investigação ou na
clínica, tendemos a descrever 2 padrões ou 2 categorias:
 Estrutura: Constituição da família - número de gerações, quem vive com quem;
 Funcionamento: Dinâmica familiar - como é que as pessoas se dão umas com
as outras, o que acontece quando surgem dificuldades.
Há famílias que têm estruturas parecidas mas dinâmicas muito diferentes. E o
contrário também é verdade. A este propósito, Jackson é um outro autor importante
no âmbito das terapias familiares. Na década de 70 foi-lhe pedido que escrevesse

99
um capítulo de um livro sobre o que era uma família normal. A dada altura desistiu de escrever, porque
tinha dificuldade em encontrar definições. Acabou por mudar o título do capítulo para “O mito da nor-
malidade”, não desistindo de definir o que é uma família onde as pessoas se sintam bem, que funcio-
nalmente faça sentido, mas desistindo de definir o que é o normal.
O padrão de família que era mais comum até há alguns anos atrás na cultura ocidental claramente
mudou: as famílias alargadas passaram a ser substituídas por famílias mais pequenas, nucleares,
eventualmente constituídas só por pais e filhos. Os avós até podem viver próximos nalguns casos, mas
raramente vivem na mesma casa. Há também mais famílias monoparentais.

A base da definição de uma família como “funcional” está em saber se os seus padrões permitem
flexibilidade/adaptação na resposta ao stress (Glick et al, 2000). Algumas características das famílias
funcionais incluem:
1. Papéis definidos - Que cada um saiba o que faz.
2. Relações de afeto
3. Respeito parte-a-parte
4. Regras de conduta
5. Flexibilidade e capacidade de adaptação - Muito importante quando surge uma doença na família
ou qualquer outro tipo de dificuldade. Se um dos elementos do casal ficar doente, é preciso que
o outro passe a desempenhar alguns papéis que normalmente eram feitos pelo outro. Por exem-
plo, tratar do IRS, ou simplesmente pôr a mesa. As famílias que funcionam melhor são as que
têm capacidade de adaptação perante situações novas, em que há pessoas que passam a as-
sumir papéis diferentes.
6. Comunicação clara e construtiva - Para as pessoas se conseguirem adaptar às dificuldades, é
preciso que haja uma comunicação clara e direta entre os elementos da família. Se, perante uma
dificuldade, algumas pessoas da família usarem essencialmente estratégias de evitamento,
nesse caso raramente se consegue tratar a questão. É como se assobiassem para o ar e não se
falasse. Por exemplo, necessidade de ir ao médico perante um diagnóstico mais complicado,
dificuldades económicas. É necessário que haja uma comunicação que funcione, que as pessoas
consigam falar umas com as outras, que não mandem recados por outros elementos da família
- um casal que não consegue falar cara-a-cara por vezes utiliza os filhos como “manda-recados”,
e este casal pode estar em risco. Todavia, é normal que quando
surge um problema as pessoas possam entrar em sofrimento, se
zanguem umas com as outras, que não tenham paciência umas
para as outras. Uma família que funcione bem não tem que ser
aquela onde as pessoas nunca gritaram umas com as outras. Por
vezes, zangarem-se em determinada altura significa que ficam
bem ao longo do tempo...
7. Capacidade de relação com outros grupos - estar com outras famílias ou outras pessoas de fora
da família. É desejável que a família não se feche exclusivamente sobre si própria, o que não
significa que não haja famílias que funcionem muito bem dessa maneira.

100
Assim, a ideia a reter é:
1. Na maior parte das famílias que tenham este tipo de atributos, as pessoas habitualmente
sentem-se melhor.
2. Mesmo que a determinada altura as coisas corram mal, as pessoas têm capacidade de “dar
a volta”, o que a nível psicológico se denomina “resiliência” (o que ocorre a nível individual
também se adapta as famílias: as famílias como sistema podem ter mais resiliência ou não, e
isso depende da sua capacidade de adaptação).
2.1. Um médico, como um clínico geral, que acompanhe uma família ao longo do tempo
tem claramente uma ideia de quais é que são as famílias que lidam melhor ou pior com
a adversidade, de quais são aquelas que se desmembram facilmente quando as coi-
sas são mais desafiantes.
3. A doença é um exemplo de um desafio às famílias. Se a família funcionar bem habitualmente
tem a capacidade de ultrapassar.
4. Há formas diferentes para uma família funcionar bem. A chave para o que é considerado uma
família que funciona bem está sobretudo em como se adapta a circunstâncias que sejam um
desafio.
4.1. Estrutura e funcionamento familiar - As famílias têm personalidades ou estilos, tal
como os indivíduos;
4.2. A base de definição de uma família “funcional” está em saber se os seus padrões
permitem flexibilidade/adaptação na resposta ao stress.

6.1.1 Ciclo vital da família – Duvall, 1977


Existe o Ciclo Vital [individual] de Erickson a propósito do desenvolvimento psicossocial e das fases
do desenvolvimento numa perspetiva individual; e depois, existe o Ciclo Vital Familiar, que pode ser
definido como uma série de etapas de desenvolvimento, naturais e maturativas cada uma com proble-
mas específicos e tarefas a realizar. É uma noção provinda da sociologia e que foi continuado por
pessoas ligadas ao pensamento sistémico e à psicologia, mas houve aspetos que foram importados
da noção de ciclo individual para ciclo familiar, nomeadamente as crises normativas e as crises aci-
dentais.

Na família há fases de:


 Expansão (Centrífuga) – por exemplo, quando uma pessoa morre ou um filho sai de casa;
 Contração (Centrípeta) – por exemplo, quando um casal decide ter filhos.
Consoante estas diferentes fases também o equilíbrio pode ser diferente. As fases de transição
exigem mais das pessoas - isso é individual e também sistemicamente verdade.

A epigénese é um termo que vem da embriologia: o embrião desenvolve-se pela justaposição em


camadas de novas células e tecidos. Em termos de desenvolvimento, não apenas individual mas tam-
bém da família, significa que as coisas só podem correr bem numa determinada fase se tiverem corrido

101
bem nas fases anteriores. Tal não é bem verdade e uma forma correta de reformular seria: há maior
probabilidade de as coisas correrem bem numa determinada fase se já tiverem corrido bem em fases
anteriores. Não há portanto um fatalismo: há passagens desastrosas pela infância e adolescência e
mantem-se a possibilidade de um desenvolvimento individual harmonioso a partir de uma determinada
altura, o que depende da resiliência individual e daquilo que acontece à volta, apesar de mais difícil.
Por exemplo, se um casamento assenta pouco no afeto e na proximidade, será mais difícil que as
coisas corram bem quando têm filhos. Relações mal sedimentadas acabam por explodir na chamada
fase do “ninho vazio”: casais que se mantêm juntos só porque há tarefas que precisam de desempe-
nhar juntos para criar os filhos, mas não resistem quando ficam sozinhos pois confrontam-se nova-
mente com a ideia de estarem os dois.

6.1.2 Formas de avaliação da família


Em Medicina Geral e Familiar, o genograma familiar é o mais importante método de estudo de
uma família. Ao longo de pelo menos três gerações, o genograma coleciona informação, usando regras
e simbologia própria, sobre a estrutura familiar, os dados demográficos, a história clínica e as relações
entre os elementos de uma família. É uma ferramenta muito útil para o trabalho clínico diário.
Assim, um genograma pode-se definir como sendo um instrumento de avaliação familiar que con-
siste num sistema de colheita e registo de dados e que integra a história biomédica e a história psicos-
social do paciente e da sua família.

O genograma familiar tem indicações para a sua realização, tal como qualquer outra técnica ou
exame complementar. Assim, a sua realização está indicada nas seguintes situações:
 Nas consultas de 1ª vez, como método de diagnóstico apoiando o raciocínio e decisão clínica.
Deve ser completado em próximas consultas, sempre que surja informação nova e relevante;
 Quando o modelo biomédico não dá resposta satisfatória aos problemas dos pacientes – por difi-
culdade de diagnóstico, por falta de adesão ao plano de ação, na alta frequência de doenças
agudas ou quando ocorre doença crónica terminal;
 Em particular, tem interesse nas seguintes situações clínicas: ansiedade crónica, depressão e
ataques de pânico, consumo de drogas, violência doméstica e sexual, problemas de comporta-
mento infantil, “doente difícil2 ou de quem o “médico não gosta”.

Tem algumas limitações que convém conhecer-se.


 A sua realização aumenta o tempo de consulta e pode demorar anos a completar;
 É estático no tempo, como uma fotografia com data;
 Existe o “Efeito Rashomam”, em que numa família o mesmo acontecimento suscita várias
versões;
 Não avalia a dinâmica nem a funcionalidade familiar, apenas a estrutura;
 Existem problemas de fiabilidade (grande diversidade de dados anotados, diagnósticos reali-
zados por terceiros, falibilidade da memória, Efeito Rashomam, etc.);

102
 Tem baixa aplicação nas famílias de poucos elementos e o seu interesse é diminuto nas “pes-
soas sós”;
 Certos pacientes são relutantes ou resistentes a prestarem informação de índole familiar.
 Fazer diagnósticos ou extrair implicações clínicas ou terapêuticas só pela interpretação de um
genograma, por mais completo que ele seja, será com certeza um erro. O genograma familiar
deve ser considerado pelo médico como mais um elemento a ter em conta quando avalia
clinicamente qualquer sintoma ou problema de saúde de um paciente. O seu uso sistemático
contribui para que o médico preste cuidados de saúde mais compreensivos e longitudinais.
Rogers e Cohn, num estudo, concluíram que os médicos que utilizam rotineiramente o geno-
grama obtêm mais dados sobre a estrutura das famílias, os acontecimentos vitais, as doenças
de transmissão hereditária, e o relacionamento familiar do que os médicos que colhem esta
informação sem usar o genograma. Mas também concluíram que o genograma não avalia a
disfunção familiar.

Componentes do genograma:
1. Símbolos e regras – descrição dos
elementos da família e sua estru-
tura familiar
1.1. Primeiros nomes e ano de nas-
cimento dos elementos da famí-
lia;
1.2. Relações biológicas e legais do
casal;
1.3. Anos de casamento, separação
e divórcio;
1.4. Filho mais velho inscrito sempre
à esquerda, os outros a partir
dele, por ordem de nascimento;
1.5. Falecimentos com ano e causa
de morte;
1.6. Indicação dos elementos que vi-
vem na mesma casa;
2. História clínica – doenças crónicas
ou graves e problemas de saúde, es-
Figura 12 - Símbolos e regras do genograma familiar; Rebelo L (2007): Geno-
grama familiar: o bisturi do médico de família. Rev Port pecialmente de transmissão hereditá-
ria, segundo abreviaturas, categorias da ICPC e à direita do símbolo a que se refere;
3. Padrões de relações familiares - opcional, se for complexo registar em separado
3.1. Padrões de dominância;
3.2. Relações próximas ou distantes;

103
3.3. Relações conflituais;
3.4. Relações com triangulações ou alianças;
4. Outra informação familiar – caso seja de especial importância – dados étnicos, profissionais,
de escolaridade, de migração, de violência física ou sexual, abuso álcool e drogas, tabaco, etc.;
5. Chave de símbolos utilizados e não estandardizados;
6. Data de realização do genograma familiar.

O que permite o genograma?


 Permite o aconselhamento nos conflitos conjugais e de pais/filhos;
 Tem não só certo valor diagnóstico como terapêutico.

EM SUMA…
 Representação gráfica de pelo menos 3 gerações, como se fosse uma espécie de árvore ge-
nealógica;
 Registo de aspetos biomédicos e psicossociais/relacionais;
 Componentes, indicações, limitações;
 Completado ao longo de consultas de seguimento;
 Vantagens e potencialidades na clínica.
Os genogramas não são estritamente necessários em todos os casos; são mais úteis nas especia-
lidades de Medicina Geral e Familiar, Psiquiatria e Pediatria.

6.2 FAMÍLIAS E DOENÇA

6.2.1 As doenças agudas e crónicas nas famílias


A doença pode afetar todos os indivíduos e as suas famílias em qualquer altura. Corresponde a
uma situação de crise acidental, imprevista e dolorosa, perturbando o equilíbrio familiar, provocando
modificações nas relações entre os seus elementos, nos seus papeis e regras habituais de funciona-
mento familiar. A doença vai introduzir um elemento novo, suscetível de ser perturbador da homeos-
tasia familiar.
As reações familiares perante a doença de um dos seus membros são variáveis e complexas. A
uma fase inicial de desequilíbrio, segue-se uma fase de reorganização ou de rutura.
A maior parte das famílias tem as suas formas de lidar com a doença, tem regras que definem
quando a doença é suficientemente severa para necessitar de atenção do médico, sabem quem deve
ser o elemento cuidador, quem deve dizer ao resto da família, etc. estes padrões são transmitidos de
geração em geração.
Para avaliar o contexto familiar de uma forma mais ampla, prevenir as reações familiares e poder
mobilizar precocemente os recursos se a resposta não for adaptativa, o médico tem que considerar
várias questões: idade do doente; tipo, severidade e duração da doença; forma como o doente explica

104
a si próprio, ao médico e à família a doença; fase do ciclo de vida em que se encontra a família;
experiências prévias da família; estrutura da família; etc.
Na fase inicial após o diagnóstico, a família inicia um processo variável no tempo, vivenciando com
sentimentos diversos de protesto, desespero, revolta e tristeza. Nesta fase gera-se insegurança em
relação ao diagnóstico e à competência médica, levando frequentemente à procura de outras opiniões.
Aparecem conflitos e competições sobre quem é mais capaz de decidir, muitas vezes abandonam ou
têm atitudes de grande exigência em relação aos outros elementos, criando-se assim marcadas difi-
culdades de funcionamento.

Cabe ao médico entender estas atitudes e lidar com a situação, permitindo a verbalização dos con-
flitos e, assim, proporcionando à família um suporte emocional facilitador da aliança terapêutica.

Uma vez iniciado o processo terapêutico, toda a evolução da adaptação familiar vai depender não
só do tipo de doença, dos fatores em jogo já referidos, mas também das expectativas postas na recu-
peração do paciente, tanto pela família como pelo médico.
As doenças, quanto à forma de evolução podem classificar-se em (1) agudas, de início súbito,
tempo limitado e recuperação completa; (2) crónicas, quando após o diagnóstico se verifica haver uma
evolução prolongada ou sequelas incapacitantes; (3) terminal, quando a evolução levará à morte. A
adaptação a cada um dos diferentes tipos de doença é muito diferente.
Na doença aguda a família mobiliza-se usando os recursos adequados para proporcionar um di-
agnóstico e tratamento. Passa por um período de aparente desorganização, mas não deixa de procurar
os meios que possibilitem a intervenção. Esta atitude, quando levada a bom termo, permite encontrar
uma solução, restabelecendo o equilíbrio no funcionamento familiar, retomando o funcionamento an-
terior quando a remissão da doença é completa e a evolução é curta.
Na doença crónica, o que define a cronicidade não é só o tipo de doença, mas também as respos-
tas individuais e sistémicas (a nível familiar, das redes sociais e dos serviços). A doença crónica implica
mudanças e reajustamentos, na necessidade de formular equilíbrios (consoante os desafios associa-
dos à doença, por exemplo, numa dada família).

105
A doença crónica, em geral, exerce um efeito centrípeto na família, mas as repercussões diferem.
Se a doença ocorreu na transição para uma fase centrípeta do ciclo familiar (Ex: nascimento de um
filho), a família tende a reforçar esse efeito, podendo exagerá-lo, amplificando o movimento para den-
tro, aprisiona-se, isola-se, fecha-se mais sobre si própria, restringindo as trocas com o exterior, tor-
nando-se por isso mais vulnerável, impossibilitando assim o indispensável processo de intercâmbio,
imprescindível para o acesso a novas fases do seu desenvolvimento. Numa etapa centrífuga (Ex: na
adolescência ou saída de casa), esta fase pode ficar prejudicada e a família não evolui para uma nova
fase de desenvolvimento. Vejamos o seguinte exemplo:
Filho que no final da sua adolescência tem planos para sair de casa, para ir estudar fora. Na mesma altura, o
seu pai tem o diagnóstico de uma doença crónica grave. Surge um dilema neste rapaz: “O que faço? Vou seguir
a minha vida? Ou fico e ajudo a minha família, sobretudo o meu pai que está doente?”. Muitas vezes, confronta-
dos com estas situações, as pessoas tomam decisões que não são as que tinham projetado. Desistindo de sair,
a pessoa fica mais envolvida com a família, ocorre um movimento centrípeto, que é o que habitualmente acontece
na doença crónica.

As situações nas quais a avaliação familiar é obrigatória incluem:


 Sintomas inespecíficos
 Sobreutilização dos serviços de saúde
 Muitos elementos da família na consulta
 Doença crónica
 Isolamento
 Problemas emocionais graves
 “imitação” de doença
 Problemas de casal
 Doença nas fases de transição do ciclo de vida
 Morte, divórcio
 Doenças relacionadas com o estilo de vida
 Resistência ao tratamento

Neste contexto, torna-se importante falar da formulação familiar do problema clínico.


Perante um determinado problema clínico, qual o papel da família?
 Família como recurso e apoio
 Pode ajudar como sistema reativo; a reação das pessoas e da família como conjunto a este
tipo de stress, uma vez que a doença funciona como um desafio.
 Podem haver fatores familiares implicados na origem e na manutenção das doenças.

Exemplo 1: Supondo que alguém se apresenta numa consulta com um episódio depressivo. Pode
ter que ver ou ter sido precipitado por uma rotura conjugal.

106
Deste modo, a família pode ser a origem dos sintomas, isto numa vertente psicossocial (e não
biomédica, que refere que a família pode estar na origem de qualquer doença com componente here-
ditário).

Exemplo 2: Alguém com sintomas depressivos que tenha uma relação conjugal muito má, em que
estão sempre zangados.
Isso pode não ser a causa da depressão, que até pode ter determinantes biológicas, mas na ver-
dade desajuda a recuperação.

Exemplo 3: Senhora que aparece na consulta do seu médico de família e que lhe conta o seguinte:
“o meu marido esconde-me tudo em casa. Parece que faz de propósito. E sai de casa para ir sair com
miúdas novas, acho que me anda a trair”. Perante esta descrição, o médico pode acreditar que isto é
inteiramente verdade ou pode questionar que isto não seja exatamente assim.
Falando só com a senhora podemos fazer uma formulação provisória, ficando mais ou menos con-
vencidos. Por exemplo, podemos pensar que a senhora está perfeitamente bem e que o marido anda
a ter estas atitudes estranhas porque está perturbado, eventualmente tem uma demência comporta-
mental, ou que não gosta muito dela e está a fazer coisas disparatadas mesmo sem estar doente.
Também podemos ficar com a ideia de que é a senhora quem está perturbada, pode ter um pro-
blema psicótico, ou que apresenta falhas cognitivas e demência em fase inicial (não é o marido que
lhe esconde as coisas, é ela que se esquece onde as põe).
A atitude do médico deve ser de reserva, pode perguntar: “o que é que a leva a pensar isso?”
Dependendo da resposta da senhora, pode reforçar uma hipótese ou outra.
Em todo o caso, nesta fase não é possível ter uma noção muito clara, são meramente hipóteses.
Aqui a opinião de um filho ou do próprio marido ajudaria. Com a autorização da senhora, podia se fazer
uma entrevista familiar (entrevista conjunta, ou se o doente preferir, individualmente com o médico).
Nem todos os casos exigem entrevista familiar, mas casos como este que envolvam a família, exigem
um maior conhecimento dos fatos. O médico ao falar apenas com a senhora não consegue gerir isto.

Imaginemos que a senhora do exemplo 3 tinha realmente uma demência com algum tempo de
evolução e se tinha tornado insuportável no dia-a-dia com o marido. É possível que aquele marido,
que até gostava muito da senhora e que tinha até há algum tempo imensa paciência para ela, passasse
a falar muito com a senhora da padaria, basicamente era um escape para sair de casa, sem haver ali
qualquer traição. A circularidade tem que ver com isto: quando a esposa vir que o marido anda a falar
com a senhora da padaria, a ideia de que o marido a anda a trair fica reforçada. Quanto mais é refor-
çada a ideia da senhora, mais este homem tem tendência a ter um escape qualquer.

Entrevista individual  Hipóteses sobre o papel da família  Entrevista com


familiares  Reformulação das hipóteses (Bloch et al, 1994). [Modelo Sistémico]

107
Algumas das situações em que o médico de família pode achar que é mesmo necessário falar com
a família incluem:
 Quando não percebemos os sintomas; quando foram esgotados todos os exames.
 Quando há alguém que vem sistematicamente muito preocupado à consulta.
Não significa que o familiar nos dê uma melhor visão das coisas do que o próprio doente, às vezes
também exageram muito. Mas em caso de muita preocupação, tem sempre alguma utilidade, nem que
seja uma preocupação excessiva em relação à qual temos de tranquilizar.
Quando não é possível trazer outros membros da família para a consulta, a entrevista deve incluir
questões orientadas para a família, tais como:
 Alguém da sua família já teve este problema?
 O que é que a sua família pensa que causou esta situação ou o que é a pode resolver?
 Qual é o seu familiar que está mais preocupado com este problema?
 Houve alguma alteração familiar concomitante com o aparecimento destas queixas?
 Como é que a sua família o pode ajudar a gerir esta situação?

Como já vimos, a família pode ser tida como:


 Um recurso e apoio
 Sistema reativo/ impacto na família
 Papel causal e/ou na manutenção do problema

Bloch et al (1994) propuseram um modelo tripartido para as relações entre família e doença (N.B.
quando falamos em família, neste contexto, consideramos apenas os fatores familiares psicossociais
envolvidos nos problemas clínicos, excluindo da discussão as questões biológicas da hereditariedade,
embora também fundamentais na clínica). Estes autores consideraram: (1) a família como sistema
reativo (o impacto da doença na família); (2) os fatores familiares implicados nos sintomas (de forma
simplista, o impacto da família na doença); 3) a família como recurso.
Este modelo, proposto nas doenças mentais, pode generalizar-se à área médica geral (Gonçalves
Pereira, 2010). Explicando melhor os três componentes identificados acima:
1) Na reação das famílias, podemos considerar aspetos como a sobrecarga familiar, ou a ansi-
edade e depressão reativas aos desafios da doença (o impacto negativo), ou a gratificação
pela ajuda prestada ao familiar doente (exemplo de impacto positivo).
2) Nalguns casos, a família pode também desempenhar um papel na origem, exacerbação ou
na manutenção dos sintomas. Algumas interações, no início eventualmente adaptativas, po-
dem funcionar de forma não intencional para manter os problemas. Bowen, Bateson e outros
terapeutas familiares descreviam, entre outros, conflitos conjugais estabilizados pela doença
num filho: é o caso clássico da “solução como problema” (Sampaio, 2008). Considerar tam-
bém a “emoção expressa”.
3) Lamentavelmente, tem havido menos investigação sobre as famílias enquanto recurso inesti-
mável na ajuda às pessoas doentes. Citando Greenberg e col. (2006): “past research has

108
emphasized changing families, most typically by lowering expressed emotion, with little em-
phasis on family strengths, in particular prosocial family processes that may enhance the life
satisfaction of their loved one”. O enfoque nos aspetos negativos tem sido excessivo. Estamos
menos habituados a valorizar os recursos, negligenciando o papel promotor de saúde que a
maioria das famílias desempenha nas vidas dos seus elementos com doença. A preocupação
tendencial nas intervenções familiares tem sido de “consertar” as famílias e não tanto de vali-
dar e potenciar o que está bem (Gonçalves Pereira, 2010).

Como exemplo de um fator familiar importante na doença crónica referimos a “emoção expressa”
(EE), descrita originalmente na esquizofrenia. A Emoção Expressa é o “índice global das emoções,
atitudes e comportamentos demonstrados pelos membros de uma família face ao doente” (Brown).
A história da EE iniciou-se com a “impressão clínica” de um ambiente emocional particular nalgumas
famílias de pessoas com esquizofrenia e recaídas psicóticas mais frequentes. Brown et al (1962) e o
grupo de Julian Leff, no Instituto de Psiquiatria de Londres (décadas 70-80 do século passado) tenta-
ram discriminar esse ambiente usando a Camberwell Family Interview (entrevista semiestruturada com
um elemento da família, analisando conteúdos verbais e variáveis prosódicas como a tonalidade vo-
cal).
Três parâmetros são usados:
1. frequência dos comentários críticos sobre comportamentos do doente – ressentimento, repro-
vação, desgostar – considerando-se o tom crítico, independentemente do conteúdo;
2. hostilidade manifesta quanto ao doente – dirigida ao que é, como pessoa, mais que ao que
faz;
3. sobreenvolvimento emocional em relação ao doente – resposta emocional exagerada, mistura
de preocupação constante, autossacrifício, identificação com o doente, hiperprotecção e com-
portamento intrusivo.
O hiperenvolvimento emocional pode ocorrer, por exemplo, numa mãe que tem um amor enorme
pelo seu filho doente (e que se culpabiliza, sem razão, por ele estar assim). Os comentários críticos e
a hostilidade podem ocorrer em familiares que se sentem desesperados e impotentes, nomeadamente
em casos que parecem não melhorar.
A EE elevada, que pode existir em qualquer doença crónica, é hoje reconhecida como um preditor
robusto de recaídas na esquizofrenia (Butzlaff & Hooley, 1998; Barrowclough 2005). Traduz, em
grande parte, preocupação e sofrimento dos familiares (como se se tratasse de um “termómetro emo-
cional” familiar).
A investigação tem abordado as relações complexas entre EE e sobrecarga familiar. A EE é, assim,
o foco de muitas intervenções com estas famílias, mas também tem importância noutras áreas da
Medicina em geral (Ex: lombalgias - Ballús-Creus et al, 2014). Estas intervenções requerem prepara-
ção específica, alguma duração e intensidade. É essencial dar informação aos familiares, mas a infor-
mação só por si não é suficiente para ajudar a mudar estes comportamentos.

109
6.2.2 Cuidar de um familiar com doença crónica
Na prestação de cuidados, uma pessoa assume responsabilidades não remuneradas e não anteci-
padas. O caso de um casal de pessoas idosas, em que nenhuma delas é doente, se apoiar um ao
outro não é uma relação de prestação de cuidados. Só passa a ser caso surja uma doença numa
delas. Falar de uma relação de prestação de cuidados informais pressupõe a existência de uma do-
ença. Na prestação de cuidados, um cuidador pode assumir papéis de 1ª linha, como mudar fraldas,
dar a medicação, enquanto que há outros com menos envolvimento direto, nos quais o cuidador não
lida com a pessoa doente no dia-a-dia, mas que mobilizam recursos: arranjar empregados, acompa-
nhar às consultas.

Existem 4 modelos de cuidadores:


 Cuidadores como recurso - Provavelmente a perspetiva mais comum: de que é natural a fa-
mília responsabilizar-se pelos cuidados dos seus membros. O foco dos serviços é a pessoa
dependente e o objetivo é maximizar o nível dos cuidados informais.
 Cuidadores como colegas de trabalho - Este modelo também procura manter e aumentar os
cuidados informais, embora reconheça que para o fazer os cuidadores têm que ser reconhe-
cidos – tanto nas necessidades psicológicas como físicas, tais como ajuda doméstica, auxili-
ares, férias. Isto pode ser providenciado através de uma variedade de serviços, incluindo su-
porte personalizado vindo de profissionais de saúde (tais como enfermeiros) ou através de
suporte oferecido por serviços solidários ou organizações voluntárias.
 Cuidadores como co-clientes - Aqui o cuidador torna-se um cliente indireto e, por conseguinte,
um foco legítimo de suporte e serviços. Assim, os cuidadores poderão ter mais facilidade em
receber ajuda e suporte através dos serviços sociais do que através do SNS, a menos que os
serviços possam ser vistos com tendo um desfecho clínico direto. A terapia familiar trata todos
os membros como “pacientes” ou “clientes”.
 Cuidadores suplantares - Este último modelo olha para o futuro da pessoa dependente, pro-
curando tornar o doente independente e o mais suficiente possível sem a ajuda do cuidador.
Este modelo poderá ser mais apropriado para os doentes dependentes dos pais. Não só é
melhor para as pessoas incapacitadas ter uma maior independência mas também ajuda a
responder à questão de quem tratará do doente depois dos pais se tornarem incapazes.
Não é taxativo que quem não viva com o doente tenha menos sofrimento psicológico; alguém que
não consegue estar tão presente pode ter um sentimento de culpa por não poder fazer mais (mas não
poder deixar o seu trabalho).

O que é que se pode esperar das pessoas (familiares de doentes com qualquer tipo de doença)?
Por vezes mais do que aquilo que podem dar! Às vezes, podemos dar alta a um doente que esteve
internado, por exemplo com uma crise psicótica ou um AVC, e fazer recomendações aos familiares e,
se não nos preocuparmos em saber como é que essas pessoas (familiares) estão, podemos estar a
pedir coisas que não são muito justas de pedir. Ter em consideração que estas pessoas podem já ter
uma certa idade ou terem também doenças: por exemplo, se estivermos a pedir a alguém que tem

110
uma doença osteoarticular com muitas dores, está a passar por um quadro depressivo e tem dificulda-
des económicas que ajude o seu marido no pós-AVC, podemos estar a pedir demais.
Aliás, até ao início do século XX era muito comum que doentes com psicoses, do tipo da esquizo-
frenia, estivessem internados, institucionalizados e não estivessem em casa, porque não havia trata-
mentos eficazes. A partir da década de 50, surgiram psicofármacos e houve muitos hospitais a fechar
porque era possível ter estas pessoas na comunidade, não precisam de ficar institucionalizadas.
“É reconhecido por todos que os doentes com psicose crónica já não estão propriamente num hos-
pital como no passado; no entanto, isto é, muitas vezes, mediante o pagamento de um preço elevado.”,
by ex-diretor do Instituto de Psiquiatria de Londres.
Que preço? O fato de serem as famílias a desempenhar o papel de cuidadores, sem que tenham
propriamente uma grande preparação para tal.
Este é o primeiro sinal de uma autocrítica para os serviços: é preciso ajudar muito mais as famílias,
para que estas não façam coisas erradas com os doentes que estão a tentar ajudar no seu próprio
seio.

Daqui surge o conceito do impacto do “cuidar” sobre a família. Esse é tradicionalmente referido
como sendo um “fardo”, uma “sobrecarga”, apesar de, e especialmente para aqueles de quem se
cuida, poder parecer insultante ou estigmatizante. Essa sobrecarga pode depois ser descrita como
objetiva (pode ser objetivamente medida e externamente validada), ou subjetiva (aquela que é perce-
cionada pelo cuidador). Devemos ter em atenção que as sobrecargas objetiva e subjetiva não têm que
ser necessariamente correlacionáveis: podem haver pessoas que têm que gastar mais uns euros por
mês e que percebemos que isso não tem impacto nenhum no orçamento familiar (sobrecarga objetiva
pequena), mas para quem isso traduz uma sobrecarga subjetiva enorme; por outro lado, há pessoas
que têm uma sobrecarga objetiva enorme e que se dizem capazes de suportar a situação.

A sobrecarga objetiva compreende os aspetos que podem ser observados externamente e quanti-
ficados objetivamente. A “rotura” do ambiente doméstico pode ser severa particularmente em termos
de perda de liberdade e privacidade, o que inclui a dificuldade que os casais podem ter em passar
tempo juntos sozinhos. As crianças podem ser afetadas através de restrições nas suas vidas particu-
larmente se elas se tornam também cuidadoras dos pais.
As tarefas variam dependendo nas necessidades da pessoa doente. Para idosos dependentes os
cuidados podem focar-se mais em tarefas físicas. Contudo o trabalho penoso envolvido em cuidar de
alguém que pouco pode fazer por si próprio não deve ser sobrestimado. Quando o caso é de a pessoa
dependente ter uma doença mental, os cuidados podem focar-se mais na supervisão e tomada de
responsabilidade das finanças e medicação. Os comportamentos que mais preocupam as famílias são
aqueles que são socialmente perturbadores ou vergonhosos ou que colocam a pessoa em risco.
O efeito dos cuidados na saúde do cuidador, tanto física como mental, correspondem a uma sobre-
carga tanto objetiva como subjetiva. Muitos cuidadores têm pobre saúde mental (particularmente de-
pressão e ansiedade) ou sofrem de lesões físicas, especialmente a nível da coluna lombar, devido ao
levantamento de pesos. O isolamento social é um problema tanto em termos do seu impacto na vida

111
dos cuidadores como também por contribuir para outros problemas. A maioria dos cuidadores não
recebe ajuda exterior e o tempo despendido cuidando pode severamente restringir o envolvimento do
cuidador com o mundo fora da família.
1.1. A sobrecarga financeira - necessidade de comprar medicamentos, fazer tratamentos;
1.2. Número de horas disponibilizadas nos cuidados;
1.3. Saúde do cuidador pode ficar comprometida, quer a nível físico quer psiquiátrico (depressão e
ansiedade).

A sobrecarga subjetiva é difícil de medir objetivamente e é, em parte, a forma como o cuidador se


sente por cuidar. O isolamento social não é só a ausência de contato exterior, mas também a extensão
do quanto o cuidador se sente isolado e afastado. Os cuidadores poderão sentir que a sua indepen-
dência e liberdade ou sentido de identidade estão erodidos. Aqui os conceitos de resiliência e os traços
de personalidade podem ajudar a explicar.
O estigma é experienciado tanto pelos doentes como pelos cuidadores, e reflete a perspetiva ne-
gativa da sociedade. O impacto emocional inclui desde ansiedade, depressão, desespero, falta de
esperança e/ou de ajuda, até ressentimento, frustração e raiva. O stress resulta quando o cuidador é
incapaz de continuar a lidar com as demandas exigidas pelo cuidado. Tal pode ser exacerbado por
culpa e a preocupação de que não estão a fazer o suficiente ou que de alguma forma contribuíram
para o problema. Preocupação com o futuro é especialmente importante para os cuidadores idosos
que se preocupam acerca do que irá acontecer quando falecerem. Por último, o papel do cuidador tem
um impacto e muda a relação entre as duas pessoas. Para uma mulher, a tarefa de ser cuidador é
frequentemente esperada e vista como uma extensão da sua função desempenhada ao longo da vida,
especialmente se cuidando de uma criança que é agora adulto. Os papéis são invertidos quando se
cuida dos pais ou se toma conta do cônjuge/parceiro: o suporte mútuo na relação poderá ser perdido.
O papel do cuidador geralmente recai numa pessoa da família, mais frequentemente uma mulher.

Por vezes as pessoas sentem repugnância em chamar sobrecarga àquilo que estão a viver. Deve-
se reconhecer que o impacto que as doenças têm nas famílias pode ser claramente negativo, mas
igualmente reconhecer que este não é um termo “muito feliz”. Assim, tem havido uma mudança con-
ceptual desde o impacto negativo (sobre a forma de sobrecarga) até àquilo que os ingleses chamam
care living, que pode ser entendido como a experiência, a vivência de tratar de alguém que tem uma
doença.
As investigações tendem em se focar nos aspetos negativos dos cuidados e pode ser difícil reco-
nhecer, perante um familiar que tem uma doença grave, que haja alguma coisa positiva naquela situ-
ação; desta forma, é fácil ignorar que cuidar de um ente querido traz recompensas e prazeres. Aspetos
positivos são as coisas que habitualmente se fala menos mas que também existem:
 Aproximação de elementos da família. Ultrapassar dificuldades que tinham antes. Ex: pai e filho
que tinham uma má relação e que por motivo de doença de um deles se aproximam. Todavia,
pode acontecer o contrário!
 Satisfação pessoal em ajudar alguém de quem se gosta muito

112
 Ganhar sentido para algumas vidas que até aí não tinham muito sentido
Não significa que valha a pena face aos aspetos negativos, mas servem para dar aquilo que as
pessoas precisam para se aguentar ao longo do tempo, que é esperança. O médico deve continuar a
dar esperança, mesmo que não seja a da cura.

Por fim, é também importante referir os problemas dos cuidadores. Não ser reconhecido como
cuidador é central a outros problemas, como falta de serviços adequados, de suporte, e falta de infor-
mação e conselhos. Isto pode ser particularmente importante em pessoas que sentem que não tiveram
alternativa em assumir o papel de cuidador.
A confidencialidade levanta uma série de problemas. Os cuidadores poderão achar que precisam
de informação sobre o doente e a sua condição, mas que o doente não quer divulgar. Apesar de haver
guidelines, os médicos usam o seu juízo acerca do que partilhar. Assim, podem sentir que é mais
confortável discutir o tratamento de uma pessoa com demência com o seu cônjuge, do que com a mãe
de um filho com esquizofrenia. Os cuidadores frequentemente também precisam do seu próprio su-
porte.

Há muitos instrumentos para avaliação das repercussões familiares das doenças mentais, de-
mência ou outras doenças crónicas. Estes questionários são usados geralmente em investigação; por
princípio, não recomendamos o seu uso sistemático em consultas. No entanto, são uma ajuda impor-
tante para lembrar certas perguntas essenciais (na exploração breve das dificuldades das famílias, em
consultas).
Sem que isso implique o recurso a questionários padronizados, é fundamental inquirir acerca das
dificuldades dos familiares/cuidadores informais, em equipa multidisciplinar e em momentos apropria-
dos. A atitude do médico (empática e interessada nas necessidades das famílias) é crucial, mesmo
que parte da exploração seja feita por outros profissionais. O médico deverá sempre adequar a sua
forma de inquirir às pessoas e ao contexto clínico e sociocultural, mas seguem-se exemplos genéricos:
 Como tem estado? O que tem sido mais difícil? O que tem sido positivo (apesar das dificuldades)?
O que tem ajudado? Com quem pode contar?
 Rastreio clínico da ansiedade/depressão!
 O que sabe sobre a doença (do seu familiar)? Onde obteve essa informação? Em que medida (a
informação) tem sido útil? O que precisaria de saber mais (para o/a ajudar/ para se ajudar a si)?
 Que tipo de ajuda seria mais necessária para a sua família (incluindo para o seu familiar que tem
estado doente)?

Resumindo, os membros da família (individualmente) ou o sistema familiar podem registar fenó-


menos de stress decorrendo da doença (eclosão, recaídas): trata-se de uma reação (impacto da do-
ença nas famílias). Por outro lado, também há fenómenos de stress que podem facilitar a eclosão ou
recaída da doença (de forma simplista, fala-se do impacto da família na doença). Muitas vezes há uma
combinação em escalada: doença numa fase de mudança do ciclo vital, implicando mais stress ainda
para a família e, consequentemente, exacerbação da doença. Este é um exemplo de circularidade, de
acordo com o modelo sistémico (Gonçalves Pereira, 2010).

113
7 TEMA 7: SAÚDE E DOENÇA NA MATRIZ LABORAL E NA MATRIZ SOCIO-
CULTURAL. STRESS E BURNOUT EM GERAL E EM MEDICINA. ASPETOS PSI-
COLÓGICOS DAS DOENÇAS CARDIOVASCULARES

7.1 MATRIZ LABORAL


A declaração dos direitos humanos afirma que “todos têm o direito a trabalhar”. Será que isto quer
dizer que o trabalho é bom para nós e para a nossa saúde? Todo o trabalho é bom para nós?
As características de um “trabalho saudável” incluem:
 Remuneração e condições – bons salários/benefícios
– Segurança
 Ambiente físico – proteção de perigos físicos, químicos e biológicos
 Exigências – nem muito nem pouco trabalho; sem horas excessivas
– papel claro e sem exigências que entrem em conflito
– horas não sociais e trabalho por turno mínimos
– conflito mínimo entre as exigências do trabalho e da vida pessoal
 Capacidades – possibilidade de usar capacidades e ser criativo
– oportunidade de desenvolver novas capacidades
 Controlo – possibilidade de controlar como trabalha
– participação na toma de decisão
– capacidade de se organizar independentemente
 Apoio – colaboração e esforço coletivo. Boa comunicação
– boas relações com colegas e supervisores
– ser valorizado e respeitado. Tratamento igual para todos.
Assim, a ausência destes critérios pode conduzir a uma deterioração da saúde e lesão.
Além disso, o mundo do trabalho tem vindo a mudar no século 21. A saúde das pessoas que traba-
lham também será afetada por estas alterações, que incluem:
 Aumento do uso de tecnologia de informação
 Aumento dos pequenos negócios
 Redução dos sindicatos
 Mais mulheres e pessoas mais velhas no mercado de trabalho
 Intensificação do trabalho
 Sociedade de 24h (Ex: call centres)
 Aumento das exigências de flexibilidade
 Mais contratos temporários ou a curto-prazo
 Aumento das desigualdades a nível de capacidades
 Redução das dimensões
 Privatização de indústrias do estado

7.1.1 Stress ocupacional


O stress é atualmente a segunda principal causa de ausência laboral por doença relacionada com
o trabalho na Europa, seguindo-se apenas a condições relacionadas com a coluna lombar e outras
causas musculoesqueléticas. Estudos têm vindo a demonstrar que trabalhos que careçam das carac-
terísticas de um “trabalho saudável” listadas acima podem resultam em stress ocupacional:
 Insegurança no trabalho conduz a aumento do relato de sintomas e problemas de saúde, sendo
aqueles nos níveis mais baixos das empresas os mais afetados.
 A introdução de novas tecnologias conduz a aflição psicológica (psychological distress), particu-
larmente no sei dos mais mal pagos, com menos capacidades ou mais velhos.
 As horas extra estão associadas a aumento da tensão arterial

114
Assim, podemos sistematizar algumas condições que estão relacionadas com stress ocupacional:
 sobrecarga quantitativa, qualitativa ou mista; subcarga;
 autonomia de decisão e exigência psicológica adequadas;
 trabalho exigente por turnos, condições físicas pesadas.
Além disso, um trabalho exigente, associado a fraca autonomia de decisão, induz stress, retira sa-
tisfação ao trabalho e aumenta o risco de doença coronária isquémica (Karaseck, Theorell et al., 1982,
ap. Vaz Serra 1999).
Há uma evidência clara entre o stress e doença arterial coronária (como veremos mais adiante)
assim como entre o stress e a inibição do sistema imune.

7.1.2 Reações à situação de desemprego


Vimos há pouco que com o decorrer do século XXI têm vindo a aumentar a taxa de empregos em
part-time, a exigência de flexibilidade e os trabalhos por conta-própria. Ao mesmo tempo, o desem-
prego ao longo da vida tem-se tornado uma experiência mais comum para uma maior percentagem da
população; a taxa de desemprego é maior para homens jovens.
É atualmente aceite que o desemprego constitui um evento stressante na vida de uma pessoa,
podendo predispor, precipitar ou perpetuar problemas de saúde e, eventualmente, aumentar a morta-
lidade.
Foram feitos diversos estudos neste contexto, tendo revelado alguns dos fatores que moderam o
impacto negativo do desemprego:
 Pessoas que estavam comprometidas com o seu trabalho e aquelas que se tornaram exces-
sivas estavam em particular desvantagem;
 A idade e o tempo de desemprego estão correlacionados, de tal forma que as pessoas mais
velhas têm menos probabilidade de voltar a ter emprego e maior tendência a adoecer. Os
desempregados de meia-idade são aqueles que têm menor score de bem-estar.
 Apesar de terem sido encontradas diferenças entre sexos, tendo os homens maiores taxas
de morbilidade psicológica, pensou-se que isso estaria relacionado com o empenho pessoal
para com o seu trabalho. Quando se excluiu a variável “trabalho pessoal”, os sexos eram
igualmente afetados.
Em contextos de recessão, a probabilidade de desemprego será maior, bem como a possibilidade
de marginalização no mercado de trabalho/insegurança profissional. Em consequência, aumenta o
risco de pobreza, stress e alterações nos comportamentos de saúde (isolamento social, tabaco, álcool
e outros tóxicos, menos exercício físico, etc.).
Em última instância, produzem-se efeitos na saúde mental (ansiedade clinicamente significativa,
depressão, parasuicídio/suicídio?); subnutrição, alojamento/aquecimento deficiente; riscos em termos
de saúde geral (bronquite, neoplasias do pulmão, doença cardíaca, acidentes, baixo peso ao nascer,
atraso de crescimento infantil, vulnerabilidade geral?)
Ou seja, associados aos tempos de recessão económica está também o aumento da taxa de mor-
talidade; as pessoas desempregadas têm maiores taxas de mortalidade que aqueles com emprego, e

115
a mortalidade aumenta com o tempo que a pessoa está desempregada. As causas de morte que pre-
dominam entre os desempregados incluem:
 Neoplasias malignas, particularmente cancro do pulmão;
 Acidentes
 Envenenamento e violência (especialmente suicídio)
No que toca às relações entre desemprego e problemas de saúde, considerar a discussão: associ-
ação versus causalidade. Existindo estudos epidemiológicos transversais e do tipo longitudinal, quais
nos permitem fundamentar a presunção de causalidade?

7.1.3 Reforma
A reforma representa uma fase de transição muito importante na vida das pessoas, podendo ser
considerada uma “crise” no sentido de Erikson. Acarreta, para algumas pessoas ou nalgumas fases:
1. perdas (“lutos”), ou desafios a múltiplos níveis:
a. alterações em benefícios materiais, status, prestígio, “capital social”, ou em benefícios
afetivos/realização do “eu”;
b. mudanças na possibilidade de ocupação/organização do tempo.
2. Poderiam existir expectativas idealizadas face à reforma, que se desvanecem perante a reali-
dade.
3. Outra possibilidade é a confrontação com dificuldades (Ex: relacionais/familiares) anteriormente
evitadas mediante foco excessivo no trabalho.
4. Finalmente, podem ser revividas perdas: a reforma funciona como “gatilho” que, uma vez acio-
nado, reaviva o mal-estar já sentido em situações semelhantes, ao menos simbolicamente –
Ex: despedimento, baixa prolongada.
Todas as circunstâncias mencionadas podem ser conotadas com o significado de “perda”. Por outro
lado, constituem sobretudo desafios: o significado pessoal, tendencialmente “positivo” ou “negativo”,
depende das circunstâncias e das atribuições. Trata-se de mais um exemplo em que a personalidade
ou o grau de apoio familiar e social são determinantes na adaptação do indivíduo. Note-se que a situ-
ação de reforma representa também a oportunidade para descansar (“há um tempo para tudo”) ou
para concretizar projetos pessoais ou familiares adiados ao longo de décadas.
Segundo Vega & Bueno, 1995, ap. Claver Martín, 2002, a reforma pode ser dividida em várias fases:
1) pré-reforma; 2) reforma (lua de mel, rotina, descanso); 3) desencanto e “depressão”; 4) reorientação;
5) estabilização.

7.1.4 Burnout profissional


“Estado de fadiga ou frustração surgido pela devoção por uma causa, forma de vida ou relação
que fracassou no que respeita à recompensa esperada”.
Freudenberger (1974)

116
Apesar da definição apresentada por Freudenberger ser bastante generalista, o burnout atualmente
está mais ligado à vida profissional, não sendo muito estudado noutros contextos. A tradução portu-
guesa “esgotamento” tem sido usada por alguns, sem que haja consenso: o termo inglês passou a ser
utilizado correntemente.
O burnout ocupacional é experienciado por cerca de
18% dos adultos e tem 3 sintomas principais:
 Exaustão emocional – evolve sentimentos de
exaustão física, esgotamento, cansaço extremo.
 Despersonalização – envolve uma abordagem im-
pessoal e desprovida de sentimentos para com os
colegas ou, no caso dos médicos, para com os do-
entes; cinismo, falta de compromisso para com o
emprego ou pessoas.
 Menor realização pessoal – envolve o sentimento
de pouca eficácia, envolvimento e compromisso, e
uma falta de credibilidade nas suas próprias capa-
cidades de mudar e melhorar os padrões de traba-
lho ou do ambiente.
Posto isto, torna-se importante distinguir o stress ocupacional da síndrome depressiva: a síndrome
de burnout está na interface com ambos e, na literatura, as diferenças nem sempre são claras. Em
certo sentido, poder-se-á considerar que burnout é uma forma específica de stress ocupacional (sendo
este último conceito mais genérico), decorrendo do agravamento do mesmo. Deve distinguir-se bur-
nout (constructo originário da Psicologia) do conceito clínico de depressão (como síndrome/doença):
burnout pode aumentar o risco de depressão, mas os dois conceitos não se equivalem.
Para avaliarmos o burnout podemos utilizar o Maslach Burnout Inventory. As perguntas do ques-
tionário incidem na exaustão emocional, despersonalização (mudança de atitude relativamente ao tra-
balho; a pessoa sente-se um pouco cínica face ao seu emprego, usando isso como mecanismo de
defesa) e menor realização pessoal. Há várias versões deste questionário sendo muito usado em pro-
fessores de ensino secundário. Há uma versão também para profissionais de saúde.
O burnout conduz a grande insatisfação profissional, absentismo e muita rotação de staff. Os sin-
tomas de exaustão estão associados a muitos outros sintomas físicos, tais como cefaleias, alterações
gastrointestinais, hipertensão, constipações e gripe, distúrbios do sono, etc.
O local de trabalho é crítico para o desenvolvimento de burnout. Estudos sugerem que o burnout é
mais provável em empregos que envolvam:
a) Grande carga de trabalho
b) Falta de controlo
c) Recompensas insuficientes
d) Injustiça
e) Conflitos de valores
f) Mau sentido de comunidade.

117
O local de trabalho é particularmente relevante para os profissionais de saúde. Estudos demons-
tram que 27% dos profissionais de saúde reportam burnout e problemas psicológicos, que estavam
associados ao sentimento de sobrecarga, má gestão, falta de recursos, lidar com o sofrimento dos
doentes e ter problemas fora do local de trabalho; o burnout é também mais comum no seio dos pro-
fissionais que se sentem mal treinados no que toca as capacidades de comunicação e de manejo.
Áreas como Cuidados Intensivos e Cuidados Paliativos tendem a ter maiores taxas de burnout.
Os estudantes de medicina também vivenciam muitos eventos stressantes. Esses incluem avali-
ações constantes; lidar com staff hospitalar e com doentes; lidar com a morte, sofrimento e problemas
éticos; desempenhar exames íntimos noutros jovens; número de horas de trabalho muito exigente.
Estudos longitudinais que seguiram estudantes de medicina durante uma série de anos descobriram
algumas características que estão associadas ao stress e ao burnout mais tardiamente na via. Aqueles
estudantes que são desorganizados, não organizam bem o seu tempo, se sentem sobrecarregados e
que não conhecem as exigências das diferentes atividades têm maior probabilidade de reportar stress
e burnout por volta dos 30 anos de idade. Estudantes que são autocríticos, neuróticos, perfeccionistas,
que se sentem “impostores” e do sexo feminino têm maior probabilidade de sofrer stress e burnout
mais tarde na sua carreira.
Como tal, aprender a lidar com o stress é extremamente importante para os profissionais de sa-
úde. As 6 principais abordagens para a gestão do stress são: relaxamento; fitness físico; restruturação
cognitiva; meditação; treino de assertividade; inoculação do stress.
Intervenções como a inoculação do stress baseiam-se na exposição das pessoas a eventos poten-
cialmente stressantes de forma que elas se tornem inertes nessas mesmas situações. Por exemplo,
um treino de paramédicos muitas vezes inclui ensaios ou simulações de grandes acidentes de viação,
de forma a que quando esses paramédicos cheguem a um cenário de um acidente real estejam equi-
pados com os conhecimentos e ações corretos para lidar com a situação. Estudos têm vindo a de-
monstrar que técnicas comportamentais cognitivas, tais como a restruturação cognitiva, têm um efeito
maior e mais duradouro na redução do stress.
Os programas de gestão do stress cognitivo-comportamentais focam-se na avaliação e nas respos-
tas de coping para ajudar as pessoas a lidar melhor com o stress. Podem ser muito úteis a ajudar
pessoas a lidar com a sua doença; como tal, acabam por ser técnicas amplamente usadas com pes-
soas com doença cardiovascular, cancro, cefaleias crónicas, etc. No entanto, tem tido resultados con-
fusos: a evidência sugere que a gestão do stress traz efeitos positivos nas consequências psicológicas,
tais como redução da depressão e aumento da auto-estima; porém, o impacto na morbilidade física e
mortalidade são mistos. Uma forma particular de gestão do stress é o debriefing; foi originalmente
desenvolvido para ajudar pessoas com distúrbio de stress pós-traumático (DSPT) e geralmente implica
uma sessão até 4 semanas após o evento durante a qual a pessoa é encorajada a falar dos seus
pensamentos e sentimentos durante o mesmo, e dos sintomas que tem tido desde aí. Depois, o tera-
peuta educa a pessoa relativamente às respostas a eventos traumáticos, numa tentativa de normalizar
essas experiencias.

118
7.2 MATRIZ SOCIO-CULTURAL

7.2.1 Classe social, saúde e doença


Nos últimos anos têm vindo a ser conseguidos grandes
avanços a nível da saúde. Porém, continuam a haver dife-
renças entre as diferentes secções da população. Apesar de
as taxas de mortalidade reprodutiva e na vida adulta terem
diminuído em todas as classes sociais, a disparidade entre
as diferentes classes acabou por aumentar.
Isto porque as taxas de mortalidade têm vindo a decres-
cer mais claramente para as classes mais altas do que para Figura 13 - Esperança de vida à nascença: por
classe social e sexo
as mais baixas, o que é especialmente evidente nos países
industrializados. As discrepâncias nas taxas de morbilidade quando se considera a hierarquia social
tendem a apresentar padrões semelhantes às das taxas de mortalidade.
Não existe controvérsia nesse facto, mas sim no que se refere às possíveis explicações. Têm sido
avançadas diversas hipóteses:
A. culturais/comportamentais – foco no papel de fatores individuais e estilos de vida nos compor-
tamentos de saúde; esta hipótese sugere que a falta de conhecimento e de objetivos a longo
prazo conduzem a redução da possibilidade de dar melhor uso aos cuidados de saúde e a
outros serviços, e à adoção de comportamentos preventivos.
– o seu foco principal tem sido os comportamentos relacionados
com a saúde como tabagismo, dieta (incluindo consumo de álcool) e o exercício físico
B. materialistas ou estruturalistas – enfatizam o papel dos fatores socioeconómicos e as injustiças
na distribuição da riqueza: a estrutura social e as desigualdades entre grupos implicam a expo-
sição dos mais desfavorecidos a riscos de saúde;
C. seleção social – os níveis de saúde determinariam a “migração” das pessoas entre diversas
classes sociais; por exemplo, pessoas com melhor saúde tenderiam a ascender na hierarquia
social – o sentido da causalidade seria aqui invertido, pois não seria já a classe social a influ-
enciar o grau de saúde mas o contrário;
D. associações espúrias (explicação artefacto) – os defensores deste ponto de vista não atribui-
riam significado causal às associações entre classe social e saúde/doença. Eles defendem que
tanto a saúde como a classe social são variáveis artificiais produzidas com o intuito de medir o
fenómeno social e que, por isso, ao serem relacionadas podem surgir artefactos.
Alguns trabalhos importantes têm ajudado à progressão do conhecimento nesta área. Por exemplo,
os estudos Whitehall II (Marmot et al, 1991), com base num trabalho extenso com funcionários públicos
britânicos nas últimas décadas do século passado, destacaram a importância das primeiras hipóteses
e desvalorizaram as duas últimas.

119
7.2.2 Condições de habitação, saúde e doença
As más condições de habitação têm efeitos diretos e indiretos na saúde:
 Efeitos diretos: exposição a efeitos fisiológicos do ambiente ou de agentes patogénicos asso-
ciados às condições ambientais;
 Efeitos indiretos: exposição a más condições de habitação na infância pode trazer consequên-
cias para a saúde na vida adulta;
: causa stress ou desconforto, o que aumenta a suscetibilidade geral a doença
física ou a problemas emocionais;
: exacerba ou atrasa a recuperação de problemas de saúde existentes;
: torda difícil ou stressante a realização das atividades diárias;
: torna difícil o acesso a recursos que são necessários para a manutenção ou
promoção da saúde;
: pode drenar os outros recursos da família, incluindo o seu rendimento, que
estariam destinados à proteção e promoção da saúde;
: tem um impacto na eficiência energética e no ambiente, o que por sua vez
tem impacto na saúde pública.
Algumas das características da “habitação inadequada” que são prejudiciais para a saúde in-
cluem:
 Superlotação – tem um efeito deletério na relação com as pessoas que também lá vivem;
– conduz a falta de privacidade o que tem efeitos adversos na saúde mental;
– aumenta o risco de infeções, particularmente quando há divisões essenciais
partilhadas, tais como a cozinha ou a casa de banho.
 Barulho – barulho intermitente imprevisto (por exemplo, de vizinhos barulhentos ou transito)
tem efeitos psicológicos incluindo distúrbios do sono, irritabilidade e problemas de concen-
tração.
 Humidade – prejudica a saúde respiratória;
– atua como fator de stress causando depressão, angústia emocional e aumento
do risco de doença física.
 Frio – exposição ao frio é um fator de stress fisiológico direto e uma fonte de desconforto
que aumenta a suscetibilidade geral à doença;
– os mais idosos, pessoas com alguma patologia, crianças pequenas que vivam em
casas frias e pessoas sem-abrigo estão em maior risco de hipotermia.
 Mau design arquitetónico – um design inseguro pode aumentar o risco de lesão por acidente;
– a falta de espaço para brincar (tanto la fora como dentro de casa)
para as crianças, moradias que são mais facilmente assaltadas, designs que dificultem o
acesso (escadas às escuras, residências com muitas escadas, etc.) são stressantes e afe-
tam a saúde mental;
– a falta de sol ou ventilação adequados fazem com que seja mais
dispendioso e mais difícil aquecer as habitações, levando a problemas de frio e humidade.

120
 Não ter casa ou viver em abrigos temporários – pode ser uma fonte de rutura e estigma que
torna difícil arranjar emprego e manter ou aceder aos cuidados de saúde.
 Viver numa “zona má” – torna difícil aceder a recursos, incluindo comida saudável, lazer e
entretenimento, cuidados de saúde e oportunidades de emprego.
 Ineficiência energética – causa pobreza energética. O efeito conjugado da habitação inade-
quada com o baixo rendimento tem um maior impacto nos recursos para alimentação sau-
dável, socialização e outros comportamentos que podem promover a saúde e prevenir a
doença;
– tem impacto na economia e no ambiente, com impacto na saúde
da população a longo prazo.
Devemos ter em atenção o que significa ser “sem-abrigo”: falta de acesso a habitação própria com
as condições mínimas para se viver. Como tal, as pessoas são tidas como sem-abrigo se estão aloja-
das de forma permanente em habitações cujas condições são impróprias para a sua saúde ou que as
privem dos recursos necessários para manter e proteger a sua saúde. Ou seja, ter uma casa não
implica necessariamente ter um “lar”.
Implicações na prevenção das doenças e promoção da saúde: o esforço para implementar melhores
condições de habitação e de vida, no geral, é fundamental para a saúde pública. A medicina centrada
apenas no indivíduo não é suficiente para melhorar a saúde das populações.

7.3 FATORES PSICOSSOCIAIS E DOENÇA CARDIOVASCULAR


7.3.1 Fatores de risco psicossociais para doença cardíaca
Os fatores psicossociais podem afetar a doença cardíaca através de 4 vias:
 Fatores do estilo de vida, tais como tabagismo, dieta e exercício físico, que podem afetar o
risco de aterosclerose e doença arterial coronária (DAC);
 Fatores psicossociais podem desencadear eventos cardíacos agudos em doentes com do-
ença coronária pré-existente;
 Fatores sociodemográficos estão associados a risco e acessibilidade a cuidados de saúde;
 As crenças influenciam a utilização dos cuidados de saúde pelas pessoas com doença coro-
nária.
Centenas de estudos identificaram fatores de risco agudos e crónicos para a DAC. Os fatores de
risco crónicos exercem a sua influência no decorrer de longos períodos de tempo e incluem coisas
como fumar, hipertensão e hipercolesterolémia. Os fatores de risco agudos são alterações físicas tran-
sitórias que acontecem seguindo-se a gatilhos (trigger) físicos ou psicológicos, tais como exercício ou
stress, que podem causar eventos clínicos como isquémia, enfarte e morte súbita. Combinados, os
fatores de risco agudos e crónicos aumentam o risco geral de evento cardiovascular. Por outras pala-
vras, pessoas com altos fatores de risco crónicos (Ex: fumador com grande história familiar de DAC)
têm um maior risco de evento CV após um fatores de risco agudo (Ex: exercício físico intenso ou
stress). Alguns destes fatores de risco incluem:

121
Risco crónico Risco agudo
Físico  História familiar  Reatividade cardiovascular
 Colesterol
 Hipertensão
 Diabetes
Demográfico  Idade (mais velhos)
 Sexo (masculino)
 Estatuto socioeconómico
Estilo de vida  Tabagismo  Exercício intenso
 Obesidade
 Sedentarismo
Psicossocial  Stress  Stress intenso
 Hostilidade/raiva  Raiva intensa
 Depressão
 Isolamento social

 Estilo de vida e comportamentos na saúde


O estilo de vida tem um grande impacto na saúde cardiovascular; es-
tudos revelaram 4 comportamentos que acarretavam uma diferença dra-
mática na mortalidade, particularmente nas mortes por causa CV: pes-
soas que (1) não fumavam, (2) praticavam atividade física, (3) tinham um consumo moderado de álcool
e (4) consumiam 5 ou mais peças de fruta e vegetais por dia tinham 4 vezes menor probabilidade de
morrer do que aquelas que não tinham estes comportamentos. Esta diferença manteve-se mesmo
depois de removidos os fatores idade, sexo, IMC e estatuto socioeconómico. De facto, o impacto de
fazer essas 4 coisas é o equivalente físico a ser 14 anos mais novo!
As alterações do estilo de vida contribuem então para a maior parte da redução do risco CV que se
verificou nos últimos 20 anos. A figura abaixo representa a contribuição dos tratamentos médicos e
das alterações do estilo de vida na mortalidade CV no Reino Unido nas últimas décadas.

Figura 14 - Papel do tratamento médico e do controlo dos fatores de risco no declínio do risco CV
PS: este gráfico é um pouco diferente do que está no livro

122
Como podemos observar, a redução do tabagismo, da hipertensão e da hipercolesterolémia foram
grandes contribuintes para a redução da doença DAC. Aliás, a redução do tabagismo por si só teve
mais efeito que todos os tratamentos médicos juntos. Segundo o gráfico do livro, o tabagismo é o fator
de risco mais importante a que nos devemos dirigir.
A dieta e o exercício são também muito importantes, especialmente dado o aumento da obesidade
que se tem vindo a verificar. A British Heart Fundation recomenda o consumo de pelo menos 5 peças
de fruta ou vegetais por dia, redução do consumo de gorduras (incluindo saturadas), pelo menos duas
porções de peixe por semana (sendo pelo menos uma um peixe gordo, por exemplo salmão ou cavala),
redução do consumo de sal e consumo moderado de álcool. De notar que tanto a abstinência como o
consumo excessivo de álcool aumentam o risco de DAC, enquanto o consumo moderado aparente-
mente o reduz. A atividade física moderada regular ajuda a reduzir o peso, a gordura corporal, a tensão
arterial e o colesterol; melhora a saúde física e psicológica; reduz o risco de DAC e de AVC.
Como tal, o rastreio cuidadoso dos comportamentos de risco é um primeiro passo muito importante
na redução da DAC e na melhoria do prognóstico dos indivíduos que já têm a doença.

 Stress
Também o stress afeta a DAC. Estudos epidemiológicos revelam que even-
tos stressantes como desastres naturais, guerra, terrorismo e até eventos des-
portivos podem estar associados a aumento da morbilidade e mortalidade CV.
Estudos experimentais revelaram que atividades stressantes como fazer um
discurso em público aumentam tanto a frequência cardíaca como a tensão arterial, podendo desenca-
dear isquémia nos doentes com DAC de base.
O stress mental e a emoção são potentes fatores desencadeantes de isquémia em doentes com
DAC. A isquémia é facilmente provocada, reversível e clinicamente importante, pelo que é uma forma
importante de estudo dos efeitos dos eventos stressantes no coração. Estudos sobre isquémia que
ocorre naturalmente demonstram que essa ocorre mais frequentemente durante atividade física in-
tensa, atividade mental stressante ou mesmo quando as pessoas estão enraivecidas. Estudos de-
monstram que doentes com DAC que tenham fortes respostas isquémicas as stresses mentais estão
em maior risco de eventos cardíacos subsequentes e têm maior probabilidade de morrer até 3 anos
após um EAM.

 Hostilidade e raiva
Os estudos da hostilidade e raiva tiveram origem em estudos associados à personalidade tipo A. A
personalidade tipo A é caracterizada pela competitividade excessiva, impaciência, sentido de urgên-
cia temporal e hostilidade ou agressão. Na descrição clássica (M. Friedman & R. Rosenman, 1959),
“an action-emotion complex that can be observed in any person who is agressively involved in a chro-
nic, incessant struggle to achieve more and more in less and less time...” (Friedman & Rosenman,
1974; ap. Bishop, 1994). O adversário pode ser “o outro”, mas o adversário mais frequente é a falta de
tempo em si... (Mota- Cardoso & Coelho, 1980).

123
Estudos realizados durante os anos 50 revelaram que homens com personalidade tipo A tinham
maior risco de DAC. Porém, estudos posteriores revelaram que a hostilidade e a raiva eram os com-
ponentes mais preponderantes da personalidade tipo A no desenvolvimento e prognóstico de DAC.
Como tal, a hostilidade e a raiva são fatores de risco crónicos no desenvolvimento de DAC. No
entanto, a raiva também pode ser um fator desen-
cadeante potente de eventos cardíacos agudos.
Newton (2009) coloca em destaque o papel da
raiva e da hostilidade no contexto social – nomea-
damente através da dominância social e submis-
são; pessoas dominantes reagem mais fortemente
ao stress e recuperam mais lentamente, particular-
mente se o evento stressante for um desafio social.

 Depressão

À semelhança do que acontecia com o stress, há uma evidência substancial de que a depressão
esteja associada ao despoletar e prognóstico da DAC, e que a DAC esteja por seu lado associada a
depressão. Entre 15-30% dos doentes hospitalizados com DAC acabam por ter depressão clínica no
ano que se segue. A depressão é mais comum nos indivíduos com DAC que são jovens, do sexo
feminino, em isolamento social ou que têm história de problemas psicológicos.
Doentes coronários que tenham depressão têm um pior prognóstico. Muitos estudos mostram uma
relação dose-resposta clara entre a severidade da depressão e a morbilidade cardíaca. Este risco
chega a ser comparável ao de outros fatores de risco major para doença CV, tais como tabagismo e
IC congestiva. A depressão após um evento cardíaco aumenta o risco em 2 vezes de um próximo
evento cardíaco nos anos que se seguem.
A ligação entre a DAC e a depressão deve-se a vias físicas e comportamentais:
 Biológicos: disfunção do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal
: redução da variabilidade da FC (revela o mau controlo parassimpático)
: aumento da resposta inflamatória
: disfunção vascular
: aumento da ativação plaquetária
 Comportamentais: má adesão aos regimes de medicação e tratamento
: falta de participação na reabilitação cardíaca
 Estilo de vida: tabagismo
: dieta
: estilo de vida sedentário
 Psicossociais: isolamento social
: stress crónico
: distúrbios de ansiedade

124
 Isolamento social e apoio
O efeito do apoio social ou isolamento na doença CV também está já bem estabelecido. Estudos
epidemiológicos revelaram que os homens casados têm menor probabilidade de morrer por doença
cardíaca. Porém, aquilo que acontece nas relações também é importante; as mulheres que se calavam
durante as discussões com o marido tinham 4 vezes maior probabilidade de morrer do que aquelas
que discutiam também. Esta influência do casamento e apoio social na DAC deve-se particularmente
ao facto de as pessoas solteiras terem tendência para hábitos menos saudáveis e aumento da angús-
tia.
O isolamento social é altamente patogénico: está associado a aumento da morbi-mortalidade tanto
em pessoas saudáveis como naquelas com DAC.

7.3.2 Impacto da doença cardíaca


O EAM é súbito, inesperado e potencialmente fatal, podendo ter um grande impacto no bem estar
e estilo de vida da pessoa. Como já vimos, até 30% dos doentes têm depressão no 1º ano após o
EAM; para além disso, até 40% reporta ansiedade no ano depois do evento, e até 16% desenvolvem
distúrbio de stress pós-traumático (DSPT). Como acontece na maioria das doenças, há pouca corre-
lação entre a severidade da doença cardíaca e a angústia psicológica daí resultante.
O efeito dos problemas psicológicos combina-se com o facto de muitas vezes ocorrerem em simul-
tâneo; por exemplo, pessoas que desenvolvam DSPT após um EAM têm maior probabilidade de ex-
perienciar sintomas de ansiedade, depressão e disfunção social. Sintomas de ansiedade, tais como
aumento da FC e palpitações, podem ser um problema particular uma vez que simulam os sintomas
de problemas cardíacos. Ao continuarem com isto, os doentes com depressão e ansiedade vão mais
vezes ao médico, pedem mais consultas e vão mais vezes ao serviço de urgência, acabando por ter
maior taxa de reinternamento.
Assim, os problemas psicológicos acabam por afetar o bem-estar do doente, a sua qualidade de
vida e o uso dos cuidados de saúde. Alguns estudos mostram que os doentes deprimidos têm menor
probabilidade de deixar de fumar ou começar a fazer exercício, e qua a depressão e o DSPT estão
mais associados a não adesão à terapêutica.
Ou seja, acaba por se desenvolver um ciclo vicioso.
Porém, o efeito do EAM no bem estar psicológico não é sempre negativo. Há doentes que referem
uma maior apreciação pela vida, melhoria das relações próximas e alterações do estilo de vida para
hábitos mais saudáveis após o evento.

7.3.3 Tratamento e reabilitação


O prognóstico do EAM é muito melhor se o tratamento for iniciado precocemente. No entanto, mui-
tos doentes demoram várias horas a ir para o hospital; surpreendentemente, não há grande diferença
entre primeiros enfartes e pessoas que já tinham tido um antes; para além disso, a quantidade de dor
que a pessoa sente também não afeta a rapidez com que procura ajuda. As mulheres são as que mais

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demoram a ir para o hospital, enquanto que as pessoas que acreditam que o EAM tem consequências
severas e adotam estratégias de coping focadas no problema são mais rápidas a procurar ajuda mé-
dica.
Os programas de reabilitação variam muito; uns focam-se mais no exercício, enquanto outros en-
volvem mais a componente psicológica. Estudos mostram que a reabilitação resulta numa redução de
26% na mortalidade cardíaca nos primeiros 5 anos, assim como na redução do tabagismo, da coles-
terolémia e trigliceridémia e da TA sistólica. No entanto, as pessoas aderem pouco aos programas de
reabilitação. A baixa frequência nos programas é maior em pessoas com doença cardíaca isquémica,
pessoas mais velhas, mulheres e grupos étnicos minor. Também as crenças relativamente à doença
afetam a presença nestes programas: pessoas que acreditem que a sua patologia pode ser controlada
e curada têm maior probabilidade de frequentar os programas.
Têm vindo a ser desenvolvidos programas de reabilitação psicológicos de ambulatório que facilitam
a presença das pessoas nos programas

7.3.4 EM SUMA…
 Ao colher a história clínica com foco cardiovascular, é importante perguntar sobre:
o estilos de vida, nomeadamente tabagismo, atividade física, consumo de álcool e dieta;
o fatores de stress, personalidade, depressão e ansiedade significativas ou isolamento/suporte
social;
estes fatores são tão importantes no aumento do risco de morte CV como os fatores físicos.
 A depressão ocorre em 30% dos doentes com DAC e aumenta a mortalidade; é mais provável em
jovens, mulheres, doentes em isolamento social e naqueles com história de problemas psicológicos.
 As guidelines recomendam o rastreio de depressão através do PHQ9 e a referência de pessoas
moderada ou severamente deprimidas para tratamento apropriado.
 Os programas de reabilitação cardíaca podem incluir componentes de inspiração cognitivo-compor-
tamental; reduzem a mortalidade, mas a adesão dos doentes é relativamente baixa.

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