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A ORIENTAÇÃO E O CONTEXTO SOCIAL

Mírian Paura Sabrosa Zippin Grinspun *

Tem sido uma preocupação constante dos educadores, hoje, e em especial dos orien-
tadores educacionais, analisar e estudar a serviço de quem e para quem serve a orien-
tação educacional. À medida que esta especialização sofreu uma transformação em
seus conceitos, parece-nos necessário refletir sobre esta área, partindo dos próprios
conceitos que a caracterizam em seus diferentes momentos históricos para que pos-
samos tentar responder às indagações levantadas no início do artigo.

A evolução do conceito de orientação está estreitamente vinculada à história da pró-


pria orientação no Brasil. Esta história pode ser dividida em cinco períodos:

a) per iodo implementador (de 1920 a 1941);

b) período institucional, subdividido nos períodos funcional (de 1942 a 1950) e ins-
trumentai (de 1951 a 1960);

c) período transformador (de 1961 a 1970);

d) período disciplinador (de 1971 a 1980);

e) período questionador (a partir de 1980).

No período implementador, o conceito da orientação educacional era o conceito


importado de uma orientação nitidamente "vocacional". Em termos educacionais, o
que marca este período é o Manifesto dos pioneiros da educação, em que se observa
uma preocupação com uma pol ítica nacional de educação de acordo com as idéias
pol íticas, econômicas e sociais, vigentes no Brasil àquela época. As tentativas isola-
das de orientação (Instituto Brasileiro de Orientação Profissional, em 1928, e Cur-
sos profissionais, em 1940) não chegaram a se efetivar.

Havia um interesse de ajustar-se a orientação ao nosso contexto social, adequando-


a à nossa realidade, mas essa orientação esperada não passou de boa intenção regis-
trada, por exemplo, nos projetos de Enrico Vale e José Augusto em 1921, o de Gra-
co Cardoso ou a Lei Fidelis Reis, em 1922.
• Doutora em filosofia pela Universidade Gama Filho; professora na Universidade Federal Flu-
minense; especialista em educação.

Forum educ., Rio de Janeiro, 10(4) P. 96-107, Out./Dez. 86


o segundo período, o institucional, caracteriza-se basicamente pelo surgimento da
orientação na legislação brasileira.

No início da implantação do OE no Brasil, a orientação tinha um caráter nitidamen-


te psicologizante, servindo ao "sistema" como uma forma de garantir o seu modelo
de educação, bem como o de legitimar as propostas educacionais que visavam, prin-
cipalmente, um aluno ajustado ao meio em que estivesse inserido. As contradições
da própria sociedade não eram questionadas e bem intencionada, talvez, a orienta-
ção começava uma caminhada solitária rumo aos propósitos determinados em
documentos legais. Emquanto a escola vivia as suas próprias contradições, o orienta-
dor se marginalizava de um contexto mais amplo, isolando-se em suas técnicas e
procedimentos para bem cumprir o papel que lhe era determinado.

As atividades de orientação eram rotuladas, na sua maior parte, de atividades assis-


tenciais, procurando num sincretismo pedagógico ajudar o aluno como pessoa den-
tro da visão do "desenvolvimento integral das potencialidades do indivíduo".

Para se entender esse despertar da orientação - que já nasceu sob a égide de um


documento legal - seria interessante apreciá-Ia de duas formas: uma seria através
dos procedimentos, dos meios que operacionalizariam a sua prática; a outra forma
seria enfatizar os objetivos, as metas que envolvem a orientação como uma área
que ajuda o próprio processo educacional.

Na primeira abordagem, a orientação se preocupava com os procedimentos e com o


processo de sua operacionalização. Havia uma determinação a ser atendida e as rela-
ções para efetivá-Ia partiam do cumprimento em acatar as prescrições legais. Já se
observa de antemão que tudo que é imposto, que é obrigatório, deixa pouca mar-
gem de crítica para aceitar essa imposição. Havia um "determinismo" e a orienta-
ção não podia recuar ao que já estava legitimado; o cumprimento de suas atribui-
ções eram em busca de um aluno "normal e idealizado" pela própria escola. Nesta
abordagem não se questionavam os objetivos, mas a forma como os "objetivos le-
gais" seriam atendidos.

A segunda abordagem reflete sobre os objetivos da orientação, e uma simples revisão


da própria história do Brasil naquela época identificará como terreno propício (e
f~iI) o aparecimento de "serviços" que estivessem a serviço de uma minoria que sa-
bia o que era certo, melhor e verdadeiro para seus alunos. Neste momento, a orien-
tação - que surgia no cenário educacional - já se mostrava inquietante e ansiosa,
pois ela fora "colocada", de forma ampla, nas leis Orgânicas de Ensino, muito em-
bora a formação desse especialista só apareça posteriormente. Se de um lado os ob-
jetivos pretendidos visavam a atender a amplitude da "personalidade do aluno", por
outro lado os responsáveis por esse processo cumpriam (ou tentavam cumprir) os
objetivos por outros educadores emanados.

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o período funcional apresenta a organização e o funcionamento da orientação. Nes-
se período, o conceito de orientação estava diretamente relacionado com um cará-
ter corretivo, isto é, dever-se-ia tratar o aluno nos seus diferentes campos: saúde,
educação, fam ília etc. A partir da década de 50 (período instrumental) começa a
tomar vulto o caráter preventivo, isto é, pretendeu-se estender-se a orientação a to-
dos os alunos da escola, na busca da prevenção de desajustes ou comportamentos
tidos como insatisfatórios. Esse conceito percorreu até a década de 60, ratificada
com as características da orientação que eram: extensiva, contínua e dinâmica. Foi
a época áurea das "sessões de grupo" onde o orientador, imbuído dos melhores co-
nhecimentos, reunia-se com a sua turma e através, principalmente, das técnicas de
dinâmic.a de grupo, discutia e analisava os problemas da: liderança, responsabilidade,
relacionamento, agressão, frustração etc.

o que caracteriza o período institucional é a luta ideológica travada entre as teses


liberais e desenvolvimentistas. O liberalismo brasileiro apresenta características dis·
tintas do liberalismo europeu, pois neste predominava a ideologia da burguesia
liberal, enquanto no Brasil predominava a ideologia da aristocracia rural. Contra-
pondo-se à tese liberal apresenta-se a tese desenvolvimentista que pretendeu promo-
ver o desenvolvimento do Pa ís a partir de sua infra-estrutura, das indústrias de base
etc. Tanto numa tese como na outra, a educação procurava um "lugar próprio" e,
desta forma, a orientação também procurava posicionar-se no contexto social e a
forma como isto ocorreu foi a fixação dos objetivos da orientação educacional.

Cabe aqui lembrar as palavras do Prof. Celso Suckow: "Um dos aspectos que mais
impressiona a quem percorre o texto da Lei Orgânica do Ensino Industrial é aquele
referente à orientação educacional. Pela primeira vez, no Brasil, introduziam-se em
escolas industriais federais aqueles cuidados com os alunos. Agora já não se tratava
mais de apenas instruir a juventude para as fábricas, ensinando-lhe um ofício ou
um grupo de ofícios da mesma família; visava-se a um fim mais elevado, pois que
se desejava acompanhar a sua formação intelectual e espiritual de modo a ajustar
os jovens à sociedade em que vivemos, tornando-os úteis ao seu país e compene-
trados de seus deveres morais e. sociais como homens e trabalhadores. Passava-se,
assim, da simples instrução ao problema mais geral da educação" (Fonseca, 1961,
p.267-8).

O período instrumental caracteriza-se pelo apoio que a orientação recebeu (ou ten-
tou receber) dos órgãos governamentais, procurando a definição ou a caracterização
de sua área. Nesse sentido há que se destacar o Simpósio de Orientação Educacio-
nal, realizado em 1957, por iniciativa do Ministério da Educação e Cultura, que
convocou em julho daquele ano uma reunião de educadores e especialistas para que
opinassem sobre a situação atual da orientação educacional.

Nesse simpósio declarou-se a deficiência da orientação educacional no contexto on-

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de estava inserida, visto que ela era considerada apenas como "( ... ) meio de aliviar
a direçio dos estabelecimentos do ensino médio duma sobrecarga insuportável, atra-
vés da descentralização de alguns dos seus serviços. Nesse caso, se atribui aos orien-
tadores uma função disciplinadora da conduta escolar dos educandos ou, então, a
tarefa de desenvolver a vida social dos mesmos e sua adaptação à comunidade estu-
dantil. Outros, ainda, encarregam os orientadores da direção dos estudos dos alunos,
identificando-os como simples explicadores de aulas ou repetidores" (Lippmann,
1978, p. 19).

Explicitamente o II Simpósio de Orientação Educacional, em 1958, diz que a orien-


tação inspirou-se nas conquistas da ·psicologia, mas que ela (a orientação) deveria
buscar o equilíbrio entre o individual e o social, "fazendo com que a escola se
adapte às necessidades e aspirações dos alunos e os prepare para as exigências profis-
sionais e sociais futuras" (11 Simpósio p. 31).

A orientação procurando esse equil íbrio, não se firmou, entretanto, como provoca-
dora dessas necessidades, mas como precursora de uma especialização que pretendia
prevenir desajustes e problemas.

O conceito que se sucede ao preventivo é marcado pelo conceito desenvolvimentista,


isto é, procurava-se orientar o aluno dentro do seu próprio desenvolvimento pessoal.
Este é um dos marcos do período transformador.

Interessante observar que todas as características eram reforçadas por jargões peda-
gógicos, tais como: facilitação para mudança, orientação para opções conscientes,
descoberta das potencialidades individuais etc. Entre os aspectos da orientação ca-
racteriza-se a assistência ao aluno, individualmente ou em grupo, sempre visando o
desenvolvimento integral e harmonioso da personalidade do aluno.

O período transformador procura transformar a orientação educacional importada


pela orientação necessária à realidade brasileira; cria-se, neste período, a profissão
de orientador educacional no Brasil. O que caracteriza esse período é a lei de Dire-
trizes e Bases de 1961, que tenta relacionar a orientação diretamente aos seus obje-
tivos gerais, objetivos esses que se coadunavam ao aspecto desenvolvimentista, uma
vez que visavam atingir "toda a personalidade do indivíduo".

~ fácil identificar neste perfodo a tentativa de transformar-se num campo próprio a


orientação no Brasil; isso fica pelo menos evidente em termos legais como o que se
evidencia em alguns trechos dos Pareceres relacionados com o tema: .

"( ... ) Se a orientação baseia-se largamente na psicologia, o orientador, como tal,


não atua à maneira de psicólogo-cl ínico, mas de um autêntico educador ... A psico-
logia é, sem dúvida, um componente necessário, essencial, à formação profissional

Orientação 99
do orientador, mas não suficiente ... Toda uma antropologia filosófica está, assim,
implicada pela açlJo do orientador educacional ... na medida em que o ajustamento
do educando é função do ambiente sócio-cultural em que se inscreve a sua persona-
lidade. A orientação supõe, também, conhecimento de sociologia e mesmo de antro-
pologia cultural ( ... )" (Parecer CFE nQ 632/69).

"( ... ) não se pode identificar pura e simplesmente a psícopedagog'la com a orienta-
ção educacional. Esta envolve, com efeito, objetivos mais simples, porquanto
orientação do educando não se esgota em seus aspE'ctos psioopedagógicos ( ... )"
(Parecer CFE n9491/67).

"( . . . ) deve ainda o orientador ter suficientes conhecimentos quanto à estrutura


e às finalidades dos testes psicológicos, embora não lhe caiba a aplicação dos mes-
mos,pois deve conhecer os ind ícios que a conduta do educando revela, a fim de en-
caminhá-lo para os exames necessários, sem falar nas medidas de caráter pedagógico
que estão ao seu alcance. Outra exigência da sua formação é o conhecimento das
principais características das profissões e do mercado de trabalho, sem o que nllo
poderia fazer o conveniente aconselhamento (. .. )" (Parecer CFE nQ 374/62)

O período disciplinador nasce sob a égide da Lei nQ 5.692n1, que institui obrigato-
riamente a orientação educacional nos estabelecimentos de ensino de 1C? e 2~ graus.

Nesse período, a "palavra de ordem" da orientaç~ era o aconselhamento v~cacio­


nal que atendia aos reclamos legais na busca da sondagem de aptidões, nece~idades
do mercado de trabalho etc.

A orientação educacional busca, mais uma vez, a sua colocação no contexto sócial,
atendendo, entretanto, o desejo impl ícito e expl ícito veiculado através dos acottlos
MEC-Usaid de oferecer o aconselhamento vocacional a todos os alunos da escola
brasileira, tal e qual era oferecido nas escolas americanas. Esse modelo de orientação
poderia adequar-se à realidade americana (muito embora já começasse naquele país
os questionamentos dos orientadores educacionais), mas não à nossa realidade que
não possu ía uma infra-estrutura 'que suportasse o peso dos atendimentos individu-
ais, convertidos em termos de formação do orientador, equipe técnica, número de
alunos etc.

A orientação, divorciada da educação, caminhava de encontro cada vez maisà psico-


logia, não como instrumento de apoio, mas como finalidade precípua de sua atribui-
ção. O contexto sócio-econômico, pol ítico e cultural do aluno era desconhecido pa-
ra o orientador, mas ele tinha que orientar o seu aluno para um desempenho futuro
satisfatório, tanto no que se referisse ao aspecto pessoal, oomo profissima!.

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o orientador não questionava as inúmeras relações, por exemplo, que se davam no
âmbito da própria escolha profissional. Enquanto neste período a orientação tenta-
va cumprir um papel mais na área do aconselhamento (isto quando de fato era feita
orientação vocacionall hoje tende-se a trabalhar esse aspecto vocacional, a partir da
configuração pol ítico-cultural, pedagógica que o mesmo é revestido. A orientação
atendia uma solicitação, ao invés de explorar as relações que a envolvia com o con-
texto social.

Entre as críticas mais acirradas que a orientação recebe é a de que a mesma estava
a serviço de uma classe dominante, servindo a pretexto de uma orientação formal,
para adequar o indivíduo a um mercado de trabalho ou mais especificamente a uma
determinada profissão. Ora, na verdade a orientação se prestava a essa solicitação à
medida que essa era a "matéria" que nos foi ensinada nos cursos de formação de
orientação educacional (que, por sua vez, era cópia dos modelos parksonianos) e era
a "forma", o meio que o orientador tinha para "trabalhar" os seus conhecimentos
(toda essa informação era coletada através das entrevistas, anedotários, questioná-
rios t:tc.).

Tenta-se hoje um conceito mais amplo, mais "revolucionário", em que a criticDade


dos fatos começa a ser contestada a partir, inclusive, da própria postura do orienta-
dor. Dentro dessa abordagem, assumem papel preponderante os objetivos da orien-
tação educacional, pois só a partir da finalidade dos mesmos é que poderemos anali-
sar a prátial desta especificidade educativa. Ora, se os objetivos, de um modo geral,
foram mantidos em termos de existência dessa área, há necessidade de se rever a es-
sência desses objetivos, no que diz respeito ao momento histórico e à contextualiza-
ç!o de que a mesma está revestida.

O período questionador que tem início a partir da década de 80 tem procurado


mais intensamente fazer uma análise crítica do papel do orientador nas escolas, bem
como caracterizar a orientação educacional no processo educativo. Questionando a
orientação, o orientador questiona o sentido de seu trabalho, o sentido de sua espe-
cializaçllo em prol de uma educação que atenda a todos os segmentos da sociedade
em níveis de maior amplitude possível do conhecimento e (transformação) dessa
mesma sociedade.

Neste período, os eventos de orientação estão voltados para a discussão dos pro-
blemas emergentes da educação e do resgate dos momentos históricos para a com-
preensão dos fenômenos existentes nesta sociedade.

Observa-se em alguns eventos promovidos por esses profissionais, bem como na lite-
ratura mais recente da orientação educacional uma ênfase no aspecto social, quase
que contrapondo a ênfase psicológica com que foi implantada esta área. ~ claro que

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se radicalizarmos em cima do aspecto social correremos o mesmo risco de perder
toda a plenitude e essência da orientação. Caracterizando esse processo como indis-
pensável e necessário ao próprio processo educacional, a essência dos objetivos da
orientaçâ'o é a mesma que a educaçâ'o enquanto formadora e informadora de seus
educandos. Se a educaça'o é uma disciplina que se apóia em outras ciências como a
sociologia, a psicologia, a filosofia etc., a orientação se,ra também uma disciplina
que busca nas outras ciências subsídios para o aprofundamento teórico das ativida-
des que ela realiza. Em outras palavras, tanto a psicologia como a sociologia não re-
presentam em si mesmo os fins da orientação, mas os meios necessários para sua in-
terpretação e operacionalização.

Nossa exposição até o presente momento tem como finalidade apresentar as inquie-
tações porque passou a orientação procurando o seu espaço próprio, específico e
definido. As teorias de educação de um lado, as teorias do aconselhamento do ou-
tro, as teorias sociológicas em geral, respondem por um "todo" da orientação que
se vale desses posicionamentos como referencial teórico para elaboração de paradig-
mas que lhe são pertinentes.

Tentemos reunir essas abordagens em algumas teses que se propõem a dimensionar


o problema:

- A orientação existe como forma de superar a sua própria essência.

- Os procedimentos da orientação são mais importantes que as finalidades da mes-


ma.

Essas duas teses representam posições bem discutidas abstra ídas da prática observa-
da. A essas poderíamos colocar mais duas teses que sintetizariam as análises feitas,
quase como conclusivas:

- A orientação surgiu para demonstrar a eficiência de uma escola aberta e democrá-


tica.

- A escola aberta e democrática prescinde para sua efetivação da orientação educa-


cional.

Numa representação simbólica dessas teses poderíamos utilizar a imagem de uma ba-
lança em que o fiel da balança coloca os pratos em equil íbrio quando eles apresen-
tam os mesmos pesos; quanto mais peso tiver num dos pratos, há necessidade de re-
ver esses "pesos" para que haja o equilíbrio que se procura. Exemplifiquemos:
quando "um prato" traz a obrigatoriedade da orientação, o outro se manifesta vazio
(não há o que se posicionar enquanto ela é determinada), ou quando "um prato"
contém a especificidade da orientação o outro se mantém "descompensado" pelas

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alteraçOes que essa especificidade contém. O equilíbrio está na revisão dessas cate-
gorias, representadas em termos de objetividade, necessidade e realidade histórica.

Não se faz orientação porque a lei determina que nenhum ,artigo legal é responsável
pela eficiência de um processo; por outro lado, enquanto os orientadores cumpriam
o que lhes era atribuído, nós servíamos ao sistema (e ao poder), e quando começa-
mos a questionar a educação (e o nosso próprio trabalho) passamos a ser severamen-
te criticados e até "convidados" a refletir sobre nossa sa ída desse sistema. Muito
curiosa e contraditória essa colocação: quando a orientação servia aos outros era
aceita sem recomendações; quando ela já não nos servia como posicionamento teó-
rico, os demais educadores começam a questionar a invasão desses especialistas na
educação.

De certa forma estamos tentando desenvolver a primeira tese em que a existência da


orientaça"o aglutinou a sua própria essência que, por sua vez, está nitidamente rela-
cionada com a própria educação.

O papel da escola em nossa sociedade era (e ainda é) do tipo patriarcal e burguês. A


ideologia transmitida pela escola acenava a todos os alunos com a possibilidade de
ascenderem na vida profissional através de suas próprias potencialidades. A orienta-
ção servia a esta existência da escola na medida em que "orientava" vocacionalmen-
te os alunos sobre suas aspirações, interesses e personalidades. A escola, igualando
os alunos provenientes de classes sociais diferentes, deixa de lado a essência de
orientação, que é a de facilitar o processo educativo enquanto ajuda o próprio indi-
víduo no seu projeto de "vir-a-ser".

O trabalho da orientação educacional em termos de sondagem de aptidões, reforça-


do pela Lei nQ 5.692/71, nada mais fez que deter um dos meios que as classes do-
minantes dispunham para manter o modelo social vigente. Isto porque o aluno, por
exemplo, não ingressaria na universidade, não porque o sistema o expulsava dessa
. escolaridade, mas porque suas "aptidões" não estavam compatíveisoom o ensino do
3Q grau. Nós, orientadores, quase que trabalhávamos contra o aluno, colocando a
nossa competência a favor das disponibilidades de um ensino profissionalizante, ao
invés de interpretar as diferentes relações ocorridas dentro e fora desse ensino pro-
fissional izante.

A segunda tese começa a ser explicitada quando os procedimentos da orientação


respondiam pela própria finalidade da mesma, isto é, realizávamos por exemplo in-
formações profissionais (levantamento de profissões e instituições formadoras) co-
rno se estivéssemos fazendo o aconselhamento vocacional.

A análise limitada dos procedimentos de orientação - vista apenas como meio para

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atingir um fim - ficava também comprometida com o próprio objetivo da orienta-
ção.

A própria história da palavra aptidão poderá nos mostrar como essa palavra "ser-
viu" a um modelo individualista de orientação educacional. Nesta segunda tese, fica
claro que os meios que a orientação utilizava também se confundiam com o seu
próprio fim.

Enquanto a orientação ratificava a importância das diferenças individuais como de-


tentora do sucesso profissional, a orientação não sofria as críticas da busca de uma
cientificidade de suas metas; quando ela começa a criticar o seu próprio papel, me-
rece novas críticas, não mais pela falta de cientificidade, mas sim pela sua posição
submissa ao poder econômico e pol ítico de satisfazer as exigências das classes do-
minantes.

Cada ciência tem suas especialidades, suas características próprias. Lida com o real,
organizando sua própria prática de pensamento. A orientação educacional, tentando
caminhar através de um método científico, identifica suas especificidades e elabora
uma crítica sobre a realidade educacional estritamente determinista e mecanicista
quando subjuga as funções da orientação no processo educativo; os procedimentos
da orientação, então, tornar-se-ão mais importantes que as finalidades da mesma,
quando se desconhece as próprias finalidades educacionais. A orientação existe num
determinado contexto e a forma como este contexto se organiza e as relações que
nele ocorrem vão influir tanto nas finalidades quanto nos procedimentos utilizados
para orientar. Torna·se necessário uma revisão constante desta realidade através de
uma reflexão contínua sobre a prática da orientação, a fim de que se possa construir
uma especialização eficiente em termos daquela realidade. A qualidade pretendida
será produto de uma reflexão educacional e pol ítica sobre a nossa prática, sobre as
nossas próprias angústias e contradições. A abordagem dialética auxilia essa reflexão,
procurando levantar hipóteses e buscar alternativas para a orientação em termos de
seu papel num contexto social específico.

A outra tese tenta demonstrar que a orientação surgiu para demonstrar a eficiência
de uma escola aberta e democrática, isto é, enquanto processo pretendeu-se fazer da
orientação uma aliada aos princípios de uma educação liberal.

Uma escola aberta e democrática é aquela que está voltada aos processos de cons-
cientização e emancipação do aluno e não apenas para reproduzir os conhecimentos
por ela já selecionados e evidentemente já valorizados.

Enquanto a orientação trabalhava a igualdade de oportunidade para todos, no sen°


tido apenas de seus princípios teóricos, ela possu ía um discurso aberto, mas uma
prática fechada, pois nem sempre (ou quase nunca) essa igualdade era percebida.

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Quando a Lei nQ 5.692fl 1, por exemplo, fala nos avanços progressivos, isto é, o
processo de escolaridade seria atendido em função do desenvolvimento do aluno, a
orientação tem uma atuação específica de oferecer um atendimento igual para to-
dos enquanto fossem orientados de acordo com o seu próprio ritmo pessoal. Na
prática isso nunca chegou a ser percebido, pois a igualdade era percebida em ofere-
cer a mesma matéria, o mesmo conteúdo, da mesma forma, para todos os alunos.
A igualdade era a forma de se estabelecer uma unidade para todos e não a forma
utilizada para perceber como cada um se desenvolve nesta aprendizagem.

Pode parecer impossível e até utópico um trabalho de orientação a este nível indi-
viduai, mas jamais será impossível e utópico, numa escola democrática, dar vez e
voz aos alunos nos seus diferentes níveis de desenvolvimento. O papel do orientador
não pode (e nem deve) ultrapassar ou sobrepor ao professor no que diz respeito
aos objetivos, procedimentos e avaliação utilizada pelos professores com seus dife-
rentes alunos. Cabe, porém, ao orientador nesta escola discutir com os professores
sobre a sua disciplina, a metodologia utilizada e a relação desses dados com a clien-
tela específica que está sendo escolarizada.

Esse trabalho pode ser desenvolvido através da pedagogia crítico-social dos conteú-
dos, que tem como "ponto de partida do processo pedagógico o aluno real", inseri-
do em determinado contexto, vivendo (e fazendo) um momento histórico específico.

A orientação tem que trabalhar para que esse aluno real compreenda o seu papel,
nesta história, e que a partir da conscientização deste papel possa participar mais
criticamente no meio em que vive. Se a escola deve instrumentalizar o aluno para
que esta participação ocorra, a orientação exerce uma ação importante nesta opera-
cionalização, colabora na busca desses objetivos.

A orientação está, portanto, ligada aos procedimentos, mas, e principalmente, aos


critérios, objetivos e valores que nortearam esse caminho.

O orientador hoje questiona a sua atuação, partindo da validade do papel e das suas
funções na escola. Se o papel do orientador é ajudar o aluno no seu projeto de vir-a-
ser, qual deve ser o papel do orientador nessa escola democrática?

O papel da orientação seria, em primeiro lugar, esclarecer o significado dessa orien-


tação na escola: a orientação existe por um cumprimento legal ou por uma necessi-
dade de fato? Existe uma "hegemonia do saber" nas mãos dos professores ou esse
saber é distribuído e de que forma a orientação relaciona-se hoje com essa hegemo-
nia?

Parece-nos que o currículo é a forma mais completa de o orientador colaborar con-

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eretamente com o desenvolvimento do aluno, em termos não só de sua escolaridade,
como também de seu desenvolvimento pessoal. Todas as atividades realizadas na es-
cola (elaboração de horário, formação de turmas, distribuição de professores por
turma e série, programas, atividades extraclasse. etc.) podem e devem merecer a
atenção do orientador, atuando e interagindo com todos os demais elementos da
instituição escola. O orientador trabalha a educação como um todo, em suas dife-
rentes relações, e o aluno - objeto e objetivo dessa escola - merece do orientador
uma preocupação maior, enquanto esse aluno é considerado pessoa humana (e,
portanto, portador de valores pessoais) inserido em determinado contexto (uma
"área" determinada por valores sociais e culturais). A orientação não acaba no
aluno.~ mas começa a partir dele a ajudá-lo a interpretar o seu contexto social, para
que o mesmo retorne em benefícios pessoais que, por sua vez, incidirão na socieda-
de e assim por diante; em outras palavras, a orientação trabalha os meios que auxi-
liam o aluno a ler esse contexto de forma pessoal e de participação social.

A orientação promove esse encontro quando ela dialetiza todos os momentos e ati-
vidades realizadas na e para a escola; a orientação, ao contrário, não pode isolar-se
na sua especialização, fragmentando o "todo educacional", mas trabalhando para
integrar as partes dentro desse todo.

Cada fato do aluno ou da escola não será apenas uma "fita" a ser assistida ou inter-
pretada, mas um dado a ser refletido e questionado. O conhecimento sobre uma rea-
Jidade concreta vai possibilitar ao orientador uma participação mais consciente de
sua própria atuação.

A outra tese que defendemos, mostrando que há necessidade de orientação educa-


cional na escola aberta e democrática, está diretamente relacionada com o trabalho
que a orientação deve realizar com o aluno e com a própria instituição, refletindo
'iObre ;uas próprias concepções, confrontando suas contradições, revendo suas pró-
prias opções. O autoconceito do aluno, bem como o conhecimento dos fatores
intra-escolares que atuam no processo ensino-aprendizagem, são, entre outros, indi-
cadores da atuação do orientador para produzir e construir uma escola de boa qua-
lidade.

Para realização de suas atribuições o orientador deve estar bem informado, forman-
do-se a cada momento, através dos estudos complementares e da pesquisa de sua
própria realidade. Os conceitos teóricos (geralmente importados) não respondem
pela produtividade da orientação; faz-se necessário - a partir da realidade identifi-
cada - conhecer o meio, estudá-Io, (re)criá-Io e (trans)formá-Io, em termos de aten-
dê-Ia e recuperá-Ia para obtenção do que se pretende em educação.

A orientação interessará à educação na medida em que os educadores se aper(2-


bam do papel da orientação, criando estratégias específicas que visem a criar lITla

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escola que de fato sirva ao aluno como construtora de um saber específico e de uma
realidade mais consciente e participativa.

Em síntese, poderíamos tentar responder a quem e para que serve a orientação


educacional. Acreditamos na sua validade e especifiádade para compreensão do
aluno real e concreto, trabalhando com ele seus valores pessoais e sociais, buscando
situá-Io e levá-Io a participar criticamente e conscientemente no seu contexto social
como fama de lutar por uma sociedade mais justa e mais democrática.

Referências bibliogrãficas

Fonseca, Celso Suckow. História do ensino industrial no Brasil. Rio de Janeiro,


1961. v. 1.

Lippmann, H. L. Educação, escolha e existência. Fundamentos psicopedagógicos


do conceito de orientação educacional. Tese de livre-docência. Rio de Janeiro,
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Documenta,-n· 105.

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