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O PATRIARCADO E O MATRIARCADO: UM ESTUDO COMPARADO DAS

NARRATIVAS LITERÁRIAS DOS MITOS DA CRIAÇÃO

CLERTON VASCONCELOS PINTO JUNIOR1


FRANCISCO VALDEMIR MOREIRA VIEIRA2
MARIA DANIELLE SILVA SILVEIRA3
ORIENTADORA: ANNALIES BARBOSA BORGES4

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo discutir o mito da criação, através da
literatura comparada, com ênfase no suposto direito masculino de dominação sobre as
mulheres, criando valores quase indestrutíveis. Dentre esses valores, aquele que impõe os
mais pesados fardos às mulheres: a mulher teria vindo do homem? Tais fardos colocam
metade da população do planeta em segundo plano frente à proeminência outorgada aos
homens por eles mesmos e também por grande parte das mulheres, que, devido a inúmeros
fatores e anos de submissão, assimilaram o discurso do machismo, tomando-o por natural e
incontestável. Por outro lado, é verdade que existem literaturas e culturas as quais abordam a
mulher como ser divino e completo, independente e construtora de seus valores e história. É
esse enfrentamento – através de culturas e visões de povos diferentes – entre poder feminino e
masculino nos mitos da criação o enfoque do estudo aqui exposto. Os textos escolhidos para
a análise foram os mitos da criação presentes no livro de Gênesis da Bíblia e “A lenda de
Namorói”, conto de Mia Couto. Para a realização deste trabalho, utilizamos como método a
leitura, a interpretação e a análise dos mitos pelo viés da literatura comparada, numa tentativa
de encontrar possíveis similaridades e diferenças, na estrutura dos textos e, principalmente, no
que diz respeito à representação feminina. Para tanto, Carvalhal (2006) dá-nos suporte teórico
em relação à definição de Literatura Comparada (LC), a qual designaria uma forma de
investigação literária que confronta duas ou mais literaturas; já e Coutinho (2013) destaca que
a LC tem como marca fundamental o conceito de transversalidade, tanto em relação à
fronteira entre nações e idiomas quanto em relação aos limites entre áreas do conhecimento.

Palavras-Chave: Literatura comparada. Mitologia. Matriarcado. Patriarcado.

1. INTRODUÇÃO

Desde o entendimento de civilização busca-se compreender a origem do universo, seja


por mitos culturais, seja por estudos científicos. Tais buscas fizeram surgir entre as

1
IFCE. CAMPUS BATURITÉ. LICENCIATURA EM LETRAS PORTUGUÊS E INGLÊS –juniorvmb1@gmail.com,
2
IFCE. CAMPUS BATURITÉ. LICENCIATURA EM LETRAS PORTUGUÊS E INGLÊS –valdemirguara@yahoo.com.br
3
IFCE. CAMPUS BATURITÉ. LICENCIATURA EM LETRAS PORTUGUÊS E INGLÊS –daniellesilveira95@gmail.com
4
IFCE. CAMPUS BATURITÉ. GRADUADA EM LETRAS PORTUGUÊS/LITERATURA PELA UECE. ESPECIALIZAÇÃO EM
SEMIÓTICA APLICADA À LITERATURA E ÁREAS AFINS (EM ANDAMENTO) PELA UECE – annaliesprof@ifce.edu.br
civilizações diversas ideias que nortearam, entre tantos outros aspectos da sociedade, a
literatura.
Os mitos da criação são narrativas simbólicas, que explicam a origem do mundo e do
homem. Eles são encontrados em quase todas as culturas, e, apesar de hoje pensarmos nesses
mitos como histórias fantasiosas, cada comunidade as considerava como um relato sagrado,
que transmitia a verdade absoluta.
Neste estudo será discutido o papel do homem e da mulher, bem como um suposto
direito masculino de dominação sobre as mulheres, criando valores quase que indestrutíveis.
Entre esses valores, destaca-se o patriarcalismo, que tem como definição ideológica a
supremacia do homem nas relações sociais. Em contraponto surge o termo matriarcado que
designa sociedades que foram social, econômica, política e culturalmente criadas por
mulheres.
Para estudo serão consideradas duas obras. A primeira, o livro de Gênesis que trata
sobre a origem de todas as coisas, a partir de um ponto de vista considerado sagrado pelo
cristianismo. A segunda, “A lenda de Namarói” de Mia Couto, conto africano que trata a
criação como uma obra matriarcal. As literaturas têm simbolismos sobre a versão da origem
dos gêneros, bem como o papel por eles exercidos dentro da sociedade.
Este trabalho justifica-se pela necessidade de estabelecer uma reflexão sobre a
construção social envolta no papel da mulher bem como romper paradigmas que já não
servem para o século XXI.

2. METODOLOGIA

Trata-se de um estudo de literatura comparada, utilizando um estudo biográfico de


cunho qualitativo. Analisa-se a narrativa de Mia Couto e do Livro de Gênesis, com ênfase na
figura da mulher e sua representatividade.
As discussões serão apresentadas em forma de comparação entre trechos das obras,
seguidas de suas respectivas análises.

3. DISCUSSÃO

As discussões aqui apresentadas ressaltam a desmitificação da soberania masculina


em detrimento do papel feminino. Foi possível observar que o senso comum ainda utiliza dos
textos sagrados para estabelecer uma ideia estereotipada. Seguem as discussões, com base na
análise das obras, numa tentativa de encontrar possíveis similaridades e/ou diferenças na
estrutura dos mitos e, principalmente, a representação dos gêneros.

3.1 A CRIAÇÃO
[...] Assim foram concluídos os céus e a terra, e tudo o que neles há. [...] (BÍBLIA,
2000)

Moisés foi um profeta chamado por Deus para livrar os filhos de Israel do cativeiro
no Egito e guiá-los pelo deserto rumo à terra prometida de Canaã. Por terem os
acontecimentos registrados em Gênesis, ocorrido antes da época de Moisés, ele não os
testemunhou. Ele ficou sabendo sobre eles por meio de revelação (sonho).
Por outro lado, se observarmos o trecho referente à criação no conto de Mia Couto,
podemos perceber um aspecto semelhante, conforme constatamos no trecho a seguir:

[...] Vou contar a versão do mundo, razão de brotarmos homens e mulheres. [...]
(COUTO, 1990)

Quem relata a estória é uma senhora que conheceu os fatos narrados através de
sonhos guiados pelos seus antepassados. Em ambas as narrativas os fatos não detém uma
origem certa, comprovada, visto que tudo se deu por sonhos.

3.2 O HOMEM

No mito judaico-cristão, o homem aparece como uma criação divina, logo, reflexo de
algo perfeito. Passa a viver e, segundo a escrita de Gênesis, o mesmo passa a ser o dominador
do espaço e de tudo que este espaço possui, incluindo a natureza.

[...] 7 Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas


narinas o fôlego de vida, e ohomem se tornou um ser vivente. [...] (BÍBLIA, 2000)

Já no mito africano resgatado pelo conto de Couto:

[...] Os homens não haviam. E assim foi até aparecer um grupo de mulheres que não
sabia como parir. Elas engravidavam mas não devolviam ao mundo a semente que
consigo traziam. [...] (COUTO, 1990)
O homem surge numa perspectiva feminina, sendo ele uma anomalia ou desvio da
natureza. O contexto que se estabelece apresenta mulheres no centro do poder. A reescrita da
narrativa sobre as origens traz uma sobreposição a várias tradições, pois há uma
desconstrução da figura masculina como um modelo imposto, apontando para uma
organização matriarcal.

3.3 A TERRA

[...] 15 O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e
cultivá-lo. [...] (BÍBLIA, 2000)

A ideia de que o homem desde o princípio seria o “dono” da terra, que dela cuidaria
se faz presente nesse trecho da Bíblia. Há, portanto um sentimento de pertença e poder da
figura masculina como predestinada para essa função.
Por outro lado, a leitura trazida na lenda africana direciona o olhar para outro
enfoque de relação de poder e manipulação sobre a terra e seu aspecto de fertilidade.

[...] as mulheres sabiam colher a chama, semeavam o fogo como quem conhece as
artes da semente e da colheita [...] (COUTO, 1990)

Também se faz presente o sentimento de conhecer e/ou dominar a terra. Tanto no


texto de Gênesis, ou da Bíblia como um todo, quanto nas obras de Mia Couto a questão de
terra como fator de poder e sobrevivência aparece de forma muito evidente. Porém, neste
trecho podemos reavaliar o lugar da mulher quanto conhecedora e dominadora da terra e
também capaz de desenvolver técnicas de ocupação e sobrevivência na mesma.

3.4 UM SER EM (IN) DEPENDÊNCIA DO OUTRO

O texto a seguir descreve detalhadamente o aparecimento da mulher, segundo o Criacionismo


judaico-cristão:

[...]18 Então o Senhor Deus declarou: "Não é bom que o homem esteja só; farei para
ele alguém que o auxilie e lhe corresponda". [...] (BÍBLIA, 2000)

O texto descreve detalhadamente o aparecimento da mulher, segundo o


Criacionismo. Note-se, entretanto: a divina menção à carência masculina, e a mensagem
implícita de “lhe corresponda”. Além de a mulher surgir a partir do homem, também é criada
para servi-lo em sua solidão, a seu dispor como para suprir sua carência.
Por outro lado, no texto de Couto:

[...] No princípio, todos éramos mulheres. Os homens não haviam. E foi assim até
aparecer um grupo de mulheres que não sabia como parir. [...] (COUTO, 1990)

Nesta leitura, observamos a diferença na apresentação da necessidade da criação do


ser, em especial da mulher. Enquanto no Livro de Gênesis a mulher surge em condição de
demanda, necessidade de favorecer o homem, na lenda de Namorói, a mulher é quem
prevalecia na existência e dela, por um engano, surge o homem, como uma espécie de
anomalia da criação.

3.5 A VIDA

[...] 21 Então o Senhor Deus fez o homem cair em profundo sono e, enquanto este
dormia, tirou-lhe uma das costelas, fechando o lugar com carne. [...] (BÍBLIA,
2000)

[...] Uma mulher deu a luz. Os homens se espantaram: eles desconheciam o ato do
parto. A grávida foi atrás da casa, juntaram-se as outras mulheres e cortaram
acriança onde ela se confundia com a mãe. Decepado o cordão, o um se fez dois, o
sangue separando os corpos [...] (COUTO, 1990)

As narrativas apresentam de forma distinta o nascer. Salienta-se a escrita de Mia


Couto no que diz respeito ao parto, como algo sagrado entre as mulheres, contrapondo-se ao
Livro de Gênesis.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Brasil é um estado democrático, toda a manifestação religiosa deve ser respeitada.


Os cristãos compõem, inquestionavelmente, a maioria dos brasileiros. Entretanto, grande
parte dessa maioria desconhece profundamente a “Bíblia Sagrada”, texto que fundamenta sua
fé. Isso permite que interpretações equivocadas, reproduzidas há longo tempo, tornem-se cada
vez mais sólidas. E ainda grande parte dessa maioria se fecha ao debate sobre o feminismo.
Um grande erro, como visto, reside no entendimento machista de que a mulher tem que
acomodar-se a um segundo lugar, - a mulher é a “costela”- obedecendo cegamente ao marido
e restringindo sua opinião à vida doméstica (o papel de servir à figura masculina); aceitando
que a última palavra pertence ao homem.
Contudo, numa percepção de que o mito da criação não se manifesta apenas em uma
cultura e, através de uma comparação com o resgate de outras culturas, como a de povos
africanos, através da literatura, podemos perceber que há em outros povos um mito de criação
que apresenta a figura feminina como dominante.
Sendo assim, devemos ter em conta quanto estudiosos e investigadores das figuras
construídas nos diversos textos o aspecto simbólico que, mesmo textos considerados sagrados
por algumas culturas e religiões, podem ter. O presente trabalho, portanto, apresenta-se como
uma forma de instigar esse pensamento num âmbito científico de análise.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Nova Versão Pastoral. São Paulo: Bíblica Brasil, 2000.

CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Editora Ática, 4ª edição
revista e ampliada, 2006.

COUTINHO, Eduardo. Literatura Comparada: reflexões. São Paulo: Annablume, 2013.

COUTO, Mia. Estórias abençonhadas. Lisboa: Editorial Caminho, 1990.

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