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psiquiatria

REVISTA DEBATES EM

Ano 2 • n°6 • Nov/Dez 2012


ISSN 2236-918X

Publicação destinada exclusivamente aos médicos www.abp.org.br

ARTIGOS
Saúde Mental da Mulher: transtornos psiquiátricos relacionados
ao ciclo reprodutivo

Intervenção pró ativa em Psiquiatria [Ensino da psiquiatria]

O Programa de Apoio ao Dependente Químico em ação:


descrição, análise e dificuldades

Espiritualidade e Saúde Mental: o que as evidências mostram?

Cérebros, Máquinas e Psiquiatria [Psiquiatria Computacional]

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////////////// EDITORIAL
OPINIÃO

Prestígio consolidado

A Revista Debates em Psiquiatria consolida-se a cada número, e já é uma das


mais lidas pelos psiquiatras associados da ABP e mesmo por profissionais de outras
áreas. Escrita para o psiquiatra no exercício de sua especialidade, serve assim em seu
propósito de auxiliar o clínico na sua prática e na sua educação continuada.
Neste número temos o artigo de Rennó e colaboradores sobre transtornos psiquiátricos na
mulher, relacionados ao seu ciclo reprodutivo. O assunto foi um dos mais concorridos no
XXX Congresso Brasileiro de Psiquiatria, especialmente na delicada questão do tratamento
farmacológico, e, além disso, a saúde da mulher é hoje assunto prioritário em políticas de
saúde coletiva no país. Moreira-Almeida e Stroppa trazem outro artigo igualmente concorrido
nos recentes congressos da ABP, que é o delicado assunto sobre o papel da espiritualidade
e religiosidade na saúde mental. Assunto este para o qual muitos psiquiatras se sentem
desconfortáveis em abordá-lo com seus pacientes ou simplesmente o ignora. Os autores
mostram a importância do tema na vida de pacientes esquizofrênicos e com transtorno do
humor bipolar, por exemplo, em uma bem cuidada revisão.
Outro tema de impacto na psiquiatria nacional é o problema da dependência química, que
ANTONIO GERALDO DA SILVA tem suscitado polêmicas ante a reatividade do poder publico face ao aumento da escalada
EDITOR das drogas em nossa sociedade. Borges e colaboradores nos mostram um modelo de apoio
ao dependente químico instituído pelo governo do Distrito Federal, um ano após sua im­
plantação. A experiência dos autores é de grande valor para se avaliar futuras instituições de
programas semelhantes no país. Márcia Gonçalves relata em seu artigo uma experiência com o
ensino da psiquiatria clínica a estudantes de medicina em Taubaté. Ele apresenta um plano de
ensino em que os estudantes aprendem a abordar psíquica e socialmente os pacientes, a usar
questionários de triagem populacional de sintomas psiquiátricos de depressão e ansiedade, e
correlacioná-los com qualidade de vida dos doentes. Ela também mostra como no hospital
geral a depressão e a intenção suicida são subdiagnosticadas, e o risco que isso traz para os que
procuram por esse serviço.
Por fim, um artigo instigante sobre os fundamentos teóricos da computabilidade e seu uso
como modelo em psiquiatria é apresentado por Portela Câmara. O autor, psiquiatra e mate­
mático, considera o modelo computacional como o mais adequado ao entendimento dos
transtornos maiores da psiquiatria, e propõe marcos referenciais que podem ser uteis à definição
de causalidade nas doenças mentais, bem como para uma delimitação epistemológica do
campo da ação psiquiátrica. A interdisciplinaridade da matéria e sua atualidade é também um
projeto ideal para a modernização do ensino da psiquiatria.

JOÃO ROMILDO BUENO


EDITOR Os editores

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//////////// EXPEDIENTE
EDITORES
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4 revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012 Produção Editorial: Luan Comunicação
Impressão: Gráfica Editora Pallotti

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//////////////////// ÍNDICE
NOV/DEZ 2012

6/artigo
Saúde Mental da Mulher: transtornos psiquiátricos
relacionados ao ciclo reprodutivo
por JOEL RENNÓ JR, RENATA DEMARQUE, HEWDY RIBEIRO
LOBO, JULIANA PIRES CAVALSAN e
ANTONIO GERALDO DA SILVA

14/artigo
Intervenção pró ativa em Psiquiatria
[Ensino da psiquiatria]
por MÁRCIA GONÇALVES

24/artigo
O Programa de Apoio ao Dependente Químico
em ação: descrição, análise e dificuldades
por KARINNE TAVARES BORGES,
SONIA GERHARDT REZENDE,
MARCELA FAVARINI NUNES e
FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA

34/artigo
Espiritualidade e Saúde Mental:
o que as evidências mostram?
por ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA e
ANDRÉ STROPPA

42/artigo
Cérebros, Máquinas e Psiquiatria
[Psiquiatria Computacional]
por FERNANDO PORTELA CÂMARA

* As opiniões dos autores são de exclusiva responsabilidade dos mesmos

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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
por JOEL RENNÓ JR1, RENATA DEMARQUE2,
HEWDY RIBEIRO LOBO2, JULIANA PIRES
CAVALSAN2 E ANTONIO GERALDO DA SILVA3

SAÚDE MENTAL DA MULHER: TRANSTORNOS


PSIQUIÁTRICOS RELACIONADOS AO CICLO REPRODUTIVO

WOMEN’S MENTAL HEALTH: PSYCHIATRIC DISORDERS


RELATED TO REPRODUCTIVE CYCLE

Resumo INTRODUÇÃO
A saúde mental, antes focada principalmente na patologia psi­

A
quiá­trica, tem como objeto de estudo todo o contexto biopsicossocial
partir da menarca até após a menopausa, algumas
no qual o sujeito está inserido. Além disso, mais recentemente, tem
mulheres sofrem de transtornos específicos, incluindo
surgido maior interesse na investigação das possíveis diferenças
transtorno disfórico pré-menstrual, depressão perina­
entre gêneros.
tal e perimenopáusica, blues e psicose puerperal, as­
Sobre a mente feminina, é imprescindível que os profissionais
sim como transtornos do humor e de ansiedade associados à
da saúde tenham a atenção e o conhecimento necessários sobre
infertilidade e gestações abortadas, além de maior incidência de
os transtornos psíquicos associados ao ciclo reprodutivo, devido
transtornos ansiosos, alimentares, doenças auto-imunes e quadros
tamanha repercussão que causam não somente à paciente.
álgicos1,2. Não somente o dobro de mulheres sofre de depressão
Diversas questões ainda estão em aberto no que se refere a um
em comparação aos homens, mas também possuem índice maior
tema tão amplo quanto à saúde mental da mulher. Neste artigo
de comorbidades, tanto físicas quanto mentais1,3.
traremos um breve panorama histórico, atualidades e perspectivas.
As mulheres estão mais expostas a fatores estressores como
Palavras-chave: Mulher; Cuidado; Saúde Mental.
violências, abuso e estupro, a partir de uma idade precoce, po­
rém nem todas as mulheres que se deparam com tais situa­
Abstract ções desenvolvem transtornos4. Desta forma, a interação entre
Mental health, formerly focused on the psychiatric pathology, vulnerabilidade genética, fatores ambientais, fisiológicos e psicosso­
has as main goal of study the biopsychosocial context in which the ciais, funcionamento neurotransmissor e neuroendócrino, além
patient lives. Also, more recently, there has been a greater interest in da própria resiliência, desempenham um importante papel em
the investigation of the possible implications of the gender in mental suas patogêneses4,5,6,7. Entendendo melhor como se dá a relação
health. Regarding the women’s mind, it’s crucial that health carers de equilíbrio entre estes eventos, futuramente poderemos talvez
pay attention to the mental disorders related to the reproductive apontar o caminho para tratamentos específicos por gênero, tanto
cycle, and its repercussions over the patients and those near her. para mulheres quanto para homens com transtornos mental4,8.
Several issues regarding women´s mental health remain open to
discussion and studies. In this article a brief introduction is made on
its historical facts, current concepts and future perspectives
Keywords: Woman; Care; Mental Health.
HISTÓRICO
A loucura já foi interpretada de diversas maneiras ao longo da
História, sendo a loucura feminina costumeiramente associada à
sexualidade. Registros do Egito Antigo atribuíam ao interior do
corpo da mulher uma condição de malignidade pela presença do
útero que, ao “deslocar-se”, produziria sintomas semelhantes ao
quadro de histeria9,10.
Na Idade Média, a caça às bruxas pelo Movimento Inquisitor

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JOEL RENNÓ JR
1
Médico Psiquiatra. Diretor do Programa de Saúde Mental da Mulher (Pró-Mulher) do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo.

forta­leceu a associação entre mulheres e loucura. As chamadas Psiquiátrica Americana (DSM-IV), acrescida de critérios diag­nós­
bruxas apre­sentavam “condutas estranhas”, muitas se asseme­ ticos operacionais para o transtorno (Quadro 1) que passou a ser
lhando a quadros atualmente descritos como psicose, histeria, ma­ no­­meado Transtorno Disfórico Pré-Menstrual (TDPM), como um
nia, depressão ou ansiedade9. Uma outra caracterização acontecia subtipo de transtorno afetivo, considerado o padrão-ouro para
através da prática da prostituição, adultério e aborto11. pesquisa e adotado pelo Food and Drug Administration Neuro­
Ao longo da Idade Moderna, difundiu-se pela Europa a relação pharmacology Advisory Comittee para regular as pesquisas e
entre o útero e a regulação da saúde mental da mulher. Junto a tratamentos propostos13,14.
isso, corria a idéia de inferioridade da mulher frente ao homem, O TDPM apresenta prevalência de 1.6 a 6.4%, com início no
tanto psíquica quanto fisicamente, já que ela permanecia escrava período pré-menstrual e alívio logo após início da menstruação.
desta fisiologia, sob a ordem dos seus órgãos genitais. O pico de incidência ocorre entre 25 e 35 anos de idade. Embora
Entre o final do século XVII e início do XVIII, emergiu tanto pos­sam existir os sintomas físicos, as queixas psíquicas são as mais
a figura do médico na identificação da loucura, como a prática rele­vantes, causando graves prejuízos na vida destas mulheres15,16.
de in­ternação nos grandes asilos, estabelecida como a base da Diversas teorias já foram propostas para explicar a etiopatogenia
psiquiatria nascente9. do TDPM, porém esta ainda não está totalmente esclarecida. A
No Brasil, a preocupação com a saúde mental da mulher tem prin­cipal hipótese vigente é que algumas mulheres são mais sujei­
sofrido mudanças nos últimos anos. O conceito de controle de tas a alterações de humor no período pré-menstrual, por uma
natalidade deu lugar ao de saúde reprodutiva, que compreende sensibilidade cerebral às flutuações hormonais presentes no ciclo
seus direitos, a saúde física e mental da mulher, desde a adolescência menstrual feminino, ou seja, um mecanismo psiconeuroendócrino
à terceira idade. A política governamental, exceto alguns esforços desencadeado pelo ciclo ovariano normal17. Essas mulheres, mesmo
no sentido contrário, organiza principalmente campanhas_não com níveis adequados dos hormônios gonadais, teriam maior
menos importantes, mas não suficientes_ focadas em problemas propensão a alterações no sistema nervoso central, principalmente
isolados enfrentados pelas mulheres, como câncer cervical, câncer na via serotoninérgica, com as oscilações hormonais. A interação
de mama e doenças sexualmente transmissíveis. No entanto, já há entre esses sistemas é multifatorial e complexa, sendo improvável
alguns serviços acadêmicos de excelência que procuram promover que um fator etiológico simples e único explique os sintomas do
atenção multidisciplinar de saúde à mulher, durante os diferentes TDPM. Além disso, é necessário distinguir TDPM de exacerbações
estágios do ciclo reprodutivo feminino12. de trans­tornos psiquiátricos prévios e possíveis diagnósticos dife­
ren­ciais (quadro 2).
O tratamento do TDPM exige participação de equipe multipro­
TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS fis­sional, para a adequada triagem e avaliação diagnóstica. Os inibi­
DO PERÍODO PRÉ-MENSTRUAL dores seletivos da recaptação de serotonina são importantes para
o tratamento, sendo a fluoxetina e a sertralina os mais estu­dados e
Transtorno Disfórico Pré-menstrual efetivos tanto para sintomas físicos quanto psíquicos.
Muitas mulheres em idade reprodutiva apresentam sintomas A prescrição de anticoncepcionais orais de forma contínua,
físicos e psíquicos relacionados ao ciclo menstrual. Apesar do im­plan­tes hormonais subcutâneos, adesivos transdérmicos ou
questionamento sobre essas queixas serem resultantes da vida mesmo injeções mensais ou trimestrais, com o propósito de
moderna estressante, Hipócrates (600 a.C.), no tratado A doença promover amenorréia e, assim evitar a oscilação cíclica de este­
das virgens, já descrevia as alterações de comportamento, as idéias róides, tem mostrado bons resultados16;17.
de morte, as alucinações e os delírios resultantes da “retenção do
fluxo menstrual”.
A entidade clínica Síndrome Pré-Menstrual (SPM) surgiu na 9ª TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS
Classificação Internacional de Doenças (CID-9) e no CID-10 ainda NA GESTAÇÃO E PUERPÉRIO
se mantém restrita ao capítulo destinado às doenças ginecológicas,
codificada em N 94. Por mais contraditório que possa parecer, muitas mulheres
Em 1994, houve revisão e nova denominação no Manual de apresentam tristeza, ansiedade e até sintomas psicóticos em vez
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação da mais serena felicidade nessas fases da vida. Apesar da gestação

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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
por JOEL RENNÓ JR1, RENATA DEMARQUE2,
HEWDY RIBEIRO LOBO2, JULIANA PIRES
CAVALSAN2 E ANTONIO GERALDO DA SILVA3

e chegada da maternidade serem socialmente considerados apresentar sintomas depressivos, porém as mães adotivas experi­
momentos de bem-estar emocional na vida da mulher, o período mentam mais sintomas ansiosos. Embora variações biológicas e
perinatal não a protege dos transtornos psiquiátricos 2,18. psicossociais associadas aos sintomas depressivos sejam parcial­
mente distintos, ambas têm importante vulnerabilidade aos
Disforia puerperal ou Maternity blues trans­tornos de humor. Enquanto fatores biológicos relacionados
É considerada a forma mais leve dos quadros depressivos puer­ ao parto não influenciam sintomas depressivos entre mães ado­
perais e chega acometer até 85% das mulheres. Sintomas como tivas, grande parte destas tem um histórico de infertilidade e
choro fácil, labilidade afetiva, irritabilidade e comportamento hos­ conseqüente repetidas tentativas de exaustivos tratamentos de
til para com familiares e acompanhantes são transitórios e insu­ fertilização e abortamentos 2,18,19,20,21.
ficientes para causar prejuízo funcional à paciente. Geralmente se O tratamento da depressão em mulheres planejando gestação,
iniciam nos primeiros dias após parto, atingem pico ao redor do grávidas ou puérperas requer cuidadosa avaliação dos riscos e
quinto dia e remitem de forma espontânea em até duas semanas. be­nefícios à mãe, ao feto e ao bebê. Medicações antidepressivas
Em alguns casos, poderá persistir além do período puerperal inicial, devem sempre ser consideradas na presença de sintomas mode­
levando a um transtorno do humor mais grave 2,18. rados a graves.
O oferecimento de adequado suporte emocional, compreensão
e auxílio nos cuidados com o bebê deve ser intensificado para Psicose puerperal
essas mulheres, principalmente por parte dos familiares18. Sua prevalência é de 1 caso para cada 500 a 1.000 nascimentos,
com claro risco de recorrência em puerpérios subseqüentes. O
Depressão perinatal início é abrupto (primeiros dias e até 2 a 3 semanas após o par­
Estima-se uma prevalência de depressão na gravidez da ordem to) e quadro bastante polimórfico, com presença de delírios en­­
de 7,4% no primeiro trimestre, 12,8% no segundo e 12% no terceiro volvendo seus filhos, pensamentos de provocar-hes danos, alu­
trimestre. A depressão pós-parto propriamente dita é uma cinações, estado confusional, sintomas depressivos, maniformes
condição comum que afeta 10% a 15% das mulheres no puerpério ou associados. O psiquiatra deve saber que estas mulheres po­
e pode persistir até por cerca de um ano em 40% dos casos 2,18. dem evoluir para o transtorno afetivo bipolar no decorrer do se­
Os sintomas depressivos perinatais se assemelham aos trans­ gui­mento, além disso, síndromes cerebrais orgânicas devem ser
tor­ nos depressivos vivenciados em outros períodos da vida, descartadas. Mulheres diagnosticadas com transtorno afetivo
com algumas peculiaridades, como falta de interesse da mãe bipolar apresentam risco elevado de psicose puerperal quando
(ou preocupação excessiva) por assuntos relacionados ao bebê, comparadas a mulheres saudáveis 2,18,22.
sentimentos negativos em relação ao cônjuge, sentimentos de Devido gravidade do transtorno, risco de suicídio e infanticídio,
inca­pacidade em relação à maternidade e temor do ciúme dos intervenção hospitalar muitas vezes é necessário.
outros filhos em relação à criança, no caso de multíparas. Sintomas
como hipersonia, aumento de apetite, fadigabilidade fácil, diminui­ Transtorno do relacionamento mãe-criança
ção da libido e queixas álgicas são de pouco utilidade para o Apesar de controverso conceito, pois ainda não é reconhecido nas
diagnóstico de depressão perinatal, pois podem ser confundidos classificações diagnósticas atuais, o transtorno do relacionamento
com situações normais do período 2,18,19,20. mãe-criança é freqüente em 10 a 25% das mulheres encaminhadas
A disseminação do conceito de depressão perinatal reduz o aos psiquiatras no pós-parto. Sintoma essencial é a resposta emo­
es­­tigma e permite que as mulheres com transtornos mentais re­ cional patológica da mãe à criança, incluindo aversão e raiva, po­
conheçam que estão doentes e procurem ajuda. A morbidade e dendo ocorrer sem quaisquer sintomas depressivos 2.
mortalidade maternas não são, é claro, as únicas razões pelas quais
ação efetiva na depressão perinatal se faz necessária, visto que Transtorno de estresse pós-traumático
pode ter efeitos pervasivos na família, levando à reduzida interação A tocofobia relacionada a trabalhos de parto prévios dolorosos
com a criança e à irritabilidade mal direcionada a ela, com risco de (ou até mesmo pela própria experiência subjetiva de cada mu­
maus-tratos e, em algumas situações, até infanticídio 2,18,19,20. lher em relação ao que seria um parto traumático, doloroso) e à
Resultados de alguns estudos sugerem que tanto o pós-parto recorrência de tensão, pesadelos e memórias negativas são sinto­
quanto a vivência da adoção de um bebê podem levar a mulher a mas que podem se manter até um próximo trabalho de parto,

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RENATA DEMARQUE, HEWDY RIBEIRO LOBO,
JULIANA PIRES CAVALSAN
2 Médico Psiquiatra. Colaborador do Programa de Saúde Mental da Mulher (Pró-Mulher) do Instituto
de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo.

necessitando de tratamento psicológico específico para que possa sintomas, incluindo medicações não controladas, antidepressivos
haver melhora dos efeitos negativos das memórias traumáticas 2. e terapias comportamentais 2,23.

Obsessões de machucar bebê


A mulher experimenta impulsos infanticidas extravagantes, CONSIDERAÇÕES FINAIS
jun­tamente com fantasias de horror da família, gerando grande
estresse e contato reduzido com o bebê. Além de seguimento Uma perspectiva de gênero não é apenas útil porque a
psicoterápico e uso de medicações, equipe deve fortalecer os fenomenologia, curso da doença e metabolização de medica­
sentimentos maternos positivos já existentes 2. mentos podem diferir, mas também porque a vida reprodutiva
pode influenciar no curso e tratamento da moléstia24.
Os transtornos psiquiátricos na mulher são mais comuns do
TRANSTORNOS MENTAIS DO que se imagina e muitos casos ainda não são diagnosticados e até
CLIMATÉRIO, PERIMENOPAUSA minimizados pelo próprio profissional da saúde mental.
E MENOPAUSA Tem-se dado importância crescente ao tema principalmente
porque os danos que essas patologias podem ocasionar não
O climatério pode ser definido como período de transição atingem apenas à mulher, mas também trazem repercussões
entre fase reprodutiva ou menacma e fase não-reprodutiva ou ao desenvolvimento do feto, no trabalho de parto, na saúde do
senilidade. Em países industrializados, inicia-se em torno dos 40 bebê, nos familiares, além do envolvimento em questões laborais
anos de idade e termina ao redor dos 65 anos; durante esse pe­ e judiciais.
ríodo ocorre a menopausa 2.
A menopausa é definida pela Organização Mundial de Saúde
como a parada permanente da menstruação, sendo necessário QUADROS
período de pelo menos 12 meses de amenorréia para que seja
confirmado o diagnóstico. A perda definitiva da atividade folicular
ovariana ocorre em torno dos 48 anos a 52 anos de idade. Quadro 1. Critérios diagnósticos do transtorno disfórico
O termo perimenopausa é utilizado para definir o período que pré-menstrual segundo DSM-IV TR
se inicia os primeiros sintomas de aproximação da menopausa e
vai até 12 meses após esta. A. Os sintomas devem ocorrer durante a semana anterior à
Durante várias décadas, o uso de terapias hormonais foi con­ menstruação e remitirem poucos dias após o início desta. 5 dos
siderado o tratamento ideal para diversos sintomas da peri e da seguintes sintomas devem estar presentes e pelo menos UM
pós-menopausa, incluindo sintomas vasomotores e distúrbios deles deve ser o de número 1, 2, 3 ou 4:
do sono. Estudos também apontaram resultados positivos com 1. Humor deprimido, sentimentos de falta de esperança ou
o uso de estrógenos e/ou progestágenos no manejo de quadros pensamentos autodepreciativos.
depressivos e qualidade de vida em mulheres na menopausa. 2. Ansiedade acentuada, tensão.
En­tretanto, desde a publicação de ensaios clínicos controlados
3. Significativa instabilidade afetiva.
realizados no EUA pelo Women’s Health Initiative detectaram
aumento de risco relativo de tromboembolismo, acidente vascular 4. Raiva ou irritabilidade persistente e conflitos interpessoais
cerebral, infarto agudo do miocárdio e câncer de mama no aumentados.
acom­pa­nhamento de pacientes tomando hormônio (no caso, 5. Interesse diminuído pelas atividades habituais.
estrógeno eqüino conjugado), quando comparadas ao grupo
6. Sentimento subjetivo de dificuldade em se concentrar.
placebo, pacientes e médicos tornaram-se mais relutantes em
utilizar terapias com estrógenos em longo prazo, particularmente 7. Letargia, fadiga fácil ou acentuada falta de energia.
para mulheres que já apresentem risco maior para transtornos 8. Alteração acentuada de apetite, excessos alimentares ou
cardiovasculares ou câncer de mama. Sendo assim, houve aumento avidez por determinados alimentos.
da procura por terapias não-hormonais para o manejo desses

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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
por JOEL RENNÓ JR1, RENATA DEMARQUE2,
HEWDY RIBEIRO LOBO2, JULIANA PIRES
CAVALSAN2 E ANTONIO GERALDO DA SILVA3

9. Hipersonia ou insônia.
10. Sentimentos subjetivos de descontrole emocional.
Referências
11. Outros sintomas físicos, como sensibilidade ou inchaço • 1. Justo LP, Calil HM. Depressão: o mesmo
das mamas, cefaléia, dor articular ou muscular, sensação de acometimento para homens e mulheres? Rev Psiq Clín.
“ganho de peso”. 2006; 33(2):74-9.
B. Os sintomas devem interferir ou trazer prejuízo no trabalho, • 2.. Rennó Jr J, Soares CN. Transtornos mentais
na escola, nas atividades cotidianas ou nos relacionamentos. associados ao ciclo reprodutor feminino in_Louza
C. Os sintomas não devem ser apenas exacerbação de outras Neto MR, Elkis E. Psiquiatria Básica. Porto Alegre,
doenças. Artmed, 2 ed, 2007, 418-28.
• 3. Toffol E, Koponen P, Partonen T. Miscarriage and
D. Os critérios A, B e C devem ser confirmados por anotações mental health: Results of two population-based
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• 4. Steiner M. Saúde mental da mulher: o que não
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Disord. 2003; 74 (1):67-83.
Anemias • 6. Soares CN, Joffe H, Steiner M. Menopause and
Hipotireoidismo mood. Clin Obst Gynecol. 2004; 47(3):576-91.
Dismenorréia • 7. O’Mahony JM, Donnelly TT. How does gender
influence immigrant and refugee women’s postpartum
Endometriose depression hep-seeking experiences? J Psych Ment
Cefaléia Health Nurs. 2012 Sep 11. Epub ahead of print
Síndrome do colo irritável • 8. Carpiniello B, Pinna F, Tusconi M, Zaccheddu
E, Fatteri F. Gender differences in remission and
Epilepsia
recovery of schizophrenic and schizoaffective patients:
Uso abusivo de etílicos e substâncias ilícitas preliminary results of a prospective cohort study.
Transtornos psiquiátricos (principalmente transtorno Schizophr Res treatment. 2012 Jan 16. Epub ahead of
depressivo, transtorno afetivo bipolar, transtorno ansioso e print
transtornos de personalidade) • 9. Pegoraro RF, Caldana RHL. Mulheres, loucura e
cuidado: a condição da mulher na provisão e demanda
por cuidados em saúde mental. Saúde e Sociedade.
Agradecimentos 2008; 17:2, 82-94.
Agradecemos à Associação Brasileira de Psiquiatria pelo apoio e • 10. Vilela WV. Mulher e saúde mental: da importância
esforços empregados na divulgação da Saúde Mental da Mulher. do conceito de gênero na abordagem da loucura
Não há conflitos de interesses. feminina. 1992. Tese (Doutorado em Medicina
Preventiva) - Faculdade de Medicina, Universidade de
Endereço para correspondência: São Paulo, São Paulo, 1992.
Dr. Joel Rennó Jr • 11. Pessotti I. A doutrina demonista in_ A loucura e as
Rua Teodoro Sampaio, 352 – conj 127 épocas. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994, 83-120.
05406-000 - São Paulo – SP • 12. Rennó Jr J, Fernandes CE, Mantese JC, Valadares
rennojr@terra.com.br GC, Fonseca AM, Diegoli M, Brasiliano S, Hochgraf P.
Saúde mental da mulher no Brasil: desafios clínicos e

10 revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012

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ANTONIO GERALDO DA SILVA
3 Médico Psiquiatra. Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. Psiquiatra da SES/GDF.

perspectivas em pesquisa. Rev Bras Psiq. 2005; 27 (supl características clínicas e opções terapêuticas. Rev Psiq
II):S73-6. Clin. 2006, 33(2), 103-109.
• 13. Valadares GC, Ferreira LV, Correa Filho H, Romano- • 24. Dias RS, Kerr-Correa F, Torresan RC, Santos CHR.
Siva MA. Transtorno disfórico pré-menstrual revisão – Transtorno bipolar do humor e gênero. Revista
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• 14. CarvalhoVCP, Cantilino A, Gonçalves CRK, Moura
RT, Sougey EB. Prevalência da síndrome de tensão pré-
menstrual e do transtorno disfórico pré-menstrual
entre estudantes universitárias. Neurobiologia. 2010
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health practitioner. Psychiatr Clin North Am. Jun
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Psychiatry Neurosci. 2008, 33(4): 291-301.
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• 18. Camacho RS. et all. Transtornos Psiquiátricos na
Gestação e no Puerpério: Classificação, Diagnóstico e
Tratamento. Rev. Psiq. Clín. 2006.33 (2): 92-102
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• 20. Zaig I, Azem F, Schreiber S, Litvin YG, Meiboom
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• 21. Altshuler LL, Cohen LS, Vitonis AF, Faraone
SV, Harlow BL, Suri R, Frieder R, Zachary NS. The
pregnancy depression scale (PDS): a screening tool for
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Nov/Dez 2012 - revista debates em psiquiatria 11

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ARTIGO ORIGINAL
por MÁRCIA GONÇALVES1

INTERVENÇÃO PRÓ ATIVA EM PSIQUIATRIA


[ENSINO DA PSIQUIATRIA]

PROACTIVE INTERVENTION IN PSYCHIATRY


[TEACHING OF PSYCHIATRY]
Resumo INTRODUÇÃO

E
Tendo em vista uma melhor avaliação de quadros psiquiátricos
em clinica médica e uma melhor compreensão de internos de medi­ ste trabalho aborda campos que se entrelaçam entre a
cina em identificar sintomas psicopatológicos. Metodologia: Alunos clinica e a psiquiatria, a saber: educação médica, epide­
internos do Hospital Universitário de Taubaté realizaram entrevis­ miologia, sub-diagnóstico em psiquiatria, e psiquiatria na
tas em todos os pacientes internados na clinica médica durante prática médica.
quatro meses. Foram utilizadas as esclas Beck para depressão, Beck Nós, professores de medicina temos que trabalhar pedagogi­ca­
para ansiedade e a escala de qualidade de vida da OMS. Resultados: mente orientando técnicas, teorias, casos clínicos práticos, atenção
Foram encontrados altos escores em 27%, 36%, e 32% dos pacientes e respeito ao paciente, além de lidar com inseguranças próprias de
respectivamente. Houve uma relação inversamente proporcional cada idade e de cada estágio. 1
entre qualidade de vida e altos escores de depressão e ansiedade. O ensino de graduação atualmente está alicerçado nas mais di­
Os pacientes com altos escores nas escalas Beck-Depressão e Beck­ ver­sas modalidades de tecnologias de informática, e teremos cada
-Ansiedade foram encaminhados para tratamento psiquiátrico. vez mais aulas virtuais, Bibliotecas virtuais e Laboratórios virtuais.
Palavras chaves: epidemiologia – pacientes internos – sintomas Estas ferramentas de comunicação como chats, fóruns, facebook,
depressivos – sintomas de ansiedade. redes sociais, hiperlinks, etc. Já estão sendo utilizadas no cotidiano
do aluno. Comunicações de sala, notas provas rapidamente são
Abstract divulgadas pelos novos meios comunicação e redes sociais.1,2
The present work was done in order to get a better evaluation Na prática da Aprendizagem estas novas tecnologias contribuem
of psychiatric diagnostics in medical general clinics and a better para formação da formação de grupos heterogêneos, diversidade
comprehension for medical students of psychiatrist symptoms. Me­ cul­­tural e articulação de enorme quantidade de pontos de vista
thods: Medicine students carried out psychiatrics interviews with di­ferentes auxiliando na formação da critica e ética.
inpatients of the medical general clinic in the University Hospital O papel atual da Internet pode ser considerado um pilar para
of Taubaté. Four interviews were done: Beck depression inventory, a democratização do saber, com sua diversidade e pluralidade. 1
Beck anxiety inventory, and WHO’s quality of life questionnaires
Results: High scores were found (>13- BDI, 8-BAI and 91- WHOQOL) A Psiquiatria no contexto pedagógico do ensino médico
on 27%, 36%, e 32% patients of the study, respectively. The inverse A psiquiatria hoje tem visibilidade e ultrapassa os limites da
proportional relation between quality of life and high scores of de­ disciplina. Ela participa de reuniões anatomopatológicas, discus­
pression and anxiety was observed. The inpatients with high scores sões de casos clínicos, interconsultas, interagindo com as demais
of depression and anxiety on the Beck-Depression and Beck-Anxiety especialidades médicas. 2,3,4
were sent to psychiatric treatment . O Curso de Graduação em Medicina tem como perfil do for­
Keywords: epidemiology - inpacients - depressive symptoms - mando egresso/profissional o médico, uma formação generalista,
anxiety simptoms. humanista, crítica e reflexiva, capacitado para atuação e atender
em diferentes níveis de atenção. 5
Em psiquiatria, esta exigência se torna fundamental, pois a
história da medicina mostra que os quadros psiquiátricos sempre

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MÁRCIA GONÇALVES
1 Psiquiatra (ABP/AMB), Coordenadora da disciplina de Psiquiatria UNITAU

fizeram uma interface com quadros clínicos (ex- infecções , Lues, acreditar que o tratamento não é eficaz, ou que as doenças são
quadros mentais orgânicos, etc.), que apresentam ainda hoje alta muito abstratas e que a psiquiatria lida com situações de vida
morbidade, e isso torna o clinico um agente fundamental no seu consideradas “íntimas” e pouco aceitas socialmente.
diagnóstico e manejo. 6 Para minimizar as crenças equivocadas Délia propõe como uma
Dentro do enfoque comunitário o ensino de psiquiatria hoje possível solução, a maior exposição dos alunos com os pacientes. 2
na graduação, contribui para atender os principais problemas de
saúde da população, e o psiquiatra atualmente está presente nos As vertentes epidemiológicas do ensino
serviços de emergência, em enfermarias, e realiza orientação na Do ponto de vista comunitário temos que abordar os aspectos
relação medico-paciente. 2 epidemiológicos mais relevantes da população em que os alunos
Na formação do clinico geral, os objetivos educacionais na gra­ estão inseridos. Nos serviços de saúde públicos, por exemplo, os
duação de medicina, foram direcionados para uma nova meto­do­ alunos devem promover medidas preventivas. 6,7
logia de ensino, onde as aulas práticas e o contato do estudante Para atingir este objetivo temos que conhecer a situação social
desde os primeiros anos com o paciente é privilegiada. Isso auxilia local e regional, identificar problemas, investigar problemas e pro­
a desenvolver a sensibilidade com o sofrimento humano, além por soluções compatíveis. 9
de facilitar o entendimento, a subjetividade e a maneira como a O Médico no contexto comunitário deve identificar e entender
doença repercute na vida do paciente.2,3 o agente causal de doenças, estabelecer metas e estratégias de
Um aspecto que é importantíssimo e não deve ser negligen­ con­tro­le definir as medidas preventivas mais adequadas. Isso au­
ciado pelos professores é a supervisão dos problemas da relação xi­liar o planejamento e desenvolvimento de serviços de saúde. 9
medico-paciente durante o internato, quando o aluno sentirá
vi­­ven­cialmente esta relação, já que estará exposto a uma rotina Dados epidemiológicos e diagnóstico em psiquiatria
aca­dêmica com algum nível de responsabilidade. E mais ainda, o Com relação ao diagnóstico em psiquiatria, uma meta-análise
ensino de psiquiatria não pode esquecer aspectos éticos humani­ em dez países (50 mil pacientes) mostrou que somente 47% dos
tários que podem ser observados e enfatizados durante a interação casos de depressão são diagnosticados no atendimento, e que
do aluno com o paciente. 4 há falso diagnóstico em cerca de 20% dos casos. (Lancet). “O
Para o clinico geral o sintoma não pode ser visto de forma sim­ deprimido não procura um psiquiatra, até por preconceito. Ele vai
plista. As emoções dos pacientes devem ser observadas (raiva, ao clínico, ao neurologista...” 10
atra­ção sexual, paixão, insegurança), e o médico precisa aprender No Brasil, estes dados estão sendo valorizados até mesmo na
a lidar com elas. 2 mídia. Segundo Juliane Silveira, da Folha de São Paulo, estima-se
Com relação à prática psiquiátrica nos hospitais gerais, as inter­ que cerca de 12% dos homens e 20% das mulheres terão algum
con­sultas e os quadros psiquiátricos nas diversas especialidades, nível de depressão em alguma fase da vida.10
como UTI, etc, estão sendo privilegiados e já possuem atenção Fica evidenciado que a detecção de sintomas psiquiátricos
especial.4 ainda é uma grande dificuldade do clínico-geral, pois existe pouca
Nesta linha de raciocínio, no fim do curso de medicina os alunos per­cepção do clínico da associação de sinais de uma possível
devem ser capazes de reconhecer sintomas psiquiátricos e físicos depressão ou transtornos de ansiedade, e estes sinais e sintomas
relevantes e nomear os sintomas encontrados, além de saber obter (dores, cansaço, falta de ar e de energia) serem creditados à outras
uma história psiquiátrica complexa.5 doenças.3
O médico recém-formado deve conhecer as prevalências dos Um estudo com 316 pacientes e 19 clínicos-gerais do Hospital
transtornos mentais nos diversos serviços médicos. 5 das Clínicas de São Paulo salienta que a lentidão, cansaço e falta de
Ao final do curso de medicina os alunos devem ser capazes de concentração são os sintomas de depressão mais difíceis de serem
aprender a conduzir e redigir uma anamnese psiquiátrica, usar identificados pelo clínico.
a historia e o exame psíquico para identificar a psicopatologia,
saber fazer um diagnóstico diferencial e sobretudo saber avaliar e Sub diagnóstico em psiquiatria e suicídio
manejar as emergências psiquiátricas mais comuns.5 Outro fator muito sério no sub-diagnóstico de doenças psiquiá­
Não é incomum os alunos de medicina carregarem no bojo de tricas é o suicídio.
sua formação cultural crenças equivocadas da psiquiatria, como Não é incomum ouvirmos frases do tipo: “Ele estava tão bem,

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ARTIGO ORIGINAL
por MÁRCIA GONÇALVES1

nos últimos meses... não se estressava, não reclamava, ficou calmo altos escores nas respostas aos questionários tiveram tratamento
de repente, as preocupações deixaram de incomodá-lo, e ele dimi­ já iniciado no leito da enfermaria, e quando não foi possível a
nuiu os rompantes emocionais… ele estava tão bem, e se matou intervenção imediata, estes pacientes foram encaminhados para
não sei porque”... Facilmente fica nítido que era um quadro de serviços de psiquiatria.
depressão não diagnosticada.11,12 Denominamos esta forma de avaliação de Intervenção Pró-
Mais de 90% dos suicídios ocorrem no contexto de doença ativa.
psiquiátrica. E em torno de 15% dos doentes com depressão maior
cometem suicídio.12 Resultados:
Os índices elevados de suicídio são importantes indicadores Os resultados da intervenção pró-ativa em relação aos
do sub-diagnóstico e sub-tratamento da depressão, pois 40% dos questionários estão resumidos na tabela 1. Dos entrevistados,
indivíduos que cometem suicídio consultaram um médico nas 73% não apresentaram sintomas de depressão pela Escala Beck
quatro semanas anteriores à passagem ao ato suicida e apenas 10% para Depressão, e 64% não apresentarma sintomas de ansiedade
dos doentes deprimidos recebem cuidados adequados.11 pela Escala Beck para Ansiedade. Contudo, 36% destes pacientes
apresentaram altos escores de ansiedade, o que torna esse grupo
Metodologia vulnerável a piora de sintomas clínicos. Cerca de dois terços dos
Foram realizadas 74 Entrevistas em pacientes hospitalizados pacientes tinham uma boa qualidade de vida, segundo a Escala
na enfermaria de clinica médica do HUT. Todos os pacientes WHOOL.
que tinham condição de comunicação foram entrevistados
indistintamente, num período de 4 meses. Tabela 1. Resultado das aplicações dos questionários
A técnica da entrevista foi a seguinte. Os alunos, na beira do leito após a intervenção pro-ativa.
das enfermarias, entrevistavam
os pacientes que estavam aptos Escala Beck para depressão Escala Beck para Ansiedade Escala de Qualidade de vida
a res­ ponder, e após consen­ WHOQOL-26
timento livre e esclarecido, res­
Escore Interpretação Escore Interpretação Escore Interpretação
pon­ diam três questionários e
uma entrevista psicossocial. Os <13 Sem <8 Sem <91 Boa
ques­ tionários escolhidos foram: Depressão Ansiedade n = 56 (68%)
Escala Beck para Depressão, Es­ n = 58 (73%) n = 57 (64%)
cala Beck para Ansiedade e Escala >13 Com >8 Com >91 Moderada/
de Qualidade de Vida da OMS Depressão Ansiedade Ruim
(WHOQOL). n = 16 (27%) n = 21 (36%) n = 18 (32%)
Essas entrevistas visavam a de­
tec­ção e sintomas psiquiátricos
nos pacientes internados, e o esta­belecimento de diagnóstico pos­
terior quando os valores respondidos excediam os pontos de corte A figura 1 mostra a relação entre ansiedade e qualidade de
internacionalmente estabelecidos na literatura médica. vida, e a figura 2 mostra a relação entre qualidade de vida, com
Uma anamnese psiquiátrica foi posteriormente realizada nos os dados da tabela 1. Note que há uma inversão nos números de
pacientes com altos escores nas entrevistas. casos: maior o escore de ansiedade ou depressão, menor o escore
Também foi avaliada a correlação dos sintomas dos questionários de qualidade de vida.
de depressão e ansiedade com a quantificação da qualidade de
vida, e para isso foram aplicados questionários de qualidade de Discussão
vida. (WHOQOL) Nosso trabalho encontrou sintomas depressivos com escores
Posteriormente uma comunicação foi realizada para os médicos acima de 13 na BDI em 27% dos pacientes internados, o que
clínicos responsáveis pelo paciente nos leitos que apresentaram demonstra que existe um déficit na detecção destes sintomas em
altos valores quantificados nas entrevistas. Os pacientes com pacientes internados.

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Os motivos do sub-diagnóstico e sub-tratamento podem ser psiquiátrico, contato com o paciente, sendo esta abordagem uma
detectados em déficits dos profissionais, falta de conhecimentos, forma ética, eficiente, e que contribui tanto para auxiliar os internos
sub-valorização da gravidade dos sintomas.11,12 a detectarem quadros psiquiátricos em pacientes internados
Os dados epidemiológicos sobre transtornos mentais exibem em clinica médica, e mostrou-se como uma forma eficiente de
va­lo­res surpreendentes: Segundo Cepoiu13, os transtornos psiquiá­ contribuir para reduzir os índices de sub-diagnóstico, bem como
tricos giram em torno de 13% da sobrecarga de doenças no na oferta e disponibilização de um tratamento adequado dos
mun­do e existe uma imensa lacuna entre oferta e demanda de quadros psiquiátricos sub-diagnosticados. Podemos também
assistência em saúde mental. De 25% a 50% dos pacientes que através desta avaliação pró–ativa, somar esforços às estratégias
procuram médico em centros primário, apresentam pelo menos para a melhoria da qualidade de vida em pacientes internados
um transtorno psiquiátrico ou neurológico.13 com quadros clínicos graves.
Dados alarmantes podem ser verificados como, por exemplo, a
não detecção dos casos pode chegar a 55% para diagnóstico de
depressão, e a 77% para transtorno de ansiedade generalizada. As
estratégias para modificação deste quadro passam pela utilização
de instrumentos de rastreamento de sintomas psiquiátricos.14
Segundo Fleck15, a morbi-mortalidade associada à depressão pode
ser prevenida em torno de 70% com o tratamento correto.15
Também pacientes com problemas cardiológicos estão incluídos
entre os pacientes com sub-diagnóstico de doenças psiquiátricas.
Quadros de depressão grave pode acometer 16 a 27% das pessoas
que sofreram infarto do miocárdio recente.16
Foi encontrada uma correlação proporcionalmente inversa,
ou seja, pacientes com sintomas psiquiátricos apresentavam pior
qualidade de vida pela WHOQOL (32%).
A ansiedade é outra patologia psiquiátrica que tem sérios Figura 1. Correlação entre qualidade de vida (linha vermelha), avaliados
problemas de sub-diagnóstico. Boughton17 realizou um trabalho pela Escala WHOOL-26, e sintomas de ansiedade (linha azul), avaliados pela
e concluiu que sobreviventes do câncer de ovário continuam por Escala Beck.
5 anos apresentando um sub-diagnóstico de ansiedade quanto
à possibilidade de recorrência. 60º Encontro Clínico Anual do
Congresso Americano de Ginecologia e Obstetrícia.17
Foram encontrados altos escores de sintomas de ansiedade
avaliados pela BAI (36%) nos pacientes internados, e uma corre­
lação inversamente proporcional para qualidade de vida, ou seja,
quanto maior os escores de sintomas de ansiedade avaliados
pela BAI, menores escores de qualidade de vida avaliados pela
WHOQOL (32%).
O sub-diagnóstico de depressão pode levar à uma considerável
perda de qualidade de vida em pacientes com patologias clínicas.

CONCLUSÃO

A intervenção pró-ativa como metodologia de ensino para Figura 2. Relação entre qualidade e vida (linha vermelha), medida pela
Escala WHOQOL, e sintomas depressivos (linha azul) pela Escala Beck.
graduação de psiquiatria demonstrou ser uma técnica que aborda
diferentes enfoques pedagógicos, como treino na percepção de
sintomas psicopatológicos, facilitação na elaboração de diagnóstico

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ARTIGO ORIGINAL
por MÁRCIA GONÇALVES

Agradecimentos:
Agradeço aos alunos de medicina da Universidade de Taubaté, php?option=com_content&view=article&id=
à comissão científica da Associação brasileira de Psiquiatria (ABP), 1331:clinico-diagnostica-apenas-47-dos-casos-
ao Dr. Fernando Portela Câmara. de-depressao&catid=29:dependencia-quimica-
Este trabalho não apresenta conflitos de interesse. noticias&Itemid=94 ( acesso 21/10/21012)
• 10. Manual de Psiquiatria Clinica: http://www.ebah.
Márcia Gonçalves com.br/content/ABAAAAtfsAB/manual-psiquiatria-
Rua Conego Ribeiro 726 - Taubaté SP. clinica.
12100000 • 11. Sehnem SB, PalosquiV. Suicídio, uma questão de
margonps@yahoo.com.br saúde pública: caracterís¬ticas epidemiológicas do
suicídio no Estado de Santa Catarina; http://editora.
unoesc.edu.br/index.php/achs/article/view/1364/
pdf_221(acesso (21/10/2012)
• 12. Suiçidio -http://www.rodrigooller.com/
Referências autocontrole/suicidio-aumenta-cada-ano/ ( acesso
21/10/2012).
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com/humanities/165960 0 -pierre-l%C3%A8vy- Ciampi A. Recognition of Depression in Older Medical
principais-id%C3%A9ias, (acesso 21/10/2101) Inpatients. J Gen Intern Med. 2007; 22: 559-64.
• 2. Arruda PCV, D’Elia G. Interesse na área de Psiquiatria • 14. Baroni DPM, Fontana LM. Ações em saúde mental
entre alunos de Medicina. Revista de Psiquiatria Clínica, na atenção primária no município de Florianópolis,
São Paulo, 1999 Santa Catarina. Mental (Barbacena) 2009; 7: 15-37.
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psiquiatria: ciências do comportamento e psiquiatria Associação Médica Brasileira para o tratamento da
clínica. 7º edição. São Paulo: Artes Médicas, 1997, Cap. depressão (versão integral). Rev. Bras. Psiquiatr. [online].
10, pp.324-348. 2003, vol.25, n.2, pp. 114-122. ISSN 1516- 446. http://
• 4. Botega N. Prática psiquiátrica no hospital geral: dx.doi.org/10.1590/S1516-44462003000200013
interconsulta e emergência. São Paulo: Artmed, 2002, • 16. Boughton AB. Sobreviventes de câncer de
Cap. 13, pp. 176-191. ovário experimentam angústia a longo prazo:
• 5. Resolução CNE/CES nº 4, de 7 de – MEC portal. //w w w. m e d ce nte r. co m/M e d s c ap e/co nte nt .
mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES04.pdf (acesso 21- aspx?bpid=129&id=34991 (acesso 21/10/2012)
10/2012) • 17.Gonçalves M. Psiquiatria e cardiologia necessidade
• 6. Akiskal HS. “Mood Disorders: Clinical Features. de ações conjuntas ; Psychiatry On-line, 2012 - Vol.17
In BJ Sadock, VA Sadock (ed), Kaplan & Sadock’s Nº 1(Janeiro) http://www.polbr.med.br/ano12/
Comprehensive Textbook of Psychiatry, Philadelphia: prat0112.php (acesso 21/10/2012).
Lippincott Williams & Wilkins, 2005.
• 7. Depressão Assassina: http://depressaoassassina.
blogspot.com.br/2009/08/subdiagnostico-e-sintomas.
html (acesso (21/10/2012)
• 8. Como lidar com Alto nível de estresse: http://
www2.uol.com.br/vyaestelar/como_lidar_com_alto_
nivel_de_estresse.htm (acesso 21/10/2012)
• 9. Silveira.L. Blog Uniad, Unipad - Clinico
diagnóstica: http://www.uniad.org.br/index.

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2 5:03 PM
ARTIGO ORIGINAL
por KARINNE TAVARES BORGES1,
SONIA GERHARDT REZENDE2,
MARCELA FAVARINI NUNES3 E
FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA4

O PROGRAMA DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO EM


AÇÃO: DESCRIÇÃO, ANÁLISE E DIFICULDADES

THE CHEMICALLY DEPENDENT SUPPORT PROGRAM IN


PRACTICE: DESCRIPTION, ANALYSIS AND DIFFICULTIES
Resumo approved, as well as the difficulties encountered and the new guide­
A Dependência Química no trabalho, por provocar prejuízos lines drawn from the experience with this group.
ao usuário, ao funcionamento da equipe e à instituição como um Keywords: Health Policy, Alcohol, Work
todo, desperta a necessidade da elaboração de políticas voltadas ao
restabelecimento da saúde mental do trabalhador. O Governo do
Distrito Federal, por meio do Programa de Atenção ao Dependente Introdução

A
Químico, oportuniza tratamento especializado aos servidores de­
pendentes químicos. A equipe multiprofissional do Programa reali­ Subsecretaria de Saúde, Segurança e Previdência dos
za acompanhamento psiquiátrico, atendimento psicoterápico indi­ Servidores - Subsaúde, órgão da Secretaria de Estado
vidual e em grupo, avaliação biopsicossocial, informações gerais aos de Administração Pública - SEAP, do Governo do Dis-
respectivos familiares e orientação aos gestores dos servidores em trito Federal - GDF, cumprindo seu papel institucional
temas como prevenção, detecção precoce da dependência química de prevenção, promoção e vigilância em saúde, vem fortalecer
no ambiente laboral e condutas adequadas de intervenção. O pre­ a Política Integrada de Atenção à Saúde do Servidor do Distrito
sente trabalho tem por objetivo descrever o Programa de Atenção Federal1 oferecendo alternativas institucionais à problemática da
ao Dependente Químico após um ano de publicação da portaria Dependência Química (DQ).
que o instituiu e apresentar o perfil dos servidores que foram nele A dependência química no trabalho provoca prejuízos ao pró-
recepcionados, assim como as dificuldades encontradas e as novas prio servidor usuário, ao funcionamento do ambiente laboral e à
diretrizes traçadas a partir da experiência com esse grupo. instituição como um todo. Já em 1990, a Associação dos Estudos
Descritores: Política de Saúde, Álcool, Trabalho do Álcool e outras Drogas - ABEAD estimou uma variação entre
3% e 10% da população adulta com prevalência no alcoolismo e
Abstract o apontou como o terceiro motivo para absenteísmo no trabalho.
The Chemical Dependence on the workplace, by causing damage O absenteísmo é caracterizado por faltas de curta duração, com
to the user, the functioning of the teamwork and the institution as ou sem atestado médico de afastamento, faltas frequentes nas se-
a whole, highlight the need for the policies aimed at the restoration gundas nas segundas e sextas-feiras e nos dias que antecedem ou
of workers’ mental health. The Government of the Federal District, sucedem feriados, ou mesmo por faltas por doenças vagas como
through the Program of Attention to the Chemical Dependent, deli­ resfriado, gripes e enxaquecas². O abuso causa ainda outras lacu-
vering specialized treatment to chemical dependents. A multidisci­ nas institucionais, como ausências no período da jornada de traba-
plinary team conducts follow-up psychiatric and psychotherapeutic lho, com atrasos excessivos após o almoço, saídas antecipadas ou
care individual and group, biopsychosocial assessment, general in­ saídas frequentes do posto de trabalho; queda na produtividade
formation to their respective families and guidance to managers in e qualidade no trabalho, o que inclui maior perda de tempo, ma-
topics such as prevention, early detection of chemical dependence terial, equipamentos, memória para novas instruções e restrição
in the work environment and conducting appropriate intervention. para atividades complexas; mudança nos hábitos pessoais, vindo
The purpose of this study is to describe the Program of Attention to ao trabalho em condições anormais e mesmo com higiene pre-
the Chemical dependent after a year of publication of the ordinance cária e por fim relacionamento ruim com colegas, pois pode re-
which created and present the profile of employee that were in it agir exageradamente às criticas e apresentar estados emocionais

24 revista debates em psiquiatria - Nov/Dez 2012

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KARINNE TAVARES BORGES
1 Médica formada pela Universidade de Brasília, com especialização em psiquiatra pelo Hospital
Universitário Professor Edgar Santos da Universidade Federal da Bahia, com título de Psiquiatra Geral
pela Associação Brasileira de Psiquiatria, atua na Secretaria de Administração Pública do Governo do
Distrito Federal como psiquiatra da equipe de Gerência de Saúde Mental e Preventiva.

variados, conduta de evitação e ressentimentos irreais2. Por outro a adaptação na gestão de pessoas e induziu empresas, principal-
lado, fatores como desconhecimento da dinâmica da dependên- mente as de grande porte, a desenvolver programas de prevenção
cia, estruturas familiares disfuncionais, estereótipos sociais, entre e tratamento de álcool e drogas no local de trabalho. Na Subsaúde,
outros, se opõem ao trato da patologia, agravando casos crônicos a observação do número crescente de licenças médicas, aposen-
e criando uma cultura distanciada do restabelecimento da saúde. tadorias precoces ou inassiduidade habitual em consequência de
O II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas no Brasil3 alcoolismo demandou a criação de um programa que oferecesse
destaca o uso de álcool comparativamente com o de outras dro- aos órgãos do GDF uma referência nos casos de DQ.
gas em âmbito nacional, conforme quadro comparativo abaixo: O Programa de Atenção ao Dependente Químico - PADQ foi
instituído pela Portaria nº48 de 26 de maio de 20116 e tem como
Uso de álcool Uso de outras drogas responsável por sua execução a Gerência de Saúde Mental e Pre-
ventiva - GESM, subordinada à Coordenação de Saúde e Segu-
Na vida 74,6% 22,8% rança do Trabalho - COSST. A equipe interdisciplinar do PADQ
No ano 49,8% 10,3% é composta por psiquiatra, psicólogos, enfermeira e técnica de
No mês 38,3% 4,5% enfermagem. Além desses, há o suporte de uma assistente social
quando necessário. O Programa inclui acompanhamento psiquiá-
Esses dados reforçam a necessidade de uma atenção diferencia- trico, atendimento psicoterápico individual e em grupo, avaliação
da ao grupo de alcoolistas. O I Levantamento Nacional Sobre os e suporte biopsicossocial, encaminhamento a instituições exter-
Padrões de Consumo do Álcool4 cita que na América Latina cerca nas, orientação aos familiares e orientação aos gestores em temas
de 16% dos anos de vida útil são perdidos em função do uso do ál- como prevenção, detecção precoce da dependência química no
cool, enquanto a média mundial tem um índice quatro vezes me- ambiente laboral e condutas adequadas de intervenção. O presen-
nor (4%); também nota-se que 12,3% dos brasileiros tiveram diag- te trabalho tem por objetivo relatar ações, limitações e diretrizes
nóstico de dependência alcoólica, enquanto os usuários de outras do PADQ, assim como avaliar os progressos alcançados em um
drogas psicoativas, excluindo-se o tabaco, somaram 2,1%1. Alguns ano da publicação da portaria que o instituiu.
organismos internacionais como a OMS - Organização Mundial Os servidores ingressam ao Programa por demanda espontânea
de Saúde, no Programa de Abuso de Substâncias, a International ou encaminhados por gestores, médicos das Gerências de Perícia
Labour Organization e a United Nation International Drug Con- Médica e de Promoção à Saúde do Servidor ou pela Comissão
trol Programme privilegiam ações de prevenção ao consumo de Permanente de Readaptação Profissional. O acolhimento é feito
substâncias psicoativas no trabalho a partir da constatação de que em entrevista de triagem com questionário elaborado pela GESM
70% a 80% desse público encontra-se empregado. Nos Estados e obtém informações como: dados epidemiológicos, padrão de
Unidos, cada vez mais recorre-se ao Employment Assistance Pro- consumo, histórico familiar, comorbidades, informações relativas
gram – EAP (Programa de Assistência ao Funcionário), direciona- ao trabalho, aspectos da vida social e interesses do servidor. O
do à saúde mental e aconselhamento, ajudando a tratar, inclusive, questionário, além de avaliar o comprometimento clínico, avalia se
de problemas do uso de álcool e outras drogas. “O ambiente de o servidor é eleito para o PADQ. Durante a entrevista de triagem
trabalho é o espaço privilegiado para definir uma política de pre- são fornecidas informações sobre normas, atividades e critérios de
venção, uma vez que é onde o trabalhador passa grande parte de participação no Programa. A partir disso, o servidor é encaminha-
seu tempo e estabelece uma rede de relacionamento capaz de lhe do de acordo com uma das modalidades de tratamento a seguir:
conferir identidade social e profissional”5. a) Acompanhamento Psiquiátrico: é realizada uma investiga-
ção para outras comorbidades psiquiátricas comumente associa-
Descrição do funcionamento das à dependência química como depressão e ansiedade e instau-
do PADQ rado tratamento farmacológico específico para os sintomas-alvo.
A periodicidade das consultas depende da avaliação da gravidade
A constatação de que é mais vantajoso implantar medidas pre- do caso;
ventivas do que meramente substituir o funcionário de uma de- b) Atendimento Individual: é realizado por psicólogo em ses-
terminada empresa, arcando-se com os custos de demissão, recru- sões continuadas e periódicas. Os eleitos para essa modalidade de
tamento, seleção e treinamento do novo funcionário, determinou atendimento apresentam alguma característica, ou mesmo psico-

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SONIA GERHARDT REZENDE2,
MARCELA FAVARINI NUNES3 E
FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA4

patologia, que não os elege para o atendimento em grupo; Cartilha de Orientação aos Gestores
c) Atendimento em Grupo: com frequência semanal, é o aten-
dimento privilegiado no programa para minimizar a sensação de
sobre Dependência Química7
isolamento em relação à patologia e lidar com a exclusão e a discri- A Cartilha surgiu após uma série de palestras com a exposição
minação em que vivem os dependentes; de dados gerais da dependência química e da técnica denominada
d) Avaliação Biopsicossocial: é realizada na área médica, psi- Passo a Passo, que buscava auxiliar o gestor na tarefa de conduzir
cológica e social, de modo a contextualizar o quadro apresentado o servidor a tratamento sem desviar-se de seu papel institucional.
pelo servidor. Durante essa avaliação, são feitas visitas técnicas às Identificou-se nesses encontros a dificuldade do gestor em assimi-
famílias, ao local de trabalho, a clínicas de recuperação ou qual- lar todo o procedimento sem um material impresso que pudesse
quer outro lugar pertinente, de modo a observar o universo em ampará-lo no encaminhamento do servidor dependente. A pre-
que o servidor se encontra; visão é de que a Cartilha seja usada no âmbito da Administração
e) Suporte Biopsicossocial Direta, Autárquica e Fundacional do Distrito Federal8. Seu conte-
Orientação aos familiares: sensibilizá-los sobre o seu papel na údo está disponível no sítio eletrônico da SEAP para acesso dos
recuperação da saúde do servidor e informá-los sobre os trata- gestores.
mentos específicos existentes nas atuais redes de apoio, tanto para O material é distribuído tanto aos órgãos de Gestão de Pesso-
familiares como para os próprios servidores; as quanto aos gestores de servidores dependentes químicos que
Orientação aos gestores: aliados na problemática da depen- participam da palestra “Lidando com o Alcoolismo no Ambiente
dência química, a equipe do PADQ dá atenção especial aos gesto- de Trabalho”. O Curso de Orientação a Gestores de Dependente
res, legitimando-os no cumprimento de seu papel e auxiliando-os Químico tem como base a apresentação da Cartilha aos gestores
no encaminhamento do servidor dependente. Há palestras, orien- que encaminham o servidor dependente. A cartilha tem propos-
tações por contato telefônico, o Curso de Orientação a Gestores ta dinâmica, onde o gestor pode seguir a sequência de ações que
de Dependente Químico e a Cartilha de Orientação aos Gestores objetivam conscientizar o servidor sobre seu grau de dependência,
sobre Dependência Química7, que será apresentada adiante; bem como responsabilizá-lo pelos prejuízos.
f) Encaminhamento a Instituições Externas O Passo a Passo orienta o gestor em cada etapa, da identificação
Redes de apoio: instituições como os Centros de Atenção Psi- ao encaminhamento para o PADQ, finalizando com a persistência
cossocial – Álcool e Drogas/CAPS-ad, Alcoólicos Anônimos/AA e necessária para que não mude sua postura frente a eventuais reca-
Narcóticos Anônimos/NA são indicadas em duas situações: asso- ídas do servidor. “Persistir é não desistir de conter os efeitos do uso
ciado à assistência da Subsaúde, como forma de intensificar o tra- no ambiente laboral. O trabalho tem a capacidade de promover
tamento ou na impossibilidade de comparecimento do servidor fatores de proteção, pois fortalece a autoestima através da satis-
na sede da Subsaúde; fação pessoal.”7
Internação: é recomendada para os casos crônicos, com abuso
intenso e longevo, onde há dificuldade de reestruturação da rotina
do paciente. Idealmente, as clínicas com equipe multidisciplinar Perfil Sociodemográfico da
são as mais indicadas. No entanto, verifica-se que os casos crô-
nicos trazem, como coadjuvante, comprometimento financeiro
População do PADQ
do servidor, fazendo-os migrar principalmente para comunidades O PADQ tem uma peculiaridade no quesito população. Na oca-
terapêuticas, com quadro de pessoal mais limitado; sião da publicação da Portaria que instituiu o Programa, os ser-
Monitoramento: acompanhamento do servidor internado ou vidores já atendidos na gerência migraram para o PADQ e, após
que frequenta alguma instituição da rede de apoio. Essa modali- um ano de publicação, outros foram encaminhados ou vieram
dade permite ao profissional verificar a capacidade de adesão ao por demanda espontânea ao Programa, totalizando 67 servidores.
tratamento indicado e inclui contato com o gestor para que seja Desses servidores, 43% não chegaram a ser triados, seja por não
verificada a frequência do servidor ao trabalho, assim como sua demonstrarem interesse em agendar a entrevista, seja por agenda-
produtividade. Nos casos de internação são feitas visitas técnicas, rem seguidas vezes sem nunca concretizar o encontro. Os dados
que também têm função de subsidiar homologação de licença aqui apresentados representam os servidores que compareceram
médica.

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SONIA GERHARDT REZENDE
2 Psicóloga pela Universidade Federal Fluminense, atua na Secretaria de Administração Pública do
Governo do Distrito Federal como psicóloga da Gerência de Saúde Mental e Preventiva e desde 2007
na área de dependência química, responsável pelo Programa de Apoio ao Dependente Químico do
Governo do Distrito Federal, elaborou a Cartilha de Orientações aos Gestores sobre Dependência
Química usada no âmbito da Administração Direta, Autárquica e Fundacional do Distrito Federal.

à triagem e foram colhidos do questionário padrão adotado no produto aos órgãos era uma palestra de aproximadamente duas
final do ano de 2010. horas, agora é oferecido um curso aos gestores que tem por obje-
Os homens constituem uma expressiva maioria (98,5%) e a tivos reduzir a codependência institucional, aumentar a consciên-
maior parte dos atendidos encontra-se na faixa etária de 40 a 49 cia coletiva sobre os transtornos decorrentes do uso indevido do
anos, como mostra a Figura 1. Destaca-se a escolaridade: 59,3% álcool e isentar o gestor do papel de agente punidor colocando-o
tem pelo menos o ensino médio completo e o restante (40.7%) em outro, capaz de promover ambiente de trabalho saudável. “Os
compõe o grupo que vai de analfabeto a nível médio incompleto, ambientes de trabalho devem ser vistos como locais privilegiados
de acordo com a Figura 2. Esses resultados compõem com outro para iniciativas de prevenção do uso prejudicial de bebidas alco-
dado, que mostra 84% do quadro funcional de servidores do GDF ólicas”9.
com escolaridade de nível superior ou com ensino médio com- As palestras feitas nos órgãos ao longo dos anos possibilitaram
pleto. a identificação de dois perfis predominantes entre os gestores que
O tempo de serviço desse grupo (Figura 3) está concentrado hesitam em encaminhar o servidor para tratamento. Há o gestor
entre 11 e 30 anos de trabalho no GDF: 65,79%. O tipo de consu- que tem relativa intimidade com o dependente, que já teve algu-
mo (Figura 4) retrata o abuso de álcool como índice prevalente ma tentativa frustrada de ajudá-lo e evita a responsabilização do
nessa população: todos os servidores do PADQ que chegaram à mesmo por observá-la como sinônimo de punição. Há também
GESM o fizeram por prejuízos advindos dessa substância. Há um o gestor que está no cargo em caráter temporário e percebe que
expressivo número que conjuga álcool e tabaco (36,84%) e 13,7% a situação se prolonga ao longo dos anos. Temendo o desgaste,
que consomem o álcool com outras drogas como crack e cocaína. é inclinado a minimizar o problema. Ambos costumam abonar o
Não se pode afirmar que esses resultados são fiéis ao consumo ponto dos faltosos, ignorar os atrasos, redistribuir as tarefas entre
de crack ou cocaína nesse público; há possibilidade de o servidor os outros servidores, adotar postura passiva ao verificar a dificul-
dependente dessas substâncias evitar buscar o PADQ como fonte dade, ou algumas vezes incapacidade, do servidor em cumprir seu
de auxílio. Pelo fato de o álcool ser substância lícita, é assumido e pape e aceitar o presenteísmo.
usado de forma mais livre do que outras drogas. Com efeitos mais A falta de crítica do próprio servidor é outro ponto que dificulta
conhecidos pela população em geral, é de mais fácil identificação a adesão. Há dificuldade em encarar a dependência química como
do que, por exemplo, a cocaína. O encaminhamento dos servido- doença e em entrar em contato com os prejuízos dela decorren-
res pelos gestores se dá exclusivamente por queixa de alcoolismo. tes. “Muitos consumidores de drogas não compartilham da expec-
O perfil do servidor atendido no PADQ pode ser observado nas tativa e desejo de abstinência dos profissionais de saúde, e abando-
figuras em anexo. nam os serviços. Outros sequer procuram tais serviços, pois não se
sentem acolhidos em suas diferenças. Assim, o nível de adesão ao
tratamento ou a práticas preventivas e de promoção é baixo, não
Discussão contribuindo para a inserção social e familiar do usuário”9.
Em relação ao acompanhamento psiquiátrico, observamos bai-
Consonante com o encontrado na literatura9, a adesão dos xa aderência ao tratamento e no grupo de apoio, uso irregular das
adoecidos ao tratamento é aquém da expectativa. Tal realidade medicações e associação das mesmas com álcool, o que limita o
já se observa desde o encaminhamento: o índice de abandono sucesso do tratamento farmacológico. Há ainda o agravante das
pré-tratamento, quer seja, faltar à primeira consulta depois de tê- comorbidades nos usuários. A presença de transtorno mental
-la agendado, é de 43%. Daqueles que aderiram ao programa de co­mo depressão, ansiedade ou esquizofrenia é, muitas vezes, o
tratamento, a frequência de comparecimento ao atendimento em mo­tivo para que o paciente seja encaminhado dos serviços de
grupo foi de, em média, três participantes por encontro semanal, dependência química para os serviços psiquiátricos. Estes por sua
considerado abaixo do desejável para uma boa dinâmica de grupo. vez, reencaminham o paciente para o programa de dependência,
Na prática, os servidores se comprometem pouco com a assidui- por considerarem o abuso de substância psicoativa o problema
dade, o que demandou mudanças na proposta de tratamento. central. A taxa de comorbidade chega a 13% dos usuários e em 20
Com a publicação da cartilha8, novo investimento foi feito em a 50% desses pacientes, encontraremos problemas de alcoolismo
nível institucional na política de saúde que busca a prevenção ao conjugado ao abuso de outras drogas10.
alcoolismo. Diferente da proposta anterior, quando o principal Outro potencial aliado no resgate do servidor dependente são

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por KARINNE TAVARES BORGES1,
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FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA4

seus familiares, que têm se mostrado de difícil acesso e com bai- com familiares e gestores, de maior convívio com o dependente, e
xa participação nas entrevistas quando convidados. Os familiares que se fortalecem em seus papéis à medida que recebem apoio e
evidenciam sua descrença de que haverá mudança de estilo de orientação que sustentem sua participação no tratamento.
vida do parente adoecido e usualmente reestruturam a dinâmica A atual cultura institucional, e que se pretende mudar, dita que
familiar a partir da falta, ausência ou presença nociva desse mem- a perda financeira precisa ser evitada principalmente quando a
bro. Frequentemente recusam-se a participar de qualquer grupo remuneração do servidor envolve o sustento de filhos. Paradoxal-
de ajuda nos moldes do Al-Anon - grupo de ajuda para familiares mente, o bônus por trás desse ônus é que, especialmente nesses
e amigos de alcoolistas, a despeito das pesquisas que demonstram casos, a família tende a se mobilizar, buscar orientações e sensibi-
que estes grupos fornecem apoio, ajudam os participantes a lidar lizar-se em relação ao alcoolismo. O conhecimento da estrutura
com problemas e crises e os habilitam a aderir ao plano de trata- adoecida do membro da família reduz a estigmatização e fomenta
mento11. o uso dos serviços disponíveis para apoio a esses familiares. “As
Outro fator que provavelmente isola os dependentes do movi- atividades preventivas também devem ser orientadas ao forne-
mento de mudança saudável é a característica de serem servidores cimento de informações e discussão dos problemas provocados
públicos com estabilidade funcional, permitindo-lhes adiarem ou pelo consumo do álcool, tendo ainda como fundamento uma vi-
mesmo negarem tratamento. A atuação da GESM busca dar aco- são compreensiva do consumo do álcool como fenômeno social,
lhimento aos servidores que estejam na condição de dependentes e ao mesmo tempo individual”9.
químicos e estabelece uma política que, por um lado, abre alterna- Uma preocupação da equipe da GESM é não se ater somente
tivas para o servidor já consciente da doença e, por outro, conduza ao servidor identificadamente dependente, que já faz visível sua
o servidor alheio à patologia a engajar-se em tratamento. patologia. Busca-se dar visibilidade ao tema no ambiente de tra-
As limitações dos agentes de saúde e da própria instituição de- balho de forma que indivíduos que têm poucos prejuízos decor-
vem ser reconhecidas, sempre observando o dependente como rentes do abuso do álcool também recebam atenção. Ao falar de
entidade autônoma que tem juízo de realidade e toma decisões prevenção, urge contemplá-los, já que são os que têm maior pro-
que ora os beneficia, ora os prejudica. “Se nas práticas de saúde babilidade de desenvolver problemas mais graves e procurarem o
nosso compromisso ético é o da defesa da vida, temos de nos co- PADQ somente cinco anos após o primeiro problema decorrente
locar na condição de acolhimento, em que cada vida se expressará do uso de álcool - esse é o período médio que o usuário demora
de uma maneira singular, mas também em que cada vida é expres- para iniciar tratamento9.
são da história de muitas vidas, de um coletivo. Não podemos nos Com objetivo de prevenção, inclui-se aqui os conceitos de
afastar deste intrincado ponto onde as vidas, em seu processo de fatores de risco e fatores de proteção com relação ao abuso de
expansão, muitas vezes sucumbem ao aprisionamento, perdem-se substâncias. Os fatores risco tornam a pessoa mais vulnerável a
de seu movimento de abertura e precisam, para desviar do rumo adotar comportamentos que tendem a levá-la ao consumo de
muitas vezes visto como inexorável no uso de drogas, de novos substâncias psicoativas. Os de proteção, por sua vez, atuam con-
agenciamentos e outras construções”9. Nesse contexto, o papel da trabalançando as vulnerabilidades para os comportamentos de co
instituição será evidenciar as consequências dessas escolhas que de substâncias psicoativas12. Portanto, a família e o trabalho (repre-
trazem dano institucional. Vivenciar as perdas, principalmente fi- sentado também pelos gestores) podem ter aspectos de fatores
nanceiras ou algumas vezes de status, possibilita aumento da crí- de proteção e a equipe multiprofissional da GESM atua junto a
tica, fundamental para a busca de alternativas que preencham o esses dois grupos em favor do servidor dependente químico.
espaço que o álcool fatalmente deixará. O programa segue com as palestras que levam informações ge-
Com a percepção de doença com causas e efeitos biopsicos- rais sobre alcoolismo aos órgãos, criando mecanismos que atraiam
sociais, o PADQ oferece tratamento que compreenda essas três cada vez mais servidores que muitas vezes se intimidam com o
dimensões. A dimensão biológica é acompanhada por médica psi- tema.
quiatra que quando necessário faz o encaminhamento a outras
especialidades. A psicológica tem acolhimento no atendimento
individual ou em grupo que a GESM oferece, ou no incentivo ao Conclusão
engajamento em outras instituições que supram as necessidades
do servidor. A dimensão social é fortalecida através do vínculo Verifica-se que, a despeito da disponibilidade de equipe multi-

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MARCELA FAVARINI NUNES
3 Psicóloga formada pela Universidade de Brasília, mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela
Universidade de Brasília. Atua como psicóloga na Gerência de Saúde Mental e Preventiva da Secretaria
de Administração Pública do Governo do Distrito Federal no Programa de Apoio ao Dependente
Químico e no Atendimento psicológico aos servidores do Governo do Distrito Federal.

profissional na GESM, da publicação da Cartilha de Orientação aos Agradecimentos


Gestores de Dependentes Químicos e da Portaria que oficializa
o PADQ no âmbito do GDF, o trabalho de sensibilizar o servidor Rosylane Nascimento Mercês da Rocha
dependente para sua patologia permanece com amplo campo de Synara Tadeu de Oliveira Ferreira
aplicação. Percebe-se a necessidade de uma abordagem pedagógi- Maviane Vieira Machado Ribeiro
ca com a explanação das consequências do abuso de substâncias Vanessa Sales Veras
psicoativas e a desmistificação dos medicamentos de suporte. Pa-
ralelamente, o posicionamento institucional atua como limitador O trabalho não apresenta conflitos de interesses
do consumo e redutor dos prejuízos biopsicossociais. Os esforços e fontes de financiamentos.
para sensibilizar familiares e gestores direcionam-se, igualmente,
para a introdução de conhecimento, incentivo à promoção de Sonia Gerhardt Rezende
saúde e conscientização de seus papéis junto ao servidor depen- SGAN 907 Bloco A, Anexo do Gisno
dente. Gerência de Saúde Mental e Preventiva - Subsaúde
70.790-070 Brasília - DF-Brasil
e-mail: soniagrezende@ig.com.br

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ARTIGO ORIGINAL
por KARINNE TAVARES BORGES1,
SONIA GERHARDT REZENDE2,
MARCELA FAVARINI NUNES3 E
FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA4

Referências • 11. Anônimo. Depression and Bipolar Support Groups


Alliance: An Important Step on the Road to Recovery,
[base de dados na Internet]. DBSA Chicago, Illinois.
• 1. Anônimo. Política Integrada de Atenção à Saúde do
2008; [acessado em 03.08.2012]. Disponível em http://
Servidor Público do Distrito Federal. Diário Oficial do
www.dbsalliance.org/site/DocServer/DBSASupport-
Distrito Federal. Decreto nº 33.653, de 10 de maio de
Grps_0708_FINAL.pdf?docID=
2012.
• 12. Zemel, MLS. Prevenção ao uso indevido de drogas.
• 2. Vaissman, M. Alcoolismo no Trabalho. 1ª Ed. Rio de
4ª edição, Brasília. Ministério da Justiça, Secretaria Na-
Janeiro: Editora Garamond; 2004.
cional de Políticas sobre Drogas – SENAD, 2011.
• 3. Carlini, EA (supervisão) (et. al.). II Levantamento do-
miciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil:
estudo envolvendo as 108 maiores cidades do país:
2005. São Paulo : CEBRID - Centro Brasileiro de Infor-
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• 4. Laranjeira, R. I Levantamento Nacional Sobre OS Pa-
drões de Consumo de Álcool na População brasileira.
Brasília: Secretaria Nacional Antidrogas; 2007.
• 5. Anônimo. Prevenção ao uso de álcool e outras dro-
gas no ambiente de trabalho: conhecer para ajudar.
Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas, 2008.
• 6. Anônimo. Programa de Atenção ao Dependente
Químico. Diário Oficial do Distrito Federal. Portaria
n°48 de 26 de maio de 2011.
• 7. Rezende, SG. Cartilha de Orientação aos Gesto-
res sobre Dependência Química. Diário Oficial do
Distrito Federal. Portaria n°55 de 21 de maio de
2012. Disponível em: http://www.seap.df.gov.br/si-
tes/400/472/00000427.pdf
• 8. Anônimo. Portaria nº 55 de 21 de maio de 2012 que
institui o Manual de Saúde e Segurança do Trabalho
do Servidor Público do Distrito Federal e a Cartilha de
Orientações a Gestores de Dependentes Químicos, no
âmbito da Administração Direta, Autárquica e Funda-
cional do Distrito Federal. Diário Oficial do Distrito
Federal. 2012.
• 9. Brasil.Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à
Saúde. SVS/CN-DST/AIDS.A Política do Ministério da
Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e
outras Drogas/Ministério da Saúde. 2.ed. rev. ampl.–
Brasília:Ministério da Saúde, 2004
• 10. McCrady, BS; Epstein, EE. Addictions: A com-
prehensive guidebook. New York: Oxford University
Press, NY. 1999.

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FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA
4 Psicólogo formado pela Universidade de Brasília, licenciado em Letras, pela Faculdade Michelangelo,
mestre em Psicologia Social e do Trabalho. Atua como psicólogo na Gerência de Saúde Mental e
Preventiva da Secretaria de Administração Pública do Governo do Distrito Federal no Programa de
Apoio ao Dependente Químico e no Atendimento psicológico aos servidores
do Governo do Distrito Federal.

Figura 1: Idade da População do Programa de Atenção ao Figura 2: Escolaridade da População do Programa de


Dependente Químico Atenção ao Dependente Químico

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ARTIGO ORIGINAL
por KARINNE TAVARES BORGES,
SONIA GERHARDT REZENDE,
MARCELA FAVARINI NUNES E
FERNANDO LUÍS DEMÉTRIO PEREIRA

Figura 3: Tempo de Serviço da População do Programa de Figura 4: Drogas Consumidas pela População do Programa
Atenção ao Dependente Químico de Atenção ao Dependente Químico

Fontes: arquivo de prontuários da Gerência de Saúde Mental


e Preventiva

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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
por ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA1 E
ANDRÉ STROPPA2

ESPIRITUALIDADE E SAÚDE MENTAL: O QUE AS EVIDÊNCIAS


MOSTRAM?

SPIRITUALITY AND MENTAL HEALTH: WHAT EVIDENCE


SHOWS?
Resumo health. There is a broad, diverse and robust body of evidence in­
Religiosidade e Espiritualidade (R/E) têm se tornado um tema de dicating the relevance and impact of R/S on health. Studies show
crescente interesse entre clínicos e pesquisadores na área de saúde. that R/S is an important element in the lives of most of the world
Entretanto, devido à falta de treinamento em temas ligados à rela­ population, especially among those facing struggles like illness. Pe­
ção entre R/E e saúde, grande parte das evidências disponíveis ainda ople with higher levels of R/S tend to have higher well-being and
são desconhecidas por muitos profissionais de saúde e muitos têm lower levels of depression, substance abuse/dependence, and suici­
dificuldades em lidar com a R/E em situações da prática clínica. dal behaviors. Although requiring further study, R/S is an aspect in
Este artigo visa oferecer uma breve e prática revisão dos principais the lives of patients with bipolar disorder and schizophrenia, with
conceitos em R/E que são relevantes para o clínico, bem como das evidence suggesting a beneficial impact of R/S on the evolution of
principais evidências disponíveis sobre o impacto da R/E na saúde these mental disorders. Currently, the research trend is no longer to
mental. Existe um amplo, diversificado e robusto corpo de evidên­ investigate whether there are relationships between R/S and health,
cias indicando a relevância e o impacto da R/E sobre a saúde. Os but in identifying the mechanisms of this relationship and how to
estudos demonstram que a R/E é um elemento importante na vida apply this knowledge in clinical practice.
da maior parte da população mundial, principalmente entre aque­ Keywords: religion, spirituality, psychiatry
les enfrentando adversidades como o adoecimento. Pessoas com
maiores níveis de R/E tendem a apresentar maior bem estar e me­
nores níveis de depressão, abuso/dependência de substâncias e de 1. INTRODUÇÃO

T
comportamentos suicidas. Embora necessitando de maiores estu­
dos, a R/E é algo importante na vida de pacientes com transtornos em havido um crescente reconhecimento por clínicos e
bipolar e esquizofrenia, havendo evidências sugestivas de impacto pesquisadores em relação à importância da religiosida-
benéfico sobre a evolução destes transtornos mentais. Atualmente, de e espiritualidade (R/E) em questões ligadas à saúde
a tendência das pesquisas não é mais em investigar se há relações 1, 2
. O número de pesquisas tem crescido rapidamente,
entre R/E e saúde, mas em identificar os mecanismos desta relação chegando à casa dos milhares de estudos publicados. Estes estu-
e como aplicar estes conhecimentos na prática clínica. dos indicam que a R/E tem marcantes implicações em aspectos
Palavras chave: religião, espiritualidade, psiquiatria de prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação, além do fato
de que a maior parte da população mundial tem alguma forma de
Abstract R/E 3. Além disso, diversos estudos indicam que a maioria dos pa-
Religiosity and spirituality (R/S) have become a topic of growing cientes desejam que a R/E seja abordada por seus clínicos durante
interest among clinicians and health researchers. However, due to o encontro médico-paciente4. Entretanto, a maioria dos clínicos
lack of training on issues related to the relationship between R/S não recebeu treinamento sistemático, ou mesmo treino algum, so-
and health, much of the evidence available is still unknown by bre as evidências disponíveis na área, bem como sobre como lidar
many health professionals and many have difficulties in dealing com a espiritualidade na prática clínica5. Entretanto, como há im-
with R/S during clinical practice. This paper presents a brief and plicações da R/E sobre a saúde e como os pacientes trazem estes
practical review of key concepts in R/S that are relevant to the clini­ temas nos encontros clínicos, há um problema ético, pois grande
cian as well as the main evidence on the impact of R/S on mental parte dos clínicos pode estar atuando em situações para as quais

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ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA
1 Professor de Psiquiatria e Coordenador do NUPES - Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde
da Faculdade de Medicina da UFJF (www.ufjf.br/nupes), Doutor pela USP
e Pós Doutor pela Duke University.

não receberam treinamento adequado. Nestes casos, podem ser Tabela 1: Definições de Espiritualidade e Religião
comuns duas situações: o clínico ignorar o tema, mesmo quando
é algo relevante e o paciente o traz na consulta, ou então buscar
Espiritualidade Religião
abordar a R/E do modo que, pessoalmente, julgar mais apropriado.
Este último modo, embora muitas vezes resulte em uma aborda- Relação com o sagrado, Sistema organizado de
gem adequada, pela falta de conhecimento da literatura na área o transcendente (Deus, crenças e práticas de-
e de treinamento adequado, pode resultar em práticas inadequa- poder superior, reali- senvolvidos para facilitar
das baseadas nas convicções do profissional. Nestes casos, podem dade última)a a proximidade com o
ocorrer tanto a desqualificação das crenças dos pacientes como transcendentea
a tentativa de imposição, sutil ou direta, das crenças, ideologias e Referente ao domínio É o aspecto institucio-
práticas do clínico, sejam elas religiosas ou materialistas6. Alguns do espírito, à dimen- nal da espiritualidade.
autores alertam para o fato de que pesquisas, ao menos as reali- são não material ou Religiões são instituições
zadas nos EUA, indicam que os profissionais de saúde mental ten- extrafísica da existência organizadas em torno da
dem a ser bem menos religiosos que a população geral. Devido a (Deus ou deuses, almas, idéia de espíritoc
este fato e ao de não receberam treinamento adequado em R/E, anjos, demônios)b
parte dos clínicos tem dificuldade em empatizar com a experiên-
cia religiosa dos pacientes e em compreender sua importância na a
Koenig HG, King DE, Carson VB. Handbook of religion and
vida destes 7, 8. health. 2a. ed. New York: Oxford University Press, 2012.
Entretanto, do mesmo modo que em outras vivências culturais b
Hufford DJ. Visionary spiritual experiences in an enchanted
e sociais, não é preciso que o clínico seja religioso para abordar world. Anthropology and Humanism. 2010; 35 (2) 142-58.
de modo adequado a R/E. Há evidências que profissionais não re- c
Hufford DJ. Online An Analysis of the Field of Spirituality, Reli-
ligiosos podem abordar o tema na prática clínica de modo tão gion and Health (S/RH). Disponível em http://www.metanexus.
adequado quanto os religiosos9. O reconhecimento da importân-
cia da R/E na área de saúde mental se reflete na criação de seções net/tarp
ou departamentos sobre R/E nas seguintes influentes associações:
Mundial de Psiquiatria (www.religionandpsychiatry.com), Ameri-
cana de Psiquiatria, Britânica de Psiquiatria (www.rcpsych.ac.uk/ De um modo geral, pode-se conceber a religiosidade como uma
college/specialinterestgroups/spirituality.aspx) e Americana de Psi- forma de manifestação, um subconjunto da espiritualidade. Por
cologia (www.division36.org). sua maior facilidade de mensuração, a maioria dos estudos na área
Com o intuito de colaborar neste sentido, este artigo visa ofe- investiga aspectos da religiosidade. Entre as dimensões de religiosi-
recer uma breve e prática revisão dos principais conceitos em R/E dade mais estudadas estão 10:
que são relevantes para o clínico, bem como das principais evidên- - Orientação religiosa: pode ser intrínseca, onde as pessoas têm
cias disponíveis sobre o impacto da espiritualidade na saúde men- na religião seu bem maior, outras necessidades são vistas como
tal. No próximo número desta revista, esta revisão será completa- de menor importância e colocadas em harmonia com sua crença
da por outra que abordará implicações que este conhecimento religiosa. A orientação intrínseca está habitualmente associada à
tem para a prática clínica, para o atendimento dos pacientes que personalidade e estado mental saudáveis 2,4. Ou pode ser extrínse-
confiam em nós na busca do alívio de seus sofrimentos. ca, onde a religião é um meio utilizado para obter outros fins ou in-
teresses, para obter segurança e consolo, sociabilidade e distração,
status e auto-absolvição. Nesse caso, abraçar uma crença é uma
2. RELIGIOSIDADE E forma de apoio ou obtenção de necessidades imediatas ou mais
ESPIRITUALIDADE primárias 2,4. Como afirmou Gordon Alport, psicólogo de Harvard
que criou estas categorias, enquanto na religiosidade intrínseca o
Há várias discussões sobre as definições de “religião” e “espiritua- indivíduo busca servir a Deus, na extrínseca ele busca ser servido
lidade”, adotaremos as definições expostas na tabela 1. por Ele 11.
- Organizacional: frequência aos serviços e eventos religiosos pú-

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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
por ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA1 E
ANDRÉ STROPPA2

blicos como missas, cultos, reuniões espíritas. Uma das medidas Isso inclui mitos ligados à medicina como a suposta proibição
de religiosidade mais usadas em pesquisas e que demonstra con- de dissecção de cadáver pela igreja medieval e o alegado combate
sistente associação com indicadores de saúde. sistemático feito pelas instituições religiosas cristãs ao uso da anes-
- Privada ou não organizacional: orações e leituras religiosas in- tesia, especialmente por mulheres em trabalho de parto 13.
dividuais 2,4. Em resumo, os estudos indicam que as relações entre ciência
- Coping: estratégias R/E utilizadas por uma pessoa para se e religião têm sido, ao longo da história, muito mais complexas e
adaptar a circunstâncias adversas ou estressantes de vida. O co- habitualmente positivas do que se pensava. Um maior distancia-
ping pode ser positivo ou negativo, conforme estiver associado a mento, e mesmo hostilidades mútuas, é um fenômeno historica-
indicadores de melhor ou de pior saúde (ver tabela 2). Diversos mente recente, surgido na segunda metade do século XIX e que
estudos mostram que o Coping religioso positivo é usado bem prevaleceu ao longo da maior parte do século XX.
mais frequentemente que o negativo. Nas últimas décadas tem havido fortes sinalizações de busca de
Embora seja muitas vezes senso comum que religião sempre es- retorno a um diálogo e interações mais construtivas entre ciência
teve em conflito com a ciência e com a medicina, rigorosos estu- e religião 14.
dos históricos das últimas décadas têm modificado drasticamente Em relação à medicina, há também uma longa história de rela-
esta visão. Tem sido demonstrado que grande parte dos casos ções entre R/E e os cuidados em saúde. Os sacerdotes e xamãs, que
famosos de conflitos entre religião e ciência são mitos criados no talvez sejam representantes da primeira profissão a existir, eram in-
século XIX 12. divíduos em que os papéis de médico e religioso se sobrepunham

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ANDRÉ STROPPA
2 Membro do NUPES, Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFJF, Mestre pela
Universidade Federal de Juiz de Fora.

ou se confundiam. Grande parte das faculdades de medicina, dos confusão como estado de saúde, a frequência a serviços religiosos
hospitais gerais e mesmo os direcionados para os problemas men- está associada a um aumento em média 37% na probabilidade de
tais surgiram a partir de iniciativas de grupos religiosos cristãos e sobrevida durante o período de seguimento dos estudos16. Um
muçulmanos. Também no Brasil, ainda hoje, grande parte dos hos- estudo recente comparou o impacto do envolvimento religioso
pitais gerais e de psiquiatria existentes estão ligados a instituições sobre a mortalidade em relação aos resultados de 25 meta-análises
religiosas católicas, protestantes e espíritas 15, 16. de intervenções bem utilizadas na prevenção de mortalidade. O
Seguindo uma tendência maior da comunidade científica da impacto da R/E sobre o mortalidade foi maior que a maioria das
época, na transição entre os séculos XIX e XX, nomes importantes intervenções (como tratamento medicamentoso da hipertensão
da medicina defenderam e disseminaram visões bastante nega- arterial ou o uso de estatinas) e similar ao rastreio com mamografia
tivas da R/E. Experiências espirituais tenderam a ser vistas como em mulheres acima de 50 anos e ao consumo de frutas e vegetais19.
causas ou consequências de doenças mentais, bem como a R/E Embora já exista atualmente um consenso sobre o impacto da
passou a ser muitas vezes entendida como decorrente de ima- religiosidade na saúde, tem havido uma grande discussão sobre os
turidade de personalidade, falta de cultura ou alguma neurose. mecanismos que explicariam esta influência. Normalmente se pro-
Embora estas visões tenham prevalecido ao longo do século XX, põe um conjunto de mediadores (ver tabela 2), mas os testes em-
geralmente se baseavam em observações não sistemáticas e em píricos destas hipóteses têm apresentado resultados inconclusivos
certos pressupostos teóricos e/ou ideológicos 10, 16. 20
. A investigação destes mecanismos de relação entre espirituali-
Nas últimas três décadas tem havido uma investigação muito dade e saúde é uma das principais agendas de pesquisa na área.
mais ampla, rigorosa e sistemática das relações entre R/E e saú-
de. Atualmente há milhares de estudos epidemiológicos na área, Tabela 2 – Mecanismos propostos para a relação R/E –
sendo boa parte de boa qualidade. Koenig et al.17 realizaram uma Saúde10,17,20
revisão sistemática dos estudos sobre R/E e saúde publicados ao
longo do século XX, obtendo 1.200 estudos. Ao revisarem a litera- Hábitos de saúde: melhor dieta, menor uso de substâncias e envolvimento
tura produzida entre 2001 e 2010, Koenig et al.16 encontraram ou- com situações violentas e de risco
tros 2.100 estudos originais com dados quantitativos, o que aponta Suporte Social: maior e mais profunda rede social, trabalho voluntário
para o significativo aumento do interesse e da importância da pro- Estratégias cognitivas: crenças que promovem a auto-estima e provém
dução científica de pesquisadores pelo tema. Estes dois livros se significado à vida e às situações estressantes
constituem nas mais amplas e sistemáticas revisões já feitas sobre Psico-neuro-imuno-endocrinologia: baixos níveis de interleucina-6 e cortisol
as evidências disponíveis das relações entre R/E e saúde e serão Práticas religiosas: oração, perdão, meditação, transes
frequentemente referenciados ao longo deste artigo.
Coping Religioso (estratégias para lidar com problemas)
A maioria dos estudos de boa qualidade indica que maiores ní-
Positivo Negativo
veis de envolvimento religioso estão habitualmente associados a
indicadores de bem-estar, e a indicadores de saúde física e mental. Tentei encontrar um ensinamento Questionei o poder de Deus
de Deus no que aconteceu
O impacto positivo do envolvimento religioso na saúde mental é
mais intenso entre pessoas sob estresse ou em situações de fragili- Fiz o que pude e coloquei o resto Fiquei imaginando se Deus tinha me
nas mãos de Deus abandonado
dade, como idosos, pessoas com deficiências e doenças clínicas, o
que aumenta sua importância para a prática médica1, 2. Por outro Pensei como minha vida é parte Questionei o amor de Deus por mim
de uma força espiritual maior
lado a R/E também pode se associar a piores desfechos em saúde
quando há uma ênfase na culpa, punição, intolerância, abandono Busquei dar apoio espiritual a Questionei-me se minha comunidade
outras pessoas religiosa tinha me abandonado
de tratamentos médicos etc. A existência de conflitos religiosos
internos ao indivíduo ou em relação à sua comunidade religiosa Me foquei na religião para parar Pedi a Deus para que faça tudo ficar
de pensar em meus problemas bem
também está associada a piores indicadores de saúde 10. Além do
impacto na saúde mental, R/E também influencia aspectos da Orei para encontrar uma nova Imaginei o que teria feito para Deus
razão para viver me punir
saúde física 18. Por exemplo, mais de 120 estudos investigaram a
relação entre níveis de R/E e mortalidade. As três meta-análises já Pedi perdão pelos meus erros Não fiz nada, apenas esperei que Deus
resolvesse os problemas para mim
realizadas neste tema indicam que, após controle para variáveis de

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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
por ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA1 E
ANDRÉ STROPPA2

3. RELIGIOSIDADE E SAÚDE MENTAL no último mês, mesmo após controlar para variáveis sociodemo-
gráficas. O jovem não religioso tinha 2.9 vezes mais chance de ter
3.1. Bem-estar e emoções positivas usado cocaína no último mês que o que declarava ter religião. Ou-
Tem havido um crescente interesse da medicina e demais áreas tra variável que se destacou foi ter recebido educação religiosa na
da saúde no que se tem chamado de saúde positiva, buscando não infância, que se associou com quatro vezes menos uso de êxtase e
apenas combater o sofrimento e incapacitação, mas almejando três vezes menos uso de medicação para “dar barato” 22.
também uma vida feliz, produtiva e com significado. Isto se deve
ao fato de que as pessoas não buscam apenas não ficar doentes, 3.3) Religiosidade e Depressão
mas almejam ter uma vida plena. De 326 estudos identificados por Dos 443 estudos identificados, 271 (61%) encontraram que
Koenig et al (2012) acerca da associação entre envolvimento re- maior R/E estava associada com menos depressão, recuperação
ligioso e indicadores de bem-estar psicológico (satisfação com a mais rápida da depressão ou que intervenções que envolvem R/E
vida, felicidade, afeto positivo, auto-estima elevada), 256 estudos têm melhores resultados em depressão que intervenções sem tais
(78,5%) encontraram uma correlação positiva e significativa entre elementos. Vinte e dois por cento não encontraram associação,
essas variáveis. Analisando-se apenas os 120 estudos de alta qua- 6% relataram associação entre R/E e maior depressão e 11% tive-
lidade metodológica, 98 (82%) encontraram relações positivas. ram resultados mistos. Assim, embora de um modo geral R/E se
Em sua maioria, essa associação entre religiosidade e bem-estar se associou a menos depressão, este não é sempre o caso. O uso de
mantém mesmo após controlar para possíveis variáveis de con- coping religioso negativo, assim como problemas em áreas com
fusão como situação conjugal, idade, gênero, nível educacional e implicações morais como uso de drogas, questões sexuais ou con-
sócio-econômico10. flitos conjugais parece explicar parte destes resultados ligando R/E
e depressão16.
3.2. Abuso/dependência de álcool e outras substâncias Os efeitos positivos da R/E sobre a depressão são mais intensos
Em uma ampla revisão sobre religião e saúde mental, Dalgalar- em populações sob risco e vivenciando situações de estresse. Este
rondo afirma que o achado de associações entre maior religiosi- ano dois artigos foram publicados sobre uma investigação longitu-
dade e menor abuso ou dependência de álcool ou drogas “é o dinal (com até 20 anos de seguimento) do impacto da R/E sobre o
mais consistente de todos os fenômenos estudados no campo risco de transtornos mentais. Um grupo sob alto risco de depres-
‘saúde mental-religião’” (p.182)1 . Envolvimento religioso se asso- são (filhos de pais com depressão moderada a grave em tratamen-
ciou a menor uso/abuso de álcool em 240 (86%) dos 278 estudos to farmacológico) foi comparado com outro de baixo risco (filhos
identificados por Koenig et al (2012), subindo para 90% entre os de pais sem histórico de transtornos mentais). Somando os dois
145 com melhor qualidade metodológica. Um padrão semelhante grupos, filhos que frequentavam regularmente um grupo religioso
foi encontrado em relação a abuso de drogas: 84% dos 185 estu- aos 10 anos de idade, tinham metade da chance de apresentarem
dos encontraram relação inversa entre religiosidade e uso de dro- transtornos mentais no período entre os 10 e 20 anos de idade
gas. Estes resultados têm sido observados tanto em adolescentes em comparação com os que não frequentavam. O tamanho deste
quanto em adultos, bem como em diversos países pelo mundo 16. efeito foi ainda maior entre o grupo de alto risco para depressão
No Brasil, em um estudo com amostra de 3.007 pessoas, repre- onde a frequência a serviços religiosos aos 10 anos reduziu em 64%
sentativa da população brasileira, indivíduos que não frequenta- a chance de um transtorno mental nos 10 anos seguintes 23. Em
vam atividades religiosas tinham taxas de uso de álcool ao longo relação especificamente à depressão, a frequência a serviços reli-
da vida, de intoxicação no último ano e de abuso/dependência giosos aos 10 anos não se associou a menos episódios de depres-
que eram o dobro dos que frequentavam semanalmente. Protes- são entre os 10 e 20 anos de idade. Por outro lado, as crianças que,
tantes tinham as menores frequências de uso/abuso de álcool e aos dez anos, referiam que religião ou espiritualidade era muito
indivíduos que se declararam sem religião tinham uma prevalência importante para eles tinham ¼ do risco de depressão nos 10 anos
de abuso/dependência de álcool que era mais de duas vezes a dos seguintes em comparação aos outros. Entre os filhos de pais com
católicos 21. depressão, o risco de um episódio de depressão entre os 10 e 20
Em uma investigação de 2.287 estudantes de Campinas, a re- anos de idade era apenas 1/10 dos que não consideravam a religião
ligiosidade esteve fortemente associada e menor uso de drogas como algo importante. Este efeito protetor se verificou principal-
mente contra recorrência de depressão 24.

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3.4) Religiosidade e Transtorno Bipolar (TB) ticamente a interrupção voluntária da vida, a R/E também está
Dentre os principais transtornos mentais, o TB está entre aqueles associada a menor frequência de vários dos fatores de risco para
que contam com menos estudos sobre R/E na literatura, talvez pe- suicídio (p.ex.: depressão, uso de álcool e drogas, isolamento so-
las controvérsias e dificuldades diagnósticas, que perduraram por cial, falta de sentido na vida etc.). Isso faz com que seja natural
algumas décadas. Uma revisão sobre o tema encontrou 122 artigos investigar o impacto da R/E sobre o comportamento suicida 10, 30.
publicados sobre o tema, mas a maioria se tratava de relatos de Dos 144 estudos quantitativos que investigaram o tema, 106 (75%)
casos ou artigos de discussão. Há poucos estudos epidemiológicos encontraram menor ideação e comportamento suicida entre os
de qualidade. Os existentes apontam que pacientes bipolares ten- indivíduos mais religiosos 16.
dem a apresentar maior envolvimento religioso/espiritual, maior
frequência de relatos de conversão e experiências de salvação e
uso mais frequente de coping religioso e espiritual (CRE) que pes- 4. CONCLUSÕES
soas com outros transtornos mentais. Indicam ainda, uma relação
frequente e significativa entre sintomas maníacos e experiências R/E tem se tornado um tema de crescente interesse entre clíni-
místicas. Emerge destes estudos que o TB e a R/E possuem intensa cos e pesquisadores na área de saúde. Entretanto, devido à falta de
e complexa inter-relação que precisa ser melhor explorada 25. treinamento em temas ligados à relação entre R/E e saúde, grande
Recente estudo realizado no Brasil com 168 pacientes bipola- parte das evidências disponíveis ainda são desconhecidas por mui-
res em tratamento ambulatorial encontrou alto nível de envolvi- tos profissionais de saúde e muitos têm dificuldades em lidar com
mento religioso, que não se associou a sintomas maníacos, mas se a R/E em situações da prática clínica. Atualmente já há um amplo,
relacionou fortemente com menores níveis de depressão e maior diversificado e robusto corpo de evidências demonstrando a rele-
qualidade de vida 26. vância e o impacto da espiritualidade sobre a saúde. Os estudos
demonstram que a religiosidade é um elemento importante na
3.5) Transtornos Esquizofrênicos vida da maior parte da população mundial, principalmente entre
As relações entre espiritualidade e psicose são bastante comple- aqueles enfrentando adversidades como o adoecimento. Dentre
xas, envolvendo o nível de crenças religiosas entre os pacientes, a os impactos da R/E sobre a saúde, tem sido bem documentado
diferenciação entre experiências religiosas e transtornos mentais o impacto sobre a saúde mental. Há evidências robustas de que
de conteúdo religioso, bem como o uso e impacto do coping re- pessoas com maiores níveis de R/E apresentam maior bem estar e
ligioso. menores níveis de depressão, abuso/dependência de substâncias
Embora até em torno de 30% das psicoses possam ter sintomas e de comportamentos suicidas. Embora necessitando de maiores
com conteúdo religioso, isso não implica que as experiências re- estudos, a R/E é algo importante na vida de pacientes com TB e
ligiosas sejam geralmente psicóticas 27. Na realidade, experiências outras psicoses, havendo evidências sugestivas de impacto bené-
religiosas que se assemelham a sintomas psicóticos como alucina- fico sobre a evolução destes transtornos mentais. Atualmente, a
ções e vivencias de influência podem se associar a bons indicado- tendência das pesquisas não é mais em investigar se há relações
res de saúde, o que torna essencial a realização de um adequado entre R/E e saúde, mas em identificar os mecanismos desta relação
diagnóstico diferencial 28. e como aplicar estes conhecimentos na prática clínica 16.
Estudos recentes têm demonstrado que é muito comum a uti-
lização da R/E como um recurso de coping entre pacientes com
esquizofrenia. Embora este coping possa ser positivo e negativo,
a grande maioria dos pacientes utiliza formas positivas de coping
religioso, o que se associou com melhor evolução após três anos
de seguimento 29. Em resumo, está clara a importância da R/E es-
piritualidade para pacientes com transtornos esquizofrênicos, mas
ainda há muitos aspectos que merecem ser melhor investigados.

3.6) Comportamento suicida


Além das principais religiões do mundo condenarem enfa-

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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
por ALEXANDER MOREIRA-ALMEIDA1 E
ANDRÉ STROPPA2

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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
por FERNANDO PORTELA CÂMARA1

CÉREBROS, MÁQUINAS E PSIQUIATRIA


[PSIQUIATRIA COMPUTACIONAL]

BRAIN, MACHINES AND PSYCHIATRY


[COMPUTATIONAL PSYCHIATRY]
Resumo andróides (autômatos de forma humana) maravilhosos animados
A ideia de que os processos mentais são computacionais e, por­ por tubos hidráulicos e rodas dentadas. Essa filosofia mecânica
tanto, reprodutíveis artificialmente trouxe um grande impulso para tornou-se influente no século XVII quando Descartes, em seu tra-
a criação da Inteligência Artificial e se tornou um marco teórico que tado De Homine, defendeu que os animais eram máquinas de car-
revitalizou a psicologia cognitiva, o conexionismo, a lingüística, enge­ ne, enquanto o homem, embora também uma máquina, possuia
nharia biomédica e outros campos. A psiquiatria é uma disciplina uma alma que lhe permite a reflexão. Ele comparava o organismo
que muito se aproxima da ciência computacional e sua interação a um mecanismo de relojoaria e a ação dos nervos e vasos a me-
com essa campo científico é um fator de desenvolvimento e evolu­ canismos hidráulicos, usados em brinquedos que já em sua época
ção para essa especialidade médica. Nesse artigo discutimos alguns maravilhavam os europeus. Essa ideia radicalizou com Julien Offray
aspectos teóricos e algumas propostas de modelos para o que po­ de La Mettrie que, na sua obra L’Homme Machine (1748), consi-
demos chamar de psiquiatria computacional. derava a alma como uma função global emergente da maquinaria
Palavras chaves: psiquiatria – computação – cognitivismo – biológica, ideia continuada pelo padre Étienne Bonnot Condillac
processadores neurais – transtornos mentais e comportamentais que, em seu Traité des Sensations (1754), comparava o homem a
uma estátua à qual foram dados, “por fantasia, as funções sensiti-
Abstract vas”. Condillac procurava explicar, dessa forma, como o homem
The idea that mental processes are computational and therefore chegava a ter conhecimento de si mesmo, distinguir as coisas ex-
reproducible artificially brought a major boost to the creation of Ar­ teriores e reconhecer os limites do conhecimento. Esse é o pri-
tificial Intelligence and became a theoretical framework that has re­ meiro projeto de psicologia biológica que temos notícia, e ainda
vitalized cognitive psychology, connectionism, linguistics, biomedical com uma abordagem sistêmica, pois propõe examinar a questão
engineering and other fields. Psychiatry is a discipline that resembles do ponto de vista das propriedades da lógica dos sistemas, sem
very closely the computational science and its interaction with this levar em consideração se estes são vivos ou não.
science is a factor of development and evolution for that medical O século XIX foi relativamente calmo com relação a essas espe-
specialty. In this article we discuss some theoretical and some pro­ culações, porém, com o advento da telefonia no inicio do século
posed models for what we call computational psychiatry. XX, a ideia retornou, agora como modelo teórico que proporcio-
Keywords: psychiatry - computing - cognitivism - neural proces­ nava insights sobre a cognição humana e marcos referenciais para
sors - mental and behavioral disorders novas idéias sobre a natureza da mente. Popularizou-se a noção de
que o cérebro funcional assemelhava-se a um quadro de ligações
telefônicas auto-operante, ligando entradas sensoriais com saídas
DE METÁFORAS À UMA motoras em diferentes configurações, e a aprendizagem consistiria
TEORIA CIENTÍFICA em ligar entradas e saídas em diferentes combinações. Essa ideia

A
entre cérebro e painel de ligação foi explicitamente enunciada por
corrente filosófica que considera o homem como um autores como Karl Pearson (The Grammar of Science, 1892), e im-
mecanismo que funciona por si mesmo (autômato) plicitamente nos escritos de Sherrington, na Inglaterra, Thorndike,
é muito antiga, e remonta aos gregos clássicos e aos nos Estados Unidos, e Pavlov, na Rússia.
chineses antigos. São muitos os relatos de autômatos e Em 1943, a demonstração que funções lógicas podiam ser de-

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FERNANDO PORTELA CÂMARA
1 MD, PhD, Professor Associado, UFRJ
Coordenador, Depto Informática da ABP

sempenhadas por neurônios, por Warren McCulloch e Walter e impreciso. Durante séculos aperfeiçoamos o sistema de nota-
Pitts 1, selou definitivamente a natureza computacional das ope- ção numérica e regras para operações, mas finalmente delegamos
rações em redes neuronais, e serviu à inspiração do desenho dos essa função às máquinas, que assim passaram a serem apêndices
atuais computadores por John Von Neumann 2. para esse tipo de operações em que a mente é pouco competen-
A evidência de que a aprendizagem – e os processos cognitivos te. Como notou Von Neumann 2, o cérebro não utiliza o mesmo
em geral – ocorrem nas conexões ou sinapses entre neurônios, foi código dos computadores, e tampouco usa o sistema posicional
a descoberta revolucionária de uma “lei” natural que reconfigurou que nos permite ordenar os números. O cérebro realiza operações
a ciência cognitiva, a neurociência e a engenharia biomédica 3,4,5,6. numéricas de forma ainda desconhecida, nas quais o significado
Muitas funções nervosas são hoje reconhecidas como computá- é transmitido pelas propriedades estatísticas da mensagem. Em
veis ou algorítmicas, guardada as devidas distinções e levando em outras palavras, a linguagem que o cérebro utiliza pode não ser
consideração que a linguagem dos computadores digitais não é a a da matemática, mas seja como for, é de natureza computável.
mesma dos neurônios. Estamos falando aqui de modelos suficien- Von Neumann observou também que a ineficiência aritmética do
temente isomórficos para permitir o estabelecimento de marcos cérebro é compensada pelo desenvolvimento de um alto nível de
conceituais consistentes. lógica. De fato, é a lógica que permite ao sistema nervoso regular
Os desenvolvimentos da computação e de certos setores da as funções organísmicas, integrar a informação que chega do am-
neurociência cognitiva correram paralelamente e convergiram, fi- biente e adaptar-se ao meio em que vive e estabelecer formas de
nalmente, em um conhecimento que é compartilhado em grande comunicação. Quando o leigo se admira com computadores reali-
parte, incluindo uma linguagem comum. A noção de computa- zando atos inteligentes, a máquina está apenas computando fun-
bilidade tornou-se objeto comum às ciências da computacção, ções lógicas, as mesmas que nossa mente utiliza. A importância
psicologia cognitiva, lingüística e teorias de aprendizagem neurais. da lógica na linguagem da atividade nervosa pode ser facilmente
Vejamos brevemente alguns dos elementos que contribuíram apreendida quando nos deparamos com um delírio ou uma alu-
para essa convergência de conhecimentos. cinação, e logo percebemos tratar-se de uma alteração lógica na
O primeiro é o conceito revolucionário de informação. A ciência informação elaborada no sistema nervoso do doente.
do século XIX desenvolveu o conceito de energia, sua utilização O terceiro e último exemplo de computabilidade e cognitivis-
em trabalho e suas relações com a matéria. Matéria e energia pas- mo, dentre outros mais que omitiremos aqui, é o de considerar o
saram a ser os fundamentos de tudo quanto existe e já existiu. cérebro como um modelador. Isso foi colocado em discussão na
Todo pensamento cientifico e médico foi assentado nessas noções seminal obra de Kenneth Craik 8, onde ele considerou o sistema
fundamentais. Na década de 1940, Claude Shannon desenvolveu a nervoso como “um computador capaz de modelar paralelamente
Teoria da Informação (ou Comunicação) consolidando a universa- os eventos externos”, sugerindo que esses “modelos internos” seria
lidade do novo ente. A partir daí descobriu-se que o universo não a característica básica da mente e das explicações que fazemos
pode ser concebido apenas com base em matéria e energia, uma das coisas. O cérebro elabora modelos da realidade segundo o
terceira noção se impunha, a de informação. Informação não é que experimenta da interação com o seu meio e então atua de
matéria e nem energia, é informação, enfatizava Norbert Wiener 7. acordo com esse modelo, enfrentando situações semelhantes ou
Ela pode ser medida, identificada, mas não pode ser isolada como que tem algum ponto em comum, mas que não é idêntica9. Desse
uma substância ou ter um equivalente de energia mensurado; não modo ele atua como um computador, programado para agir de
é nem uma coisa e nem outra, é um ente próprio, informação. Essa certa forma, e generaliza esse modelo para outras situações não
noção primitiva introduz a noção de organização, transmissão de exatamente idênticas, e com isso tem uma probabilidade razoável
ordem e armazenamento de padrões. Não se pode isolar uma sen- de adaptar-se com maior economia de tempo e energia do que
sação como uma substância ou uma modificação de energia, ela é teria se tivesse de elaborar novas habilidades. Durante o desenvol-
uma subjetividade que adquire significado quando tratada como vimento do organismo há uma fase de aprendizagem e adaptação
informação. que completa o desenvolvimento do cérebro, durante o contato
O segundo elemento desse conhecimento é a noção de compu- com informação ambiente. O organismo incorpora modelos pré-
tador. Essas máquinas digitais que operam em código binário, são, -fabricados e outros que terá de completar ou desenvolver com
na verdade, calculadoras aritméticas ultra-rápidas de alta precisão, sua experiência no meio em que vive. O ser humano, contudo,
uma tarefa para qual o cérebro é ineficiente, extremamente lento constantemente tem de lidar com informações novas e é solicita-

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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
por FERNANDO PORTELA CÂMARA1

do a produzir e criar, o que implica em aprendizagem, armazena- o meio) e de descrição (aquisição de informação armazenada
mento e geração de novas informações, e isso requer um grau de em outros organismos). Aí também existem processadores com
plasticidade cerebral único na espécie. O cérebro humano torna- programação geneticamente fixada, como, por exemplo, as áreas
-se, assim, vulnerável a sobrecargas e distribuição de informação, o implicadas na formação da linguagem articulada e do sentido da
que pode vir a impactar o desempenho mental e comportamental linguagem. O córtex pré-frontal, área neocortical cujo desenvolvi-
do indivíduo. mento é notável no Homo Sapiens, gerencia a atividade nervosa
superior em torno de uma singularidade que denominamos ego. É
no neocortex que uma intensa atividade de aprendizagem se reali-
PROCESSADORES NEURAIS za, limitadamente nos primatas e exuberantemente nos humanos.
E TRANSTORNOS MENTAIS. O conceito de processador neural é conceitual e não fisioló-
O OBJETO DA PSIQUIATRIA. gico, e envolve a modelagem em computador, portanto, tem a
vantagem de ser testado com precisão, pois, a precisa descrição
A ideia de que o cérebro está formado por processadores é lógico-matemática desses modelos permite inferências mais refi-
hoje o modelo funcional mais efetivo que dispomos. Com efeito, nadas e exploração de hipóteses efetivas. Além disso, têm ainda
o cérebro ativo comporta-se como um mosaico de processado- a vantagem de serem éticos, pois, certos experimentos que não
res que operam paralelamente e interagem em variados graus, e são possíveis em humanos podem ser conduzidos em modelos
a neuroanatomia das vias cerebrais nos mostra isso. Os estereóti- computacionais com razoável confiabilidade.
pos comportamentais, os componentes afetivos e suas conexões O neocórtex e seu papel regulador sobre os estereótipos com-
sensório-motoras e autônomas elaboram-se dentro da organiza- portamentais e afetivos das regiões subcorticais e seu papel de ge-
ção cerebral, no nível subcortical, automático, enquanto na esfera rente da atividade cognitiva, é o objeto da psiquiatria e substrato
cortical desenvolvem-se processadores que fazem interface com o da ação do psiquiatra. Sua alteração por lesão, atrofia, insuficiente
meio ambiente (analisadores corticais, memória), integra informa- irrigação ou intoxicação, déficit funcional, ou insuficiente desen-
ção sensório-motora, organiza o comportamento, motiva e regula volvimento cognitivo por falha de aprendizagem, pode afetar a
os afetos, elabora o pensamento e constrói modelos cognitivos do regulação subcortical deixando a descoberto e fora de controle
mundo, abrindo-se a consciência. Ambos os níveis dialogam entre processadores dessa região, cujo automatismo passa a se repetir
si e interferem um no outro. No homem, a civilização e a edu- incessantemente interferindo gravemente na atividade mental. Os
cação desenvolveram inibições corticais sobre as estruturas mais processos obsessivo-compulsivos, os surtos alucinatórios e deliran-
profundas, permitindo um controle predominante da consciência tes, os transtornos de ansiedade, do impulso, e outros teriam sua
sobre os impulsos e automatismos, embora sujeitos a irrupções origem nessa insuficiente regulação.
emocionais transitórias e relaxamento temporário das inibições. Em psiquiatria, esse fenômeno pode ser o modelo padrão de
No sujeito em que esse delicado equilíbrio esteja comprometido, causalidade da doença mental. De fato, podemos notar como os
desorganiza-se em anomalias do pensamento, humor e o compor- estados obsessivo-compulsivos, os estados de ansiedade, os esta-
tamento. dos delirantes e alucinatórios, os estados maníacos, etc., caracteri-
Esses processadores dividem-se basicamente em dois tipos: zam-se como processos que se repetem ciclicamente, sugerindo
• Processadores com programação fixa estabelecidos durante uma evidente falha na regulação e modulação de processadores
o desenvolvimento do sistema nervoso, que em sua maioria são que, em condições normais, participam integrativamente da sus-
subcorticais. Esses processadores são determinados geneticamen- tentação da atividade cerebral e regulação do comportamento.
te, organizados em territórios neuroquímicos, programados por Essa falha regulatória muitas vezes manifesta-se conjuntamente
evolução a partir de protótipos básicos que vão se repetindo e di- com alterações na elaboração cognitiva. Não podemos considerar
versificando segundo evoluem os organismos para modelos mais esse fenômeno de autonomização funcional como a causa da do-
complexos. São eles que sustentam a atividade nervosa, do mais ença mental, senão a falha do elemento que o regula, implicando
simples invertebrado ao cérebro humano, e não estão implicados a participação do neocórtex. O esforço do psiquiatra está em usar
em aprendizagem. métodos que reforcem as vias corticais no seu papel regulador, ou
• No território cortical, temos processadores com propriedade corrija sua deficiência a partir de um controle externo, sob a forma
de aprendizagem, auto-programados através da experiência (com de terapias farmacológicas, biofísicas ou cognitivas.

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Considere o exemplo do transtorno obsessivo-compulsivo acompanhados de estereotipias verbais), ao lado de idéias e pen-
(TOC). O pro­cessador implicado provavelmente é uma função samentos repetitivos reverberantes. Essas alças reverberantes ou
auxiliar utilizada nos processos de aprendizagem, que em animais loops são um fenômeno bem conhecido em computação (o cha-
como repteis e anfíbios participam de estereotipias e comporta- mado “problema da parada”) e foi o principal problema que os
mentos repetitivos. No gênero humano e algumas espécies de pri- primeiros programadores se defrontaram, e sua presença típica
matas, esses atos compulsivos, devidamente controlados, podem na maioria dos transtornos mentais é um dos princípios que se
ser importantes para se aprender uma tarefa ou memorizar algo, soma às evidencias de computabilidade dessas funções nervosas.
cuja repetição por um curto período de tempo proporciona o re- No exemplo do TOC, o processador envolvido localiza-se na via
forço necessário à aprendizagem. Fora desse contexto, a função córtico-estriatal-palidal-talâmica, e a alça reverberante que aí se
interfere na economia nervosa e torna-se patológica para o sujeito instala decorre de alguma facilitação, pois não há alteração neuro-
humano. Não é difícil perceber que a nosografia psiquiátrica é uma química nesta via como, p. ex., observa-se nas vias envolvidas na
ampla descrição de padrões computacionais que, ao se destaca- depressão e esquizofrenias. Os inibidores seletivos de recaptação
rem da economia mental, tornam-se centros de atividades autô- da serotonina (ISRS) não são usados no TOC para compensar a
nomas indesejáveis. falta de serotonina 12, mas como pulsos ou estímulos que ajudam o
A autonomização desses processamentos desagrega a consciên- caudado a reajustar a transmissão da serotonina e assim quebrar o
cia e aí reside a perturbação mental propriamente dita: o sofrimen- loop que parasita funcionalmente o processador córtico-estriatal-
to, a angústia, a perda da função social, do rendimento intelectual -palidal-talãmico.
e laboral, as atitudes involuntárias, etc. A sua causa parece ser úni- Muito dessas hipóteses podem vir a ser esclarecidas em definiti-
ca – a perda da capacidade reguladora e integradora do córtex vo com a construção de modelos computacionais onde possamos
sobre processadores básicos que mantém a unidade do funciona- simular o funcionamento dessas vias, seus modos de alteração, e
mento cerebral. verificar como é possível atuar sobre elas para se reparar sua re-
Modelos efetivos em psiquiatria e racionalização do tratamento gulação, compensar seus déficit ou mesmo reprogramá-las. Os
A coordenação de vias de transmissão de informação, tráfego e psiquiatras ainda não se aproximaram da ciência computacional
distribuição não estão sujeitas apenas à arquitetura das conexões como ferramenta para pesquisa patogenéticas e terapêuticas, o
sinápticas, mas também a sinais químicos que orientam e regulam que certamente proporcionaria protocolos mais aperfeiçoados
a transmissão, e por isso a farmacologia de neurotransmissores e para a pesquisa de terapias racionais (farmacológicas, biológicas,
sua relação com vias e áreas cerebrais tem se mostrado útil e pro- e biofísicas).
porcionado um avanço real na psiquiatria.
Um fato que aparece com frequência quando observamos CONCLUSÃO
esses processadores neurais é que eles compartilham diferentes
funções. Desconhecemos como a atividade psíquica é elaborada, A incapacidade de processar adequadamente a informação psí-
e julgamos que ela seja uma função própria, especial, e por isso quica reside em algum tipo de déficit no diálogo entre neocortex
cometemos equívocos pelo fato de interpretarmos certos resulta- e estruturas subcorticais que computam os estereótipos básicos
dos segundo essa crença. Por exemplo, ao administrarmos um an- que servem de andaime para a organização psíquica e comporta-
tipsicótico a um sujeito que delira e alucina, podemos regular sua mental. A falha na regulação e modulação desses processadores
senso-percepção, mas ao mesmo tempo podemos provocar um pelo neocortex caracterizaria as doenças mentais, diferenciando-
descontrole motor nesse indivíduo. Esse fato, que é da experiência -as, embora isso não seja rigoroso e nem determinístico, das doen-
de todo psiquiatra, apenas mostra que as atividades psíquica, sen- ças neurológicas, em que a ganglia basal é primariamente afetada.
sitiva e motora formam uma unidade nervosa. Além disso, quase Por tal razão, essa hipotética falha regulatória muitas vezes mani-
todas as estruturas cerebrais têm um envolvimento motor, e vir- festa-se conjuntamente com alterações na elaboração cognitiva,
tualmente todo córtex (excetos as áreas auditiva e visual primária) afetando a estrutura do ego. A hipótese da causa da doença men-
dirige-se para a ganglia basal 10,11. tal como uma pane na regulação cortico-subcortical não é nova,
A ocorrência de automatismos motores é evidente, por exem- porém, a evidência de que a organização dinâmica do cérebro é
plo, no TOC (estereotipias compulsivas como verificação e computável e os métodos que hoje dispomos para rastrear a ativi-
lava-mãos) e síndrome de Tourette (movimentos involuntários dade de populações de neurônios in vivo, traz a psiquiatria para o

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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO
por FERNANDO PORTELA CÂMARA1

foco da neurociência. A doença mental em si mesma é funcional,


e o esforço da psiquiatria está em usar métodos que reforcem o Referências
papel regulador do córtex, ou corrija sua deficiência a partir de um
controle externo, , sob a forma de terapias racionais farmacológi- • 1. McCulloch W, Pitts W. A logical calculus of the ideas
cas, biofísicas ou cognitivas. immanent in nervous activity. Bulletin of Mathemati-
cal Biophysics, 1943; 7: 115-133.
• 2. Von Neumann J. The Computer and the Brain, New
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ra e Modelo em Psicopatologia. In: OZ Prado; I Fortim;
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• 4. Câmara, FP. Redes Neurais Artificiais em Psiquiatria.
Modelos e Metáforas, Debates Psiquiatria (ABP), 2010;
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• 5. Rojas R. Neural networks, Berlin: Springer-Verlag,
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• 6. Trappenberg, T. P. (2002) Fundamental of computa-
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pacient
• 12. Blier P, de Montigny C. Serotonin and drug-induced médica
Declaração de conflito de interesse: haloper
therapeutic responses in major depression, obsessive- sonolên
O autor declara não haver conflito de interesse em relação a distúrbi
-compulsive and panic disorders, Neuropsychophar- ser divid
este trabalho e fontes de financiamentos. macology, 1999; 21: 91S-98S Oaume
modera
ministra
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O MÉD
Fernando Portela Câmara, MD, PhD 1. Smit
Professor Associado, UFRJ “Venlaf
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Coordenador, Depto Informática da ABP Depres
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