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As fotografias de Artur

Pastor no seu tempo


Maria Carlos Radich
[Transportando o Trigo]
Alentejo
[1943-1945]
PT/AMLSB/ART/003424
As fotografias de Artur Pastor no seu tempo

Durante os “trinta gloriosos anos do O país industrializou-se, permitindo que o


crescimento mundial” que se abriram com “Portugal, país agrícola” saísse finalmente
o fim da II Guerra, a economia portuguesa de cena.
cresceu a um ritmo que ainda não conhecera, Durante este mesmo lapso de tempo,
nem voltaria a conhecer até aos dias de hoje. Artur Pastor continuou a percorrer o país,
Já notável na década de 50, (taxa média fotografando intensamente campos, praias,
de 4,1% ao ano), o crescimento torna-se cidades, com as suas gentes, entregues às
ainda mais rápido entre 60 e 73 (6,9%), suas fainas, ou às suas esperas, mostrando o
caindo a partir de então, ao acompanhar a que eram então os seus modos de vida e a
desaceleração da economia mundial. sua cultura.
Os três sectores da economia participaram O presente texto recorta-se neste
no avanço alcançado neste período, embora quadro. Nele se procuram contemplar
tenham mostrado comportamentos sucessivamente três intuitos: uma leitura
diferentes. Foram os serviços que mais rápida do andamento da economia
contribuíram para o Produto Interno portuguesa; uma insistência um pouco
Bruto (PIB) e que maior percentagem maior nos percursos da agricultura, pecuária
da população ativa empregaram. O e floresta e nos reflexos que tiveram na
crescimento vigoroso da indústria chegou ocupação do território; o modo como o
a ameaçar esta posição, mas não conseguiu trabalho de Artur Pastor, apresentado na
inverter o lugar relativo dos dois sectores. Exposição, ilustra as características desta
Em contrapartida, a indústria ultrapassou época.
a agricultura (1963), em termos de
contribuição para o PIB. O crescimento do I. O movimento da economia
sector primário foi positivo, mas modesto.
A transformação do modelo económico,
A transformação da economia acompanhou no período que se seguiu à II Guerra,
o crescimento. O modelo económico resultou da articulação de um conjunto de
herdado do período anterior à Guerra fatores fundamentais — e dos seus efeitos
erosionou-se neste terceiro quartel de século.
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regulação de preços, política pautal,
condicionamento industrial... — de forma
a favorecer certos sectores da economia
em detrimento de outros, ou a orientar
e equilibrar investimentos nacionais e
estrangeiros.
A participação de capitais estrangeiros na
economia portuguesa foi, durante todo
o tempo, controlada de perto, mas não
impossibilitada pelo Estado Novo. De
qualquer forma, a sua expressão foi módica
Muita gente:
No quadro da agricultura tradicional, muita gente
até aos anos 60. A partir de então, a atitude do
trabalhava nos campos;… Estado tornou-se mais permissiva. O fluxo de
Alentejo capitais que entrava em Portugal aumentou,
[década de 1950]
PT/AMLSB/ART/022112
começando a sua aplicação produtiva a
ter significado, tocando, nomeadamente,
as indústrias transformadoras e ligadas à
derivados — entre os quais se destacam exportação.
três: disponibilidade de capital, emigração,
influência de uma parte da elite política do A emigração constituiu uma marca
Estado Novo. fortíssima nesta época. Entre 1960 e 1973,
mais de um milhão e trezentas mil pessoas
O investimento na economia portuguesa, deixaram o país, legal e clandestinamente,
traduzido pela formação bruta de capital fixo, dirigindo-se, maioritariamente para países
foi decisivo e crescente durante este período. europeus. As consequências deste fenómeno
Portugal acompanhou folgadamente o na economia portuguesa foram de grande
movimento de outras pequenas economias alcance. O subemprego foi absorvido. Os
europeias. Estes capitais provinham, em salários subiram. Confrontados com uma
boa parte, da poupança, em que pesaram mão de obra mais reduzida e mais cara,
as remessas dos emigrantes, verificando- as empresas foram forçadas a recorrer a
se, simultaneamente, transferências da tecnologias mais apuradas, se queriam
agricultura para a indústria. O Estado sobreviver. Como resultado da renovação
assumiu uma parte significativa do tecnológica, a produtividade do trabalho
investimento direto então feito, e foi subiu em flecha, sendo particularmente
modulando a aplicação dos instrumentos de importante na indústria. As remessas dos
intervenção e de controle de que dispunha emigrantes, por seu turno, estimularam a
— concessão de crédito e de subsídios, procura interna, além de contribuírem para
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As fotografias de Artur Pastor no seu tempo

o equilíbrio da balança de pagamentos.


A renovação tecnológica teve como reverso
a falência das empresas mais frágeis, que não
conseguiram reconverter-se, e investir em
tecnologias mais apropriadas numa situação
de salários mais altos. No sector secundário,
a “poeira industrial”, ou “indústrias de vão
de escada” foram desaparecendo ao longo
dos anos 60 — assim 30.500 empresas
que empregavam até dez operários. Em
contrapartida, 16,5% das empresas passaram
a assegurar 73% da produção, tornando
manifesto o movimento de concentração
industrial. Nos outros dois sectores, inúmeras
atividades pequenas e modestas seguiram o
mesmo caminho, com o desaparecimento,
…um grupo numeroso de mulheres escolhe batatas, à
por via da emigração, daqueles que, até
mão;…
então, as asseguravam. No terciário, foram Chaves
declinando vendedores ambulantes, 1953
PT/AMLSB/ART/011875
lavadeiras, engraxadores, ardinas..., enquanto
cresciam os serviços públicos, hotéis e
seus interesses, e temiam o aumento da
restaurantes, transportes, principalmente
classe operária e das suas aglomerações o
rodoviários e aéreos, comunicações, sector
que, pensavam, poderia ameaçar o sossego
financeiro. Na esfera rural, retraíram-se
social que desejavam e que um país rural mais
ofícios, como os de moleiro, oleiro, tecelão,
facilmente assegurava. Neste período, porém,
carvoeiro... Vinha à superfície que muitas
não conseguiram suster o crescimento da
das heranças recebidas do período anterior
indústria, nem o êxito do projeto económico
à Guerra estavam a perder-se, bem como o
do grupo dos industrialistas — cujo expoente
mundo a que pertenciam.
maior e mais conhecido era o engenheiro
Durante esta época, a política económica do Ferreira Dias. Além de, finalmente, terem
Estado Novo teve como sentido geral apoiar conseguido materializar o seu discurso, os
o crescimento da economia e particularmente industrialistas conseguiram ocupar alguns
o da indústria. No âmbito do regime, não lugares proeminentes na composição dos
havia unanimidade quanto a tal orientação, governos. Os planos de fomento, entre um
nem acordo quanto ao seu ritmo. Alguns importante corpo de legislação, vincaram
grupos, mais do que outros, receavam pelos firmemente o quadro da atuação estatal

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de petróleo. O vigoroso crescimento das
indústrias transformadoras, durante 60 até
73, um dos mais notáveis no conjunto dos
países da OCDE, não decorreu apenas,
nem principalmente, destas medidas de
política, mas dificilmente não terá sido
beneficiado por elas. Em 1960, as indústrias
transformadoras já representavam mais de
um quarto do PIB e mais de um quinto do
emprego, valores que subiram ainda mais até
1973.
Convém agora salientar que, na evolução
que a economia portuguesa experimentou
no período que tem estado em apreciação,
se podem reconhecer dois andamentos. Na
década de 50, já se registam crescimento e
transformação. A partir dos anos 60, porém,
e até 1973, os ritmos de crescimento e de
mudança aceleram poderosamente.
Simultaneamente, regista-se uma inflexão
…à espera dos descortiçadores: presentes na ausência. na orientação da economia. Os inícios da
Alentejo sua transformação, em especial da indústria,
[década de 1950]
PT/AMLSB/ART/020306
conformaram-se ao modelo de substituição
de importações, baseado principalmente no
e abriram espaço suficiente para que a mercado interno. A partir dos inícios dos
industrialização avançasse. anos 60, a economia abre-se mais ao exterior,
sendo o modelo seguido o do fomento das
O Estado começou por empenhar-se exportações. Uma tal viragem não deixou
muito especialmente na construção de de ser contestada dentro dos meios políticos
infraestruturas — como as conducentes à do Estado Novo. Uma economia assente
produção de termo e hidroeletricidade — na no mercado interno, acrescida do mercado
transformação do modelo energético — das colonial afigurava-se a alguns como melhor
lenhas e carvão à eletricidade e ao petróleo opção. Mas não vingou. Prevaleceu a
— no apoio a indústrias estratégicas — perspetiva da abertura ao exterior, tanto
adubos, pasta para papel, siderurgia, em termos de aceitação de uma maior
metalomecânica pesada, cimentos, refinação

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massa de investimento estrangeiro, como
de estímulo a exportações, em boa parte
de produtos agrícolas e florestais e de
produtos industriais tradicionais, como
têxtil e calçado. A contrapartida consistia
em abrir as fronteiras à importação de bens
industriais mais elaborados. Prescindia-se,
deste modo, de tomar medidas para alargar
o mercado interno, não dando também
tempo a que se constituíssem entre nós os
ramos mais sofisticados da indústria dessa
época. A economia portuguesa permaneceu
dependente do tipo de oferta e de procura
que os mercados externos definiam.

II. Agricultura, pecuária, floresta


Trabalho manual e mecânico:
Nas linhas que precedem, evitaram-se o semeador, símbolo da agricultura antiga e do trabalho
manual, foi fixado por Millet num quadro célebre; surge
quanto possível referências à agricultura, aqui na planura alentejana;…
pecuária e floresta, reservando-lhes este Alentejo
ponto para uma abordagem mais atenta. [1943-1945]
PT/AMLSB/ART/003391
Tomado em globo, o comportamento do
sector primário — do qual, no seguimento, agrária foi vivamente discutida no interior
serão sub-repticiamente subtraídas as do regime. Como atrás se apontou, a
pescas — acompanhou com dificuldade corrente industrialista considerava que uma
o dos outros sectores da economia. O seu indústria forte e bem constituída, expurgada
crescimento foi lento. A sangria demográfica da “indústria de vão de escada” devia ser o
foi muito significativa – cerca de 600.000 motor do desenvolvimento do país. Neste
ativos deixaram a agricultura entre 60 e 73. domínio, os seus esforços estavam a vingar,
Esta saída de gente pesou poderosamente uma vez que a industrialização avançava, e
na evolução da agricultura, provocando uma a indústria se concentrava. No entanto, no
crise que a forçou a alterações profundas. projeto industrialista, articulava-se uma outra
dimensão, que implicava a transformação
Política agrária radical da agricultura. Pretendia-se que
Durante o terceiro quartel do século esta fosse para a indústria, antes do mais,
passado, a orientação mais geral da política um mercado, além de fornecer-lhe meios

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debulha do cereal: diversos sistemas se sucederam, no …no século XIX, surgiu outro sistema, em que um
tempo; um dos mais antigos usava motores a sangue, motor a vapor accionava uma máquina complicada, a
frequentemente humano, e um instrumento, como o debulhadora fixa;…
mangual;… Alentejo
Lamego [1943-1945]
[década de 1960] PT/AMLSB/ART/003441
PT/AMLSB/ART/010834

O problema maior desta parte do projeto


humanos e materiais. Para isso era necessário residia no entendimento de que uma
que viesse a ser constituída por empresas bem estrutura adequada de explorações agrícolas
dimensionadas, nem gigantescas nem anãs, exigia, prévia ou simultaneamente, uma
bem equipadas, geridas por profissionais reestruturação da própria propriedade
competentes. Em vez de procurar resistir, e fundiária, sem o que o redimensionamento
mesmo recusar, o papel motor da indústria, a das explorações não seria viável. Foi esta a
agricultura devia aceitá-lo, e empenhar-se em pedra de toque dos confrontos que agitaram
aumentar o seu produto e produtividade. A as elites do Estado Novo. A reestruturação
reforma da agricultura, e não a sua paralisia, fundiária que os industrialistas propunham
era fulcral para o desenvolvimento global, era, no fim de contas, uma reforma agrária.
sendo ao mesmo tempo a melhor forma Não se tinha em vista, naturalmente, uma
de controlar o êxodo rural e de conter as reforma agrária popular, que sacudisse os
tensões sociais que o processo de crescimento campos de baixo para cima mas, mesmo
forçosamente acarretava. sendo apenas modernizadora, imposta e

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controlada pelo Estado de cima para baixo aceitou as transformações modernizadoras,
seria uma reforma agrária que atingiria que se lhe apresentavam como sendo frutuosas.
a propriedade privada da terra. Ora, não Muitas medidas de política foram tomadas
estava excluído que esta beliscadura no em seu apoio. O Estado investiu diretamente
direito de propriedade alastrasse dos campos nas obras de hidráulica agrícola com vista,
para a indústria e daí pudesse subverter fundamentalmente, a ampliar a área de
a economia e a sociedade em geral. Os regadio. Aos seus serviços técnicos competiu
grandes proprietários fundiários, que a introdução e o acompanhamento de novas
desde logo perceberam que iriam ser eles culturas, e de tecnologias mais elaboradas,
os principais atingidos, resistiram quanto fruto da agronomia científica desse tempo. As
puderam, acabando por ser bem sucedidos. políticas de preços, comercialização, subsídios
Os resultados das eleições de 1958 e os à produção constituíram instrumentos de que
inícios das guerras coloniais também não frequentemente se serviu para impulsionar a
animaram nada o Estado Novo a correr reconversão da agricultura e dos modos de
o risco de hostilizar os grandes agrários, produzir.
um dos seus principais pilares políticos de
No plano das culturas, o conjunto das
apoio e a fragilizar, mesmo se parcialmente,
intervenções teve em vista dois objetivos,
a propriedade privada, base fundamental
entre si contrários. Por um lado, favoreceu
da economia capitalista. O resultado foi a
a introdução, ou o reforço, de produções
derrota desta parte do projeto industrialista.
como o milho-forragem, os milhos híbridos,
Por arrastamento, o alargamento do mercado
novas variedades de batata, fruticultura,
interno, que explorações agrícolas dinâmicas
horticultura. Em sentido inverso, diminuiu
poderiam proporcionar pelas suas aquisições
apoios a culturas como a do trigo, que
de meios de produção industriais e venda
datavam dos finais do século XIX. Tratava-
de produtos agrícolas, viu-se limitado. A
se de um legado que o Estado Novo recebera
abertura ao exterior estimulou, contudo,
e prolongara até então. A longa manutenção
a produção e exportação de produtos de
desta herança estivera estreitamente
alguns ramos agrícolas.
relacionada com os interesses do latifúndio
É possível, e mesmo provável, que a derrota do Sul, que começava então a esboroar-se.
da vertente agrária do projeto industrialista Note-se ainda e apenas, que nem as
tenha orientado de forma menos adequada intenções do Estado foram inteiramente
as mudanças da agricultura, pecuária e concretizadas, nem a sua atuação serviu
floresta. Não obstante, as transformações que igualmente todos os tipos de agricultores.
conheceram nesta época foram profundas. Com exceções embora, as explorações mais
Apesar de ter travado, muito firmemente, a ligadas ao mercado e as de maior dimensão
intervenção na estrutura fundiária, o Estado foram as que mais beneficiaram.

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Agricultura de alguns deles — motocultivadores em
O êxodo rural precipitou a crise da vez de grandes tratores, por exemplo —
agricultura, ao obrigá-la a confrontar-se, não tendo acesso a outros por aluguer, processo
apenas com menos gente nos campos, como havia muito aconselhado e que então foi
também com salários mais altos. mais extensamente atendido. Acresce que
algumas tecnologias eram divisíveis —
Em termos gerais, a alteração da tecnologia adubos, fitofármacos, herbicidas... — o que
agrícola e a substituição de culturas os disponibilizava mais facilmente para a
constituíram os principais meios a que pequena cultura.
as explorações agrícolas recorreram para
enfrentarem as novas condições que se A reação das explorações à crise da agricultura
lhes apresentavam. Com efeito, enquanto desta época foi diversa, como diversas eram
o fator trabalho foi abundante e barato, essas explorações, e as condições muito
não se justificava, em termos de resultados concretas em que se encontravam.
económicos esperados, que as explorações Numa parte das explorações mais pequenas,
intensificassem os seus processos de cultivo. o cultivo da terra foi simplesmente
Foi esta a situação que se alterou, a partir dos abandonado, ou severamente restringido.
anos 60. Em muitos destes casos, os elementos mais
A tecnologia a que as explorações agrícolas jovens das famílias tinham emigrado, apenas
recorreram nesta época não era desconhecida, permanecendo os mais idosos. Noutra, a
nem estivera inteiramente ausente dos exploração manteve-se, reunindo proventos
campos portugueses. Neste sentido, não se oriundos das reformas dos mais velhos,
pode pretender que fosse nova, apenas que remessas dos que tinham emigrado, salários
estivera pouco difundida. Alguns desses obtidos fora da exploração. Noutros casos
recursos — adubos, máquinas, motores, ainda, a exploração reconverteu o seu cultivo
alguns fitofármacos... —provinham do e as suas produções, mantendo-se viva e
século XIX, tendo sido aperfeiçoados e o seu ligada ao mercado.
leque progressivamente mais aberto durante As explorações patronais de mediana
a primeira metade do século seguinte. dimensão também não seguiram todas o
Boa parte dos equipamentos — motores e mesmo caminho. Houve as que sucumbiram,
máquinas, principalmente — fora pensada as que se mantiveram e também as que
inicialmente para caber na grande ou, pelo prescindiram do trabalho assalariado, então
menos, na mediana dimensão da cultura mais caro, convertendo-se em explorações
mas, quando se atingiram os anos 60 do familiares. As que conseguiram capitalizar,
século XX, as pequenas explorações já introduziram novos equipamentos,
puderam beneficiar da miniaturização intensificaram, substituíram culturas. Com

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frequência, passaram a utilizar menos terra
…mais tarde, a máquina a
do que antes. vapor foi sendo substituída
Os grandes domínios fundiários do norte pelo tractor, dotado de
um motor de combustão
do país, e os latifúndios do Sul também interna, sistema a que
não escaparam ilesos à crise. No tocante se seguiu a ceifeira-
ao latifúndio, a transformação operada debulhadora móvel.;…
Alentejo
conduziu a que, em rigor, tivesse deixado [década de 1950]
de existir. Com efeito, a lógica do latifúndio PT/AMLSB/ART/003443
consistia em somar lucros — que o
Vinquem-se ainda dois dos resultados a
latifundiário obtinha das terras de melhor
que a crise e a reconversão da agricultura
qualidade, que explorava diretamente com
conduziram.
recurso ao trabalho assalariado — e rendas
— que obtinha das piores terras, divididas Um dos mais salientes consistiu no facto
em parcelas e entregues a seareiros. O êxodo da agricultura ter conseguido, com menos
rural fez desaparecer tendencialmente o gente, menos terra, mas mais investimento
seareiro, e portanto as rendas, reduzindo em tecnologia, manter e mesmo aumentar
o latifundiário à categoria de capitalista um pouco o produto agrícola. O aumento
agrícola, cuja lógica própria é a de maximizar da produtividade do trabalho numa parte
lucros. Seguiu-se a reconversão, exigida pelos da agricultura foi mesmo mais notável do
salários então mais altos que, com frequência, que a aparência dos cálculos globais, uma
passou pela redução da área cultivada. Deste vez que a população mais envelhecida era,
modo, a par da intensificação da cultura nas sob este ponto de vista, mais um fardo do
melhores terras, assistiu-se ao abandono, que uma ajuda. Conseguiu ainda fornecer
ou à florestação das terras antes cultivadas produtos para a exportação, como a polpa e o
por seareiros. Note-se que o Estado não se concentrado de tomate. Não conseguiu, por
preocupou em salvar o latifúndio, limitando- outro lado, evitar o aumento das compras
se a apoiar a sua reconversão. ao exterior, desequilibrando negativamente
a balança agrícola, e encarecendo a
Estes diferentes percursos, que dependeram
alimentação.
do tipo de exploração e das suas características,
saldaram-se em dois destinos opostos para Um segundo ponto a realçar é o facto
o conjunto das explorações agrícolas: uma da modernização da tecnologia agrícola
parte, a que conseguiu capitalizar, alterou ter abalado, e mesmo levado de vencida,
tecnologias e culturas e sobreviveu; a outra uma boa parte da tecnologia tradicional,
parte ficou seriamente limitada, se é que não juntamente com os saberes que lhe estavam
desapareceu. associados. Os novos meios técnicos a que
então se estava a recorrer exigiam o domínio
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de saberes próprios e distintos daqueles e 1972, ao passar, números redondos, de um
que estavam mais espalhados pelos campos pouco mais de um milhão e oitocentas mil
portugueses, e que podiam ser transmitidos para um milhão e novecentas mil cabeças
de uma geração para outra, no âmbito da normais — estas calculadas aplicando um
família e da aldeia. Uma malha de artesãos critério de equivalências às cabeças naturais,
— carpinteiros, ferreiros, serralheiros,... de forma a poder somar animais de espécies
— que tinham longamente assegurado diferentes.
o fabrico dos instrumentos costumeiros,
Tão ou mais relevante, contudo, do que a
confrontaram-se com a obsolescência
evolução quantitativa do armentio, afigura-
crescente das capacidades que detinham. Em
se ter sido a variação qualitativa que sofreu,
contrapartida, impunha-se a necessidade
de que é possível apresentar algumas das
de recorrer a habilitações profissionais
suas dimensões.
específicas, ligadas ao funcionamento e
reparação de motores e de máquinas, ao Tradicionalmente, os grandes animais que
trabalho em oficinas tecnológicas renovadas, compunham o efetivo pecuário nacional
ao uso de adubos e fitofármacos. O modo — equídeos e bovinos — eram requeridos,
de fazer na agricultura foi profundamente exclusiva ou principalmente, para trabalho
subvertido. Sublinhe-se que não foram só agrícola e de transporte. A função trabalho
instrumentos e práticas agrícolas que foram foi ainda decisiva na primeira metade do
deixando os campos: toda uma cultura, com século XX, para alargar as áreas cultivadas. O
os seus saberes, rituais e celebrações estava avanço da motorização dos transportes em
igualmente a retirar-se. geral, e do trabalho agrícola em particular,
fez recuar os motores animais face aos de
O recurso à tecnologia moderna teve uma
combustão interna. Os equídeos sofreram
outra consequência, a de aprofundar a relação
uma queda severa, entre 1940 e 1972.
de uma parte das explorações agrícolas
Em contrapartida, os bovinos, sem mais
com o mercado, através da aquisição de
especificações, viram o seu número crescer
novos meios de produção, que passavam a
no mesmo espaço de tempo.
ser oferecidos pela indústria — nacional e
estrangeira — e não já pela oficina da aldeia. Esta diferença de comportamento anuncia
As novas produções agrícolas acentuaram uma outra mudança, também decisiva, das
também as relações com o mercado. funções que se pretendia obter da pecuária.
A partir dos anos 50, torna-se notório
Pecuária que se estava a evoluir para um armentio
essencialmente alimentar. O diferente
O efetivo pecuário mostrou uma tendência
comportamento quantitativo dos bovinos
ascendente desde os princípios do século
relativamente aos equídeos derivava do facto
XX, característica que manteve entre 1940
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Do gado de transporte ao frequência, péssimas condições de vida que
motor inanimado: tinham de suportar. Entre elas, as raças
Gado bovino para bovinas portuguesas havia largo tempo que
transporte de
mercadorias… tinham sido forjadas e adaptadas ao trabalho
Alentejo nas várias regiões do país, aproveitando-as
[década de 1950] também para carne e leite. Para este último
PT/AMLSB/ART/020121
intuito, contava-se sobretudo com a turina,
descendente da raça holandesa e adaptada
às condições menos favoráveis do nosso
país. Ao longo do tempo, e para o conjunto
das espécies, raças estrangeiras foram sendo
introduzidas e experimentadas entre nós,
… e de pessoas… cruzadas por vezes com as raças portuguesas,
Alcácer do Sal
[década de 1960]
ou melhoradas em si, com novas importações
PPT/AMLSB/ART/001631 de animais, ou de sémen.
As mudanças experimentadas pela pecuária,
e também pelas políticas do Estado que
lhes estiveram associadas, podem ser
reconhecidas em vários âmbitos, dos quais
… que o motor de
combustão interna viria a se retêm brevemente três — bovinos-leite,
substituir. bovinos-carne, porco de carne, que se
Lamego abordam sucintamente, no seguimento.
[década de 1950]
PT/AMLSB/ART/020400 A produção de bovinos para leite, com vista,
fundamentalmente, ao abastecimento das
destes últimos não terem praticamente peso
cidades, foi conseguido, desde o século XIX,
na alimentação, ao passo que os bovinos, que
com base sobretudo na vaca turina. As outras
sempre tinham associado esta finalidade ao
raças portuguesas pouco leite conseguiam
trabalho e ao transporte, embora de forma
fornecer, o que não impediu que algumas
subordinada, estavam então a desenvolvê-la.
vozes teimassem em propor que fossem
A variação dos objetivos da pecuária levou utilizadas e melhoradas para este fim.
a uma alteração também das raças que
estavam em campo. Às raças tradicionais Ao longo da primeira metade do século XX,
portuguesas, qualquer que fosse a espécie, a turina espalhou-se, embora desigualmente,
eram requeridas as características de pelo território do continente, a partir de um
serem sóbrias e rústicas, qualidades sem as primeiro solar que foi Lisboa e arredores,
quais não sobreviveriam às severas, e com surgindo nomeadamente na pequena
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exploração agrícola do Norte Litoral. Como de trabalho, e que as explorações entregavam
qualquer outra vaca, foi sujeita ao trabalho, o finalmente ao talho, juntamente com animais
que diminuiu a sua capacidade leiteira. novos que não eram necessários às unidades
agrícolas e que, portanto, estas prescindiam
A partir dos anos 50, a situação altera-se. de criar. A carne era, assim, um subproduto
Ao estabelecer um preço compensador da produção intencional de bovinos de
para o leite, assegurando um pagamento trabalho.
pronto e regular aos agricultores, e uma
relação favorável preço do concentrado para A partir de então, procurou-se que a produção
alimentação/preço do leite, a política do intencional de carne crescesse. Diversos
Estado contribuiu para que a vaca de leite instrumentos legislativos, nomeadamente
ganhasse o interesse dos agricultores. Os o Plano de Fomento Pecuário, de 1962,
cuidados veterinários e o melhoramento procuraram vincar esta inflexão: produzir
foram permitindo que a turina subisse de mais forragem, recorrer mais a concentrados,
rendimento. O aumento do consumo do estabelecer um jogo de preços e de subsídios
leite fresco e dos lacticínios, amparado pela favorável. O intuito realizou-se em parte,
confiança acrescida na higiene do circuito do sobretudo no quadro de explorações
leite, alargaram a procura. Neste contexto, agrícolas de maior dimensão. Contudo,
ocorreu uma alteração também fundamental: como a relação preço do concentrado/
a turina foi deixando de ser submetida ao preço do leite se tornou mais favorável do
trabalho, aliás cada vez menos requerido, que a do concentrado/carne, a carne bovina
dado o avanço da motorização. Em cômputo tornou-se, pela outra parte, um subproduto
geral, o efetivo leiteiro aumentou — em da produção intencional de leite.
1955 foram recenseadas, números redondos,
120 mil fêmeas turinas, mais de 183 mil As razões que conduziram a mudanças na
vacas leiteiras em 1968, 290 mil turinas e suinicultura desta época foram de outra
holandesas, em 1972. A produção de leite ordem.
também aumentou. Assim, não sendo ainda
A obtenção de carne de porco fazia-se
os anos do grande boom leiteiro, que se
tradicionalmente entre nós com base no
evidenciaria nas duas décadas seguintes, os
porco de chiqueiro, de raça bísara, estabulado
anos 50 e 60 já o anunciam.
em pocilgas com poucos animais, e que se
Os anos 60 marcam a separação entre dois
destinava em grande parte ao autoconsumo.
modos distintos de obter carne de bovino.
Era este o sistema mais difundido no Norte.
No Sul, imperava o porco de raça alentejana,
Até então, a carne era obtida a partir de
engordado com a bolota dos montados, e
animais que chegavam ao fim de uma vida
que era destinado fundamentalmente ao

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mercado, sendo ele que abastecia, em boa os ovinos — nas ervagens dos pousios.
parte, a cidade de Lisboa. Tendo a área inculta diminuído ao longo
A peste suína africana, que se manifestou da primeira metade do século, as condições
em 1957, e conheceu surtos em anos de manutenção destes gados viram-se
seguintes, levou a mortandade ao porco limitadas. Diversos outros motivos, como
alentejano, e ameaçou o abastecimento da doenças, exportações legais e clandestinas,
capital. As tentativas de substituir o porco multas e taxas camarárias, e mesmo a não
alentejano por cruzamentos deste com uma coincidência do dia exato a que os sucessivos
raça importada, como o Yorkshire-Large arrolamentos se referem — desajustamento
White, não resultaram: o porco cruzado não só por si capaz de levar a não incluir
aguentava o regime de montanheira. centenas de milhar de crias nascidas nesse
intervalo — podem, em conjunto, explicar
Neste contexto, e com o apoio do Estado, as oscilações mais vincadas.
transitou-se a outro tipo de produção, a
“suinicultura sem terra”, com base no “porco Floresta
de carne”. Tratava-se de porcos da raça
inglesa Large White, reunidos em grandes Prolongando a tendência para o crescimento,
pocilgas industriais, e alimentados com que se observava desde a segunda metade
ração. Esta raça difundiu-se também alguma do século XIX, a área ocupada pela floresta
coisa no Norte, competindo com o bízaro. ampliou-se entre 1939 e 1972.

Note-se, por último, que os gados exclusiva As principais espécies florestais não se
ou predominantemente alimentares tiveram comportaram da mesma forma. Azinheiras,
evoluções contrastadas durante o período carvalhos e castanheiros viram as respetivas
em apreço. Enquanto o número de cabeças áreas estabilizar, ou mesmo regredir. Ao
naturais suínas cresceu desde os princípios invés, as áreas de sobreiro, pinheiro bravo e
do século, incluindo o intervalo entre 1940 eucalipto expandiram-se. Caso singular foi o
e 1972 (+ 800.000), a tendência secular de do eucaliptal, cuja área não tinha sequer lugar
ovinos e caprinos foi decrescente, embora nas estatísticas, dada a sua insignificância,
com oscilações nos dois sentidos, por vezes mas que já figura em 1972, para não parar
abruptas. de crescer até aos dias de hoje.

A razão que mais avulta para explicar o Entre nós, a propriedade da floresta era
comportamento destas duas espécies radica esmagadoramente privada. A propriedade do
no facto de se terem mantido os sistemas Estado era, e sempre fora diminuta, tal como
pecuários tradicionais, que assentavam a dos corpos administrativos. A propriedade
a alimentação dos dois rebanhos nos comunitária consistia na parte dos terrenos
terrenos incultos e — mas sobretudo para baldios que os povos tinham arborizado.

129
Esta distribuição estava longe de favorecer eucalipto. Estes trabalhos foram dirigidos
a ação do Estado no domínio florestal, pelo Fundo de Fomento Florestal, um
fosse para proteger a floresta, fosse para organismo mais vocacionado do que os
aumentá-la, arborizando. O Estado Serviços Florestais para atuar na propriedade
dispunha, contudo, de um instrumento privada. O destino do material lenhoso
legal, o Regime Florestal, instituído em obtido era depois entregue a fábricas de
1901, e regulamentado em 1905, que lhe celulose, entretanto instaladas no país, que
permitia, mesmo assim, atuar nos terrenos preparavam pasta para papel, em boa parte
particulares e comunitários — com o acordo para exportação. Deste modo, a indústria
dos proprietários, ou sem ele, se pudesse de celulose, cujas raízes são oitocentistas,
invocar o interesse público. No tocante à juntou-se à de produtos resinosos, de
propriedade comunitária, e na sequência do semelhante antiguidade, e foram ocupando
Reconhecimento dos Baldios do Continente um lugar progressivamente mais destacado
(1941), parte da área apurada, trezentos e na corrente exportadora, a par da mais
trinta mil hectares, foi entregue aos Serviços tradicional cortiça.
Florestais para efeitos de arborização, o que
permitiu avançar no cumprimento da Lei Reflexos sobre a ocupação do território
de Povoamento Florestal, de 1938. Desde
As transformações da agricultura, pecuária
princípios do século XX, aliás, os Serviços
e floresta no terceiro quartel do século XX
Florestais tinham vindo a intervir na
tiveram como resultado alterar a ocupação
propriedade comunitária, frequentemente
do território.
contra a vontade dos povos e em prejuízo
dos usos e complementaridades que se
Abstraindo da área ocupada pelas cidades,
estabeleciam com as explorações agrícolas.
indústrias, estradas..., a área de floresta
A partir, porém, do fim da II Guerra, este cresceu, passando de 2.500 para 2.800 mil
panorama alterou-se. A crise da agricultura hectares, aproximadamente. Em contraste,
levou a que terrenos particulares, antes a superfície anualmente semeada do
submetidos ao cultivo agrícola, deixassem continente baixou — na primeira metade
de sê-lo. No Sul, este foi um dos resultados da década de 70 já caíra 23% relativamente
do declínio do latifúndio. Neste último a 1960/64. Esta terra que sobrava foi
contexto, um dos destinos mais favoráveis simplesmente abandonada, ou utilizada para
para a terra que ia sobrando consistia na caça, pecuária extensiva, ou florestada.
florestação. O Estado pôde então intervir,
A evolução dos incultos — esquecendo
mobilizando a sua capacidade técnica, com
agora os incultos incultiváveis — sofreu
pleno acordo dos proprietários. As espécies
uma inflexão decisiva durante estes anos.
mais utilizadas foram o pinheiro bravo e o
Desde princípios do século, e até aos anos
130
A Agronomia científica em
acção: o “novo” debruçado
sobre um catálogo de
insectos,…
Estação agronómica
Nacional
Sacavém
1953
PT/AMLSB/ART/021040

… ocupado em trabalhos
de laboratório,…
Estação agronómica
Nacional
Sacavém
1953
O “antigo” e o “novo”:
PT/AMLSB/ART/021056
velhos rituais acompanhavam frequentemente os
trabalhos agrícolas, como a vindima, que a música
animava.
Régua
1956
PT/AMLSB/ART/007990
… e em ensaios de campo.
Posto Experimental do
60, a sua área não parara de diminuir, dado Vale do Tejo
o avanço da área ocupada pela cultura Salvaterra de Magos
[década de 1950]
agrícola e pela floresta. Da II Guerra aos PT/AMLSB/ART/020583
anos 60, pode dizer-se que a área inculta
se reduziu à sua expressão mais simples fora considerada ancestral e que, pensava-
— 500 mil hectares, aproximadamente, se desde o século XIX, poderiam aumentar
depois de ter sido superior a seis milhões a riqueza do país, desde que submetidos
de hectares, segundo uma estimativa de ao cultivo, ou florestados. Esta expectativa
1875. Com o êxodo rural e o precipitar da desfizera-se em meados do século XX — já
crise da agricultura, a área inculta inverte o estavam cultivados e florestados, e o país não
seu movimento e passa a crescer. Surgem, enriquecera tanto assim.
assim, os “novos incultos”, terrenos retirados
então recentemente ao cultivo, e distintos,
portanto, dos “velhos incultos”, cuja origem

131
os campos, substituída por outra, a que a
reconversão da agricultura apelava, e a que
já então recorria. Esta leitura condiciona,
inevitavelmente, o olhar que aqui é lançado
sobre a parcela das fotografias de Artur
Pastor, presente nesta Exposição. Esperam-
se sinais do mundo velho e do novo, do que
ainda resiste e do que já mudou, ou está
prestes a mudar. Os intuitos do próprio
fotógrafo podem bem ser sufocados pelas
expectativas de quem vê. Mas como um olhar
puro é impossível, arriscam-se algumas notas.
O que Artur Pastor nos oferece é um fresco
dedicado aos trabalhos nos campos, e às
mulheres e homens que deles se ocupavam.
Um dos muitos artesãos que se encontravam na esfera A presença humana é constante, se
rural.
excetuarmos duas composições, uma com
Local n/ identificado
[décadas 1950-1960] cogumelos, outra com avelãs. Mesmo numa
PT/AMLSB/ART/004385 das imagens do montado, sem gente, fica-se
à espera de que os descortiçadores regressem.
III. As imagens de Artur Pastor O “mundo velho” foi o mais profusamente
O terceiro quartel do século passado é, assim, retratado: campos com muita gente; grandes
um período em que os ritmos de crescimento grupos que se ocupam do trigo, da batata,
e de mudança se acentuam, forjando já da apanha da azeitona, ou se dirigem para
então um país diferente daquele que fora o trabalho; trabalho manual executado com
legado pela primeira metade do século: um os instrumentos tradicionais; a variedade
país já marcado pela industrialização, pelo do artesanato rural, em que quase se veem
robustecimento de novos serviços, pela crise os saberes que habitam os artesãos, e
e reconversão da agricultura. Neste último lhes permitem fazer os objetos que cada
âmbito, multiplicaram-se as marcas da fotografia revela; uma alusão aos rituais
modernidade, que se vinham insinuando e que acompanhavam os trabalhos agrícolas,
sobrepondo desde o século XIX, e que cada conseguida ao fixar a marcha de uma coluna
vez mais se encontravam, confrontavam, ou de vindimadores, cestos às costas, seguindo
venciam as tradições e os costumes. Toda o ritmo marcado pelo homem do acordeão;
uma cultura material e imaterial ia deixando motores a sangue, humanos e animais,

132
soldadura e o corte de madeira também não
se afiguram vetustos. Realce-se especialmente
a atenção que Artur Pastor concedeu aos
trabalhos de laboratório e aos ensaios de
campo, sinais inequívocos dos novos saberes
de uma agronomia científica e técnica. Aí se
encontram outras mulheres e outros homens,
formados pela ciência que se pretendia
difundir pelos campos, a exemplo do que se
vinha fazendo desde o século XIX.
Atenda-se, por último, às fotografias que
evidenciam o entrelaçamento possível das
tecnologias antigas e modernas que, por
comodidade analítica, se separaram. O adubo
em pó só pode ser considerado moderno,
…o velho processo de distribuir produtos com a mão não mas é a mão nua de uma mulher que o
resguardada podia ser aplicado ao adubo em pó, que bem espalha. À apanha da azeitona de grandes
representa o “novo” oliveiras, feita pelos tradicionais varejo e
Minho
[década de 1950] ripagem, sucede o fabrico do azeite numa
PT/AMLSB/ART/011198 oficina tecnológica que não é nada ancestral.
Debulhadoras fixas podem ainda ser tocadas
para trabalho e transporte, sem faltar a
por locomóveis a vapor, ou já por tratores.
vaca turina, assim distraída da sua função
Substituição e mistura de tecnologias velhas
leiteira; parte do circuito do leite, sem frio;
e novas marcam também a época, o que não
descortiçamento com os instrumentos do
escapou à objetiva do fotógrafo.
costume.
O “mundo novo”, contudo, já espreita: a
camioneta e o trator, que não tardarão
a dominar os campos; descobre-se uma
locomóvel a vapor, representativa da primeira
fase da substituição da energia animal pela
inanimada, e mais típica do século XIX; um
exemplar de turina, com todo o aspeto de
animal de leite, de rendimento porventura
ainda pouco notável, visto o volume do
úbere; alguns âmbitos do artesanato, como a

133
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Capítulo II.
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