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ANÁLISE DE POEMAS DE ÁLVARO DE CAMPOS

FASE DECADENTISTA

Opiário

Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro

É antes do ópio que a minh' alma é doente.


Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.


São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
Já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral


Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,


Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

(excerto)

Linhas de Leitura

 A nostalgia do além, sugerida pelas referências ao Oriente, traduzem a saturação ou a


incapacidade de integração na civilização ocidental e remetem o sujeito poético para um estado
de divagação alienante e um pessimismo desistente.

«Eu acho que não vale a pena ter ido ao Oriente e visto a índia e a China.»
«Volto à Europa descontente...»

 A evasão através do sonho, da evocação de espaços irreais ou inexistentes, é alternada pela


procura de sensações novas e extremas que só a embriaguez do ópio pode proporcionar. No
entanto, a falta de vontade e de energia interior parecem anular qualquer solução que este
pudesse representar.

«E eu vou buscar ao ópio que consola / Um Oriente...»


«Por isso eu torno ópio. É um remédio.»
«Qu' ria outro ópio mais forte...»
 O tédio, o cansaço, a apatia, a descrença e a morbidez do sujeito poético traduzem a sua
incapacidade de viver a vida, a inércia perante uma existência anuladora e monótona.

«...a minh' alma é doente.»


«Trabalhei para ter só o cansaço...»
«E a minha mágoa de viver persiste.»
«E ver passar a vida faz-me tédio.»
«Não tenho personalidade alguma.»

 A náusea e a demissão da vida, que marcam a poesia decadentista, representam também o


assumir de um fracasso pessoal.

«…isto acaba mal e há-de haver (...) sangue e um revólver lá pró fim...»
«Deixe-me estar aqui, nesta cadeira, / Até virem meter-me no caixão.»

Recursos expressivos

 A atitude irónica ou sarcástica:

«Nasci pra mandarim de condição, / Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.»


«Quantos sob a casaca característica / Não terão como eu horror à vida?»

 O vocabulário entre precioso e banal:

«Em paradoxo e incompetência astral.»


«...os próprios gozos gânglios do meu mal.»
«O comissário de bordo é velhaco! Viu-me coa sueca...»
«Que um raio as parta!»

 As imagens e os símbolos:

«Um Oriente ao Oriente do Oriente.»


«...vincos de ouro...»
«...minha vida, cânfora na aurora.»
«O absurdo, como uma flor da tal índia...»
FASE FUTURISTA / SENSACIONISTA

Ode Triunfal

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica


Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!


Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -


Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro -
Porque o presente é todo o passado e o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro de Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!


Ser completo como uma máquina!

(excerto)

Linhas de Leitura

IMPORTÂNCIA DO TÍTULO

A palavra ode, de origem grega, significa cântico laudatório ou de exaltação de uma pessoa,
instituição ou acontecimento. Com o epíteto de Triunfal, pretendeu o poeta não só vincar, mas
também hiperbolizar o significado de ode, apontando para qualquer coisa de grandioso, não
apenas no conteúdo, mas também na forma, imprimindo-lhe uma sugestão de força ou exagero,
em nítida coerência com a estética do Futurismo / Sensacionismo.

ASSUNTO

Sob influência de Marinetti e Walt Whitman, a Ode Triunfal canta o triunfo da técnica, as
máquinas, os motores, a velocidade, a civilização mecânica e industrial, o comércio, os
escândalos da contemporaneidade... Sentir tudo de todas as maneiras é o ideal esfuziantemente
revelado pelo sujeito poético, sentir tudo numa histeria de sensações, que lhe permitam
identificar-se com as coisas mais aberrantes («Ah, poder exprimir-me todo como um motor se
exprime!/ Ser completo como uma máquina!»).

DESENVOLVIMENTO DO ASSUNTO

A exaltação da civilização moderna

O poema começa com uma estranha iluminação de lâmpadas eléctricas. Despertando em


sobressalto e em sonhos febris, o sujeito poético reconhece-se transportado para o meio de uma
fábrica em actividade. O homem adoentado, enfraquecido pela febre, exposto a estes barulhos,
é subitamente arrebatado pelas oscilações dos motores e a sua cabeça abrasada começa a vibrar
também. Diante dos seus olhos acumula-se uma multiplicidade de impressões e todos os seus
sentidos estão despertos: «Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, / De vos ouvir
demasiadamente perto, / E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso / De
expressão de todas as minhas sensações...».
A fábrica aparece então como motivo inspirador para a homenagem a esta civilização moderna,
que submerge o eu poético, nevrótico e fragilizado («tenho febre»; «fúria fora e dentro de
mim», «meus nervos», «arde-me a cabeça»). É este universo de «lâmpadas eléctricas», «rodas»,
«engrenagens», «máquinas», «correias de transmissão», «êmbolos» e «volantes» que o faz
sentir-se simultaneamente incomodado e atraído pela ruidosa dinâmica dos «maquinismos em
fúria».

A vertigem das sensações

Estabelecendo com esta «flora estupenda, negra, artificial e insaciável» uma ligação eufórica e
exaltada, o sujeito poético deixa-se seduzir vertiginosamente por um excesso de sensações que
mal tem tempo de fixar na sua «mente turbulenta e encandescida». Sente-se arrebatado por um
universo, onde a velocidade, a força e o progresso têm expressão e, por isso, confessa: «Nem sei
se existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me. / Eia! sou o calor mecânico e a
electricidade!». A violência de sensações fá-lo desejar «ser toda a gente e toda a parte» e
limitar a si próprio e ao gozo do instante qualquer noção de temporalidade («O Momento
estridentemente ruidoso e mecânico....»).

A temporalidade unificada

O fulcro do tempo é, assim, o presente, o instante em que o sujeito poético se mostra


permeável a todos os estímulos da civilização mecânica e industrial, porque o presente é uma
síntese do passado e do futuro («Porque o presente é todo o passado e todo o futuro...»; «Eia
todo o passado dentro do presente! / Eia todo o futuro já dentro de nós!»).
A atracção erótica pelas máquinas

Esta visão excessiva e intensa do real provoca no sujeito poético um estado de quase
alucinação, marcadamente sensual: «Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só
carícia à alma.»; «Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,/ Rasgar-me todo,
abrir-me completamente...»; «Amo-vos carnivoramente,/ Pervertidamente...»; «Possuo-vos
como a uma mulher bela...». Esta paixão quase erótica pelas máquinas e este entusiasmo pela
civilização moderna assume aspectos de um certo masoquismo sádico, que inspira no sujeito
poético sensações novas e violentas, experimentadas até ao histerismo: «Atirem-me para dentro
das fornalhas! / Metam-me debaixo dos comboios! / Espanquem-me a bordo de navios! /
Masoquismo através de maquinismos!».
Não é estranha, por isso, não só a tendência do sujeito poético para humanizar as máquinas
(«Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!»; «Grandes trópicos humanos de ferro e fogo
e força...»), como também a tentativa de ele próprio se materializar, ou tornar-se parte delas:
«Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! / Ser completo como uma máquina!»;
«Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando...».

A denúncia social

Convém registar ainda que a força e a agressividade do sujeito poético são permanentemente
quebradas pela evocação irónica do reverso da medalha da civilização industrial: a
desumanização («Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!»; «...injustiças,
violências...»), a hipocrisia e a futilidade («...ó grandes, banais, úteis, inúteis, / Ó coisas todas
modernas...»), a corrupção, os escândalos políticos e financeiros («Orçamentos falsificados!»;
«Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos...»), os falhanços da técnica («Eh-lá grandes
desastres de comboios! / Eh-lá desabamentos de galerias de minas!»), a miséria e a devassidão
das multidões («Maravilhosa gente humana que vive como cães, / Que está abaixo de todos os
sistemas morais...»).
A aguda sensibilidade do sujeito poético revelada na denúncia do lado negativo e desumano da
civilização moderna é uma atitude literária, em que a perfeição e a força das máquinas
parecem ser, afinal, compensações para os seus próprios fracassos e para a sua inadaptação,
que irão marcar a última fase poética de Álvaro de Campos.

Recursos expressivos

O estilo vagabundo, paradoxal e vertiginoso deste heterónimo traduz a expressão desmedida de


sensações desmedidas. À convulsa avalanche do pensamento sensacionista, corresponde a
vertigem de um estilo caudaloso, torrencial e aparentemente caótico. O poema constitui, por
isso, uma ruptura com a lírica tradicional, como o confirmam os seguintes aspectos:
- a irregularidade estrófica, métrica e rimática, que resulta num ritmo irregular e nervoso;
- a presença de alguns desvios sintácticos («..fera para a beleza disto...»; «Por todos os meus
nervos dissecados fora...»);
- a frequência das expressões exclamativas que sublinham a emoção do sujeito perante os
fenómenos da vida moderna;
- as repetições, as enumerações e as onomatopeias que constituem um processo retórico
aparentemente caótico que se destina a esgotar a expressão, num estilo torrencial, em
catadupa;
- o recurso a palavras desprovidas de carga poética e de índole técnica;

As metáforas e as imagens deste texto evidenciam a íntima relação do sujeito poético com o
mundo mecânico e industrial, permitindo até a sua plena integração na civilização moderna («E
arde-me a cabeça...»; «...Natureza tropical...»; «Pervertidamente enroscando a minha
vista...»; «Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força...»; «E há Platão e Virgílio dentro
das máquinas e das luzes eléctricas...»);
As enumerações traduzem o frenético desejo do sujeito poético de sentir tudo de todas as
maneiras, registando de forma aparentemente caótica as sensações que experimenta («Desta
flora estupenda, negra, artificial e insaciável!»; «Eh, cimento armado, betão de cimento, novos
processos!»).

As anáforas expressam a sucessão caótica dos fenómenos da civilização industrial, permitindo ao


sujeito poético acompanhar o seu ritmo alucinante e vigoroso («Por todos os meus nervos (...)
Por todas as papilas...»; «Poder ir na vida triunfante (...) Poder ao menos penetrar-me...»; «Ó
coisas todas modernas, / Ó minhas contemporâneas...» );

Os neologismos («parte-agente»; «quase-silêncio») e os estrangeirismos («music-halls»; «Luna-


Parks»; «rails») traduzem a ligação do sujeito poético às inovações da modernidade e à
universalidade do progresso técnico, assim como o vocabulário de carácter técnico («motores»;
«fornalhas»; «guindastes»; «êmbolos»);

A adjectivação traduz o excesso de sensações que dominam o sujeito perante a modernidade


(«flora estupenda, negra, artificial e insaciável»; «promíscua fúria»; «rodar férreo e
cosmopolita»; «giro lúbrico e lento»; «quase-silêncio ciciante e monótono»);

Os advérbios de modo evidenciam a atracção erótica e carnal do sujeito pelas máquinas e pela
modernidade («demasiadamente»; «carnivoramente»; «pervertidamente»); As interjeições
confirmam o louvor do sujeito poético à civilização mecânica e a sua contínua agitação («Ó
fábricas, ó laboratórios...»; «Eh-lá hô fachadas das grandes lojas!»; «Eia túneis...»; «Ah, poder
exprimir-me...);

As onomatopeias sugerem a tentativa do sujeito poético de imitar os sons ruidosos das


máquinas, exprimindo assim o barulho e a velocidade estonteantes da vida moderna («r-r-rr»;
«Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô»; «z-z-z-z-z-z-z»);

As apóstrofes confirmam o estilo laudatório do poema e a exaltação da civilização industrial («Ó


rodas, ó engrenagens...»; «Ó fazendas nas montras! Ó manequins!»), tal como as exclamações
(«Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!; «Ser completo como uma máquina!»).
FASE INTIMISTA

Não, não é cansaço...

Não, não é cansaço...


É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...


É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Com tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço porquê?


É uma sensação abstracta
Da vida concreta –
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,


Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.


Confesso: é cansaço!...

Álvaro de Campos, in Poesias, Ed. Ática


Linhas temáticas

PERCURSO EMOCIONAL DO SUJEITO POÉTICO

Nesta composição lírica, sujeito poético afirma no primeiro verso que não é cansaço aquilo que
sente, reiterando essa afirmação ao longo do poema. No entanto, e talvez um pouco
paradoxalmente, refere que a desilusão se lhe “entranha na espécie de pensar”, sublinha a
monotonia da vida (“é a mesma coisa variada em cópias iguais”), exprime a angústia perante o
mistério e a indefinição que perpassam nesse “falso cansaço”; finalmente aceita que, “porque
ouve e vê”, o estado em que se encontra é de cansaço: “Confesso: é cansaço!...” Assim, pode-
se afirmar que, progressivamente, o sujeito poético se deixa dominar por uma letargia, um
estado de cansaço e desistência, que o afasta do mundo.

RELAÇÃO ENTRE O SUJEITO, O MUNDO E OS OUTROS

Há entre o sujeito poético, os outros e o mundo um distanciamento, decorrente da incapacidade


de relação; o único ponto comum é o facto de todos existirem: “É eu estar existindo/ E também
o mundo”. Os outros, os “cegos que cantam na rua”, são apenas aqueles que o sujeito poético
observa, mas com quem não se relaciona.

IMPORTÂNCIA SIMBÓLICA DOS PARÊNTESES

Do ponto de vista simbólico, os parênteses constituem um momento em que o sujeito poético


abandona o tom reflexivo, se volta para o exterior e o vê como um “formidável realejo”. Os
parênteses são como que um oásis num texto de características claramente negativas, uma vez
que é o próprio sujeito poético que lhes confere uma conotação positiva. Simbolicamente,
poder-se-ia afirmar que a felicidade só é possível para quem é “cego”, ou seja, para quem não
vê a verdadeira realidade do mundo.

FASE POÉTICA

Este poema integra-se na fase abúlica de Álvaro de Campos, pelo que revela de incapacidade de
viver a vida, pelo que transmite de tédio, de uma certa desistência perante o mundo e os
outros. Nada motiva o sujeito poético, nada lhe interessa, tudo se resume a um “supremíssimo
cansaço”.

Recursos expressivos

A primeira estrofe inicia-se com a repetição do advérbio de negação “não” empregue numa
frase reticente, o que revela uma certa indefinição. O discurso assume um tom claramente
metafórico (“…domingo às avessas/Do sentimento, /Um feriado passado no abismo...”),
terminando a estrofe também com uma frase reticente. O conjunto destes recursos expressivos,
aliado à repetição anafórica presente nos versos dois e quatro, traduz a tentativa de definir o
estado de espírito que domina o sujeito poético.

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