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Teoria do Poema – Atividade Avaliativa II: análise de ‘Versos à boca da noite’, de Carlos

Drummond de Andrade

Título: Ânsia

Aluno: Bruno Radner Bezerra de Oliveira

Versos à Boca da Noite é um poema composto pelo poeta modernista Carlos


Drummond de Andrade e originalmente publicado em seu livro A Rosa do Povo pela Editora
José Olympio, em 1945. O poeta é frequentemente associado à segunda geração modernista e
à altura da publicação desta obra o mundo enfrentava as incertezas e conflitos gerados pelos
momentos finais da Segunda Guerra Mundial, fato que também influenciou sua temática.

O poema em questão passa uma forte impressão de angústia pessoal. O eu lírico parece
estar inserido num contexto de vida em que os efeitos da idade já se configuram uma
preocupação assídua, reiteradas pelas imagens de impossibilidade de concretizar atos banais
que não seriam problema antes. Ele nos mostra estar consciente de que se encontra num
momento limítrofe da vida, no qual os próximos passos conduzirão cada vez mais a essa
imobilidade, esse impasse entre o desejo de fazer coisas relacionadas aos seus anos mais
vigorosos e a inércia de assistir seu corpo impotente, seja por questões físicas, seja pelas suas
obrigações diárias, ou seja pela distância temporal das coisas que não existem mais para ele .
Assim, o sentimento que permeia o poema é o de aflição, não uma aflição desmesurada, mas
aquela cotidiana e silenciosa que é quase sempre reprimida por nossas amarras sociais.
Passadas as primeiras impressões, vamos seguir com uma análise mais técnica.

Como explana Candido (1985, p.77), partimos da estrutura para tentar alcançar o seu
significado. Desse modo, verificamos que o poema está assim estruturado: são 16 quartetos,
ou seja, estrofes de quatro versos agrupados, e um único verso solitário, totalizando o
montante de 65 versos. A maioria apresenta pontuação final, sendo que esta varia entre pausas
breves, longas, exclamações e interrogações, e há apenas um verso terminado em reticências
(verso 2) e dois versos entre parênteses (31-32). O poema não apresenta estribilho, isto é,
versos que se repetem em uma frequência marcada com efeito de memorização (RIBEIRO
NETO, 2014). Também há forte presença do enjambement que, segundo Ribeiro Neto (2014,
p. 40), é “a continuação sintática, semântica e rítmica no verso seguinte”, como em, por
exemplo, “Sinto que o tempo sobre mim abate / sua mão pesada”.
Quanto à escansão, observamos que o poema apresenta versos de tamanhos variados.
Na primeira estrofe encontramos versos de 10 sílabas poéticas, também chamados versos
decassílabos, como em:

Sin to queo tem po so bre mim a ba te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

junto a versos de outros tamanhos, como os de 11 sílabas (hendecassílabos) da segunda


estrofe:

Es cre ve rei so ne tos de ma du re za?

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

e há ainda a ocorrência de versos os eneassílabos (9 sílabas poéticas):

via gens, fur tos, al tas so li dõ es

1 2 3 4 5 6 7 8 9

e de versos alexandrinos, os assim chamados aqueles de 12 sílabas:

A cre di ta reiem mi tos? Zom ba rei do mun do?

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

A predominância dos versos se assenta na métrica decassílaba com uma variação entre
os de 9 ou 11. Este esquema de versos de dez sílabas, conforme Ribeiro Neto (2014), goza de
uma forte presença sonora, sendo largamente utilizado no soneto por esta caraterística.
Entretanto, este não é o caso do modelo adotado por Drummond. Observamos que a
organização geral centra-se em torno do decassílabo, mas que não há emprego de uma forma
rígida, fixa. Drummond trabalha uma forma própria de composição afastando-se das formas
fixas consagradas, uma característica típica dos modernistas. Vejamos a escansão de uma
estrofe:

e fi cai ner te, zo na de de se jo

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

se la da por ar bus tos a gre ssi vos.


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

(Um ho mem se con tem pla sem a mor,

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

se des pe sem qual quer cu rio si da de).

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Quanto à estrofação, podemos observar que a quase totalidade do poema é constituída


de quartetos ou quadras, que são agrupamentos de 4 versos dispostos em conjunto,
acontecendo de apenas o último verso aparecer solitário. Tavares (2005, p. 35) observa que a
quadra é a forma mais presente na cultura popular, notadamente por sua fácil entoação, mas
esta não é a que Drummond emprega. É possível traçar um paralelo entre o modelo clássico e
a do poema, ainda que distante, quando se percebe que o quarteto de Drummond guarda
marcações de uma oralidade, quase como uma espécie de monólogo recitado. Esse formato,
aliado ao verso decassílabo predominante, produz uma certa cadência latente.

Quanto às rimas, estas se distribuem entre rimas órfãs, que não acham
correspondentes, e rimas toantes. Este último tipo é aquele que, segundo Tavares (2005), “não
exige igualdade total de sons”. Precisamente, são rimas que se formam a partir da sua vogal
tônica, somente. Aparecem ao longo do poema como em “abate” (verso 1) e “calva” (verso
2), “atormentava” (10) e “salta” (11), “ironia” (17) e “vida” (19). Também percebemos
acontecer as chamadas rimas internas, ocorrendo esporadicamente como em “indecisão”
(verso 25) e “mão” (verso 27), “tempo” (41) e “sortimento” (42). Observa-se também que não
há um aparelhamento de rimas externas em que se possa estabelecer uma estrutura, pois as
poucas ocorrências são bastante ocasionais. Destarte, é notório que o poema se configura sob
o aspecto de versos brancos, marca indelével da estética modernista.

Vejamos o aspecto da pontuação e outros elementos gramaticais. Observemos que o


poema divide-se em duas instâncias: da primeira até a metade da oitava estrofe, o eu lírico
expressa-se ativamente, coloca-se em cena, fala de si mesmo. Verbos flexionam na primeira
pessoa do singular (“sinto”, “escreverei”, “serei”, “darei”, “suspeitei”, “vejo”) tanto quanto
pronomes possessivos (“minha”, “meu”). A partir da segunda metade da oitava estrofe,
marcada pelo uso dos parênteses, [(Um homem se contempla sem amor / se despe sem
qualquer curiosidade)], a perspectiva muda: o eu lírico passa a se referenciar como um
terceiro, como se fosse visto de fora, um objeto refletido como sugere essa contemplação. O
uso dos parênteses é um recurso que introduz uma explicação, um complemento à sequência
lógica do texto, e Drummond o utiliza no poema para marcar a transição desse ponto de vista:
agora fala ao seu reflexo. Evidenciamos esta ruptura no decorrer da segunda metade do poema
ao nos depararmos com flexões na segunda pessoa (“visitar-te”, “que miras”, “pedaço de ti”,
“te recuses”, “não saibas”). Já não nos fala diretamente e vemos o monólogo ganhar
contornos de diálogo, pois a primeira e a segunda pessoa agora estão presentes.

Um outro ponto que nos salta aos nossos olhos é a questão da segunda estrofe estar
completamente marcada pelo sinal de interrogação, presente em todos os seus versos; é como
se o eu lírico rondasse em círculos a procura de respostas para as quais não há saídas fáceis.
Efeito semelhante está marcado na décima segunda estrofe, porém, a forma com que são
feitas difere grandemente. Notemos que na primeira vez em que estas interrogações ocorrem,
na segunda estrofe, o eu lírico expressa-se na voz ativa, sabemos que é ele quem diretamente
se inquieta. Tratam-se de questões para além do entendimento do interlocutor, questões que
somente o eu lírico poderia responder a si mesmo, e outras que somente o tempo vindouro
pode certificar. Já na segunda ocasião, o eu lírico indaga ao seu reflexo coisas diferentes:
possibilidades talvez nunca realizadas, desejos antigos reprimidos... Há de se tomar nota ainda
do uso do ponto exclamativo: no décimo terceiro verso (Mas se eu pudesse recomeçar o dia!)
e nos versos 53 e 54 (Mas que confusão de coisas ao crepúsculo! Que riqueza!). Na primeira
ocorrência deste, há claramente um tom lamentoso, como de remorso; o eu lírico, falando de
si mesmo, almeja retornar a uma situação pretérita, mudar o curso de suas ações; na segunda
ocorrência, o eu lírico falando para si muda o tom do discurso e demonstra êxtase diante de
uma nova possibilidade à sua frente. A pontuação neste poema de Drummond aparece para
sugerir mudanças de atitudes do eu lírico em relação a si mesmo.

Observemos as figuras de linguagem: já na primeira estrofe o tempo aparece como


uma entidade personificada (“sobre mim abate sua pesada mão”), denotando, assim, que o eu
lírico tem muito pouco controle sobre o momento da vida em que se encontra e parece
resignar-se a aceitar a vontade imperiosa desse ser maior que ele (o tempo). Esta percepção
que o tempo é inexorável se prolonga no decorrer do poema (“o velho em mim”, “nenhum
menino salta de minha vida”, “vejo tudo impossível e nítido”) e a consciência de que o corpo
já perde o vigor, restando-lhe apenas lembranças de desejos (“fica inerte, zona de desejo
selada por arbustos agressivos”). Outra figura de linguagem bastante evidente é o assíndeto,
que dá a impressão de que o eu lírico estava a enumerar itens numa lista, rabiscando um
recado, um roteiro de coisas a fazer (“rugas, dentes, calva”, “viagens, furtos, altas solidões”,
“uma ordem, uma luz, uma alegria”), talvez por causa da memória fugidia, talvez até pelo
excesso dela. Nota-se também ocorrência de metáforas de expressivo significado, como a
encontrada no verso “Que confusão de coisas ao crepúsculo!”. Aqui se pode inferir que este
“crepúsculo” seja como o ato final da peça da vida, o apagar lento das luzes; o eu lírico se
mostra estupefato porque não esperava que houvesse ainda tantos arranjos e desarranjos em
um momento que ele julgava derradeiro.

No poema predomina o elemento poundiano da logopedia que, segundo Tavares


(2005, p. 22) é aquele que reproduz “com palavras as emoções mais complicadas que
sentimos ou que podemos imaginar alguém sentindo.”. Drummond se vale de intrincadas
combinações semânticas para expressar a angústia intermitente do eu lírico, angústia essa de
saber que suas melhores horas já se caminham para o desfecho, angústia de viver numa época
turbulenta e que as possibilidades são restritas, angústia de rever decisões passadas e mesmo a
indecisão que o conduziu ao seu estado atual das coisas. A estrutura do poema auxilia na
acepção desse sentimento, mas não diz tudo por si só: os versos decassílabos dispostos em
quartetos sugerem uma leitura compassada, cadenciada, juntamente com a disposição em
enjambement que complementa a cadeia de pensamento no verso seguinte, produzem uma
medida textual aproximada do discurso, da digressão, do manifesto. Eis um homem expondo
seus percalços de trajeto, sua pequenez diante das inglórias da vida, seu ímpeto de romper o
sufoco cotidiano, suas ânsias, tais quais aquelas que sentimos à boca do estômago.

REFERÊNCIAS:

ANDRADE, Carlos Drummond. Versos à boca da noite, in: A rosa do povo. Rio de Janeiro:
Record, 2006.

CANDIDO, Antônio. Na sala de aula: caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 1985.

RIBEIRO NETO, Amador. A linguagem da poesia. João Pessoa: Ed. da UFPB, 2014.

TAVARES, Bráulio. Contando histórias em versos: poesia e romanceiro popular no Brasil.


São Paulo: Ed. 34, 2005.

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