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Drummond de Andrade
Título: Ânsia
O poema em questão passa uma forte impressão de angústia pessoal. O eu lírico parece
estar inserido num contexto de vida em que os efeitos da idade já se configuram uma
preocupação assídua, reiteradas pelas imagens de impossibilidade de concretizar atos banais
que não seriam problema antes. Ele nos mostra estar consciente de que se encontra num
momento limítrofe da vida, no qual os próximos passos conduzirão cada vez mais a essa
imobilidade, esse impasse entre o desejo de fazer coisas relacionadas aos seus anos mais
vigorosos e a inércia de assistir seu corpo impotente, seja por questões físicas, seja pelas suas
obrigações diárias, ou seja pela distância temporal das coisas que não existem mais para ele .
Assim, o sentimento que permeia o poema é o de aflição, não uma aflição desmesurada, mas
aquela cotidiana e silenciosa que é quase sempre reprimida por nossas amarras sociais.
Passadas as primeiras impressões, vamos seguir com uma análise mais técnica.
Como explana Candido (1985, p.77), partimos da estrutura para tentar alcançar o seu
significado. Desse modo, verificamos que o poema está assim estruturado: são 16 quartetos,
ou seja, estrofes de quatro versos agrupados, e um único verso solitário, totalizando o
montante de 65 versos. A maioria apresenta pontuação final, sendo que esta varia entre pausas
breves, longas, exclamações e interrogações, e há apenas um verso terminado em reticências
(verso 2) e dois versos entre parênteses (31-32). O poema não apresenta estribilho, isto é,
versos que se repetem em uma frequência marcada com efeito de memorização (RIBEIRO
NETO, 2014). Também há forte presença do enjambement que, segundo Ribeiro Neto (2014,
p. 40), é “a continuação sintática, semântica e rítmica no verso seguinte”, como em, por
exemplo, “Sinto que o tempo sobre mim abate / sua mão pesada”.
Quanto à escansão, observamos que o poema apresenta versos de tamanhos variados.
Na primeira estrofe encontramos versos de 10 sílabas poéticas, também chamados versos
decassílabos, como em:
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
1 2 3 4 5 6 7 8 9
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
A predominância dos versos se assenta na métrica decassílaba com uma variação entre
os de 9 ou 11. Este esquema de versos de dez sílabas, conforme Ribeiro Neto (2014), goza de
uma forte presença sonora, sendo largamente utilizado no soneto por esta caraterística.
Entretanto, este não é o caso do modelo adotado por Drummond. Observamos que a
organização geral centra-se em torno do decassílabo, mas que não há emprego de uma forma
rígida, fixa. Drummond trabalha uma forma própria de composição afastando-se das formas
fixas consagradas, uma característica típica dos modernistas. Vejamos a escansão de uma
estrofe:
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Quanto às rimas, estas se distribuem entre rimas órfãs, que não acham
correspondentes, e rimas toantes. Este último tipo é aquele que, segundo Tavares (2005), “não
exige igualdade total de sons”. Precisamente, são rimas que se formam a partir da sua vogal
tônica, somente. Aparecem ao longo do poema como em “abate” (verso 1) e “calva” (verso
2), “atormentava” (10) e “salta” (11), “ironia” (17) e “vida” (19). Também percebemos
acontecer as chamadas rimas internas, ocorrendo esporadicamente como em “indecisão”
(verso 25) e “mão” (verso 27), “tempo” (41) e “sortimento” (42). Observa-se também que não
há um aparelhamento de rimas externas em que se possa estabelecer uma estrutura, pois as
poucas ocorrências são bastante ocasionais. Destarte, é notório que o poema se configura sob
o aspecto de versos brancos, marca indelével da estética modernista.
Um outro ponto que nos salta aos nossos olhos é a questão da segunda estrofe estar
completamente marcada pelo sinal de interrogação, presente em todos os seus versos; é como
se o eu lírico rondasse em círculos a procura de respostas para as quais não há saídas fáceis.
Efeito semelhante está marcado na décima segunda estrofe, porém, a forma com que são
feitas difere grandemente. Notemos que na primeira vez em que estas interrogações ocorrem,
na segunda estrofe, o eu lírico expressa-se na voz ativa, sabemos que é ele quem diretamente
se inquieta. Tratam-se de questões para além do entendimento do interlocutor, questões que
somente o eu lírico poderia responder a si mesmo, e outras que somente o tempo vindouro
pode certificar. Já na segunda ocasião, o eu lírico indaga ao seu reflexo coisas diferentes:
possibilidades talvez nunca realizadas, desejos antigos reprimidos... Há de se tomar nota ainda
do uso do ponto exclamativo: no décimo terceiro verso (Mas se eu pudesse recomeçar o dia!)
e nos versos 53 e 54 (Mas que confusão de coisas ao crepúsculo! Que riqueza!). Na primeira
ocorrência deste, há claramente um tom lamentoso, como de remorso; o eu lírico, falando de
si mesmo, almeja retornar a uma situação pretérita, mudar o curso de suas ações; na segunda
ocorrência, o eu lírico falando para si muda o tom do discurso e demonstra êxtase diante de
uma nova possibilidade à sua frente. A pontuação neste poema de Drummond aparece para
sugerir mudanças de atitudes do eu lírico em relação a si mesmo.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Carlos Drummond. Versos à boca da noite, in: A rosa do povo. Rio de Janeiro:
Record, 2006.
CANDIDO, Antônio. Na sala de aula: caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 1985.
RIBEIRO NETO, Amador. A linguagem da poesia. João Pessoa: Ed. da UFPB, 2014.