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VITÓRIA ROJAS GOUVEIA - Nº USP 13654442

EDUCAÇÃO EM TRANSFORMAÇÃO:
UMA APOLOGIA À ESCOLA VELHA

Trabalho apresentado à disciplina de Constituição


da Subjetividade: Infância e Adolescência - EDF
1223 da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo.

Docente: Douglas Emiliano Batista

SÃO PAULO
2023
“A fim de evitar mal-entendidos: parece-me que o conservadorismo,
no sentido de conservação, faz parte da essência educacional, cuja
tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa – a criança contra o
mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o velho, o velho
contra o novo [...]. Mas isso permanece válido apenas no âmbito da
educação, ou melhor, nas relações entre adultos e crianças, e não
no âmbito da política, onde agimos em meio a adultos e com iguais.
Tal atitude conservadora, em política – aceitando o mundo como ele
é, procurando somente preservar o status quo –, não pode senão
levar à destruição, visto que o mundo, tanto no todo como em parte,
é irrevogavelmente fadado à ruína pelo tempo, a menos que existam
seres humanos determinados a intervir, a alterar, a criar aquilo que é
novo”.

Hannah Arendt
INTRODUÇÃO

Nos domínios tanto acadêmico quanto profissional da educação, as


chamadas “novas pedagogias” têm sido objeto de grande entusiasmo, ocupando um
lugar proeminente nas discussões, principalmente por representarem, na ótica dos
seus apoiadores, uma forma de combate às opressões praticadas na escola.
Entretanto, essas abordagens não são isentas de críticas, muitas das quais
questionam seus impactos potencialmente prejudiciais e de reverberação social e
até mesmo política.
A filósofa política alemã Hannah Arendt (1906-1975) e o filósofo francês
Dany-Robert Dufour (1947- ) se destacam entre os mais contundentes críticos
dessa escola de pensamento. Este trabalho pretende, através da articulação entre
as ideias desses dois autores, oferecer um panorama abrangente do discurso
pedagógico pós-moderno, além de contrastá-lo com sua contraparte na pedagogia
tradicional, enriquecendo o entendimento das complexidades inerentes a essas
divergentes abordagens educacionais.
EDUCAÇÃO EM TRANSFORMAÇÃO:
UMA APOLOGIA À ESCOLA VELHA

Em 1976, na cidade de Santo Tirso, Portugal, desponta uma empreitada


pedagógica revolucionária. Fundamentada nas pedagogias de Célestin Freinet,
John Dewey e Paulo Freire, a Escola da Ponte implementa um projeto que desafia
os paradigmas da escola tradicional, adotando uma abordagem que prioriza a
autonomia e a consciência cívica dos alunos em detrimento do ensino de
conteúdos. Rapidamente, seus ideais e práticas pioneiros proliferam-se para outras
localidades, conquistando notoriedade internacional.
No Brasil, a partir da década de 90, multiplicam-se as instituições de ensino
inspiradas nesse modelo, a exemplo da EMEF Desembargador Amorim Lima, em
São Paulo, a EM André Urani, no Rio de Janeiro, e a E.M. Sebastiana Luiza de
Oliveira Prado, em Ubatuba. O documentário brasileiro Quando sinto que aprendi,
de 2014, entrevista educadores, gestores e alunos dessas escolas, destacando
suas práticas inovadoras.
Pautadas na pedagogia de projetos, na formação de grupos de trabalho
multi-etários, no livre trânsito pelos espaços da escola, no envolvimento ativo da
comunidade e na autonomia da aprendizagem - os alunos escolhem o que fazer,
quando fazer - essas escolas emergem como a potencial solução para a apatia
estudantil, já que esse modelo permite que as crianças aprendam brincando,
participem ativamente das tomadas de decisão e sejam protagonistas da própria
aprendizagem.
Nessas escolas as aulas não seguem o tradicional modelo expositivo - o
professor é deslocado da posição de detentor exclusivo do conhecimento,
assumindo a função de provocador da ação dos estudantes. Também de mentor,
terapeuta, e - porque não - de colega de aprendizagem. Afinal de contas, ali os
saberes trazidos pelas crianças são valorizados, e o conhecimento é construído
coletivamente em uma relação pedagógica horizontalizada, em oposição ao modelo
de educação bancária de Freire. Prioriza-se o aprender fazendo, ou seja, a
capacitação do aluno-pesquisador de produzir saber ao invés de recebê-lo “pronto”.
Embora instituições de ensino inspiradas na Escola da Ponte particularmente
pratiquem a radicalização do movimento da escola moderna, não são as únicas
influenciadas por ele. Em todo o Ocidente, observa-se uma crescente tendência em
direção às novas pedagogias centradas na criança, adaptadas às necessidades,
interesses e aptidões do aluno do século XXI.

Da ponte pra cá ou como ensinar crianças que não querem aprender

Em Análise terminável e interminável (1937), Freud posiciona a educação ao


lado da análise e do governo como ofícios impossíveis, apontando para as
dificuldades inerentes à tentativa de formar, liderar ou curar a mente humana.
Educar a mente de uma criança implica em persuadi-la a renunciar à urgência das
pulsões, tarefa que os professores bem sabem nunca estar efetivamente completa.
Pode soar absurdo a quem tenha alguma intimidade com a natureza da infância e
da adolescência exigir que os alunos espontaneamente renunciem ao lazer em
nome do estudar, mas é isso que algumas escolas auto proclamadas progressistas
sugerem ao depositar no aluno uma grande parcela de responsabilidade pela
própria aprendizagem. A garantia do acesso à educação, que na escola tradicional é
observada pelos adultos, agora precisa ser conquistada pelas crianças através dos
recursos mais limitados de que dispõem.
À medida que a escola percebe incombatíveis as pulsões infantis, ela
incorpora essas atividades espontâneas como objetivos, relegando o ensino de
conhecimentos a um segundo plano e prezando pela “[...] diluição, levada tão longe
quanto possível, da distinção entre brinquedo e trabalho – em favor do primeiro”
(ARENDT, 2000, p.232). Nesse sentido, a escola se rende à impossibilidade de
educar.
Assim se configura a renúncia da geração precedente em se responsabilizar
tanto pela educação dos recém-chegados quanto pelos rumos do mundo
pré-estabelecido, denunciada por Arendt em A crise da educação. Essa crítica é
ecoada por Dufour em O homo zappiens na escola: a negação da diferença
geracional. Dela resulta

[...] o sujeito ‘pós moderno’, entregue a si mesmo, sem anterioridade


nem finalidade, aberto apenas para o aqui-e-agora, conectando tão
bem quanto mal as peças de sua pequena maquinaria desejante nos
fluxos que a atravessam (DUFOUR, 2005, p. 119).

É claro que essa postura é adotada pelas novas escolas na mais boa
intenção de zelar pelo bem estar da criança. Ela contempla a crítica emergente a
um mundo “adultocêntrico”, onde a criança é vista como um ser incompleto, e a
infância, como um período de transição. Isso repercute diretamente nos propósitos
assumidas pela escola, que se afasta da função de preparar o infante para a
maturidade para se tornar um lugar destinado à permanência e ao pleno exercício
da própria infância:

Aquilo que, por excelência, deveria preparar a criança para o mundo


dos adultos, o hábito gradualmente adquirido de trabalhar e de não
brincar, é extinto em favor da autonomia do mundo da infância
(ARENDT, 2000, p.233).

Nessa escola que se configura não como uma formação para a vida, mas sim
como a vida per se, as crianças exercem seu modo de viver infantil, sem que haja
interferência dos adultos no sentido de condicioná-las a um vir a ser adulto.
Admitindo-se o pressuposto montessoriano de que a criança tende ao aprendizado,
essa educação permite que as crianças explorem seus interesses
espontaneamente, libertas das obrigações impostas por uma escola outrora
autoritária. Segundo Dufour, ao contrário de endossar a democracia, isso resulta em
sujeitos suscetíveis justamente ao autoritarismo. (2005, p.137). Nesse ponto ele
novamente converge com Arendt, que argumenta que a formação de uma
sociedade infantil autônoma na escola resulta em uma tirania da maioria (2000, p.
229-230).
E qual a postura esperada do educador diante do autogoverno da infância na
escola? Resta a ele a incumbência de ensinar a aprender, mostrar aos alunos como
o conhecimento é produzido e incentivá-los a buscá-lo por conta própria, em lugar
de transmiti-lo. Assim, torna-se dispensável a expertise em qualquer assunto que
não a própria ciência da educação. Essa circunstância chega mesmo ao âmbito da
formação de professores, provocando a defasagem do domínio das disciplinas
curriculares e formando professores que não são mestres em seus campos.
(DUFOUR, 2005, p.231).
O abuso das “próteses sensoriais”

Um dos mais frequentes argumentos utilizado para justificar o discurso


pedagógico pós-moderno é que o “aluno do século XXI” não quer ou não consegue
adaptar-se ao modo tradicional de aprender, o que não deixa de ser um fato
evidente para a maioria das crianças e jovens. No lugar de tomá-lo como sintoma de
uma grave defasagem que a escola deveria empenhar-se em corrigir, essa
circunstância é encarada como indicativo de que o ensino tornou-se obsoleto e
precisa adaptar-se às mudanças trazidas pela nova geração. Arendt refuta a
viabilidade dessa adequação, alegando que as transformações em questão são
imprevisíveis para a geração precedente. Qualquer esforço de antecipá-las resulta,
segundo ela, na imposição de um paradigma anterior aos alunos:

Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em


cada criança é que a educação precisa ser conservadora; ela deve
preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um
mundo velho, que, por mais revolucionário que possa ser em suas
ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e
rente à destruição (2000, p.243)

É também sob esse argumento que se procura justificar o uso indiscriminado


de tablets e computadores como aliados do ensino, que nesta década cumprem a
função que a televisão uma vez cumpriu de “achatar” a função simbólica das
crianças (DUFOUR, 2000, p.120). Se as extensas horas diárias de exposição à TV
reduziam o tempo de transmissão transgeracional entre os membros da família, o
acesso irrestrito à internet dentro e fora da escola leva a cabo a fabricação do
sujeito psicotizante atestada por Dufour (2000). Não é impossível que dispositivos
multimídia sejam utilizados estrategicamente de maneira a enriquecer a relação
pedagógica. Mas a disposição ao alcance dos dedos de qualquer conteúdo
desejado, por mais que favoreça a apreensão global de praticamente qualquer
assunto, também desobriga o aprofundamento e a apropriação do saber.
Mas os dispositivos eletrônicos não são os únicos responsáveis pela
decadência da faculdade humana de gerar significado. As novas pedagogias tal
como referidas anteriormente tornam cada vez mais esporádicas as oportunidades
de interlocução intergeracional, e portanto, de transmissão-aquisição da função
simbólica, uma vez que

Essencialmente, o acesso à simbolização se opera desde sempre


pelo simples pôr em operação a mais antiga atividade do homem, o
discurso oral frente a frente. Desse modo, transmite-se o dom da
palavra sem nem mesmo se dar conta (DUFOUR, 2005, p.129).

A informação transmitida pela fala do professor não é recebida com


significado previamente atribuído, o que demanda do estudante o exercício
constante e aprimoramento da faculdade simbólica. Não podemos ignorar, no
entanto, que os alunos contemporâneos parecem incapazes de tirar proveito de
uma aula expositiva. E qual a solução das novas escolas para lidar com os
estudantes que “sentem a maior dificuldade em se integrar no fio de um discurso
que distribui alternativamente e imperativamente cada um em seu lugar: aquele que
fala e aquele que escuta” ( DUFOUR, 2005, p.134)? Eliminar de vez as já escassas
oportunidades de consecução da elaboração discursiva, e, por conseguinte, da
capacidade de simbolização que atravessa o uso da linguagem.
Se esse raciocínio for levado às últimas consequências, ou seja, se formos
subtrair da educação toda e qualquer tarefa que os alunos não sejam capazes de
executar, a escola perde a razão de ser: o ensinar. Essa crise de propósito parece já
acometer certas instituições pós-modernas, que ao defender a desconstrução das
estruturas autoritárias do conhecimento, terminam por comprometer as condições
para o desenvolvimento intelectual dos alunos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao tecer esta reflexão crítica, explorando as nuances do discurso pedagógico


pós-moderno em contraste com a pedagogia tradicional, não pretendo defender a
superioridade absoluta de uma abordagem em relação à outra. Reconheço que a
escola de hoje enfrenta desafios complexos demais para uma afirmação tão
categórica.
Júlio Groppa Aquino (1999) oferece uma contribuição interessante para o
dilema da distribuição de poder entre discentes e docentes quando argumenta que a
autoridade provisória exercida pelo professor é aliada e essencial à conquista da
autonomia do aluno, de maneira que a hierarquização da relação pedagógica não
representa uma opressão das crianças. Já a prática do laissez-faire pedagógico,
essa sim configura um negligenciamento da infância, refletindo o viés neoliberal da
“escola democrática” defendida pelas novas pedagogias.
É preciso que haja uma avaliação contínua e criteriosa das práticas adotadas
pela escola moderna. Há bastante tempo podemos encontrar indivíduos atuantes
na sociedade que receberam essa formação. Será que o enfoque dado ao
relacionamento social surtiu o efeito desejado? Podemos observar uma sociedade
mais harmônica que antes? Será possível contemplar uma pedagogia que ofereça o
melhor dos dois mundos, que eduque através da instrução? Em outras palavras:
pode o ensino de conteúdos moralizar, moldar o comportamento, edificar o caráter
dos alunos, ao mesmo que fomenta seu desenvolvimento intelectual? Essas são
indagações fundamentais que demandam reflexão profunda para orientar o
aprimoramento do sistema educacional contemporâneo.
REFERÊNCIAS

AQUINO, J. G. Autoridade docente, autonomia discente: uma equação possível e


necessária. In: AQUINO, J. G. (org). Autoridade e autonomia na escola:
alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, p. 131-153, 1999.

ARENDT, H. A crise na educação. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo:


Perspectiva, 2000.

​DUFOUR, Dany-Robert. O homo zappiens na escola: a negação da diferença


geracional. In: A arte de reduzir cabeças. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, p.
117-149, 2005.

​FREUD, Sigmund. Análise terminável e interminável. Edição standard brasileira


das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: ESB, v.
23, p. 239-287, 1937.

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