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John & Jackie

De: T. J.Klune

John e Jackie primeiro colocaram os olhos um no outro quando


tinham doze anos de idade.
Agora, setenta e um anos depois, Jack se prepara para dar ao seu
amado marido o último presente. Antes disso, vão reviver cinco momentos-
chave de suas vidas juntos ao longo de uma única tarde.
Desde o primeiro encontro e o primeiro beijo até a violência de um
pai abusivo e a mágoa de crescer, esses momentos definiram quem eles se
tornaram.
Quando o pôr do sol se aproxima, John mostrará as profundezas de
seu amor pelo único homem que o tornou inteiro: seu Jackie.
Eles logo aprenderão que não há força mais poderosa do que sua
devoção mútua.
Esta pequena história é para aqueles que já amaram com
todo o seu coração.

Sentir Seus Ossos

John olha acima da câmera para mim e diz as palavras que desejo
ouvir.
— E eu te amo. — Sua voz é rouca. — Sabe disso, certo?
Aceno, tentando impedir a câmera de tremer.
— Eu sei. — Digo a ele, minha voz quase equilibrada. Vou ter tempo
para desmoronar depois. Agora, ele precisa da minha força. — É isso? Isso é
tudo o que quer dizer?
— Sim, Jackie. É isso. — Ele parece exausto, mais do que o habitual.
Contusões escuras na pele amarelada. Rosto magro, olhos como carvão
queimado. Falar por vinte minutos seguidos, como ele fez na câmera, é
provavelmente mais do que ele consegue suportar. — Coloque a câmera na
mesa e venha aqui. Preciso sentir seus ossos.
Faço o que ele diz, como sempre fiz. Talvez demore um pouco mais
para chegar até ele hoje em dia, mas tudo bem. Não somos jovens como
costumávamos ser. O tempo não é algo com o qual se possa lutar, não importa
o quanto deseje. Nunca pensei que estaríamos aqui, no entanto. Nunca pensei
que conseguiríamos chegar aos oitenta anos. Oitenta e três, para ser exato.
Tivemos uma boa vida. Uma longa vida, uma vida cheia de alegria e riso,
lágrimas e dor, celebração e horror, e felicidade e tristeza.
Uma boa vida.
Uma longa vida.
Mas não foi tempo suficiente. Nunca será, nem por um milhão de
anos. Poderia durar para sempre e ainda não seria longo o suficiente, tanto
quanto eu queria.
Coloco a câmera no canto da mesa e empurro minha cadeira ao lado
de sua cama. Ignoro aquelas malditas máquinas, seus bips irritantes. Seus
assobios animalescos. A maneira como se iluminam, o modo como os
mostradores giram. Nem sei o que metade delas faz, embora saiba que não
fizeram o suficiente. Estamos em um ano que nunca pensei que poderia existir
quando eu era mais novo, e essas máquinas ainda não conseguem fazer o
suficiente.
Podemos desembarcar homens em Marte, mas ainda não podemos
fazer nada para ajudá-lo. Para ajudar John. Não entendo. Não entendo como
poderia ter chegado a isso?
Solto alguns gemidos enquanto deslizo a cadeira o mais perto que
consigo, enquanto ainda deixo espaço para sentar nela. Meus joelhos batem no
lado da cama enquanto me movo para a frente da cadeira, mas ignoro o surto
de dor. É fraca, quase insignificante. Quando se começa a ter a nossa idade,
sempre se machuca de um jeito ou de outro, então essa dor não é novidade.
John observa cada movimento que faço, os olhos ligeiramente
vidrados, mas conscientes. Ele me observa com um olhar tão sábio, sempre
fez isso. Toda a nossa vida. Tudo que fiz, John viu. Ninguém nunca olhou para
mim como ele olha. Ninguém nunca me viu completamente, como ele me vê.
Ninguém mais teve uma chance.
Essa Coisa Toda de Jackie

Lembro-me de quando senti os olhos dele em mim pela primeira vez.


Tínhamos doze anos. Eu me virei na minha mesa e olhei para o novo garoto,
apenas para encontrá-lo olhando para mim. Ele era maior que eu, maior do
que quase todo mundo da classe. Cabelos escuros, olhos escuros. Pele
morena. Mexicano, talvez. Pelo menos, parte. Suficiente para que as pessoas
não dessem nada a ele se fosse menor. Ele tinha pelos finos em seus
antebraços, e eu me perguntava como eram, se eram macios. Ao lado dele, eu
parecia um fantasma, todo pálido e loiro.
Eu era a luz para a escuridão dele.
Encarei de volta antes de mostrar meus dentes para ele num rosnado
baixo. Não sabia o que ele queria e achei estranho que ficasse tão concentrado
em me observar. Em resposta, ele sorriu, aquele sorrisinho que conheço tão
bem.
Na hora do almoço, antes que eu pudesse sair da sala de aula, ele me
agarrou pelo cotovelo e me virou enquanto nossos colegas de classe saíam.
Aqueles olhos encontraram os meus novamente.
— Eu sou John. — Disse ele, sua voz profunda para alguém da nossa
idade. Ele se elevou acima de mim.
— Eu não me importo. — Retruquei, desconfortável por ser tratado de
uma maneira áspera.
— Sim, você se importa. Qual o seu nome?
— Por quê?
— Porque quero saber. — Seu olhar nunca deixou o meu, e eu não
conseguia desviar o olhar.
— Não é da sua conta.
— Por favor.
Fiz uma careta, mas não durou muito tempo. Ele disse por favor,
uma palavra que não esperava que ele soubesse (muito menos que soubesse
como usar) dado seu tamanho. Seus dedos estavam quentes na minha pele,
apenas pressão suficiente para me fazer senti-los, mas não o suficiente para
machucar.
— Jack. — Eu disse finalmente, só porque não sabia mais o que dizer.
— Jack. Jack. — Ele soou como se gostasse do jeito que meu nome
provava em sua língua. — Jackie.
Fiz uma careta para ele.
— Ninguém me chama assim. — E nunca chamaram. Posso ter sido
pequeno, mas era muito desajeitado. Minha exibição de coragem não foi
grande, mas, pelo menos, tentei.
— Jackie. — Ele disse novamente. — Todo mundo chama você de
Jack, certo?
Balancei a cabeça, incapaz de ignorar o jeito que ele roçou o polegar
na pele do meu antebraço.
— Então não vou te chamar assim. — Disse seriamente. — Quero te
chamar de algo que é só para você e para mim. Algo entre nós, como um
segredo. Algo que só nós saberíamos.
— Por quê? — Não entendia por que ele iria querer um segredo só
para nós. Ninguém nunca quis compartilhar segredos comigo antes.
— Porque é assim que deveria ser.
— Você é muito estranho. Sabe disso, certo? — Não desviei o olhar.
Pela primeira vez em muito tempo, fiquei intrigado.
Ele sorriu novamente.
— Sim, Jackie. Eu sei.
— Você é novo.
— Não, sério?
Estreitei meus olhos.
— Você é um idiota.
Ele encolheu os ombros.
— Tento não ser.
— Onde está o seu almoço? — Ele não estava carregando nada em
suas mãos.
— Não tenho um. Não posso pagar. — Ele não parecia envergonhado
com isso, apenas declarando fatos.
— Seus pais não fazem um almoço para você trazer?
Ele encolheu os ombros.
— Só eu e meu pai. Não tenho nada realmente para fazer.
— Oh! — Eu disse, sem saber se tinha o direito de perguntar mais
alguma coisa.
Não conhecia muitas outras pessoas cujos pais não estavam juntos.
Meus pais se amavam tão completamente que era impossível pensar os dois
separados, mesmo que amassem a Deus e a Jesus tanto quanto se
importavam um com o outro e comigo. Talvez até um pouco mais. Eu não
sabia muito sobre lares desfeitos. Não, então.
Mas desenvolvi minha coragem e, verdade seja dita, estava ficando
mais fácil conversar com ele, mesmo depois de apenas alguns minutos. Talvez
tenha sido o jeito que ele ficou ali, me observando. Talvez fosse o jeito que
obviamente estava esperando que eu dissesse alguma coisa. Não sei. Fosse o
que fosse, sabia que poderia perguntar a ele o que eu quisesse e ele
responderia. Isso me deu uma pequena onda estranha de poder que eu
poderia fazer com outra pessoa, que ele me deixaria fazer isso com ele.
— Onde está sua mãe? — Perguntei a ele rapidamente, como se
colocar as palavras para fora as deixasse menos intrometidas.
John nem sequer recuou.
— Ela foi embora. — Ele disse, como se isso não importasse muito
para ele. — Um dia ela saiu e nunca mais voltou. Não me lembro dela. Era
apenas uma criança quando aconteceu.
Nem me incomodei em corrigi-lo que ele ainda era uma criança
porque fiquei chocado que uma mulher, uma mãe, pudesse fazer algo tão
horrível como deixar sua família para trás sem nem dizer adeus, sem rastejar
de volta em algum ponto implorando por perdão. Minha própria mãe não teria
sido capaz de algo tão insensível e duro.
— Você não a viu desde então? — Perguntei incrédulo.
Ele balançou sua cabeça.
— Não. Meu pai dizia que ela não era boa para nada, mas acho que
ela simplesmente não conseguiu mais lidar com isso.
— Lidar com o quê?
Sua mandíbula apertou levemente.
— Não importa muito, Jackie.
— Meu nome não é Jackie.
— Claro que é. É como acabei de te chamar, não é?
— Você gostaria se te chamasse de Johnny?
— Não importa muito para mim. Você pode me chamar do que quiser.
— Você é tão estranho. — Murmurei.
Ele sorriu aquele sorrisinho.
— Já fui chamado de coisas piores.
Pensei um pouco, apenas por um segundo ou dois, porque a decisão
foi mais fácil do que pensei.
— Quer uma parte do meu sanduíche? — Perguntei a ele, de repente
me sentindo um pouco tímido.
Não tinha tido um amigo, não há muito tempo. Seria melhor fazer
dele meu amigo antes que qualquer outra pessoa tentasse levá-lo para longe
de mim, antes que pudessem derramar seu veneno em seus ouvidos e afastá-
lo. Queria que ele pertencesse a mim, mas não sabia se tinha que pedir,
especialmente porque não sabia por que queria que ele fosse meu.
John sacudiu a cabeça.
— Você precisa comer. Você é um cara pequeno.
— Não sou tão pequeno. — Eu bati.
— Ok, Jackie. Ok. — Ele disse, como se estivesse tentando me
acalmar.
— E, além disso, você é um cara grande. Você precisa comer
também.
— Suponho.
Senti aquela pequena onda de poder novamente.
— Portanto você deve ter um pouco do meu sanduíche, então.
Ele parecia hesitante, mas não me deixou ir.
— Tem certeza?
Revirei meus olhos.
— Eu ofereci, não foi?
Ele largou a mão e quase implorei para ele me pegar de novo. Não
sabia por que, mas sentia frio agora que ele não estava mais me tocando.
— Sim, você ofereceu. — Ele disse baixinho. — Você parece um cara
legal. Você é um cara legal, Jackie?
Não pensei muito sobre isso.
— Sim. Acho que sim. Talvez. Você é?
— Eu quero ser. — Disse ele, olhando para as mãos grandes. — Não
sei se sou, às vezes. Eu me meti em problemas na minha última escola.
Muitos.
— Que tipo de problema?
— Brigas e outras coisas. Às vezes tenho um temperamento horrível.
Não quero ser assim, mas algumas coisas me deixam louco, acho.
— Oh! — Já briguei antes, mas sempre perdi.
Ele parecia nervoso, desviando o olhar.
— Talvez possa me ajudar a ser um bom rapaz. Se quiser, quero
dizer. Está tudo bem? — Ele olhou para mim rapidamente, depois desviou o
olhar novamente.
— Acho que sim. — Respirei fundo, porque sabia que não poderia
manter isso dele. — Precisa saber que as pessoas não gostam muito de mim.
— Oh? Por quê? — Suas palavras eram simples e seu tom leve, mas
percebi o jeito que seus olhos se estreitaram.
— Não sei. Apenas é assim. Meu pai é o pastor, então as pessoas
zombam disso. Você pode querer fazer amizade com as outras crianças. Se as
pessoas nos virem juntos, vai ser ruim para você. — Mesmo que não quisesse,
dei a ele uma saída, só porque era o certo.
Queria que ele me escolhesse, e ainda não sabia por quê.
John sacudiu a cabeça.
— Não me incomoda. — Ele fez uma pausa como se considerasse
minhas palavras. — Você é religioso? Deus, Jesus e todo aquele fogo e
enxofre?
Tentei evitar que meu alívio transbordasse.
— Não sei. Não sei se me importo o suficiente para saber. Por que eu
deveria me importar com Deus? Tenho doze anos.
Ele riu disso, um bufo silencioso.
—Gosto de você. — Ele disse, como se fosse a coisa mais natural do
mundo. Aprenderia mais tarde que, para ele, era.
Outro pensamento me fez olhar para ele.
— Você não se divertindo comigo, ou está?
Um capricho de seus lábios novamente.
— Não, Jackie. Não estou me divertindo com você.
Esperei mais um momento, mas depois disse:
— Vamos lá então, acho. Podemos nos sentar no campo de futebol,
perto das arquibancadas. Ficará mais quieto lá fora. Se vamos ser amigos,
então vai precisar me contar sobre você. Apenas nós dois. Não gosto de mais
ninguém, então precisamos encontrar algumas coisas sobre o que conversar.
— Eu não disse a ele de novo que precisava ser assim porque ninguém gostava
de mim, mas acho que ele entendeu. Não era tão difícil de perceber.
Ele assentiu com a cabeça, seu olhar nunca deixando meu rosto.
— Bom. É tudo o que vou querer, sabe? Apenas nós dois.
— E vai comer um pouco do meu sanduíche. Também tenho uma
maçã e alguns biscoitos. Você também terá um pouco deles. — O tom na
minha voz não deixou espaço para discussão.
Eu seria amaldiçoado se deixasse meu único amigo no mundo ficar
com fome, ainda mais quando tenho o suficiente para nós dois. Não estava
certo e me certificaria de que ele fosse alimentado.
— Claro, Jackie. Qualquer coisa que você diga.
Eu hesitei.
— Essa coisa toda de 'Jackie'?
— Sim?
— Tudo bem se me chamar assim, mas só você. Então não deixe
ninguém mais me chamar assim. — Disse com pressa, sentindo meu rosto
queimar.
Ele sorriu.
— Apenas eu, então. — Ele prometeu. — Só eu. Você verá. Ninguém
mais vai te chamar assim. Ninguém nunca te chamará. Se ouvir esse nome,
saberá que está vindo de mim.
Isso fez meus olhos se queimarem, embora não sabia dizer o porquê.
Talvez fosse a sua seriedade. Ou talvez tenha sido porque finalmente tive um
amigo. Talvez tenha sido um pouco dos dois.
Ele me seguiu para fora do prédio, como se fosse minha sombra
crescida. Continuei atirando pequenos olhares para ele, certo de que ele
desapareceria se eu não mantivesse meus olhos nele.
Ele estava lá toda vez que eu olhava para trás, seu olho captando o
meu, aquele pequeno sorriso no rosto. Tentei sorrir de volta, mas ainda me
sentia desconfortável.
Ele me seguiu, porém, e sem dúvida, comeu metade do meu
sanduíche. Alguns dos meus cookies. Minha maçã inteira, porque eu disse que
não queria, mas, na verdade, eu estava fascinado pela forma como sua
mandíbula trabalhava, pela forma como sua garganta balançava quando ele
engolia, a pele se movendo sobre músculos e ossos.
Daquele dia em diante, era raro não sermos vistos juntos.
John e Jackie, as pessoas diziam, alguns perplexos e inseguros,
alguns divertidos e sorridentes, alguns cruéis e mesquinhos.
Não importava o que eles pensavam, no entanto. Na verdade, não.
Eu não deixaria isso.
Tudo o que importava era que John me seguisse naquele dia como se
confiasse em mim.
E todo dia que vinha depois eu me certificava de que ele tivesse algo
para comer.

Apenas Espere

Setenta e um anos depois, ele ainda me observa, seguindo cada


movimento meu.
Eu me sento na cadeira com um grunhido. Uma vez que estou
sentado, alcanço e abaixo as barras ao lado de sua cama. Elas descem. Quase
beliscam meu polegar, mas o movo a tempo. Já fiz o suficiente para saber
como evitá-lo.
Uma vez que as barras são abaixadas, arrasto minha cadeira um
pouco mais para perto e seguro a mão dele na minha. Sua pele parece quente
e seca, os dedos levemente retorcidos. A artrite chegou a ele um pouco pior do
que a mim, mas ainda é capaz de enrolar a mão na minha. Nossos dedos se
tocam. É familiar esse toque. Mais familiar do que qualquer outra coisa na
minha vida. Ele está aqui, ao meu lado, desde o dia em que o conheci, uma
força irrevogável que ajudou a moldar e me definir, a me tornar quem eu sou.
Uma constante.
Minha constante.
Apenas espere, penso comigo mesmo. Só mais um pouco. Você pode
esperar. Ele precisa de você agora. Pode esperar até que seja feito. Então você
pode ver. Então você pode ir. Não pode deixar que ele faça por conta própria,
por causa de sua alma. Você tem de protegê-lo com tudo que tem.
— Jackie. — Diz ele, e tenho de lutar contra o tremor. Meu nome em
seus lábios sempre foi minha fé. Ele sempre falou como se fosse a Palavra de
Deus, com reverência, como se eu fosse algo sagrado, algo divino.
— Sim?
— Você se lembra... — Ele para quando tosse violentamente.
É um som horrível. Um som molhado, como se estivesse se afogando
em seus próprios pulmões. Aperta minha mão com força enquanto esperamos
passar. Pressiono um botão ao lado da cama e a parte de trás sobe, elevando-
o para que possa respirar mais facilmente. Há um chocalho no fundo da
garganta, mas acaba diminuindo. Ele pega a máscara de oxigênio e a coloca
sobre o nariz e a boca. Respira profundamente e exala. E novamente. E de
novo.
— Talvez você não deva conversar. — Digo a ele, embora saiba que
isso não vai acontecer. John tem uma teimosa na faixa de um quilômetro de
largura. Sempre teve. Se quer dizer alguma coisa, ele dirá e não haverá uma
única coisa que o impeça.
Ele sacode a cabeça.
— Tenho coisas para lhe dizer. — Diz ele, ofegando na máscara. —
Para você me dizer. Preciso ouvi-las. E você também. Antes...
— Não acha que eu sei? — Pergunto a ele. Meus olhos queimam. —
Eu sei, John. Sei tudo. Sei como você...
— Quanto tempo... Até o pôr do sol?
Por favor, não me faça olhar. John, por favor, não me faça olhar.
— Jackie.
Olho para o meu relógio. Oh, Deus.
— Duas horas. Nós temos duas horas.
Ele concorda.
— Não precisa fazer isso, querido. Poderia deixar aqui para mim...
— Não vou deixar você fazer isso. — Digo duramente. — Não vou
aproveitar essa chance. Eu te falei isso. Não sabemos o que acontece depois.
Não posso deixar você arriscar. Não vou. Nenhuma outra palavra sobre o
assunto. Eu me importo com você. — Isso não é negociável. Não vou deixar
ele pegar para si mesmo.
Ele está começando a ficar chateado.
— Talvez devêssemos... — Ele para quando uma careta de dor vem
sobre seu rosto. Ele assobia entre os dentes e aperta minha mão ainda mais
forte quando um tremor passa por ele.
Sento-me para a frente e levo a mão aos meus lábios.
— Apenas espere. John, apenas espere, ok? Estou aqui. Estou aqui.
Vai passar. Prometo a você, isso vai passar.
— Dói, Jackie. — Diz ele com os dentes cerrados. — Isto dói. Oh,
Jesus, isto dói.
Qualquer coisa. Daria tudo para tirar isso. Faria qualquer coisa para
ter seu fardo colocado sobre mim e não sobre ele. Se eu pudesse suportar sua
dor, faria isso em um piscar de olhos. Tenho que distraí-lo.
— Você se lembra da primeira vez que nos beijamos? — Pergunto
enquanto ele começa a suar.
Ele balança a cabeça firmemente.
— Conte-me. Por favor. — Ele fecha os olhos, a testa franzida. Sua
mão começa a tremer quando os tremores pioram.
Não consigo imaginar sua dor, e é quase demais para mim. Não sei
se vou conseguir encontrar minha voz para falar. Por favor, ele disse. Empurro
através do medo e cavo fundo. Porque enquanto John disser “por favor”,
moverei o Céu e a Terra para conseguir o que ele pede.
— Tínhamos quinze anos. — Consigo dizer, embora minha voz seja
áspera. — Era verão. Tínhamos descido para o lago para pescar, mas nada
estava mordendo naquele dia. Não nos importamos, no entanto. Estávamos
deitados de costas, olhando para o céu, encontrando formas nas nuvens. Foi
um dia tão bonito. Um dia tão lindo. E lembro-me de pensar...

Nós Sonhamos Em Voz Alta

Eu me lembrei de pensar que a vida não poderia ficar melhor do que


aquele momento. Não tinha preocupações no mundo. Bem, nenhuma que
estivesse me pressionando de qualquer maneira.
Meu melhor amigo estava ao meu lado. Podia sentir seu braço
roçando o meu em alguns momentos enquanto observávamos o céu. Éramos
jovens e fortes e... Oh, tão vivos, todo o nosso futuro se estendia diante de
nós. Nada poderia nos impedir, e eu tinha certeza de que nada impediria.
Estávamos fazendo planos para os próximos anos, revelando sonhos secretos e
desejos que não poderíamos compartilhar com mais ninguém.
Nos três anos que o conheci, John se tornou a coisa mais importante
da minha vida, e não conseguia imaginar uma vida em que ele não estivesse
do meu lado. Ele sempre estaria lá, eu sabia. Tinha certeza. Meus pais tinham
fé em Deus. Eu tinha minha fé em John.
Então sonhamos em voz alta. Sonhos apenas para ouvirmos.
Sonhamos grande e selvagem, sabíamos que tudo era inevitável, que tudo
seria nosso um dia.
John queria construir uma grande cabana para nós dois, no meio da
floresta, onde viveríamos e não teríamos que ver ninguém, a menos que
quiséssemos. Caçaríamos a nossa comida e teríamos um jardim com cenouras
e repolho. Haveria uma grande macieira, os galhos pendiam baixo com maçãs-
verdes, azeda e crocante. No verão, sentaríamos na varanda e observaríamos
as árvores, as abelhas flutuando entre as borboletas nas flores. No inverno,
quando a neve caísse forte, impedindo-nos de sair, ele acenderia um fogo na
lareira, e ficaríamos na frente dela, observando as chamas afastando as
sombras. Estaria frio lá fora, mas estaríamos seguros e aquecidos.
Apenas ele e eu, ele disse.
Ficaríamos nesta cabana porque era onde pertencíamos e ninguém
poderia nos dizer o que fazer. Ninguém poderia nos dizer não. Poderíamos ficar
lá, ele disse, pelo resto de nossas vidas e tudo ficaria bem porque ele teria
tudo o que sempre quis.
Eu disse a ele que queria ser detetive, investigador particular. Jack
Ford, IP. Resolveria crimes e fumaria cigarros. Conheço alguns personagens
ásperos, entro em brigas e luto contra meus próprios demônios internos
enquanto uso um chapéu preto. Beberia uísque de um frasco e conseguia a
dama. Sempre tenho uma dama no final. John poderia ser meu parceiro e
teríamos aventuras que tornariam essa pequena vida parecida com nada.
Derrotaríamos os criminosos, ladrões de joias internacionais. Resolveríamos
assassinatos. Pegaríamos os bandidos no ato. Nunca teríamos que voltar ali,
para aquele lugar, porque seríamos algo. Faríamos algo de nós mesmos. Todos
saberiam nossos nomes e seríamos famosos. Eu ri da ideia.
John não riu comigo.
— Isso que você quer? — Ele perguntou finalmente, sem olhar para
mim. — Conseguir uma dama?
Dei de ombros, sem entender por que ele parecia tão deprimido.
— Acho que sim. Não sei. É assim que essas histórias terminam,
certo? A cabana é uma boa ideia também. Eu moraria lá com você. Poderíamos
até fazer sapatos de neve, como os esquimós. Montar armadilhas para coelhos
e esquilos. Mas você teria que limpar isso sozinho. Acho que não quero ver
sangue em mim.
Ele puxou o braço para longe, então não tocou mais em mim, e não
gostei que tivesse se afastado de mim. Odiava que não estivéssemos
conectados. Se estivesse sendo honesto comigo mesmo, era porque a pele
dele não estava contra a minha.
Ultimamente parecia que havíamos encontrado maneiras de nos tocar
mais e mais, e mesmo que eu realmente não soubesse o que isso significava,
sabia que não queria que isso parasse. Parecia errado quando ele não estava
me tocando. Como se eu fosse apenas metade de uma pessoa, perdendo parte
da minha alma. Era assim que sempre sentíamos quando estávamos
separados um do outro, tão raro quanto aqueles tempos. Mas era de alguma
forma pior que estivéssemos ao lado um do outro e eu ainda sentisse o
mesmo, que quisesse mais. Que precisasse de mais.
— Talvez. — Disse ele. Ele levantou o outro braço, cobrindo os olhos
na dobra do cotovelo. Sua mão se estendeu para mim, os dedos balançando.
— Talvez não. — Ele soou engraçado.
Eu me virei de lado, encarando-o.
— O quê?
— O quê?
— Você está bravo?
— Não, Jackie. Não estou bravo.
— Você parece bravo.
E ele estava. John raramente ficava com raiva; as poucas vezes em
que o vi com raiva, era dirigida ao seu pai imbecil ou a Carl Morley, uma cobra
de adolescente que achava que eu era o seu saco de pancadas pessoal. Bem,
ele achava isso até John quebrar seu nariz. Carl não veio atrás de mim depois
disso. Ninguém vinha. Não com John por perto. John estava certo quando me
disse que tinha temperamento, mas mantive minha parte do acordo nos
últimos anos e o mantive de castigo. Na maior parte.
Ele bufou.
— Ok.
— Não sei por que você está...
— Está tudo bem, Jackie. Não se preocupe com isso.
— Isso só me faz preocupar mais com isso.
— Isso é porque o seu cérebro nunca se cala. Não estou bravo com
você. — Ele ainda não olhava para mim.
Mas a distância dele estava bem no momento. Eu estava fascinado
por seus dedos, longos e delgados, como a luz do sol os atingia, lançando
sombras em seu ouvido. Podia ver cabelos finos nas costas da mão, grossas
veias azuis que se entrelaçavam, mapeando o todo dele. Ossos finos contra a
pele calejada e bronzeada. Unhas roídas, um hábito que ele nunca quebraria.
Linhas enterradas profundamente em sua palma, a linha da vida como um
canyon que dividia sua mão ao meio.
Tudo sobre a mão dele era adorável, visto numa luz que eu nunca
pensei ser possível. Minha respiração ficou presa no meu peito e a grama
cutucava contra o meu ouvido. Eu queria tocar na mão dele. Queria senti-la
debaixo da minha, nossos dedos pressionados juntos. Queria traçar sua pele.
Queria conhecer como conhecia a minha própria. Já tive esses pensamentos
antes, mas nunca tão forte e tão certo então.
Sabia o que Deus e a Bíblia diziam sobre tais sentimentos, e suponho
que deveria ter sentido vergonha, mas aquele momento não era sobre Deus.
Não era sobre a Bíblia. Nada disso realmente importava muito, pelo menos não
agora. Aquele momento era sobre mim e John. E isso estava certo. Sempre foi
certo quando éramos os dois, então como algo assim poderia ser um pecado?
Como ele e eu poderíamos estar errados?
Ele suspirou, mas não foi de contentamento. Não foi um som feliz. Foi
resignado. Foi fatalista. Estava aceitando algo que nunca poderia ser. Estava
fechando uma porta e trancando-a, a chave desaparecendo para que nunca
mais pudesse ser aberta.
Eu queria quebrar aquela porta num milhão de pedaços, assim nunca
poderia ser fechada.
Eu não me parei. Não consegui.
Estendi a mão e agarrei a sua, segurando-a com força, puxando-a.
Eu ouvi sua ingestão aguda de ar quando o puxei. Esfreguei nossas mãos
juntas, deslizando meus dedos entre os dele. Ele pressionou o polegar
profundamente contra a palma da minha mão, uma pressão aguda que me
aterrou através da névoa que havia caído sobre os meus olhos.
Ele rolou para o lado, espelhando-me, e nossas mãos caíram entre
nós, ainda unidas, pressionando contra a grama. Ele me observou, os olhos
arregalados, mas cuidadosos, quase cautelosos. Cataloguei tudo: a cicatriz da
catapora no queixo. As sardas abaixo do olho esquerdo. Seu nariz,
ligeiramente curvado de quando seu pai o quebrou no ano anterior. A parte de
seus lábios num sorriso cauteloso. O dente, endurecidamente, torto.
Esse era o rosto com o qual sonhava com crescente regularidade.
Esse era o rosto que conhecia tão bem. É apenas o John, disse a mim mesmo.
Isso é tudo isso. Apenas John.
Mas não acho que nossos rostos tivessem estado tão próximos antes.
Não quando olhamos diretamente um para o outro. Minha pele estava quente.
Apenas John. Sempre John.
Apertei a mão dele. E então novamente. E de novo. E mais uma vez
até que ele apertou a minha para trás e sua cabeça estava a apenas alguns
centímetros da minha, sua respiração no meu rosto e quando ele chegou muito
mais perto? Como se aproximou sem se mexer?
Eu podia sentir o alongamento dos músculos do meu pescoço e
percebi que não era ele se mexendo. Não era ele se aproximando. Era eu. Eu
estava me movendo. Estava me esforçando para ele. Seus olhos se
arregalavam a cada segundo que passava e, pouco antes de acontecer, eles se
fecharam e uma respiração suave lhe escapou.
O beijo foi casto, a primeira vez. Um mero roçar dos meus lábios
contra os dele, uma conexão momentânea em que achei que as estrelas
haviam explodido no céu e todo o mundo cantaria porque nada jamais pareceu
tão certo. Nada havia sentido tanto fogo explodindo dentro de mim. Se isso
fosse pecado, então queria me divertir com isso. Se isso fosse contra a Palavra
de Deus, então iria para o inferno. Eu me inclinava aos pés de John em
veneração, indiferente se era uma blasfêmia. Se tivesse algum medo, não
duraria muito. O mesmo com qualquer dúvida.
O tumulto dentro de mim se acalmou em apenas alguns segundos
antes de se transformar em algo completamente diferente e começou a
sussurrar para mim. Dizia sim. Dizia obrigado. Dizia que é assim que deveria
ser. Como sempre será.
Foi casto, aquele primeiro beijo. Mas os que se seguiram não foram.
Assim que nossos lábios se separaram, e olhamos descontroladamente um
para o outro, algo estalou e soltei sua mão e segurei seu rosto, puxando-o de
volta para mim novamente. Foi estranho. Muito, muito rápido. Nossos narizes
se chocaram, nossos dentes bateram juntos. Havia muita saliva, e me senti
agredido por sua língua quando a empurrou pelos meus lábios, enroscando-a
com a minha. Não conseguia respirar. Não conseguia me concentrar em fazer
nada certo; a única coisa que passava pela minha cabeça era mais, mais,
mais.
E ele me deu mais. Ele me deu tudo dele. Ele me reuniu em seus
braços grandes e me puxou, esmagando nossos corpos juntos, me segurando
perto como se eu pudesse desaparecer se me deixasse ir. Como se eu fosse
algo precioso.
Fiz pequenos barulhos que não conseguia evitar na parte de trás de
minha garganta. Ele rosnou para mim, baixo e gutural. Aqueles sons foram
direto para o meu sexo, mas isso parecia perigoso, algo para o qual eu ainda
não estava pronto, algo que não conseguia nem começar a entender. Mas ele
nunca empurrou. Nunca empurrou mais do que já estávamos fazendo. Foi o
suficiente para nós dois. Mais do que o suficiente.
Eventualmente, ele recuou, sem fôlego, os olhos arregalados, os
lábios inchados e molhados. Eu ofeguei, sem saber o que fazer, o que dizer.
Não tinha certeza se tinha cometido um grande erro e ele nunca mais falaria
comigo. Se eu ficaria sozinho para sempre, porque nunca teria alguém como
eu tinha John Kemp. Nunca mais encontraria alguém que entendesse tudo
sobre mim, que pudesse conhecer todos os meus segredos. Alguém que tinha
minhas costas tão certo quanto eu tinha as dele. Alguém que amei acima de
todos os outros. Lancei minha língua para fora e tentei sentir um gosto dele
em mim, mesmo quando comecei a ceder.
— Eu... Eu sinto muito. — Sussurrei enquanto tremia.
Estava apavorado. Tinha certeza de que ele estava prestes a olhar
para mim como se eu fosse nojento e estivesse prestes a correr. Sabia que ele
tinha me beijado de volta, mas agora ele iria me machucar, e não o culparia.
Ele deve ter pensado que eu era algum tipo de abominação. Que forcei minha
vontade sobre ele, fazendo com que me desse o que eu queria. Como eu
poderia ter pensado que estava bem? O que, em nome de Deus, me possuiu
para pensar que poderia beijar meu melhor amigo e não haver repercussões?
— Por favor, não vá. — Soei como se estivesse implorando.
Provavelmente estava. — Por favor, não me deixe. Ah, Jesus Cristo. Oh, John,
não vá embora. Me desculpe, sinto muito.
Ele arrastou os dedos pelo meu rosto, enxugando as lágrimas que
começaram a cair.
— Jackie. — Ele me chamou. — Não vou deixar você. Como poderia?
Não sou nada sem você. Estaria perdido. Seria como estar no escuro sem uma
luz. Não vou fazer isso. Não posso.
— Promete? — Chorei para ele. — Você me promete, John Kemp?
Havia fogo em seus olhos.
— Prometo a você, Jackie. Prometo a você com todo meu coração.
Cada pedaço. Todas as partes. Nunca te deixarei. Não agora. Nunca. Estive
esperando por você fazer isso. Queria fazer isso há tanto tempo. Só precisava
que olhasse para mim como está me olhando agora.
— Como estou olhando para você? — Perguntei quando uma brisa
soprou através de nossos cabelos, enquanto as ondas do lago lambiam
suavemente, como um pássaro chilreava em algum lugar nas árvores. Eu
sabia, mas precisava que ele dissesse isso. Precisava ouvir isso de seus lábios.
— Como se eu fosse tudo. — Ele disse baixinho, roçando minha
mandíbula com os dedos.
E ele realmente era.
Ele estava olhando para mim da mesma forma. Como muito calor.
Com muito fogo. Como se eu fosse tudo o que havia para ele e tudo o que
haveria de novo.
Ele e eu soubemos então que as coisas nunca seriam as mesmas.
Elas seriam melhores.

Aquele Horrível Sofá Paisley

— E, então, você me beijou de novo. — Digo a ele agora, apertando


sua mão enquanto seus tremores diminuem. — Você me beijou novamente
como se o mundo estivesse prestes a terminar e isso era a última coisa que
você queria fazer em sua vida. Você me beijou e depois riu. Nós dois rimos tão
alto e tão intensamente, porque, como não tínhamos feito isso antes? Por que
nos levou tanto tempo? Por que não vi o que você podia ver?
— Eu queria você. — Ele sussurra. Pego uma toalha macia com a mão
livre e a enxugo na testa dele. Sua pele é quente ao toque. — Desde o
primeiro momento em que te vi. Eu não entendi. Não entendi aquilo. Mas vi
você e sabia que seria meu. Não há mais ninguém no mundo além de você,
Jackie. Não precisaria de mais ninguém. Nunca precisei.
Eu sei disso. Eu também. John teria ficado satisfeito há muito tempo
se tivéssemos feito exatamente o que ele queria quando éramos crianças:
construir uma cabana no meio do nada e deixar o mundo passar por nós. John
não tinha muita utilidade para outras pessoas; seu pai se certificou disso,
tendo batido nele regularmente desde que tinha idade suficiente para lembrar.
Diariamente o checava por novos machucados, certo de que um dia John não
iria para a escola porque foi atingido na cabeça e morto.
E então aconteceu.
Cerca de um ano depois daquele primeiro beijo. Ele não apareceu na
escola e entrei em pânico. Fiquei tão assustado. Não achei que...
— Jackie.
Balancei minha cabeça, limpando as teias de aranha na minha
cabeça. Olhei nos olhos do meu marido.
— Aonde você foi? — Ele pergunta. Sua voz é fraca. Ele não deveria
falar muito. Precisa guardar sua força para...
Oh. Oh, coração. Oh, amor. Não sei se posso fazer isso. Como achei
que poderia fazer isso? Até por você. Mesmo se eu prometesse. Eu só...
— Só pensando. — Digo, tentando ignorar meus pensamentos. —
Todas essas memórias. Tudo o que temos. É como contemplar uma caixa de
fotos.
Ele concorda e posso dizer que ele está satisfeito.
— A caixa seria do tamanho de um armazém. Dois armazéns, até.
Eu rio baixinho e levanto a máscara de oxigênio de volta sobre seu
nariz e boca, arrastando meus dedos ao longo de sua bochecha.
— Sim, John. É isso que acontece. É o que acontece quando se passa
sua vida inteira com apenas uma pessoa. A caixa fica maior e maior. Isso
nunca explode. Apenas cresce.
Ele enfia os dedos finos nos meus novamente.
— Nossas vidas inteiras.
— Sim. Nossas vidas inteiras.
— Porque não havia nada sobre a minha vida que eu possa lembrar
antes de você.
— Eu sei. Eu também. — Eu podia lembrar da vida antes de John
Kemp. Mas escolhi não lembrar.
— O pôr do sol está se aproximando cada vez mais, Jackie.
— Sim. — Olho para longe.
— Você... — Ele aperta minha mão.
— O quê?
— Você tem algum arrependimento?
Meu olhar se encaixa no dele.
— Sobre o quê?
— Isso. Eu. Você e eu. Você já desejou que as coisas tivessem sido
diferentes? Você poderia ter se casado. Tido filhos. Você poderia ter tido uma
família.
— Você é minha família. — Pareço um pouco histérico, mas não sei
como parar. — Construí um lar com você. Construí uma vida com você. Queria
apenas você, John. Não precisei de mais nada. Nunca quis mais nada. Então
não. Não me arrependo. Nem uma vez. Nunca.
E essa é a verdade. Tanto quanto ele e eu nos identificamos como
bissexuais, nunca houve outro em meu coração.
As pessoas vieram e foram em nossas vidas. Havia mulheres que me
atraíram. Outros homens também. E houve um que nos causou um pouco de
problema. Não fiz nada sobre isso, não realmente, embora me sentisse como
um imbecil por até mesmo olhar, porque John não olhou. Nem uma vez.
Eu sei, porque vi isso. Perguntei a ele sobre isso uma noite, sentindo-
me corajoso quando nos deitamos em nossa cama no escuro. Ele me disse que
não precisava procurar em nenhum outro lugar ou mesmo em qualquer outra
pessoa, porque tinha tudo o que realmente precisava ao lado dele. Não
perguntei mais isso. Não houve necessidade.
— Sem arrependimentos. — Repito.
— Sim, eu também. — Ele parece satisfeito.
— Nenhum?
— Nenhum, Jackie. Nenhum arrependimento.
— Nem mesmo aquele sofá divino que comprou e trouxe para casa
sem a minha permissão? — Eu o provoco, surpreso que sou capaz de fazer
isso.
Ele sorri.
— No nosso primeiro apartamento. Você chegou a casa e ficou tão
bravo. — Seus olhos se iluminam. Ele aperta minha mão com mais força.
Eu bufo.
— Era um sofá feio, John.
— Um que mantivemos por vinte anos.
— Eu me afeiçoei àquilo.
— Você adorou.
Eu me inclino e beijo sua mão.
— John?
— Sim?
Respiro fundo e deixo sair devagar. Tenho de dizer a ele antes que
seja tarde demais.
— Você lembra quando você não apareceu na escola um dia? Nós
tínhamos dezesseis anos e...
— Oh, sim. Eu estava ferido, hein?
— Sim. Por causa do que ele fez com você.
Ele riu.
— Nunca te vi tão bravo. Você estava cuspindo em mim.
— Alguém tinha de ficar. Alguém tinha de manter você seguro.
Ele me observa.
— E você me manteve, não foi? Você me manteve seguro. Você fez o
que ninguém mais conseguiu. Não foi?
Olho para as nossas mãos, incapaz de encontrar seus olhos. Sei o
que ele está me perguntando, mas não sei se tenho coragem de dizer isso,
mesmo depois de todos esses anos. Parte de mim sabe que ele entende o que
eu fiz para mantê-lo seguro, mas não era algo que eu queria pensar.
— John...
— Conte-me. Conte-me, Jackie. Diga-me antes que o sol se ponha.
Eu sei o que aconteceu. Sei o que você fez, mas quero ouvir. Diga-me o
quanto me ama. — Não há raiva em sua voz, nem recriminação. Há apenas
compreensão, como sempre houve.
E claro que ele sabe. Claro que sabe o que fiz. Quão longe fui para ter
certeza de que ninguém poderia machucá-lo novamente. Como nunca me
preocupei com minha própria alma imortal, apenas com sua vida mortal.
Nunca conversamos sobre isso, mas ele sabia do mesmo jeito.
John Kemp sabe tudo sobre mim. Mas ele precisa ouvir minha
confissão do mesmo jeito. Tenho de dizer, antes que eu não possa.
Inclinando a cabeça, confesso as profundezas do meu amor por ele.

Não Matarás

Sabia que algo estava errado quando John não me encontrou na


frente da escola como sempre fazia. Com chuva ou com sol, na doença ou na
saúde, John estava lá em frente à escola, sentado no meio-fio, esperando por
mim. Ele sempre chegava primeiro, por mais cedo que eu chegasse lá.
Perguntei a ele uma vez como sempre chegava antes de mim, ele apenas deu
de ombros, dizendo que eu era uma pessoa lenta.
Anos mais tarde, descobri que John costumava sair de casa às três ou
quatro da manhã, fazendo o dever de casa em frente à escola, à luz da rua ou
ao luar. Ele não poderia fazer isso quando chegava a casa. Havia tarefas a
serem feitas. Havia surras a serem sofridas.
Mas não sabia disso neste dia. Tudo que sabia era que pela primeira
vez desde que o conheci, John não estava lá.
Tentei não me importar, sabendo que havia uma primeira vez para
tudo. Talvez ele estivesse atrasado. Talvez estivesse realmente doente e
tivesse de ficar em casa. Essa linha racional de pensamento durou pela minha
primeira aula. No momento em que a segunda aula passou, comecei a me
preocupar. Na terceira, estava começando a entrar em pânico. No almoço,
estava suando e planejando abandonar o resto da escola e ir até a casa dele
para ter certeza de que estava bem, porque estava absolutamente convencido
de que ele não estava.
O sinal tocou e fui para o campo de futebol, fingindo ir almoçar, com
certeza poderia sair pelo portão sem ser pego. Eu me aproximaria da lateral do
prédio, pegaria minha bicicleta e andaria quatro quilômetros até a casa em
ruínas de John. Eu disse a mim mesmo que provavelmente estava exagerando,
mas isso não impediu o medo de tomar conta de mim, sem saber o que eu
encontraria quando chegasse lá.
Seu pai, as poucas vezes que o vi, me assustou. Era tão grande e tão
zangado. John nunca soube realmente o que aconteceu com sua mãe. Ele
tinha dito apenas que ela havia partido quando ele era apenas um bebê. Tinha
sido apenas ele e seu pai até onde ele conseguia se lembrar. Nunca
conversamos muito sobre isso, mas eu tinha certeza de que seu pai tinha
batido em sua mãe o suficiente para que a matasse e enterrasse seu corpo
onde ninguém iria encontrá-lo, ou ela apenas se cansou um dia e saiu,
deixando seu filho nas mãos de um monstro. Não sabia o que era pior.
As coisas nem sempre foram ruins, John tentou me dizer. Seu pai era
um bom homem, a maior parte do tempo. Poderia estar bem quando quisesse
estar. Mas era naqueles outros momentos, quando estava tão mergulhado na
bebida, que deixou de ser um bom homem. Que deixou de ser apenas “tudo
bem”. Era naqueles momentos em que ficava bêbado e levantava os punhos
em John que se tornava um homem mau.
Eram as vezes que tinha visto John com um olho roxo ou hematomas
no peito e nas laterais que eu queria que seu pai se tornasse um homem
morto. Houve algumas ocasiões em que John precisou me impedir de ir até a
casa dele e chutar a merda do seu pai.
A raiva não é uma coisa racional, especialmente quando está no
caminho certo para a fúria, e não importava para mim que Wayne Kemp fosse
três vezes maior do que eu. Não importava que tivesse os punhos do tamanho
de presuntos de Natal. Não importava que ele me superasse em cem quilos.
Tudo o que importava era que ele ousou colocar a mão em John e queria que
ele sentisse a mesma dor que causara a seu filho.
Queria que ele sofresse.
Queria que ele sangrasse.
Senti frio mesmo quando saí para a luz do sol, indo até as
arquibancadas. Mantive minha cabeça baixa, não querendo que ninguém visse
o medo no meu rosto. Alguém poderia fazer perguntas. Alguém poderia tentar
me impedir. Não podia deixar isso acontecer.
Cheguei ao campo de futebol sem ser notado. As arquibancadas
estavam vazias, como geralmente eram. Sentei-me no banco de baixo,
olhando de volta para a escola, verificando se alguém estava me observando.
Poucos minutos depois, um pouco antes de eu começar a me soltar
por uma parte da cerca que os professores não conheciam, ouvi uma voz
suave.
— Jackie.
Eu me virei e estiquei meu pescoço. Através das ripas nas
arquibancadas, vi John olhando para mim, seu rosto nas sombras. Olhei de
volta para a escola. Ninguém estava nos observando. Peguei minha mochila e
corri para o lado das arquibancadas e me dirigi para baixo, onde John
esperava.
— Onde você estava? — Exigi quando cheguei mais perto. — Estava
preocupado! Você não tem o direito de me assustar assim!
— Sinto muito, Jackie. — Ele disse baixinho, olhando para o chão. Ele
se virou ligeiramente, como se estivesse chateado, mas vi o jeito que ele
estava se segurando e eu sabia. Então eu soube. — Não queria te preocupar.
Só demorei um pouco mais para chegar aqui hoje. Tentei vir o mais rápido que
pude. Só queria chegar até você. — Sua respiração engatou em seu peito.
Estendi a mão para ele e gentilmente peguei seu braço. Ele tentou se
afastar de mim, para me impedir de ver a extensão do dano, mas eu insisti.
Quando ele finalmente olhou para mim, eu gemi, incapaz de impedir que o
som rastejasse para fora da minha garganta.
Havia um corte maligno na bochecha direita, brilhante e inchado. Seu
olho direito estava coberto por um hematoma escuro. Seu lábio inferior estava
dividido. Eu podia ver pelo jeito que ele se segurava que havia mais marcas
em seu corpo que eu não podia ver, escondidas debaixo de sua roupa. Mas o
que mais me atingiu foi o contorno claro de dedos embutidos em sua garganta,
onde uma grande mão tinha sido envolvida em torno dele, sufocando-o,
cortando seu ar.
Raiva ferveu através de mim, quente e rugindo. Não dele, no
entanto.
Nunca dele.
— O que aconteceu? — Rosnei, incapaz de manter a fúria da minha
voz.
Ele deu de ombros, tentando evitar meus olhos.
— Wayne chegou em casa mais bêbado do que o habitual. Tinha
pílulas também. Muitas pílulas, embora não saiba quantas ele tomou. Eu me
levantei para me preparar esta manhã e ele estava apenas entrando.
— Por que não ficou fora do caminho dele? Melhor ainda, por que não
veio até a minha casa? Sabe que meus pais ficarão no retiro da igreja pelas
próximas duas semanas! Você poderia ter vindo até mim! — Tive de me
impedir de gritar com ele.
— Eu tentei. — Ele disse rispidamente. — Eu queria. Estava a
caminho da porta antes mesmo dele dar o primeiro soco. Só vim ver você.
Para melhorar isso um pouco. Jackie, juro que tentei.
Peguei a mão dele na minha, trazendo-a aos meus lábios e beijando-
a, nem mesmo me importando se alguém mais nos visse. Parecia improvável
que pudéssemos ser vistos, com o quão escondidos estávamos, mas não
importava de qualquer maneira.
— Por que não foi embora?
Sua expressão apertou quando olhei de volta para ele.
— Ele chamou... Bastardo! — Ele rosnou para mim. — Aquele filho da
puta te chamou de nomes. Perguntou se eu estava indo para a casa do
pequeno viadinho. Ele riu e te chamou de viado de merda, um garotinho
cadela. Uma aberração de Jesus. Tantas outras coisas. Eu não... Não pude me
afastar disso. Eu não me afastaria. Não me afastarei. Ninguém irá te chamar
de coisas assim, Jackie. Ninguém irá falar mal de você. Não enquanto eu
estiver aqui.
Eu estava com frio.
— O que você fez? — Sussurrei.
— Disse a ele para calar a boca. Disse a ele para nunca mais dizer
seu nome novamente. Disse-lhe que o chutaria se dissesse o seu nome de
novo. Se o ofendesse novamente, seria a última coisa que ele faria, eu me
certificaria disso. Então ele me bateu. Me chutou. Me sufocou. E bati de volta
nele. Pela primeira vez, eu o acertei de volta. Ele conseguiu alguns socos, mas
não tantos como consegui dele. Não vou permitir a ninguém falar assim de
você, Jackie. Não vou. Não me importo com o que você diz. Ninguém, e quero
dizer ninguém, jamais falará dessa maneira sobre você enquanto eu estiver
aqui. — Ele olhou para mim desafiadoramente, como se esperasse que eu o
contradissesse.
— Você o matou? — Perguntei trêmulo.
Seus olhos se arregalaram e então ele fez uma careta. Seu rosto
devia doer muito mesmo.
— Não. Não o matei. Queria. Queria tanto, mas não o fiz. Deixei ele
no chão. Não sei se o derrubei ou se desmaiou de toda a bebida e
comprimidos, mas não. Não faria isso, Jackie. Mesmo se eu quisesse.
— Porque isso é errado?
Por favor, diga porque isso é errado. Essa é a única coisa que fará
sentido. Essa é a única coisa certa.
Ele balançou a cabeça quando se inclinou para frente e me beijou na
testa.
— Não, porque isso poderia me tirar de você. Isso não vai acontecer.
Não vou deixar isso.
Por mais que suas palavras devessem me aterrorizar, elas não me
assustaram. Tanto quanto deveriam ter me dado uma pausa e me fazer dar
um passo para trás, eu não fiz. Não estava com medo de John, apenas com
medo por ele. Ele tinha feito o que achava certo, tudo em nome de me
proteger, e ele sabia que eu faria o mesmo por ele.
— Vamos. — Eu disse, puxando a mão dele.
— Aonde estamos indo?
— Casa. Minha casa, para que eu possa cuidar de você.
— Você tem aula, Jackie. Não pode perder isso. Você tem que ir para
a aula para se formar e dar o fora dessa cidade. Afastar-se deste lugar.
Eu o puxei mais forte.
— Nós vamos sair daqui. — Eu o lembrei. — Um dia não importará.
Talvez dois.
— Mas se seus pais descobrirem...
— Não tenho medo dos meus pais. — Retruquei, mesmo que isso
fosse uma mentira. — Eles não estão aqui. Não discuta comigo, John Michael
Kemp.
Ele parecia arrependido, sabendo que só dizia seu nome completo
quando estava chateado, como se fosse seu pai ou algo assim. Pensei que ele
poderia empurrar um pouco mais, mas suspirou e olhou para as nossas mãos
unidas.
— Você estava certo em vir aqui. — Eu disse a ele em voz baixa. —
Veio me encontrar porque sabia que eu cuidaria do resto. Você está sempre
cuidando de mim, John. É a minha vez de fazer isso por você.
Ele não discutiu.
Não achei que ele seria capaz de andar de bicicleta, não com os
quatro quilômetros que levou para chegar até mim, então movi nossas
bicicletas até minha casa enquanto ele se arrastava lentamente ao meu lado.
Não falamos muito no caminho. Não sei o que ele estava pensando, mas eu
tinha assassinato no meu coração. Vingança. Raiva. Era pecado, eu sabia, mas
desde que aparentemente já estava me afundando nele, um pouco mais não
parecia importar. Deveria ter me feito sentir frio. Deveria ter me feito querer
recuar. Deveria realmente ter me assustado muito que eu pudesse sentir tal
fúria pulsante rasgando através de mim.
Mas isso não aconteceu. Tudo que sabia, tudo que conseguia pensar
era que alguém tentou ferir o que era meu. Alguém se atreveu a colocar um
dedo em John, quando tudo o que ele queria era me proteger.
Não diminuiu essa raiva. Não diminuiu quando chegamos a casa. Não
diminuiu quando tirei sua camisa e calça, tentando não chorar com os
hematomas que se espalhavam pela pele de suas costas, seu lado, seu peito.
Não diminuiu quando beijei cada marca enquanto as lágrimas caíam dos meus
olhos. Não diminuiu quando o coloquei na minha cama, roçando meus lábios
sobre a testa, e ele imediatamente desmaiou, cedendo à sua exaustão. Ele
finalmente estava em algum lugar seguro, onde não teria de se preocupar
mais, onde ele não teria de ter medo. Não, a raiva não diminuiu nem um
pouco.
Pelo contrário, aumentou.
Aumentou enquanto observava o garoto que eu amava dormindo na
minha cama. Aumentou enquanto acariciava o cabelo escuro suado de sua
testa. Aumentou quando peguei um pano úmido e passei-o sobre a crosta de
seu corte em sua bochecha, o vermelho-escuro manchando o branco do pano.
Ninguém jamais falaria sobre mim do jeito que seu pai falou. John não
permitiria isso. Ninguém jamais me tocaria porque John estaria lá.
E eu faria o mesmo por ele.
Meu pai não estava ciente de que eu sabia sobre a arma na caixa na
parte de trás do seu armário, visto um dia por acidente. Nem desconfiava que
sabia que havia balas em sua gaveta de cabeceira daquela mesma arma.
Pensei que ele tinha vergonha de ter tal coisa, pelo menos que fosse cauteloso,
dado que era um homem de Deus. Não sabia se a tinha para proteção, ou só
porque era um homem e um homem deveria sempre possuir uma arma. Não
fazia ideia. Agora, isso não importava.
Não estava pensando muito enquanto andava pela cidade, tentando
não olhar para a fronha branca na cesta de arame na frente da minha bicicleta,
sabendo o que havia dentro. Senti a luz, como se estivesse flutuando, um leve
zumbido no meu ouvido. Estava com uma fúria fria e não pensava muito em
nada. Apenas em John. Como eu poderia melhorar para John, fazer tudo ficar
bem para John. Antes que eu percebesse, cheguei.
O velho caminhão de Wayne estava estacionado em frente da casa.
Casa pode ter sido uma palavra muito forte. Era realmente mais um
barraco — quatro paredes e um telhado. O interior era pequeno e dividido por
paredes finas como papel, dividindo-se em dois cômodos, um banheiro e uma
pequena cozinha. Eu só tinha estado dentro uma ou duas vezes, dado que
John estava envergonhado por isso.
Eu disse a ele repetidamente que ele não tinha necessidade de ser
assim, que não me importava de onde ele veio. Ele não queria minha piedade
nem minha caridade. Quando dei alguma coisa para ele, não foi por piedade.
Foi porque queria cuidar do que era meu e garantir que fôssemos claros sobre
o assunto.
Eu cuidaria do que era meu.
John nunca se machucaria novamente.
Desembrulhei a arma do meu pai da fronha, deixando minha bicicleta
apoiada em seu suporte. Enrolei a fronha no meu pescoço, mas não cobri meu
rosto. Estava apenas indo assustá-lo, disse a mim mesmo, mas queria que
visse quem era. Estava indo só assustar Wayne, dizer a ele que era melhor
ficar longe de John ou da próxima vez que eu viesse ali, atiraria nele. Atiraria
nele e não me sentiria mal sobre isso.
Ou, uma voz sussurrou na minha cabeça, você poderia apenas atirar
nele agora. Quem vai dizer que isso não vai acontecer de novo? Quem pode
dizer que no momento em que John precisa voltar para casa, seu pai não vai
vencê-lo novamente? Talvez ainda pior? Talvez ele mate John desta vez.
Talvez John vá para casa em poucos dias, e Wayne coloque as mãos em torno
de sua garganta novamente e sufocando-o até que todo o ar tenha
desaparecido de seu corpo e seu coração tenha parado em seu peito. Você
nunca mais o veria e pensaria nesse momento, em que poderia ter parado
toda a dor. Você poderia ter parado toda a dor.
Mas está errado, pensei. Não matarás.
Não matarás? Isso riu de mim. Vai ficar e deixar John ser morto?
Você não fará nada?
Não bati. Abri a porta.
O ar estava quente dentro do barraco, estagnado e grosso. Dei um
passo para dentro, meus olhos esbugalhados enquanto eu olhava ao redor da
sala em olhares rápidos, minhas mãos tremiam, o cano da arma do meu pai
batendo contra a minha coxa. Meu dedo apertou contra o gatilho até que eu
me forcei a soltar meu aperto.
— Wayne? — Resmunguei.
Nada.
Ele não estava em nenhuma das camas sujas do beliche pressionadas
contra a parede distante que ele e John dormiam. Eu estava hiperconsciente
de cada pequeno passo arrastado que eu dava, cada pequeno rangido e
gemido do barraco. Não conseguia ouvir nenhum outro movimento além do
meu, embora minha respiração irregular fosse como um tornado em meus
ouvidos.
— Wayne?
Nada.
Talvez ele tenha ido embora, pensei. O caminhão está na frente, mas
talvez ele apenas tenha começado a andar.
Dei outro passo.
Talvez ele continue andando, nunca parando uma vez para olhar para
trás.
Outro passo.
Talvez ele nunca olhe para trás e nunca mais volte, e John e eu
nunca mais teremos de nos preocupar novamente, e vamos viver juntos e
vamos envelhecer juntos e vou amá-lo até o dia em que morrermos. Não.
Além disso. Vou amá-lo para sempre.
Mais um passo em volta da cadeira quebrada e eu...
Meu pé bateu em alguma coisa no chão. Olhei para baixo.
Wayne Kemp estava deitado esparramado de costas no chão. Por um
momento, pensei que estivesse morto, mas então seu peito se moveu
levemente. Uma inspiração superficial, uma leve expiração. Uma pausa que
pareceu durar por anos. Então outra respiração, e outra fora. Cada expiração
trouxe um forte cheiro de bebida alcoólica.
Ele tinha uma contusão escura em sua bochecha, onde parecia ter
sido atingido por um soco. Fora isso, não pude ver nenhum sinal de ferimento,
e me perguntei se John o havia acertado com outra coisa. Então vi uma
garrafa vazia deitada de lado perto da mão estendida, uma gota âmbar de
uísque pendurada na boca aberta da garrafa. Pequenos pontos brancos
cobriam o chão ao redor dele e, quando eu dei um passo mais perto, ouvi um
barulho sob o meu pé. Olhei para baixo enquanto movia minha perna e vi que
tinha pisado em um dos pontos brancos, transformando-o em pó.
Comprimidos. Comprimidos jaziam espalhados por todo o chão, em
meio a pequenos fragmentos de vidro marrom que haviam sido uma garrafa
de remédios. Eu não sabia que tipo de drogas eram, e isso não importava.
A única coisa que importava era o sangue seco e duro que cobria
seus dedos fraturados quando meus olhos se dirigiram para as mãos de
Wayne. Os nós dos dedos que ficaram machucados quando bateram em John.
Sangue em suas mãos que provavelmente veio de John. Tudo que eu podia ver
era o sangue e quão grandes eram suas mãos, como elas poderiam facilmente
ter se enrolado na garganta de John e apertado e apertado até que John não
pudesse respirar, até que a vida fosse lentamente sufocada para fora dele.
Minha mão apertou a arma.
Eu me movi para ficar acima dele, olhando para o rosto dele.
Levantei a arma.
Ele abriu os olhos.
Estavam turvos e desfocados, vagando pelo meu rosto, sem prestar
atenção na arma na minha mão.
— O quê... — Ele começou e depois parou. Sua língua disparou,
raspando os lábios secos e rachados. — O que está acontecendo? — Sua voz
era um estrondo profundo que soava muito parecido com seu filho, tive de
lutar contra o arrepio que passou por mim.
— Sabe quem eu sou? — Perguntei-lhe calmamente.
— Você é... Você...?
— Sim, eu.
Ele franziu a testa enquanto tentava se concentrar, e reconheci o
momento em que ele realmente me viu. Ele estreitou os olhos e tentou se
sentar.
—O que diabos está fazendo aqui? — Suas palavras foram
pesadamente arrastadas, seja das pílulas ou bebida ou ambos, eu não sabia.
— Você machucou John. — Eu disse a ele com firmeza. — Você não
deveria ter feito isso.
— Maldito viadinho. — Ele murmurou, esfregando as mãos sobre o
rosto. — Puta merda! — Ele tentou se levantar, mas caiu de volta no chão com
um gemido. Pegou a garrafa vazia ao lado dele e inclinou-a até os lábios,
grunhindo quando nada saiu. Jogou para longe dele e ela saltou pelo chão,
mas não quebrou. Por um momento, pareceu que desmaiou de novo, seus
olhos rolando de volta para dentro de sua cabeça. Então começou a murmurar
palavras que não consegui entender e esfregou as mãos no chão, derrubando
as pílulas descartadas.
— Você não toca nele novamente, entendeu? — Eu disse, levantando
a minha voz. Trouxe a arma, ignorando o jeito que minha mão tremia. — Você
fica longe dele ou vou te matar.
Wayne fechou os dedos sobre uma pílula no chão.
— Deixe-me sozinho, porra. — Ele murmurou para mim. — Saia da
minha casa. — Ele levou a pílula aos lábios engolindo-a. Encontrou outra e
engoliu. E outra. E outra. — Está tudo acabado na merda. — Disse ele,
parecendo delirante. — Tudo se foi agora. Ela não vai voltar. — Outra pílula.
Outra. Outra. — Ela não volta para cá e não me importo. Não me importo mais
com isso.
Abaixei a arma.
Ainda é um pecado se não fizer nada. Você pode não puxar o gatilho,
mas pode muito bem ser você. Ainda conta aos olhos de Deus se não faz nada
enquanto ele se mata.
Pensei no rosto deformado de John, o jeito que ele segurava seu
lado. Pensei nos hematomas e rupturas que eu tinha visto nos últimos três
anos. Pensei em todos os machucados que lhe ocorreram durante todos os
anos em que não o conhecia. Eu estava indo até você, ele disse. Para
melhorar. Jackie, juro que tentei. E ele tentou, mas esse animal o segurou.
John pode ser maior do que eu, pode ser o mais forte, mas ele
precisava de mim tanto quanto eu precisava dele, talvez até um pouco mais.
Ele precisava que eu fizesse bem as coisas, para afastar todas as
preocupações. Precisava de mim para defendê-lo quando ele não podia se
levantar sozinho.
Precisava de mim para acabar com toda a sua dor.
Outra pílula. E outra. E outra.
Por fim, Wayne Kemp parou de engolir comprimidos, suas mãos se
contraindo em seus lados. Seu corpo ainda estava por um momento, mas
então ele começou a agarrar, suas pernas tremendo pelo chão, suas coxas
batendo nas minhas canelas. Dei um passo para trás enquanto ele tremia,
seus olhos revirando em sua cabeça. Pensei em sair, mas não consegui
encontrar forças para ir até a porta. A sala estava mais quente do que quando
cheguei, e um fedor encheu o ar enquanto ele vomitava, cobrindo o rosto em
regatos de líquido marrom. Pílulas semidissolvidas estavam presas em suas
bochechas. Sua testa. No cabelo dele. Houve um ruído espesso de asfixia
enquanto tentava expulsar ainda mais, a cabeça girando um pouco para a
direita, a bílis se derramando no chão sujo.
E ainda não me mexi.
Ficou quieto então. Depois de um tempo, o vômito começou a grudar
no rosto. Seu peito se levantou. Seu peito desabou. Acima. Abaixo. Acima.
Abaixo.
Não se levantou novamente.
O mundo assumiu uma névoa escura. Eu me encontrei caminhando
para uma cômoda rachada e lascada perto da cama que eu conhecia como a
de John. Desembrulhei a fronha do meu pescoço e abri a gaveta de cima,
peguei todas as roupas que pude e empurrei-as para dentro. Olhei por cima do
meu ombro a cada poucos segundos, com certeza de que Wayne Kemp não
estava morto. Com medo de que ele se levantasse atrás de mim, vômito
escorrendo pelo seu rosto quando ele levantasse as mãos para colocá-las em
volta do meu pescoço, me chamando de bicha maldita porque eu tinha pecado.
Pequei contra Deus, fui condenado por isso e ele iria me sufocar. Ele
enfiava comprimidos na minha garganta até me arrastar para o inferno.
Mas Wayne não se mexeu.
Não se mexeu até eu sair e perceber que estava segurando minha
respiração e explodiu fora de mim. Ofeguei o máximo de ar que pude. Parecia
limpo. Parecia seco. Parecia normal. O dia estava claro. Pássaros cantavam de
árvores distantes. Um carro roncou na estrada. Era um 53 Hudson Wasp. E eu
sabia disso porque tinha visto um novo em um lote no ano anterior e tinha
ficado louco por sua forma elegante, seus pneus de parede branca. Tudo
parecia normal. São.
Peguei minha bicicleta e me afastei do homem morto.
John ainda estava dormindo quando espiei o quarto a caminho do
quarto dos meus pais. Tirei a arma e coloquei as balas de volta na gaveta. A
arma voltou para a caixa. A caixa voltou para o armário. Fechei a porta do
quarto atrás de mim antes de voltar para o meu quarto.
John se mexeu quando entrei na cama ao lado dele.
— Oi. — Ele disse baixinho, pressionando a testa na minha.
— Oi. — Sussurrei de volta, vendo o rosto de seu pai em minha
mente. Eu me inclinei para frente e rocei meu nariz contra o dele, tentando
chegar o mais perto que pude. — Está se sentindo melhor?
Ele assentiu com os olhos abertos, me observando.
— Sempre melhor aqui.
— Sempre vai ser assim, ok? Sempre.
— Você jura?
— Sim.
— Diga isso, Jackie. Diga que você jura.
— Eu juro, John.
— Jura que é você e eu? — Ele parecia feroz.
— Eu juro. Juro por tudo que tenho.
— Acordei e você não estava.
Esperei.
Ele tocou minha bochecha.
— Aonde você foi, Jackie?
— Fui e peguei algumas de suas roupas. — Não conseguia desviar o
olhar.
— Wayne?
— Não importa.
— Você me ama, Jackie?
Eu amava. Eu o amava com todo o meu coração, embora ainda não
tivesse dito a ele. Não em tantas palavras. Não sabia se era a coisa certa a
fazer. Não sabia exatamente o que éramos. Não tínhamos feito muito além de
beijar e nos esfregar um no outro desde aquele dia no lago, mas sabia que ele
era o meu dono como ninguém mais seria. Acho que o amei desde o primeiro
dia. Então eu disse a ele.
Seus olhos brilharam.
— É?
— É.
— Eu também, Jackie.
Eu não sentia mais frio.
— Eu sei. — Eu disse a ele, mas ainda era bom ouvir.
— Então, se alguém perguntar, você estava aqui comigo, ok?
Eu hesitei.
Ele balançou sua cabeça.
— Não. Você não pode me dizer que me amou desde o começo e não
concordar comigo sobre isso. Não é como essas coisas funcionam, Jackie. Você
se importa comigo agora. Você esteve aqui comigo o tempo todo, entendeu?
Eu assenti.
— Diga isso! — Ele retrucou, me sacudindo um pouco. Seus olhos
pareciam loucos, como se pensamento de eu ser levado para longe dele fosse
quebrá-lo ao meio. Percebi então que ele sabia o que aconteceu com Wayne.
Não os detalhes, mas sabia.
— Estive aqui com você, John. — Eu disse asperamente. — Estive
aqui com você o tempo todo. Trouxe você para casa porque ficou ferido e
fiquei aqui o tempo todo.
Ele olhou para mim mais um pouco, certificando-se que eu estava
dizendo a verdade. Deve ter ficado satisfeito com o que viu porque se
acalmou, pressionando-se contra mim novamente. Senti seus lábios em
minhas bochechas e só então percebi que estava chorando.
— Eu te amo. — Disse ele. — Sempre amei. Sempre amarei.
Então ele me beijou novamente. E enquanto tudo não estava certo no
mundo, já estava um pouco melhor.
A polícia veio depois para dar a notícia de que parecia que Wayne
havia se matado. Deram uma olhada em John e souberam que ele havia sido
espancado por seu pai e pensaram que Wayne engoliu um monte de pílulas por
causa de algum tipo de culpa. Meus pais foram chamados para casa, e eles me
levaram para ver John no hospital onde havia sido levado. Ele tinha três
costelas fraturadas e contusões em suas cordas vocais.
Não havia dúvida de onde John iria quando saísse. Meus pais eram
bons cristãos e bons cristãos acreditavam em ajudar os menos afortunados.
Olharam para John com pena em seus olhos, dizendo-lhe que o Senhor
trabalhava de maneira tão misteriosa. Ele moraria conosco, disseram. Ele
viveria conosco porque seria uma coisa de caridade, especialmente porque
meu pai era um homem de Deus. Ele iria à igreja toda quarta e domingo, mas,
pelo menos, teria um lugar para dormir à noite.
John não chorou com a perda de seu pai, nem nunca me acusou de
fazer algo errado. O abuso que tinha sofrido nas mãos de Wayne Kemp não
era um segredo, e se eu não tivesse insistido tão veementemente que estive
com ele naquela tarde, tenho certeza de que outros teriam tomado seu
estoicismo como culpa por um crime que ele não havia cometido. Algumas
pessoas ainda sussurravam, porém, que achavam estranho um menino não
chorar com a morte de seu pai, independentemente do que viesse antes.
Certamente isso significava algo, eles diziam.
John não chorou simplesmente porque achava que não tinha nada de
que ficar triste. Seu pai foi embora e tudo o que John descobriu, na esteira da
destruição que foi sua infância, foi alívio.
Foi naquela primeira noite em sua nova casa, quando minha mãe
apagou a luz e fechou a porta atrás dela, que deixou transparecer esse alívio.
Assim que os passos de mamãe se afastaram da porta, ele rolou na cama
(nossa cama, pensei maravilhado) e se enrolou ao meu redor, trazendo minhas
costas para seu peito, sua boca perto da minha orelha, apertando-me com
força contra ele. Como que achasse que eu desapareceria dentro e nos
tornaríamos uma pessoa.
— Você está em casa. — Sussurrei para ele no escuro, significando
esta casa. Trilhei meus dedos sobre seus braços.
— Você está em casa. — Ele sussurrou de volta, me abraçando.
Beijou meu cabelo.
E, então, nós dormimos.

O Sol Se Estende Ainda Mais

— Jackie? — Ele me pergunta agora.


— Sim?
— Não foi pecado.
Olho para ele, usando minha mão livre para limpar meus olhos.
— O quê?
Ele tem aquele pequeno sorriso no rosto.
— O que fez não foi um pecado.
— Deixei um homem morrer na minha frente. — Digo rispidamente.
— Poderia tê-lo parado. Não fiz nada.
— Você fez, no entanto. Você me protegeu.
— Sim. Não sei se isso justifica. — Olho para longe, incapaz de
encontrar seus olhos.
Ele suspira através da máscara de oxigênio e começa a tossir
novamente. Seguro sua mão com força, esperando que sua tosse passe,
sabendo que não há nada que eu possa fazer para pará-la. Pelo menos não
esta coisinha, essa tosse que envolve todo o seu corpo. Posso parar o resto, no
entanto.
E se a luz do sol entrando pela janela fosse uma indicação, já era
quase hora de eu fazer meu trabalho como marido e amigo.
— Era o certo. — Ele finalmente diz, sua voz mais fraca da tosse. Ele
não deveria falar tanto assim, mas não suporto impedi-lo. Não quando
estamos tão perto do pôr do sol. Eu não posso. Egoísta, mas não me importo.
Preciso ouvir sua voz. — Foi certo porque você me salvou, Jackie. — Uma
respiração profunda em sua máscara de oxigênio. — Quem sabe o que teria
acontecido se eu tivesse ficado?
— Ele era seu pai.
— Claro, Jackie. Mas os pais também podem ser monstros. Você
assustou o monstro.
Lágrimas queimam meus olhos.
— É?
— É. Não tinha uma casa antes de você. Você fez uma para mim
quando olhou para mim pela primeira vez. Sua mãe e seu pai podem nunca ter
sabido sobre nós, mas eu os amava como se fossem meus. E você os deu para
mim. Você me deu tudo, Jackie. Como eu poderia te culpar por qualquer coisa
quando você é tudo?
Ao longo dos anos, o horror do que eu fizera diminuíra, mas nunca
me abandonava. Os pesadelos ainda vinham de vez em quando: Wayne
estendia a mão para mim enquanto pílulas meio digeridas caíam da boca dele.
Mas eles são poucos e distantes agora. Seu rosto se transformou em nada
além de um borrão.
Não sei se minha alma está condenada ou se estou em perigo de ir
para o inferno, mas encontro consolo no fato de que Wayne não poderia mais
tocar em John. Minhas ações naquele dia não foram ditas entre nós até agora.
O que aconteceu naquele dia há muito tempo. Minha confissão acabou agora, e
sei que faria de novo se precisasse. Faria tudo de novo, independentemente
das consequências. Talvez esteja condenado ao inferno. Mas isso não importa.
Se Deus em sua infinita sabedoria pode me perdoar por esse dia,
então talvez Ele me perdoe pelo que tenho de fazer hoje.
Um ato de libertação. Um presente para o meu homem.
— Você tem certeza disso? — Ele me pergunta, só porque conhece
todos os meus pensamentos. — Não vou obrigá-lo a fazer isso. Posso fazer
isso sozinho, Jackie. Só vou precisar da sua ajuda um pouco, mas posso fazer
isso sozinho.
Meu olhar se encaixa no dele.
— Não! — Digo duramente. — Eu te disse, John Kemp! Eu te disse
que não tem permissão para ir sozinho. Sabe que não vou me arriscar! —
Independentemente das minhas crenças em minha própria alma,
independentemente de minhas crenças na Palavra de Deus, eu me convenci de
que sei o que acontece com uma alma de um suicida. Limbo. Um abismo. Não
vou permitir que isso aconteça. Não com John. Nunca.
O sol se estende ainda mais.
— Estamos perto. — Diz ele, respirando fundo.
— Eu sei. — Força agora. Mostre sua força agora. Você não pode
deixar ele ver. — Vai ficar tudo bem. Eu prometo. — Pareço mais forte do que
me sinto.
— É?
— É, querido. Prometi que não deixaria nada de ruim acontecer com
você, não foi?
Ele me observa com olhos calorosos e quase me divide ali mesmo.
Quase desmorono e derramo todos os meus medos, toda a minha angústia.
Meu sofrimento. Quão perdido já me sinto. Como meu coração já está se
despedaçando, como estou perdendo uma parte de mim mesmo. Sem ele, não
estou completo. Sem ele, não sou inteiro.
Mas não. De alguma forma, eu aguento. De alguma forma,
permaneço intacto. Por agora.
— Você prometeu... — Ele sussurra. — Prometeu que seria você e eu
para sempre.
— Sim. Deus, sim. Para sempre.
E prometi a ele. Depois que pensei que tinha estragado as coisas
para sempre, que nunca mais o veria, ele me encontrou e prometi a ele para
sempre.
— Conte-me. Conte-me a história, Jackie.
Senhor, dá-me força nesta minha hora de necessidade. Por favor, me
ajude a encontrar o poder para fazer o que preciso. Perdoe-me por fazer o que
devo. Proteja-o, cuide dele. Cuide dele como eu cuido. Ame-o como se ele
fosse a melhor coisa do mundo. Porque ele é.
Pôr do sol aparecendo cada vez mais próximo.
E conto a ele a nossa história.

Hoje a Noite e Sempre

— Temos de ficar muito tempo? — John resmungou para mim,


seguindo-me até o caminho para a casa iluminada, como um farol no escuro.
Revirei meus olhos quando olhei de volta para ele.
— John, estamos nos formando no ensino médio. Deveríamos estar
celebrando com todos os outros. Quando vamos fazer isso de novo?
Ele estremeceu ligeiramente quando uma gargalhada veio pela
janela. Vi latas de cerveja no parapeito da varanda, atletas em suas jaquetas
de carteiro por perto, suas garotas arrumadas com destreza ao lado do corpo.
Carros estavam estacionados para cima e para baixo no caminho. Barulho de
buzinas, pessoas gritavam. Havia eletricidade no ar ao redor de todos nós,
sabendo que estávamos tão perto do fim de uma vida e à beira de outra. Eu
estava envolvido em tudo isso. Muito. Demais.
— Assim como quando somos eu e você. — Disse John calmamente.
Lutei contra o aborrecimento que ameaçava subir. Ele não merecia
que eu batesse nele, não por me dizer a verdade. Desde o começo, John
deixou claro que ele não precisava de ninguém além de mim, mas eu não era
como ele. Por mais solitária que minha vida tenha sido até agora, e por mais
que tudo que John tenha me trazido, ainda ansiava por outros, para conversar
com eles, para rir com eles. A última parte dos meus anos de colegial me vi
transformando em alguém diferente, alguém que não tinha sido quando
conheci John. Estava mais confortável na minha pele. Estava mais feliz com
quem eu era. Não aceitava merda de ninguém. Tinha amigos. Tinha respeito.
Tinha um lugar.
Mas também sabia que era tudo por causa de John. Tudo voltava
para ele, e foi por isso que não me permiti ficar com raiva dele. Não pude. Não
era justo para ele. Tudo o que ele sempre quis foi a mim. Como poderia ficar
bravo com ele por isso?
Então, em vez disso, dei uma olhada rápida, certificando-me de que
ninguém estava prestando atenção em nós, e agarrei-o pelo braço e o puxei
para o escuro em torno do lado da casa. Quando tive certeza de que
estávamos sozinhos, pressionei-o contra o tijolo e o cimento, esfregando-me
contra ele enquanto lambia a língua, lambendo sua boca. Ele gemeu baixinho e
colocou as mãos nos meus quadris, me puxando para mais perto, moendo
contra mim. Sua ereção era evidente contra a minha. O beijo estava ficando
molhado, mas não me importei. Nunca me importei com isso com ele.
Quebrei o beijo, ofegando, encostando minha testa em seu ombro.
Ele enrolou os braços em volta de mim, deslizando os dedos no meu cabelo.
Tomei uma decisão.
— Hoje à noite. — Eu disse a ele, beliscando seu pescoço.
Ele assobiou.
— O quê?
Eu me afastei, olhando em seus olhos arregalados.
— Hoje à noite. — Disse novamente. — Eu quero, preciso de você.
Ele procurou meu rosto, suas mãos paradas no meu cabelo.
— Tem certeza, Jackie? — Ele perguntou devagar. — Você disse que
queria esperar até saímos de casa. Nem sei se vamos saber o que fazer. —
Isso não o impediu de pressionar contra mim novamente, apertando seus
quadris nos meus.
Estendi a mão entre nós e apertei seu pau através do jeans áspero,
rindo baixinho da maneira como ele gemeu e empurrou para frente em meu
aperto.
— Tenho certeza de que vamos descobrir alguma coisa. — Eu disse,
beijando seu pescoço. — Vamos ficar aqui por um tempo e depois vamos para
o lago. Só você e eu.
— Você promete?
— Sim, John. Prometo. Vamos apenas dizer oi para algumas pessoas,
tomar um par de cervejas e depois sairemos daqui.
— Com quem quer conversar? — Ele me perguntou, desconfiado.
Merda.
— Uh... Tony nos convidou. — Convidou a mim, na verdade.
John ficou tenso embaixo de mim.
— Convidou agora? — Sua voz era monótona.
Suspirei.
— Não é como você pensa.
— Oh? E o que penso, Jack?
Porra. Ele estava chateado. Eu deveria saber que isso aconteceria.
Talvez devesse ter vindo sozinho. Dei um passo para trás e coloquei minhas
mãos nos bolsos, olhando para os meus pés. Podia sentir o olhar de John em
mim, mas não consegui encará-lo.
— John... — Comecei. Mas então fechei minha boca, sem saber o que
dizer.
— Você sabe que não gosto dele. — Disse John calmamente.
— Ele não é tão ruim assim. Eu... Acho que ele é... Como nós. — E foi
por isso que eu estava lá, por isso que estávamos lá.
Sempre me perguntei se havia outros como nós lá fora; tinha certeza
de que tinha de haver. Nem sabia como eu sabia sobre Tony. Talvez apenas
uma vibração, uma aparência ou algo assim. Mas não conseguia afastar a
sensação de que ele era como John e eu. Pensei que poderia nos ajudar a ter
alguém como nós com quem pudéssemos conversar. Com quem eu poderia
conversar.
John bufou.
— Não importa.
Olhei para ele bruscamente.
— O que isso deveria significar?
— Você não vê, não é?
— Vê, o quê? — Estava irritado novamente e dei um passo para trás.
— Ele gosta de você.
— Somos amigos. — Mais ou menos.
— Não. Mais que isso. Ele não é exatamente sutil sobre isso, Jack.
Não vê o jeito que ele olha para você como eu. Quando você não está vendo,
ele está te observando.
— Besteira.
Ele fez uma careta para mim.
— Improvável.
— Por que fica olhando para ele, a propósito? — Bati nele, o ciúme
rugindo através de mim. — O que fica tentando encontrar? — Por um
momento, tudo que queria fazer era encontrar Tony e rasgá-lo em pedacinhos
para que John nunca tivesse a chance de olhar para ele novamente.
— Cale a boca, Jack. Sabe que não é assim. Além disso, é ele quem
não consegue manter os olhos para si mesmo.
— Bem, mesmo se ele for, eu não estou olhando de volta.
— Certo.
— John.
— Jack.
— Você está chateado comigo.
— Não, não estou.
— Você só me chama de Jack quando está chateado.
Sua carranca se aprofundou, mas ele se recusou a olhar para mim,
então eu sabia que eu o tinha.
— Tolo. — Ele rosnou. — Falando como se me conhecesse.
Estreitei meus olhos e tomei um ataque ameaçador.
— Agora, ouça aqui. Eu te conheço melhor do que ninguém no
mundo. Aguentei sua merda por cinco anos agora, e não há ninguém que te
conheça como eu. Retire o que disse neste instante!
Ele tentou manter seu rosto irritado, mas os lados de sua boca
começaram a se levantar e ele estendeu a mão e me agarrou pela frente da
minha camisa e me puxou de volta para ele. Ele se inclinou para frente e eu
senti seus lábios roçarem minha testa enquanto ele ria profundamente.
— Retiro o que disse, Jackie. Não há ninguém que me conheça como
você.
— Você está certo. — Murmurei. — Vou te mostrar, seu tolo idiota.
Ele levantou a cabeça, suas mãos indo para o meu rosto, levantando
meu olhar, então olhei nos olhos dele. O que vi não foi diferente do que vi
antes. Seus olhos escuros brilhavam com calor e confiança, um olhar que eu
sabia que ele só dava para mim. Não havia mais ninguém de quem John
precisasse, ou assim ele disse. Não havia mais nada que ele queria. Ele não
precisava de amigos. Não precisava de colegas. Não precisava da interação
social. Enquanto me tivesse, ele estava bem. Estava bem. Tudo estava certo
em seu mundo.
Eu gostaria de poder ser assim. Para mim. Para ele.
Mas eu não conseguia. Não completamente. Ainda assim, eu daria a
ele tudo que pudesse porque ele não merecia nada menos que meu tudo.
— Você não precisa ficar com ciúmes. — Eu disse a ele, mesmo que
parecesse hipócrita como todo o inferno, dado que me senti da mesma
maneira momentos antes. O pensamento de ele olhar para qualquer outra
pessoa além de mim me deixou enjoado. — Estou aqui com você.
— Então por que tem de falar com Tony? — Ele franziu a testa.
— Eu só... Você não quer conhecer os outros como nós, John? Não
quer saber que não estamos sozinhos?
Ele roçou minha bochecha com o polegar.
— Não estou sozinho, Jackie. Tenho você.
— Eu sei. Não é isso o que quero dizer, no entanto. Eu te amo, ok?
Não é disso que se trata. É sobre estar perto de outras pessoas que são iguais.
Outros caras, você sabe...
— Gays?
— Certo. Sim.
— Por que não escolhe outro cara gay, então? — Ele disse, franzindo
a testa novamente. — Um que não queira colocar as mãos na sua calça.
Eu revirei meus olhos.
— Tenho certeza de que não é o caso, cara grande. E não é como se
estivéssemos crescendo em árvores ou qualquer coisa. Como diabos espera
encontrar mais?
— Se Tony é, então haverá outros. Não sei porque precisa ser Tony.
— Não conheço nenhum outro, John. — Embora, se eu fosse honesto
comigo mesmo, não doía que Tony Accosi parecesse como ele. Ele era italiano,
com pele morena e cabelos pretos como tinta. Era magro e sempre tinha um
pequeno brilho diabólico em seus olhos, e me peguei olhando uma ou duas
vezes em seus lábios carnudos. Sempre dizia a mim mesmo que era
apreciação e nada mais, e essa era a verdade. Eu não era cego, afinal. Olhar
era parte de ser humano. Seria diferente se tentasse ir mais longe.
Conhecendo-me como me conheço, sabia que não era possível. Já tinha dado
meu coração, e estava seguro de onde ele pertencia. Além disso, sabia que
ninguém que se parecesse com Tony iria querer alguém como eu.
— Por que precisa de outros? — Ele insistiu, parecendo magoado.
Dei de ombros.
— Apenas quem sou, John. Nem sempre pode ser só você e eu, não
importa o quanto eu queira que seja. Eu não posso te tocar aí assim. Temos de
agir normalmente por um tempo.
— Nós somos normais, Jackie.
— Eu sei. — Eu disse, tentando manter minha frustração. — Quis
dizer normal como todo mundo.
Ele me olhou com cautela.
— Não quero ser como todo mundo.
— E você não é. — Assegurei-lhe. — Você é melhor.
— Apenas vamos, ok? Apenas vamos agora. Você não precisa falar
com Tony hoje à noite. Faça isso depois.
— Não vai demorar muito.
Ele bufou.
— Odeio isso.
— O quê?
— O jeito que ele olha para você. Como se soubesse de alguma coisa.
Como se fosse seu dono.
— Eu te disse que não me importo! Eu não olho assim para ele, John.
Juro.
— Tudo bem. — Ele parecia chateado novamente.
— Estou aqui, ok? Estou aqui e nunca vou te deixar. Fui claro? —
Estendi a mão e o beijei novamente, lá no escuro, enquanto as outras crianças
riam e bebiam sem um cuidado no mundo.
Eu invejei-as, por apenas um segundo. Então percebi que não
gostaria de estar em qualquer lugar, mas onde eu estava naquele momento,
em um beijo que era calor com uma pontada de desespero. Eu me perguntei
então por que não podia deixar de falar com Tony. Quase disse a John que ele
estava certo, que deveríamos sair daqui agora, só eu e ele, como deveria ser.
Mas não disse.
— Ok, Jackie. — Ele disse quando nos separamos. — Hoje à noite, no
entanto, certo? Você e eu? Nós vamos... O lago? — Ele parecia nervoso. E
animado. Exatamente como me sentia.
Sorri para ele enquanto beijava a ponta do nariz dele, passando as
mãos pela frente da sua calça jeans.
— Esta noite.
E era sobre esta noite que fiquei pensando dentro da casa, no meio
da multidão, John se arrastando atrás de mim. Esta noite, eu sabia, as coisas
mudariam. Esta noite, eu sabia, nada mais poderia ficar escondido entre nós.
Ouvi sussurros da mecânica por trás do que dois homens podiam fazer juntos
e não fiquei perturbado com o pensamento. Pelo contrário; tive de evitar
pensar nisso para não ter uma ereção. Não sabia se estava pronto para a
sodomia, e não sabia entre mim e John quem faria o que com quem, mas senti
o comprimento dele contra mim inúmeras vezes através da roupa. Até o vi
flácido algumas vezes no chuveiro. Mas eu queria muito isso e queria John em
minhas mãos quando isso acontecesse. Queria prová-lo, cada centímetro dele,
para que não houvesse nada deixado em segredo. Eu conhecia sua alma;
agora queria conhecer também o seu corpo.
E queria estar nessa casa cada vez menos.
Acenei para algumas pessoas que chamaram meu nome. Algumas até
disseram olá a John, mas ele mal levantou a cabeça enquanto se arrastava
atrás de mim, concentrando-se em mim apenas em mim, roçando sua mão
contra a minha de vez em quando, escondido pela multidão. Eu peguei e
apertei seus dedos uma vez e olhei de volta para ele. Vi seu pequeno sorriso
quando nossos olhos se encontraram por um segundo, e sabia que ele estava
pensando o mesmo que eu: esta noite. Esta noite.Esta noite.
Encontramos um canto vazio, e John me encostou na parede, sem
tocar, mas me forçando a sentir o calor irradiando dele. Para qualquer um que
nos observasse, pareceria que estávamos conversando calmamente sobre
coisas sem importância. Mas ele me disse que me queria há tanto tempo, que
sonhava em como seria segurar meu pau em suas mãos, arrastar sua língua
no meu peito, chupar meus mamilos até que eu não pudesse fazer nada além
de gemer e sussurrar meu nome. Olhei para ele, tentando evitar ofegar,
tentando evitar arrastá-lo para um dos quartos e foder sua boca.
— Seu idiota. — Eu disse com a voz embargada.
Ele riu.
— Vou pegar uma cerveja para nós. Então nós vamos.
Balancei a cabeça, incapaz de dizer mais. Ele sorriu maliciosamente
para mim, cabelos escuros caindo ao redor de sua testa enquanto se afastava
de mim, seus olhos nunca deixando os meus. Finalmente, com uma piscadela,
ele se virou e dirigiu-se para a cozinha. Respirei fundo para me acalmar, me
virando para esconder minha ereção da multidão. Tomei outro fôlego e...
— Jack. — Disse uma voz satisfeita. — Fico feliz em ver que está
aqui.
Abri meus olhos para encontrar um sorriso brilhante a centímetros de
mim. Engoli.
— Tony, oi. — Dei um passo involuntário para trás, dado o quão perto
ele estava de pé. Cheirava picante. Masculino. Diferente.
Esse brilho nos olhos dele estava mais brilhante que o normal.
— Sozinho? — Ele perguntou, embora tivesse a ideia de que ele tinha
me visto parado aqui com John alguns momentos antes e tinha esperado até
que eu estivesse sozinho antes de fazer o seu caminho.
Eu não era um garoto estúpido, de jeito nenhum.
Independentemente do que disse a John, sabia que Tony queria algo
de mim. Mas só queria falar com ele. Descobrir o que ele sabia. Conversar com
alguém sobre essas coisas além de John.
John sabia o que queria e era eu. Eu o queria também, mas precisava
saber que não estávamos sozinhos.
— Uh, sim. John foi buscar algumas cervejas. Ele deverá voltar logo.
Um olhar de leve desdém surgiu em seu rosto quando olhou para a
cozinha. E então ele sorriu.
— Parece que ele está um pouco ocupado.
Segui seu olhar e vi John através da multidão, de pé perto da
cozinha. Fora encurralado por Betty Vannatta. Ela começou a gostar de John
durante o último ano e era uma coisinha tenaz que eu não podia evitar de
desgostar mais e mais toda vez que a via. Não que eu não confiasse em John,
nada disso. Não confiava nela. Mas não ajudava saber que John podia achar
mulheres atraentes, mesmo que ele nunca fizesse nada sobre isso. Mas Betty
era bonita, e ela podia tocá-lo de maneiras que eu não conseguia na frente de
todos, não importando o quanto eu desejasse isso. Ela podia fazer coisas com
ele que eu não podia.
E agora ela tinha a mão no braço de John e ele não estava fazendo
nada sobre isso. Em vez disso, ria daquele jeito quieto que fazia comigo, mas
em algo que ela disse — seus olhos nunca deixando os dela. Ele se encostou
na parede como se estivesse se acomodando para uma conversa. Como se ele
quisesse estar onde estava.
Esta foi a primeira vez que o vi confortável em torno de alguém da
nossa idade diferente de mim, e isso não funcionou direito. Tudo o que eu
conseguia pensar além da raiva ardente era o jeito que seus lábios se
encaixavam nos meus, o jeito que seu corpo tinha se sentido contra o meu
quando o pressionei enquanto estávamos na parte escuro da casa, onde
ninguém podia nos ver.
— Uma vez que Betty vê algo que ela quer, enfia suas garras, com
certeza. — Disse Tony.
Eu podia ouvir diversão em sua voz acima do rugido em meus
ouvidos. Tive de me impedir de atravessar o local e arrancar sua mão sobre
ele. Eram absurdos, esses sentimentos. Eu conhecia John. Melhor que qualquer
pessoa no mundo. Confiava nele. Hoje à noite nós... finalmente. Esta noite. E
eu o amava. Ele era meu amigo. Ele era meu...
Ele deu a Betty um pequeno sorriso, aquele que sempre me dava.
— Você está bem? — Tony perguntou baixinho, parecendo
preocupado.
Eu me virei antes que John pudesse me ver encarando-o.
— Tudo bem. — Eu disse asperamente.
— Você quer ir a algum lugar e conversar? — Ele estendeu a mão e
tocou meu ombro.
Conversar. Isso é tudo que eu queria fazer. Conversar com alguém
como eu. Com alguém que pudesse entender o que John e eu estávamos
passando. Isso era tudo que eu queria. Essa era a única razão pela qual vim
aqui esta noite. Foi a única razão pela qual eu era amigo de Tony.
Apenas para conversar.
— Sim. Você tem algum lugar sem muito barulho?
Tony sorriu.
— Eu tenho um lugar assim.
Segui-o até as escadas e, quando cheguei ao topo, olhei para trás
apenas uma vez e vi John ainda de pé no mesmo local, a mão de Betty ainda
em seu braço. Ele ainda sorria. Virei-me e segui Tony pelo corredor.
Ele parou na frente de uma porta perto do final do corredor.
— Estamos bem aqui? — Perguntei a ele. — Não quero nenhum
problema. Nem sei de quem é essa casa.
Ele abriu a porta enquanto ria.
— Esta é minha casa, Jack. Tenho certeza de que está tudo bem eu
estar aqui.
— Oh. Não sabia que morava aqui.
Ele se virou para olhar para mim, gesticulando para dentro do quarto.
— Eu convidei você. — Disse ele. — É a minha festa, afinal de contas.
Hesitei.
— Talvez...
— Está tudo bem, Jack. John provavelmente ainda está ocupado com
Betty e nem notará que saiu.
— Oh. Acho que sim. — Tentei não deixá-lo ver o quanto aquelas
palavras machucavam.
— Vamos. — Disse ele, acenando para mim novamente. — Eu só
quero falar com você.
Conversar. É isso aí.
Entrei no quarto e ele fechou a porta atrás de mim. O quarto era
exatamente como ele — endireitado, arrumado e refinado. A cama estava
feita, o cobertor esticado. Nenhuma roupa espalhada pelo chão, nenhum
exemplar de Argosy ou revistas em quadrinhos saindo de debaixo da cama. O
quarto era como Tony. Não é como o meu quarto. Nosso quarto. O meu e o de
John.
— Sobre o que quer conversar? — Perguntei a ele, batendo os dedos
nervosamente contra a mesa, olhando para o pôster do Philadelphia Athletics
em sua parede.
Ele deu de ombros enquanto se movia e sentava na cama de solteiro.
— Realmente não sei, acho. Nunca tive a chance de falar com você
sozinho. Sempre tem sua sombra com você. — As palavras saem um pouco
zombeteiras.
— John e eu... — Comecei, mas depois parei. John e eu o quê? Como
eu ia terminar isso? Não conhecia Tony tão bem. Não sabia se minhas
suspeitas sobre ele estavam corretas, independentemente do que John disse.
Não falaria nada se isso significasse nos colocar em perigo. Não podia fazer
isso com ele. Eu não faria. — John e eu somos melhores amigos. — Disse com
sinceridade. — Ele mora na minha casa. Teve uma vida difícil, e...
Essencialmente assassinei seu pai. Estamos apaixonados, mas às
vezes me pergunto o que ele vê quando olha para mim. Se parte dele se
ressente de mim. Me odeia. Não acho que poderia suportar se ele odiasse. Não
acho que sobreviveria se ele me deixasse. Você é, Tony? Você é como nós?
— Oh, tenho certeza que ele tem. — Disse Tony com desdém. — Mas
nunca se cansa dele o seguindo por toda parte?
— Não. Eu não. John é ”meu“ amigo.
— Ah. Bem, não vamos mais falar sobre ele.
— Ok? Sobre o que você quer falar?
Ele olhou para mim e olhei para trás, encontrando seus olhos
escuros.
— Eu vi você... — Disse ele lentamente.
— Oh? — Comecei a suar.
— Sim.
— Ok.
— Olhando para mim. Você gosta de me olhar, Jack?
Meu rosto estava quente, como se estivesse corando.
— Não. —Eu disse rapidamente.
Ele riu novamente.
— Oh, isso é muito ruim.
— Você gosta de beisebol? — Eu disse, apontando para o pôster do
Athletics, desesperado para mudar de assunto. Eu não estava pronto, parecia.
Ainda não. Não para falar sobre isso. Parecia uma armadilha ali. No seu
quarto.
— Claro. — Disse ele, olhando para o cartaz. — Meu pai diz que eles
são um time de merda. Não ganham muito, mas não é por isso que eu assisto
a eles.
— Por quê então?
Ele sorriu para mim e eram todos dentes, todos retos e brancos.
— Marion Fricano.
Dei de ombros.
— Ele é o arremessador. É uma merda também, mas ele é legal de se
olhar. — Tony se virou para mim quando disse as últimas palavras.
Congelei. Isso poderia ter significado alguma coisa, pensei. Não tem
de significar o que está pensando.
Tony levantou-se da cama e tirou o cartaz da parede. Trouxe e ficou
perto de mim, segurando o cartaz entre nós. Senti seu ombro escovar o meu.
Ele bateu com o dedo em um rosto na programação.
— É ele. — Ele disse baixinho. — Você acha que ele é bonito, Jack?
— Uh. Claro, eu acho.
— Ele é italiano, como eu. Você gosta de italianos?
— Eu realmente não sei disso. — Tentei dar um passo para longe
dele, mas por algum motivo, meus pés não se moviam.
Ele se virou e deixou o cartaz sobre a mesa, mas não se afastou de
mim, e por um momento me perguntei como seria beijá-lo, para descobrir se
eu gostava dos italianos. Eu me perguntei qual seria seu gosto, se seria
diferente de John. A parte racional de mim sabia que é claro que seria
diferente de John porque não seria John, mas não conseguia me concentrar
nessa voz. Tudo o que eu queria fazer era apenas falar, mas não consegui
encontrar as palavras para dizer qualquer coisa porque os pelos dos braços
dele roçavam os do meu braço, e era como se pequenos estrondos de
eletricidade estivessem passando pela minha pele.
Ele se moveu até ficar na minha frente e tive de olhar levemente para
aqueles olhos escuros.
— Você gosta de mim, Jack? — Ele perguntou.
Eu sabia o que ele estava perguntando, mas fingi-me de tolo.
— Claro, somos amigos.
Ele franziu a testa, mas foi embora rapidamente.
— Nós somos, não somos?
— Sim.
Ele avançou e tocou meus dedos com os dele. Seus lábios se
separaram, sabia que ia me beijar e não sabia se iria impedi-lo.
— Está tudo bem, Jackie. — Ele sussurrou. — Está tudo bem. — Ele
se inclinou para frente.
Jackie. Ele me chamou de Jackie.
Uma lembrança se levantou enquanto seus lábios roçavam os meus:
Ninguém mais vai te chamar assim como eu. Ninguém nunca vai. Você ouve
esse nome e sabe que está vindo de mim.
— Não. — Disse contra ele. — Não. — Pressionei minhas mãos contra
seu peito para afastá-lo, e ele estendeu a mão e me agarrou a ele.
— Você quer isso também. — Disse ele e se inclinou para frente
novamente.
Eu me preparei para empurrá-lo novamente, talvez até mesmo dar
um soco nele quando seus lábios tocaram os meus. Comecei a rosnar e então
ouvi:
— Jackie, você está aqui? — Quando a porta do quarto se abriu.
E tudo ficou frio.
John, o cara que eu queria mais do que qualquer pessoa neste
mundo, estava no quarto, a mão ainda na maçaneta da porta. Um olhar de dor
correu em seu rosto, e percebi que ainda estava de pé com as mãos contra o
peito de Tony, e o rosto de Tony estava perto do meu, tão perto que quando
me virei seus lábios roçaram minha bochecha.
— Não. — Eu disse. — Não, John. Não. Não é isso, juro. — Saí do
aperto de Tony e tentei não correr na direção de John. Parei depois do primeiro
passo, porque John deu um passo para trás para compensar com a mão para
cima como se quisesse me afastar. Observei como seus dedos tremiam.
— Não. — Disse ele, sua voz tremendo.
— John...
— Você sabia. — Disse Tony atrás de mim. — Você sabia, John. Viu o
jeito que ele olhava para mim. E ele sabia o que aconteceria quando chegasse
aqui. Não deixe que ele lhe diga o contrário.
— Não. — Eu disse, dando mais um passo, incapaz de parar de
parecer como se estivesse implorando. Tremi quando John deu outro passo
para trás. — John, eu não sabia. Só queria conversar com ele. Eu te disse. Não
me importo com ele dessa forma.
— E eu te disse o que ele queria. — Disse ele com os dentes cerrados.
— Eu te disse que não era uma boa ideia. Você não me ouviu. Eu te disse.
— É apenas você e eu. — Eu disse. Meus olhos estavam começando a
queimar. — Eu juro. Juro que é só você e eu. Dei outro passo em direção a ele.
— Não se aproxime, Jack. — Ele me avisou, os olhos brilhando. —
Não. Não agora. — Os nós dos dedos em sua mão, segurando a maçaneta,
estavam brancos por estarem agarrados com muita força.
— Jackie. — Eu disse a ele. — Meu nome é Jackie. Você sabe disso.
— Achei que sabia. — Disse ele. — Pensei que sabia muito.
Então ele se virou, batendo a porta atrás dele enquanto fugia.
— Não. — Sussurrei, incapaz de me mover, não acreditando no que
tinha acabado de acontecer.
Parecia surreal, como um sonho que não conseguia acordar. Tudo
estava nebuloso e minha visão estava encoberta. Tudo que conseguia pensar
era John, tudo que poderia querer era John, tudo que conseguia respirar era
John, John, John. John Kemp não pediu muito. Na verdade, a única coisa que
ele pediu foi a mim e não pude nem dar isso a ele. Não pude nem...
— É melhor assim. — Disse Tony atrás de mim. Senti a mão dele cair
no meu ombro. — Você merece alguém melhor que ele. Sempre pensei assim.
— É?
— É. — Ele agitou os dedos contra a pele do meu pescoço. — Você
não precisa dele. Olhe para ele, Jack. Ele é um lixo. Sempre foi lixo. Você não
deve nada a ele. — Ele ficou atrás de mim e pude sentir o calor de seu corpo.
— Ele é...
Ele roçou seus lábios contra minha orelha e fechei meus olhos.
— Eu cuidarei de você. Você pode ficar aqui comigo esta noite, e vou
te mostrar como...
Suas palavras foram cortadas quando me virei e acertei meu punho
em sua mandíbula. A dor explodiu na minha mão e braço. Tony cambaleou
para trás, seu traseiro batendo na mesa atrás dele, o cartaz deslizando para o
chão.
Minhas mãos estavam cerradas em punhos ao meu lado, e tudo que
via era vermelho, tudo que sentia era raiva.
— Você me toca novamente e vou quebrar seus dedos. — Rosnei para
ele. — E juro por tudo o que tenho, se alguma vez falar sobre John dessa
forma novamente, vou te matar.
Ele olhou para mim, os olhos arregalados, segurando a mão em sua
mandíbula.
E foi aí que o deixei.
Voei para fora do seu quarto e desci as escadas. Tantas pessoas
estavam no meu caminho, e parecia que todos gritavam e riam, e eu não
conseguia fazê-los se mexerem, não conseguia tirá-los do caminho. Procurei
aquela cabeça familiar de cabelos negros, aquela pele morena, mas não
consegui encontrá-lo. Fiquei mais frenético, certo de que ele não poderia ter
saído da casa, certo de que não me deixaria aqui, mas incapaz de encontrá-lo
em qualquer lugar.
Apenas alguns minutos depois me deparei com Betty. Tive de evitar
de sacudi-la quando agarrei seu braço.
— Onde ele está?
— O quê?
— John. — Gritei para ela. — Aonde John foi?
Ela afastou-se das minhas mãos.
— Ele saiu. — Disse ela, dando um passo para trás. — Tipo, cinco
minutos atrás. Desceu as escadas e saiu.
Ela disse outra coisa, mas não a ouvi. Já estava empurrando meu
caminho através da multidão até a porta da frente. Quase tropecei quando
cheguei à varanda, cambaleando para evitar cair dos degraus. Estava escuro e
não conseguia ver John em nenhum lugar.
Saí correndo, indo para casa.
Mamãe e papai já estavam na cama quando cheguei lá. Não parecia
que John estivesse lá. Sua bicicleta ainda estava na garagem, ao lado da
minha, encostada. Nada havia sido retirado do nosso quarto. Senti um
momento de alívio quando vi as roupas dele ainda nas gavetas ao lado das
minhas.
Tentei ficar em casa para o caso de ele voltar, mas, dez minutos
depois, fiquei frenético de novo. Deixei um bilhete na cama — SE VOLTAR,
FIQUE AQUI! ESTOU TENTANDO ENCONTRÁ-LO — antes de descer as escadas,
pegar minha bicicleta e ir para o escuro.
Não estava ao redor da máquina de refrigerante, mas não achei que
estaria.
Não estava na escola, escondido debaixo das arquibancadas,
esperando que eu o visse.
Não tinha voltado para a festa, os convidados já estavam começando
a se dispersar.
Não estava no barraco onde costumava morar, embora não fosse
nada além de um casebre enferrujado agora.
Não estava no túmulo de seu pai. Ele nunca foi lá.
Não estava em lugar algum. Não estava em nenhum lugar.
Enquanto corria freneticamente à noite, tentando pensar em qualquer
lugar onde ele pudesse ter ido, imaginei se algum dia eu o veria novamente.
Eu me perguntei se ele já estava em alguma estrada, com o polegar esticado,
esperando alguém parar e pegá-lo, levando-o para lugares desconhecidos. Ele
seria levado de mim para algum lugar distante e nunca mais o veria.
Lágrimas obscureceram minha visão, e queria me repreender por ter
dezoito anos e chorar enquanto procurava por todos os lugares por um menino
que não queria nada comigo. Ele me deixou. Ele me deixou quando precisei
dele. Era culpa dele. Ele era o bastardo. Ele era o idiota. Eu não fiz nada. Eu
não fiz nada, exceto amá-lo.
Mas até eu sabia que tudo isso era mentira. O que aconteceu com
Tony não estava nele. Estava em mim. E eu não tinha escutado. Joguei de
volta em seu rosto.
Acabei no único lugar onde achava que ele não estaria — no lago.
Tinha sido nosso plano vir aqui depois da festa, então imaginei que seria o
último lugar onde estaria. E realmente não estava ali. Não fiquei desapontado
a esse respeito, mesmo que uma pequena parte de mim tenha esperado.
Sentei-me na margem onde o beijei pela primeira vez, tentando
segurar as lágrimas que ameaçavam cair, imaginando o quão longe John já
estaria da nossa pequena cidade e se eu o veria novamente.
Eu não queria mais ninguém. Não precisava de mais ninguém.
A parte lógica de mim, aquela voz irritante, me dizia que John não
tinha o direito de me manter assim, que ele era um bastardo certo por dizer
isso.
Não é justo, disse. Você não pode esperar ser mantido escondido pelo
resto de sua vida só porque ele não quer compartilhar você.
Mas sabia que se isso fosse o que ele queria, eu faria. Faria qualquer
coisa para ficar ao lado dele.
Minhas bochechas estavam molhadas, e deitei minha testa contra
meus joelhos, envolvendo meus braços contra minhas pernas, tentando pensar
em como encontrá-lo, como eu poderia trazê-lo de volta. Pensei em andar pela
cidade novamente até encontrá-lo. Eu me dei alguns minutos para me
recompor, mas não consegui parar os tremores.
Então ele se sentou ao meu lado.
Nem sequer o ouvi se aproximar. Ele deixou um pouco de espaço
entre nós quando se sentou ao estilo indígena e pegou as folhas de grama.
Eu não conseguia encontrar uma maneira de falar, minha garganta
estava muito apertada. Pensei que ele poderia ser uma alucinação, algo que
minha mente faminta de John conjurou apenas para manter minha sanidade.
Mas estendi a mão e cutuquei-o no braço. Ele arqueou uma sobrancelha para
mim, um olhar tão parecido com o dele que me fez desistir de novo. Inclinei
minha cabeça contra meus joelhos e chorei.
Um segundo depois, senti-o envolver o braço em volta dos meus
ombros e me puxou para perto dele. Claro que essa era a sua maneira de dizer
adeus, joguei meus braços em volta do seu pescoço e enterrei meu rosto nele.
Chorei um absurdo que deveria ser um pedido de desculpas, mas isso era mais
como eu implorar para ele nunca me deixar. Ele murmurou pequenos barulhos
enquanto puxava meu cabelo e esperou até que tudo estivesse fora de mim e
eu estava soluçando e fungando contra seu pescoço.
— Pensei que tivesse ido embora. — Sussurrei finalmente. — Não
consegui encontrar você. Pensei que você... — Então minha respiração ficou
presa na minha garganta e tive de parar antes de começar a chorar de novo.
Ele suspirou.
— Eu não deixaria você. Não consigo. Nem mesmo se eu quisesse.
— Você não quer? — Perguntei, mal conseguindo ter esperança.
Sua resposta demorou a chegar.
— Não, Jackie. Não quero.
Beijei seu pescoço.
— Eu estava afastando-o, John. Juro. Deveria ter te escutado, mas eu
ia afastá-lo. Não é ele quem quero.
Ele parecia sem compaixão.
— Não sei se você sabe o que quer.
Eu me afastei dele, subitamente frenético. Agarrei suas mãos e as
pressionei sobre o meu coração.
— Eu sei! Juro que sei! Não precisa se preocupar com isso, ok? Juro.
Não quero mais nada. Só você e eu, ok? Não preciso de mais ninguém e não
falarei com mais ninguém. Eu prometo, John. Ok? Por favor, apenas diga que
está tudo bem.
Ele retirou cuidadosamente as mãos de mim, e naquele momento,
naquele momento frio e aterrorizante, senti a rejeição como um tapa no rosto.
Tinha certeza de que ele não acreditava em mim e fiquei imobilizado de
joelhos na frente dele, com medo de estender a mão, com toda certeza de que
só o afastaria ainda mais de mim.
John olhou para suas mãos em seu colo e o minuto que levou para
ele falar foi o mais longo da minha vida.
— Acho que cometi um erro. — Ele disse baixinho, e meu coração
começou a quebrar.
— John...
Ele levantou a mão, me cortando.
— Agora aguente firme, Jackie. Tenho algo a dizer, e se ainda quiser
dizer alguma coisa para mim quando eu terminar, vá em frente. Ok?
Balancei a cabeça e outra lágrima escorreu pelo meu rosto. Ele deve
ter visto, porque estendeu a mão e usou o polegar para afastá-la. Não
conseguia parar de me inclinar em seu toque, tentando obter o máximo que
pudesse para o caso de nunca mais conseguir de novo. Beijei sua palma, e o
ouvi grunhir como se estivesse com dor, seus olhos um pouco mais brilhantes.
Ele largou a mão e tentei não choramingar com a perda. Ele olhou para o colo
novamente.
— Só queria fazer o certo por você. — Disse ele. — Só queria mantê-
lo seguro e te fazer feliz.
— Você fez! Você sempre...
— Jack, silêncio.
Eu silenciei.
— Mas não tinha o direito — Continuou. — de dizer a você por tanto
tempo que seria apenas você e eu. Não foi justo para você, Jackie. Você e eu,
não somos iguais assim. Você precisa de outros em sua vida. Precisa crescer,
mudar e se tornar o que quer ser. E eu... Eu só preciso de você. Me desculpe.
Sinto muito. Eu te decepcionei e me desculpe. Se você precisa... Se quiser...
Tony... Ou qualquer outra pessoa, ok. Não vou te parar. Posso não gostar
disso. Na verdade, provavelmente vou odiar, mas não vou impedi-lo. Não vou
deixar você. Não posso. Não acho que sobreviveria sem você. Você é meu
Jackie. Sem você, não há eu.
No final do que deveria ser o discurso mais longo que já tinha ouvido,
sua voz era baixa e áspera e podia vê-lo apertando seus punhos em seu colo.
Tinha ouvido e catalogado cada palavra que disse e não mudou nada para
mim. Eu o entendi sim, mas não era o que eu queria. Não era o que precisava
dele.
— Não quero mais ninguém. — Eu disse a ele, tentando me impedir
de gritar, com raiva de que ele pudesse pensar uma coisa dessas.
— Isso me matou um pouco, Jackie. — Ele sufocou, sua voz
quebrando no meu nome. Ele agarrou seus punhos mais apertados. — Abrir
aquela porta, me matou um pouco ao vê-lo contra você. Não sabia quem eu
queria machucar mais: ele ou você. É por isso que saí daquele jeito. Se
ficasse, teria te machucado e não poderia fazer isso. Não serei como meu pai.
Lutei para falar.
— Você não é como ele.
Ele balançou sua cabeça.
— Mais do que pensei que poderia ser. Ainda estou com muita raiva.
— Sinto muito. — Eu disse em voz baixa.
— Não de você, Jackie. Na verdade, não. Mais de mim mesmo. Eu
não sei se deveria ter empurrado mais ou menos. É minha culpa. Eu deveria
ter...
— Oh, vai se ferrar, seu bastardo. — Bati nele, incapaz de manter
minha raiva sob controle por mais tempo. Seus olhos se estreitaram quando
finalmente olhou para mim, me vendo pela primeira vez desde que ele me
encontrou. — Se vai ficar puto, é melhor ficar puto comigo! Eu fiz isso, John.
Você não. Ninguém mais. Você me disse o que ele queria e não acreditei. Tudo
que lembro é te ver com aquela maldita cadela da Betty, e eu...
Ele pareceu surpreso.
— Ei! Não foi assim. Eu nem me importo com...
— Então por que as mãos dela estavam em cima de você? — Rosnei
para ele, inclinando-me para frente, minhas mãos sobre os joelhos. — Ela
parecia terrivelmente confortável tocando em você.
— Pelo menos não a beijei! — Ele gritou para mim.
— Eu não o beijei. — Gritei de volta. — Ele me beijou e estava me
preparando para empurrá-lo para longe!
— Mesmo? Parecia que você estava ficando muito confortável nas
minhas costas, Jack Ford! — Ele agarrou a gola do meu casaco, torcendo os
punhos, me segurando firme. Eu podia ver o fogo brilhando em seus olhos. —
Foi isso? Você está brincando comigo? Apenas não conseguia esperar para
chegar à festa para que pudesse foder com seu precioso Tony, aposto. Qual é
o gosto dele, Jackie? Tem o mesmo gosto que eu? Ele te dá o que você quer?
Não consegui mais segurar isso. Antes que soubesse que acontecia,
eu o derrubei no chão, socando e chutando-o com todas as minhas forças,
cuspindo obscenidades enquanto tentava fazê-lo sangrar, machucá-lo tanto
quanto eu estava sofrendo. Ele grunhiu quando consegui um sólido golpe em
seu estômago, e agarrou minhas mãos, tentando prender meus pulsos juntos.
Ele era maior do que eu, sempre fora, mas eu era uma coisinha
desconjuntada, me contorcendo violentamente até estar livre de novo,
tentando encontrar a pele para arrancar meus dedos.
Não sei quanto tempo durou, apenas o que aconteceu por um tempo.
E não posso dizer com certeza em que momento parei de tentar acertá-lo e
tentei colocar minhas mãos debaixo de sua camisa, tentei tocar mais de sua
pele enquanto ele estava apalpando a frente da minha calça jeans, soltando os
botões.
Nós dois estávamos respirando pesadamente, nossas testas
pressionadas juntas, escorregadias de suor. Seu olhar nunca saiu do meu, e
naquele primeiro momento, aquela primeira vez em que senti suas mãos em
mim daquele jeito — quando segurou meu comprimento com suas mãos fortes
— foi algo que nunca esquecerei. Não foi só porque tinha a mão de um homem
no meu pau. Não era nem que esse momento estivesse vindo depois do maior
susto da minha vida.
Não, tudo o que importava era que John era o único montando
minhas coxas, suas costas curvadas para cima quando encontrei um dos seus
mamilos e torci, suas pálpebras tremulando. Foi John quem usou a unha do
polegar para raspar a cabeça do meu pau, seja de propósito ou por acidente,
eu não sabia, só que me sentia como um feixe de fios vivos e qualquer lugar
que ele tocasse era como um choque.
E quando John cedeu à sua verdadeira natureza e rosnou:
— Retiro o que disse. Não deixe que ninguém o toque novamente ou
te mato, juro por Deus, Jackie, juro por Deus. — Eu sabia que era assim que
seríamos.
Alguns não entenderiam isso. Alguns não concordariam com isso. Mas
se era assim que as coisas precisavam ser para que John e eu pudéssemos ser
John e eu, não havia dúvidas sobre o que eu escolheria.
Não havia nada para lubrificar, mas isso não importou. Uma vez que
sua calça estava ao redor de seus tornozelos e a minha foi embora, cuspimos
em sua mão e ele nos esfregou e apertou-se contra a minha bunda e queimou.
Gritei porque parecia que ia me dividir ao meio e ele vacilou. Ele hesitou. Ele
parou até que prendi meus tornozelos ao redor de sua cintura e o puxei para
mim, e gritei contra seu pescoço, mordendo sua pele, agarrando seus cabelos.
Foi doloroso, e senti como se estivesse sendo dilacerado, mas por baixo de
tudo, debaixo das ondas que caíram sobre nós dois, eu podia sentir o coração
dele batendo contra o meu peito, continuamos e a dor desapareceu. Isso se
dissipou até não restar nada a não ser ele e eu, e podia ouvi-lo sussurrando
em meu ouvido que ele me amava, que sempre me amou desde o primeiro
dia. No momento em que ele me viu, ele sabia que eu sempre seria dele e que
ninguém mais seria importante, porque se eu estivesse ao seu lado, ele
poderia lidar com todo o resto, não importando o que fosse jogado nele.
Gozei primeiro, meu orgasmo me pegou de surpresa, jorrando entre
nós, cobrindo nossos estômagos. Ele estalou os quadris antes de gritar, e
fiquei cheio de calor úmido quando ele empurrou de novo e de novo. Ele
desmoronou em cima de mim momentos depois, sua respiração quente e dura
no meu ouvido, e ele tremia tanto que parecia que sua pele estava vibrando.
Passei meus braços ao redor dele e segurei-o com força, não querendo que ele
fosse embora, não querendo que essa conexão fosse cortada.
Seus lábios finalmente encontraram meu pescoço, e ele colocou
beijos suaves em todo caminho até chegar ao meu queixo, meus lábios. Suas
mãos foram para o meu rosto, esfregando-me, tocando levemente minhas
pálpebras como se ele estivesse tentando me decorar, como se estivesse me
vendo pela primeira vez, realmente me vendo.
Olhei para ele e seus olhos estavam arregalados, mas não havia
medo.
Não havia dúvida. Houve uma maravilha tímida. Um divertimento
presunçoso. Êxtase. Radiância.
E tive de dizer a ele. Ele tinha que saber.
— Ninguém mais. — Sussurrei.
Ele tocou minha bochecha. Seu polegar roçou meu nariz.
— Nunca haverá mais ninguém, John. Eu prometo. Só haverá você. —
Porque era verdade. Eu sabia que era verdade e para o inferno o resto. Foda-
se o que mais poderia vir. Não importava.
— Você tem certeza, Jackie? — Ele me perguntou baixinho enquanto
movia os quadris para trás um pouco, escorregando do meu corpo. Empurrou
para frente novamente e descansou contra mim. — Isso é o que quer?
— Sim.
— Eu não posso... — Ele parou.
Eu o beijei levemente.
— O quê?
— Não posso prometer que vai ser fácil. — Disse ele, desviando o
olhar. — Não posso prometer a você que não vamos brigar de novo. Sou
certamente um idiota, Jackie, sabe disso. Tenho um temperamento que não
sei se posso controlar às vezes. Isso me assusta.
— Eu sei. — Disse a ele. E eu sabia. Mas ele não me assustava. —
Você já tentou levantar seu punho para mim, John Kemp, e sabe que vou
brigar em resposta.
Um sorriso curvou seus lábios antes de ele franzir a testa.
— As pessoas podem nos odiar se descobrirem.
— Elas não vão. Não a menos que lhes digamos.
— Seus pais vão esperar que se case.
— Eu não vou. Não me importo. Tenho dezoito anos, igual a você. É
minha vida agora. É a nossa vida.
— Eles podem dizer...
— John! — Tive o suficiente. Não há mais dúvidas. Agarrei seu rosto e
o forcei a olhar para mim. Estávamos tão perto que nossos narizes se tocaram.
— Você me quer?
— Com todo o meu coração, Jackie. — Ele sussurrou. — Nunca houve
alguém que eu quis tanto quanto você.
Ele tentou desviar o olhar, mas não deixei, porque sabia que havia
mais coisas que ele não estava dizendo.
— Mas...? — Perguntei a ele, temendo quais seriam suas próximas
palavras.
— Mas isso vai ser o suficiente para você? — Ele perguntou. Uma
única lágrima escorreu de seu rosto para o meu. — Não suportaria se não
fosse. Não quero que me odeie em algum momento no caminho. E se eu não
for o suficiente?
De alguma forma, eu ri.
— Seu desgraçado miserável. — Eu disse enquanto seus olhos se
estreitaram novamente. — Você não vê? Você sempre será o suficiente. — E
eu sabia disso agora. Odiei que foi uma lição que tive de aprender, mas eu
sabia disso agora. Não havia dúvida.
— Mas e...
— John.
— Sim?
— Hoje à noite e sempre.
—É isso o que quer, Jackie? — Ele parecia terrivelmente
esperançoso, como se tudo o que quisesse estivesse bem na frente dele, era
apenas pegar se alcançasse. — Tem certeza disso?
Nunca estive mais seguro de nada na minha vida e disse isso a ele.
E lá, junto ao lago, sob as estrelas no céu, John Kemp me beijou
profundamente, uma promessa feita, que eu pretendia manter pelo resto dos
meus dias.
Por Favor, Não Vá

— E você fez. — Ele sussurra para mim agora. — Todos os dias você
fez.
— Eu tentei. — Digo, estendendo a mão para roçar meus dedos ao
longo de sua testa. Ele fecha os olhos e cantarola um pequeno som do fundo
de sua garganta enquanto pressiona meu toque. — O Senhor sabe que fiz.
— Eu sei, Jackie.
— John?
— Sim?
— Ainda está aí? Com todo o seu coração?
— Sim. Todo meu coração.
— Eu também.
Ele parece feliz.
Começo a puxar a minha mão, mas congelo quando vejo que está
coberto pela luz solar fraca. Olho para a parede e vejo que o sol está alto,
como sempre acontece quando o crepúsculo se aproxima. Começo a tremer,
me perguntando se posso de alguma forma impedi-lo de ver isso, protegê-lo
de ver quão perto isso está, que está quase na hora.
Não estou preparado. Não pode ser agora.
Ainda tenho dias, semanas, meses e anos de coisas que preciso dizer
a ele. É muito cedo. Não há tempo suficiente. Nunca haverá tempo suficiente.
Não é justo. Não mereço isso. Ele não merece isso. Como pode acabar assim
e...
— Jackie... — Ele suspira. — Eu sei.
E ele sabia, porque está me observando com aqueles olhos astutos.
Uma coisa que aprendi sobre minha vida com John é que não há nada que eu
tenha sido capaz de esconder dele. É um desses segredos de casais de longo
prazo, capazes de ler os pequenos tiques uns dos outros, seus relatos, todos
os seus movimentos. E seus pensamentos. Mesmo que não estivesse
espalhado no meu rosto, ele saberia o que eu estava pensando, porque ele me
conhece.
Balancei minha cabeça descontroladamente, começando a perder o
controle. Disse a mim mesmo que não, mas não posso parar.
— Talvez possamos tentar mais radioterapia. Ou cirurgia novamente!
Não sabemos o que pode acontecer amanhã! Eles poderiam chegar a algum
procedimento que ainda não pensamos. Vai ser...
— Não vai ajudar. — Diz ele. — Você sabe disso, Jackie. É tarde
demais.
— Não pode ser. — Digo fracamente, lágrimas nos meus olhos. — Não
pode ser tarde demais. Não terminei com você ainda. Nunca vou acabar com
você. Não vê que preciso de você?
Ele aperta minha mão com força.
— Agora, — Diz ele. — eu preciso mais de você.
Suspendo minha cabeça. Suspendo a cabeça porque não aguento
mais, porque meu melhor amigo há setenta e um anos está certo. Talvez eu
possa ser egoísta. Talvez eu possa quebrar, mas não posso. Não é sobre mim.
É sobre esse homem, meu John, e o que prometi a ele. Meu sofrimento não é
nada comparado ao dele, e prometi que, se pudesse fazer alguma coisa para
aliviar, eu faria.
E vou. Tudo o que John queria era a minha pessoa, e ele precisa de
mim agora.
Aceno firmemente e levanto devagar, com cuidado, começando a me
afastar. Não vou muito longe já que ele não deixa minha mão ir. Seu aperto é
mais forte do que tem sido em meses. É tudo osso e tendão, mas ainda é
familiar, seu toque é uma segunda natureza para mim. Então, por que sinto
como se fosse muito mais?
— Jackie. — Diz ele.
Não olho para ele.
— Pare. — Ele me repreende gentilmente.
Dou uma fungada e esfrego minha mão livre sobre os olhos.
— Eu desejo... — Diz ele.
— O quê? — Digo rapidamente, imaginando o que ele deseja agora, e
se é algo que eu posso realmente fazer. Farei qualquer coisa.
— Eu gostaria que olhasse para mim.
Oh. Isso.
— Jackie. — Diz ele, sua voz mais profunda, mais forte.
Se fechar meus olhos, posso fingir que tudo está de volta ao jeito que
costumava ser. Que a voz dele não racha com a idade, porque somos homens
jovens de novo. Que temos nossas vidas inteiras espalhadas na nossa frente e
mesmo com esse tempo, nunca daríamos isso como garantido. Viveríamos
cada momento como se fosse o nosso último. Nós nos beijaríamos como se
fosse a última vez. E quando nos vermos no final do dia, fingiríamos que não
nos víamos há anos.
Mas não posso fechar meus olhos. Não posso fingir. Meu marido
deseja algo, e darei a ele.
Olho para ele, apesar de ele estar embaçado através das minhas
lágrimas.
— Me beija? — Diz esperançoso. — Por favor?
Oh, John. Meu querido.
Eu me movo de volta para ele, minha mão ainda na dele, e empurro
a máscara de oxigênio para fora do caminho suavemente e me inclino e
pressiono meus lábios nos dele. O beijo é medicinal, agudo. O beijo tem gosto
de doença, como a doença que está comendo-o de dentro para fora. Mas
debaixo desse horror, debaixo da grosseria de tudo, há o John.
Há ele, provando como sempre fez, desde aquela primeira vez que eu
pressionei meus lábios contra os dele nas margens do lago tantos, muitos anos
atrás. Eu tomo meu preenchimento dos meus — nossos — lábios pressionados
juntos, esfregando nossas bochechas juntas. Mas tenho de parar quando ele
começa a lutar para respirar.
Eu me afasto, mas só um pouco, e desloco a máscara de oxigênio de
volta ao lugar. Mas não o deixo. Ainda não. Pressiono minha testa na dele e
nos observamos. Eu memorizo tudo que posso. Todo defeito. Toda ruga. Cada
ponto. O rosto que adoro, encolhido e magro. Aqueles olhos que amo,
brilhantes e conscientes. Acho que ele está fazendo o mesmo, porque não olha
para o outro lado.
— Você e eu. — Ele sussurra. — Para sempre.
— Para sempre. — Sufoco. Porque somos nós dois.
— Lado de fora?
— O alpendre?
— Sim.
Eu me afasto, enfiando os cobertores ao redor dele para que não
fique com frio. Bato no bolso do meu casaco para ter certeza de que tenho o
que preciso. Vou até a frente da cabana e abro a porta. O ar é fresco e limpo.
O sol está se aproximando lentamente do horizonte. Penso em correr pela
porta e nunca olhar para trás, mas não corro.
Volto para o meu marido e seu olhar me segue a cada passo que dou,
como se ele estivesse tentando gravar em sua memória cada momento. Sei
disso porque estou fazendo o mesmo com ele. Eu o toco enquanto alcanço a
cama, uma coisa fugaz, meus dedos contra o braço dele. Abaixo o suporte de
soro preso na cama, assim conseguiremos passar pela porta. Destravo as
rodas em sua cama e fico atrás dele e começo a empurrar, rolando-o em
direção à porta aberta.
Cada passo é como subir uma montanha. Todo passo é o inferno.
Cada passo é dor, tortura e tristeza, tudo em um só.
Engulo um soluço que ameaça transbordar quando dou outro passo.
Agarro as bordas da cama enquanto dou outro passo. Quase choro quando
chegamos à porta. Quero gritar quando atravessarmos para a luz fraca do lado
de fora.
A vegetação se estende diante de nós, cercando nossa cabana na
floresta onde o sol brilha no verão e a neve cai no inverno. Há um jardim ao
lado, com cenouras e repolho. Uma macieira onde cresce maçãs-verdes.
Existem flores perfumadas. Árvores verdes. A cidade mais próxima fica a
quilômetros de distância, e é só eu e ele aqui, neste lugar, assim como ele
imaginou naquele dia no lago. Ele construiu este lugar para mim, como uma
casa longe de casa, até que finalmente se tornou nossa casa nos últimos anos.
Travo as rodas na cama e ando para o lado dele novamente. Seus
olhos estão arregalados enquanto examina a vastidão da floresta esticada
diante dele, o sol se pondo perto dos picos das montanhas ao longe. Em algum
lugar, um pássaro grita, um som longo e triste que me lembra de dor. Ele ouve
e suas pálpebras se fecham. Ele alcança e remove a máscara de oxigênio e
deixa cair para o lado dele. Aspira profundamente este lugar, nossa casa.
Então, suspira.
— Jackie.
— Sim? — Não posso evitar quando minha voz se quebra.
— Meu anel?
Fiz um sim com a cabeça.
— Posso usá-lo?
— Sim, John.
Enfio a mão no bolso do casaco que desliza pela agulha hipodérmica
embainhada antes dos meus dedos encontrarem o círculo dourado no fundo do
bolso. Puxo para fora e alcanço a mão dele, e é como se fosse anos atrás,
quando ficamos neste lugar e coloquei o anel em seu dedo pela primeira vez.
Está largo agora, muito largo, dado o peso que perdeu no último ano. Mas
deslizo no dedo dele de qualquer maneira e aperto sua mão, seu anel
pressionado contra o meu.
— Aceito. — Diz ele, e percebo que fez uma piada assim que um riso
emocionado sai de mim e se transforma em algo mais, e antes que perceba,
estou chorando contra a mão dele, agarrando-a, implorando para ele não ir,
implorando para ele ficar comigo, para ficar comigo para sempre.
Não sei o que vou fazer sem você, digo a ele. Não sei como vou
continuar. Não sei como viver quando a metade de mim não está mais lá.
Então, por favor. Por favor, não vá. Por favor, não me deixe.
Por fim, me acalmo. Ele esfrega minha cabeça com a outra mão
enquanto murmura baixinho para mim, palavras destinadas a relaxar, acalmar.
A tempestade está passando, e deixou em seu rastro um caminho de
destruição tão grande que tudo o que posso fazer é olhar para isso
maravilhado.
— Deite comigo, Jackie? — Ele me pergunta. — Preciso sentir você ao
meu lado.
Fungo uma vez e aceno, esfregando minha testa contra sua mão.
— Só tenho que arrumar sua cama. — Digo a ele, mesmo sabendo o
que realmente quero dizer. O pôr do sol está aqui.
— Claro, Jackie. Posso esperar. — Ele respira fundo e solta
lentamente.
Levanto-me, solto a mão dele e me movo para a parte de trás da
cama. Acho que vou hesitar. Acho que há uma chance de recusar, mas enfio a
mão no bolso do casaco e tiro o hipodérmico. Tiro a tampa. Destaquei a linha
IV. Aqui. Neste momento. Aqui é onde hesitarei. Aqui é onde vou implorar.
Aqui é onde essa coisa toda vai desmoronar e vou dizer a ele que não pode
partir, que não vou permitir isso, que terá de sofrer e sofrer, porque sou um
bastardo egoísta que não consegue deixá-lo ir.
São esses pensamentos que tenho quando injeto a solução
concentrada de pentobarbital na linha IV que flui para dentro de seu pulso — o
que instigará em breve o colapso respiratório completo. Deve ser pacífico.
Deve ser gentil. Deve ser...
Está feito antes de eu perceber o que estou fazendo.
Está pronto.
O momento passou.
Não há mais como voltar atrás.
Coloco a capinha da agulha. Enfio de volta no meu bolso.
Retorno à cama e deixo cair os trilhos ao longo do lado. Enganchando
um pé no trilho rebaixado, subo ao lado dele. Imediatamente, ele envolve seus
braços em volta de mim enquanto me enrolo nele, contra seu peito magro. Ele
está quente, mas ossudo.
Tão magro. Tão menor. Tão pequeno.
Mas há uma força em seu poder sobre mim, e mesmo com o quanto
ele perdeu, ainda há aquele garoto aí, aquele capaz de uma faísca tão
maliciosa em seus olhos. Ainda há aquele homem aí, aquele que poderia me
segurar enquanto meu corpo tremia com a força de sua paixão. Tantas
memórias tentam invadir o caminho, e é quase difícil se concentrar, então eu
as afasto e espero. Ainda há algum tempo. Pressiono meu ouvido contra o
peito dele e ouço o som do seu coração.
— Jackie. — Diz ele, como eu sabia que ele faria. — Você se lembra
de quando viemos aqui pela primeira vez?
Eu lembro. Tento falar, mas não consigo. Faço um sim com a cabeça.
— Eu estava com tanto medo. — Diz ele. — Sabia que eu estava com
medo? — Suas palavras estão começando a ofuscar.
Consigo encontrar minha voz.
— Sim. Porque eu também estava. — E eu estava. Com medo da
morte.
— De mim?
— Não. Nunca de você. Do que você diria.
— Diga-me. — Ele diz baixinho, como se estivesse desaparecendo.
E aqui, enquanto o sol se abaixa e a luz escurece, eu falo.
Para ele, eu falo.
Tudo o Que Sempre Quis Foi
Você

Minha boca estava seca quando perguntei de novo:


— Para onde estamos indo?
Ele me deu aquele pequeno sorriso e olhou para mim com o canto do
olho, tentando prestar atenção enquanto dirigia. Estávamos dirigindo por um
tempo, e a estrada agora era toda subida, indo cada vez mais para o interior
da floresta, as árvores ficando mais altas e bloqueando o sol brilhante do
verão. Sombras cruzavam a estrada de duas pistas à nossa frente, mas, em
vez de ser sinistro, era quase acolhedor. Parecia uma espécie de regresso a
casa, apesar de estarmos longe da pequena cidade onde crescemos. O Oregon
era um lugar muito diferente do lugar de onde viemos. Era difícil acreditar que
haviam passado doze anos desde que partimos, doze anos desde que nos
formamos no ensino médio, arrumamos o meu carro velho e nunca mais
olhamos para trás.
John veio comigo quando fui para a Universidade de Oregon.
Tínhamos nos escondido num apartamento de baixa qualidade em Eugene, eu
indo para a faculdade durante o dia e trabalhando como cozinheiro de meio-
período em uma lanchonete à noite. John tinha sido contratado numa oficina
como mecânico e tinha uma aptidão natural para todas as coisas relacionadas
ao carro.
Estávamos juntos e felizes, mas aqueles primeiros quatro anos foram
difíceis, independentemente. Estávamos sempre cansados, sempre quebrados.
Brigamos muitas vezes por pequenas coisas que não trouxeram
consequências. Mas nunca tive medo de que John me deixasse ou que eu o
deixasse. Todas as noites, independentemente da raiva de cada um de nós,
deixamos nossas brigas à porta quando nos deitávamos e nos enrolávamos,
fazendo amor com mais frequência do que nunca.
Nunca questionei sua devoção a mim, e me certifiquei que eu fizesse
o meu melhor para que ele nunca tivesse dúvidas sobre mim.
De alguma forma, sobrevivemos e as coisas começaram a se
encaixar. Eu me formei com o meu MBA. Artie, o dono da oficina de
automóveis onde John trabalhava, começou não tão sutilmente a insinuar sua
vontade de se aposentar no jantar em nossa pequena casa uma noite, que
acabou com todos nós bebendo muito vinho. John e eu acordamos com uma
ressaca e um plano para comprar a oficina de Artie e torná-la nossa. John
supervisionaria o aspecto mecânico e de reparo. Eu lidaria com as finanças e
livros. Foi assustadora, essa decisão, mas fizemos o trabalho. De alguma
forma, fizemos funcionar.
Foi por isso que fiquei surpreso quando John me disse que estávamos
tirando o dia de folga. Que tinha algo para me mostrar. Estávamos perto de
abrir uma terceira oficina, e ainda havia muito a ser feito. Não sabia o que ele
queria que eu visse. Nossos trigésimos aniversários havia passado
recentemente, então não achei que tivesse a ver com presentes. Era possível
que quisesse procurar um local para outra oficina, mas normalmente ele era
um pouco mais evidente sobre isso.
Provavelmente não ajudava que eu já estivesse bem nervoso, pois
ainda estava tentando encontrar um momento ideal para dar o verdadeiro
presente de aniversário que comprei para ele, não o que eu realmente tinha
dado a ele.
Carregava a caixinha comigo em todos os lugares, certo de que
alguma hora, o momento certo ia aparecer e mesmo que não fosse legal,
saberíamos o que significava.
Se ao menos eu conseguisse que as palavras saíssem.
— Estamos quase lá. — Ele disse quando estendeu a mão e apertou
minha coxa.
Capturei sua mão na minha e entrelacei nossos dedos, uma ação tão
inconsciente que era como respirar para mim. Ele sorriu de novo e não disse
mais nada.
Dirigimos uma hora e meia de casa, passando pela pequena cidade
de Roseland antes de nos aprofundarmos na floresta da Old Forest Highway.
Passaram-se vinte minutos, antes de ele virar e pegar uma antiga estrada de
terra que subia até a floresta, até a estrada chegar ao fim, numa espécie de
clareira, árvores ao redor. Ele desligou o carro enquanto eu olhava pelo para-
brisa.
— Que lugar é este? — Perguntei curioso.
— Vamos. Vou lhe mostrar.
Ele me encontrou ao redor da frente do carro, e naquela doce luz do
sol de verão, ele ficou atrás de mim, moldando-se às minhas costas,
envolvendo os braços em volta do meu pescoço, roçando os dedos no meu
peito.
Olhei para ele e ele beijou minha testa. Seus olhos estavam
brilhando, mas eu podia ver a inclinação nervosa de sua cabeça, as pequenas
linhas em sua testa. Seus braços estavam tensos ao meu redor.
— Ok. — Eu disse. — Me diga, Kemp. O que está acontecendo?
Ele me virou em seus braços e levantou as mãos para segurar meu
rosto.
— Sabe que eu te amo, certo?
Revirei meus olhos.
— Tenho certeza. Você está preso a mim. — A pequena caixa no meu
bolso parecia estar em chamas.
— Sim, Jackie. Eu sei. — Ele fez uma pausa e mordeu o lábio inferior,
desviando o olhar.
— John?
— Sim?
— O que você fez? — Estreitei meus olhos e fiz uma careta para ele.
Por uma das poucas vezes em sua vida, John corou e eu sabia que
tinha de ser algo grande. John Kemp não ficava nervoso. John Kemp não
corava. Meu estômago revirou.
— Você gosta daqui? — Ele perguntou, ainda sem olhar para mim. Ele
acenou com os braços ao redor, apontando para o nosso entorno.
— O bosque? Claro, sabe que gosto desse tipo de coisa. A cidade não
é ruim, mas é bom sair e me ouvir pensar de vez em quando.
Ele suspirou.
— Então, tudo bem, então, se eu...
— Se você o quê?
Ele me entendeu mal e corou novamente.
— Se nós…
Agarrei seu rosto e o forcei a olhar para mim.
— Fale!
— Comprei este lugar. — Disse ele rapidamente. — Esta terra. É
nossa.
Não era o que eu esperava.
— Você fez o quê? — Dei um passo para trás.
Ele levantou a mão e começou a mastigar a unha do polegar,
acenando com a outra mão enquanto falava apressadamente.
— Estive procurando há algum tempo. Encontrar algum lugar longe de
todo o resto. Queria te surpreender porque queria te fazer uma casa, Jackie.
Sei que temos a nossa casa e as oficinas, mas queria fazer outro lugar que
fosse só para você e eu e mais ninguém. Queria esperar até que tudo estivesse
terminado, mas você notaria o dinheiro entrando aqui e não gosto muito do
pensamento de você achar que eu tivesse outra coisa acontecendo. Como se
estivesse mentindo para você. Não é isso. Só queria fazer esse lugar para
você. Para mim. Para nós. Sei que é grande. O Senhor sabe que sei. E talvez
eu deveria ter falado com você sobre isso primeiro. Eu só... Queria que fosse
uma surpresa.
Chocado, perguntei:
— Qual tamanho disso tudo?
— Quarenta acres ou mais. — Ele olhou para as árvores.
— E podemos pagar isso? John, estamos abrindo outra oficina!
— Estive economizando por um tempo, Jackie. Nada veio da loja. São
meus próprios fundos. Deixe isso de lado por um tempo.
Dei um passo em direção a ele.
— Você está guardando alguma outra coisa de mim, John Kemp? —
Isso saiu como um grunhido.
— Não. Eu juro! Isso... É isso.
— E quer construir uma casa aqui?
Ele balançou sua cabeça.
Eu estava confuso.
— Não é isso? O que então? Onde estamos...? — Um arrepio passou
por mim, e senti lágrimas picarem meus olhos. — Oh, John. — Minha voz
falhou. Lembrei.
— Jackie? — Ele parecia preocupado e colocou a mão no meu ombro.
— A cabana. — Sussurrei. — Aquele dia, à beira do lago. Naquela
primeira vez nos beijamos. Você disse que queria construir uma cabana só
para mim e para você e...
Seus olhos suavizaram e o nervosismo que estava lá desde que
entramos no carro sumiu. Ele me apertou em seus braços novamente e me
beijou docemente.
— A cabana. — Repetiu.
— Você fez isso por mim?
Ele encolheu os ombros.
— Para mim também. Para nós. — Ele riu com tristeza. — Isso é um
pouco de mentira, acho. Sim, Jackie. Para você. Fiz isso por você. Tudo bem?
— Ele parecia preocupado de novo.
— Sim. — Disse a ele rudemente. — Tudo bem. — Porque estava
mesmo bem. — Mostre-me.
E ele mostrou. Mostrou onde a cabana ficaria, como seria projetada,
com um alpendre no qual poderíamos nos sentar durante o verão. Uma lareira
para nos manter aquecidos quando a neve caísse no inverno. Ele me mostrou
onde o jardim estaria para minhas cenouras e repolhos. Onde a macieira
estaria, seus galhos cheios de maçãs-verdes.
Ele me mostrou que não estávamos tão longe de Roseland, que
estaríamos isolados longe o suficiente para parecer que era só ele e eu.
Manteríamos a casa em Eugene, ele disse, pelo menos, por enquanto.
Talvez, algum dia, na estrada, pudéssemos morar na cabana para sempre e
ficarmos sozinhos, do jeito que ele sempre quis que fôssemos.
— Você é meu, Jackie. — Ele me disse. — Tudo o que sempre quis foi
você.
Fiquei olhando para a floresta quando ele disse isso, de costas para
ele, a poucos metros de distância. Respirei fundo e percebi que era o momento
do qual eu precisava. Isso era o que eu estava esperando. Enfiei a mão no
bolso e curvei a mão ao redor da caixinha e soube o que isso significaria.
Eu já tinha dado a ele o para sempre, e ele também me deu. Seria
bom ter algo para nos lembrar de hoje.
Sem me permitir pensar muito sobre isso, puxei a caixa do bolso.
— John. — Eu disse.
— Jackie?
Fechei os olhos e me virei, afundei em um joelho e segurei a caixa na
minha frente, abrindo-a para que ele pudesse ver. Eu me senti um tolo e meu
rosto estava em chamas.
Era quase impossível pronunciar as palavras que eu planejava dizer,
mas de alguma forma elas vieram, e enquanto tinha certeza de que pareciam
hesitantes e monótonas, tudo o que eu disse era verdadeiro.
— John Kemp, você é minha vida. Você é tudo para mim. Sem você,
não teria uma vida. Não teria uma casa. Não teria família. Não posso dizer que
soube no primeiro dia em que te conheci, mas nos dias que se seguiram, tinha
certeza de que iria querer você do meu lado para sempre. Estamos juntos há
muito tempo e não pretendo ir a nenhum outro lugar. Sei que isso não pode
ser real, que não podemos ir até a igreja e nos casar como outras pessoas,
mas sei que isso não importa. Tudo o que importa é o que está em nossos
corações, e sei que meu coração ficaria muito feliz se você usasse este anel.
Se você casar comigo. Todos os dias depois de hoje, toda vez que olhar para
este anel em seu dedo, saberá o que significa para mim. — Respirei fundo. —
Ok, isso é tudo que eu queria dizer. Você pode dizer alguma coisa agora. Se
quiser. — Olhei para ele.
Ele me observou com aqueles olhos escuros e aquele pequeno
sorriso.
— Sim, Jackie. Sim. Sim.
Minhas mãos tremiam quando me levantei e tirei o anel da caixa.
Larguei a caixa no chão quando dei um passo para frente e coloquei o anel em
seu dedo. Foi um pouco confortável, mas fizemos o trabalho. Uma vez que
estava no dedo, ele me puxou para um abraço esmagador.
Eu podia sentir a batida rápida do coração em seu peito e pensei:
você, melhor bater para sempre. É melhor bater e bater e bater. E quando
houver um dia que não conseguir mais bater, meu coração pode te seguir em
qualquer coisa que possa ir.
— Preciso te dar um anel agora. — Ele murmurou no meu ouvido. —
Vou ter de encontrar um perfeito. Você vai usar meu anel também, Jackie?
— Sim. Eu gostaria, e vou usar.
Ele me soltou e pressionou sua testa contra a minha.
— Meio como um presente de casamento, certo? Este lugar?
Eu ri.
— Sim, John. Acho que é. Estou feliz por ter esperado até agora.
— Eu também. — Nós nos observamos por um tempo.
— Ei, Jackie?
— Sim?
— Este lugar vai ser a nossa casa um dia. Tudo bem?
— Sim, John. Tudo bem.
— E será apenas você e eu?
Concordei.
— Você e eu. Como sempre quisemos.
— Bom. — Ele suspirou. — Você vai ver, Jackie. Vou fazer este lugar
tão bom para você. Eu prometo, ok? Vou fazer deste um lugar que você
poderia se orgulhar. Vou fazer deste lugar a sua casa. — E então ele me puxou
para ele novamente e seu coração forte bateu contra o meu ouvido. Por favor,
bata para sempre.

Sua Voz

— E então você me beijou de novo. — Digo a ele agora enquanto o


sol se põe embaixo das montanhas. — E me amou, lá, no meio da clareira na
floresta, e aquele foi o primeiro dia que fizemos este lugar nosso lar. Foi o
primeiro dia em que este lugar foi realmente nosso. E eu soube então, John.
Eu sabia como nunca tinha sabido antes que seria para sempre. Seria sempre
para nós. Nunca houve ninguém antes de você. E nunca teria havido ninguém
depois de você. Eu sabia. Você era para mim.
Não houve resposta.
— John?
Minha orelha ainda está pressionada contra o peito dele. Espero seu
coração bater. Espero que ele bata tão forte e tão alto. Espero e começo a me
agarrar ao seu traje de hospital, e só então noto que seus braços se soltaram
e se deitaram ao seu lado e não há batidas, não há batidas de seu coração, e
está quieto e silencioso. E escuro e frio, e eu disse para bater para sempre.
Eu disse a ele que seria para sempre e ele me prometeu, ele me prometeu...
— John? — Eu me desfaço. — Ei, John? Amor? Me responda. Diga
algo. Deus, por favor. Por favor.
Nada.
Olho para ele de onde eu estava em seu peito. Sua cabeça está
descansando contra o travesseiro. Seu rosto se inclina para mim. Sua boca
está entreaberta. Seus olhos estão fechados.
Ele não fala.
Ele não respira.
Ele não se move.
— John? — Alcanço e toco seu rosto. Sua pele ainda está quente e eu
começo a me despedaçar.
Rezo para que ainda seja possível que ele abra seus olhos e sorria
para mim e diga “Jackie, eu te amo. Sabe que eu amo. Sabe que sempre
amei você e me desculpe. Sinto muito, mas tenho de ir agora. Sinto muito
que você ainda fique aqui e eu não possa ficar. Mas prometo que vou esperar
por você. Vou esperar por você, então quando for a hora, iremos juntos,
porque não posso imaginar dar outro passo sem você. Não posso imaginar
sem você ao meu lado. Não está certo, você e eu não estarmos juntos. Nada
sobre isso está certo, então não demore, ok? Não demore muito, porque não
suporto ficar longe.”
Ele vai dizer tudo isso porque nem se despediu de mim. Ele nem
sequer... disse...
Ah, Jesus. Ah, por favor. Por favor não me deixe sozinho.
Fui rasgado em dois e minha alma está vazia e por favor não vá.
Por favor.
Eu espero.
Nada. Isso não acontece. John não acorda.
Ele se foi e, pela primeira vez em setenta e um anos, estou sozinho.
As coisas precisam ser feitas. Planos definidos em movimento. Sei
que preciso dar alguns telefonemas, mas não consigo encontrar forças para
me importar.
Em vez disso, me aconchego contra ele, deitando minha cabeça em
seu peito silencioso, tentando sentir o calor que ele deixou pela última vez.
E então choro pelo meu marido.

Está completamente escuro quando acordo, meu rosto está duro e


marcado, e tenho o pensamento desesperado de que, desde que ele se foi, eu
vou esquecer como ele era. Vou esquecer o timbre e a cadência de sua voz.
Vou esquecer o barulho baixo que pode vir do peito dele quando ele me
chamava de Jackie. É irracional, esse pensamento, mas é o único em que
posso me concentrar.
Agora que ele se foi, não vou lembrar como ele era.
Não posso permitir que isso aconteça.
— Acorde. — Murmuro para ele, sacudindo-o. Sua cabeça rola para
frente e para trás. — Acorde, John. Não posso esquecer. Você tem de
acordar. — Parece loucura, eu sei, mas não me importo. Não mais.
Não posso esquecer e, meu Deus, já está começando? Por que não
consigo tirar a voz dele na minha cabeça? Não pode estar acontecendo já. Por
que eu não posso...
O vídeo. Eu o gravei horas atrás. Para mostrar às pessoas. Para
mostrar a todos.
— Espere.
Digo a ele enquanto coloco meus pés na varanda. Meus joelhos doem
quando estou de pé.
— Apenas espere, John. Prometo que não vou esquecer. Só preciso
de uma ajudinha, só isso. Não vou me esquecer de sua voz.
Ele não me responde e recuso-me a pensar o porquê. Tudo o que
importa é que eu o ouça novamente.
Corro o mais rápido que posso e destravo as rodas da cama dele.
Abro a porta atrás dele e puxo-o de volta para a casa. O lado da cama bate
no batente da porta, arrancando a madeira. A reverberação do impacto
atravessa meus braços. Meus dentes estão batendo. Meus braços explodem
em arrepios. Estou com tanto frio.
Tento puxar a cama de novo e ela bate na porta, arrancando ainda
mais, e me desespero porque isso está ficando mais difícil. Está ficando muito
mais difícil lembrar como era a voz dele.
— Por favor! Por favor, apenas me ajude, então eu não esqueço.
John! Por favor. Eu preciso disso. Eu preciso disso.
Puxo pela terceira vez, o mais forte que posso, e as lascas de
madeira e a cama deslizam tão rapidamente que quase perco o equilíbrio e
caio no chão. Eu me seguro na cama e meus dedos tocam o cabelo fino de
John, e é como se isso me eletrificasse e empurrei minha mão porque
simplesmente não posso.
Não até eu ouvi-lo. Não até ele falar comigo.
Puxo e giro a cama até que ele fique de frente para a TV pendurada
na parede. Travo as rodas. Ele não se move. Ele não pode se mover daqui. Eu
me viro para encontrar a câmera e há uma insegurança no meu passo, um
aperto no peito, e ofego por ar. É como se meu corpo soubesse algo que não
aceito e está chorando de dor. Dou outro passo e a dor vem de novo, penso
em John e penso “por favor”, e penso que meu coração está partido e
quebrado, mas dou outro passo e outro e outro.
A câmera está num cantinho, onde a coloquei quando John estava
falando comigo e ele estava tão gloriosamente respirando, e falando, e rindo,
e amando. Isso foi apenas algumas horas atrás? Por que não consigo me
lembrar da voz dele?
Pego a câmera e corro de volta para John. Ele não se moveu, não que
eu esperasse que se moveria. Tento lembrar como ligar a câmera à TV. Nunca
fui muito bom no material técnico. Isso sempre foi com John. Ele era o único
que sabia como ligar essas coisas e ele não está aqui agora, então eu mesmo
tenho de fazer isso. Tenho de descobrir isso.
Encontro o fio na gaveta sob a TV, mas não consigo encaixar direito.
Não quer entrar e me pergunto se ele vai ficar preso nessa pequena câmera e
não vou conseguir tirá-lo. Ele vai ficar preso lá e é minha culpa e...
É só virar o fio. É tão óbvio. É tão fácil. Não sei porque não vi. Viro e
coloco na câmera. A outra extremidade é conectada à TV. Ligo a TV. A tela é
azul. Pressiono o play na câmera e não posso deixar de gritar em triunfo
quando um vídeo instável aparece na tela.
— Consegui, John! — Eu canto. — Descobri o que estava fazendo de
errado! Não é algo assim!
Ele não responde. Tudo bem, porém, porque vou ouvir sua voz em
breve.
Eu me viro e subo de volta na cama enquanto meu vídeo na TV muda
para um John que ainda está vivo. Deito em seu peito, pensando que talvez,
apenas talvez seu coração possa bater de novo em meu ouvido, mas não há
nada. Agarro seus braços e os puxo sobre mim, então é como se ele estivesse
me abraçando. Solto-os para me aconchegar, e eles caem para o lado dele.
Agarro-os novamente quando começo a suar. Ignoro a rigidez no meu peito, a
maneira como meu bíceps esquerdo está formigando como se estivesse sendo
picado por pequenas agulhas. Seus braços começam a escorregar de mim
novamente, então apenas os seguro no lugar.
E no vídeo ele fala:
— Você está gravando, Jackie?
— Sim. Acho que sim. Uma pequena luz verde está acesa. Isso está
certo?
— Sim.Você entendeu.
— Ok. John?
— Sim?
Uma voz trêmula:
— Podemos... Podemos fazer isso?
Uma pausa.
— Acho que sim, Jackie. Acho que sim. Eu... Tudo bem...
— Está pronto?
Um suspiro.
— Sim.
John limpa a garganta e começa.
— Meu nome é John Michael Kemp e minha cabeça está boa, mas
meu corpo não está sadio. Senhor, isso não é verdade. Seis meses atrás, fui
diagnosticado com câncer de próstata. No momento em que foi descoberto, já
havia progredido para o terceiro estágio. No mês passado, passou para o
estágio quatro. Pelo que os médicos nos disseram, meu corpo está cheio
dessa coisa... Está... Em tudo. Qual é a palavra, Jackie? É metsa... Metsi...
— Metástase.
— Sim. Isso. Está metastatizado. Fora da próstata, aparentemente.
Outros tecidos infectados. Está nos meus ossos. Meu fígado. Meus pulmões.
Radiação não iria tocá-lo, não importa o quanto bombeassem em mim.
Nenhum remédio mais faria efeito. Isso se espalhou pelo meu corpo, não
parando, não importa o quê.
Ele deu um suspiro profundo.
— Os médicos nos disseram que eu teria três ou quatro meses. Isso
foi há dois meses. Eles nos disseram que haveria dor. Disseram que doeria.
Percebi que não seria tão ruim. Não sou fraco, com certeza. Poderia lidar com
isso, eu sabia. Poderia aceitar qualquer coisa se isso significasse... Se
significasse que poderia ter mais alguns momentos com... Com o homem que
eu... Apenas mais algumas semanas. Ou dias. Ou horas.
Seu olhar ficou úmido.
— Mas eles não podiam saber. Não sabiam o quão ruim a dor é.
Ninguém pode, não a menos que esteja onde estou. Não parece haver muitos
daqueles que o rodeiam. Não é só a dor; como eu disse, não sou uma
mocinha. Não. Eu posso... Posso sentir essa coisa me comendo de dentro
para fora. Posso sentir meu corpo apodrecendo debaixo de mim, e com isso
há dor, mas não é como se fosse atingido no rosto ou quebrando um braço. É
como se tivesse ácido derramando em minhas veias. Dói respirar. Dói se
mexer. Dói ser tocado. E se há uma coisa que não suporto, é não ser tocado.
Eu preciso disso. Eu preciso dele.
Seus olhos me procuram.
— O homem... O homem que está gravando é meu marido. Seu nome
é Jackie. Meu Jackie, Jack Kemp. Um dia, não muito tempo atrás, tomei a
decisão de não poder viver assim. Não podia me deixar perder mais do que já
tinha perdido. Não podia me deixar ir assim. Mas não por causa da dor ou do
câncer. Por causa dele. A cada momento que desço mais, ele desce comigo e
não vou puxá-lo para baixo. Não vou arrastá-lo para as profundezas comigo.
Ele fecha os olhos por um momento e continua.
— Pensei muito sobre o que fazer. O estado de Oregon tem leis de
morte assistida por médicos, mas não conseguia suportar a ideia das mãos de
um estranho em mim daquele jeito. Não conseguia me livrar da ideia de que
estava errado. Então ia fazer isso sozinho. Mas não consegui fazer isso até
falar com Jackie.Todas as decisões importantes que já tomei foram com ele, e
isso não seria diferente. Entende... Jesus. Eu sinto muito. Normalmente não
fico tão abalado assim. Não é quem eu sou. Não é... Você tem de entender
uma coisa. Sobre mim e ele.
Ele deu um pequeno sorriso triste.
— Tenho oitenta e três anos, mas só me lembro dos últimos setenta e
um anos. Sabe, quando tinha doze anos, conheci um garoto de olhos azuis e
me apaixonei. Só me lembro dos últimos setenta e um anos porque qualquer
coisa antes daquele dia não importa. Nada que veio antes poderia ser
comparado com qualquer coisa que veio depois. Não estava verdadeiramente
vivo até que ele me olhou pela primeira vez. E a partir de então, mesmo que
não soubesse como era possível, sabia que ele era meu. E ele tem sido. Todos
os dias ele tem sido. As pessoas ainda dizem hoje que dois homens não
podem amar um ao outro, como um homem e uma mulher. Que isso não é
certo, é contra Deus e mais algum absurdo. Bem, isso é besteira. Isso é muita
besteira que não aguento. Nas últimas sete décadas, amei um homem sem o
qual não poderia viver. Jackie faz meu coração inteiro. Ele completa minha
alma. Sem ele, eu não existiria. Não teria sobrevivido tanto tempo se ele não
estivesse do meu lado. Para cada pessoa lá fora que diz que um homem não
pode amar outro homem, só sei isto: você está errado, porque eu amei. E sou
amado.
Seus olhos encontram os meus novamente.
— Eu disse a ele... Eu disse ao meu Jackie o que eu ia fazer, e foi a
coisa mais difícil que eu já tive de dizer. Não foi muito bem, para ser honesto.
Acho que nunca o vi tão bravo. No começo, achei que estava bravo comigo
por ter pensado em fazer isso. Mas acontece que não é isso. Nunca fomos
religiosos de verdade. Assim eram os pais de Jackie, e uma vez que saímos
de lá, não seguimos com Deus e a igreja e tudo mais. Talvez devêssemos ter
seguido. Não sei. Mas Jackie aqui, ele... Ele não me deixaria fazer isso. Não
eu mesmo. Ele estava preocupado com a minha alma. Supostamente, os
suicidas não vão para o céu. Não sabemos se existe um paraíso, ou mesmo se
isso é verdade, mas Jackie... Não aceitaria essa chance.
— Não mesmo!
— Eu sei, Jackie. Eu sei. Acalme-se. Estou apenas dizendo o que
precisa ser dito. Tentei convencê-lo a sair disso, mas quando ele põe algo em
sua mente, algo que sente que precisa ser feito, é melhor deixá-lo fazer isso
porque não haverá outra maneira de contorná-lo. Aprendi isso há muito
tempo e está bem do jeito que foi. Então este vídeo está sendo feito, então
você sabe que o que estamos fazendo é o que eu quero. Estamos fazendo
isso, então não ache que Jackie é algum tipo de assassino. Ele não é. Ele me
ama. Com tudo o que ele tem. Ele sempre amou. E é por isso que ele vai
fazer isso por mim agora. Ele vai me ajudar a não sentir mais dor.
Um novo suspiro cansado.
— Nossa vida nem sempre foi fácil. Tivemos de nos esconder por
muito tempo. As coisas mudaram e estamos legalmente casados por vinte
anos agora. Mas tem sido muito mais do que isso. Significa muito mais que
isso. Jackie... Ele é meu... Nunca houve ninguém além dele. Prometemos um
ao outro, quando éramos crianças. E tem sido assim desde então. Estou
cansado agora. Câncer tem um jeito de tomar tudo o que você tem. É uma
coisa viciosa, uma coisa má. Dói sim. Mas o que dói mais é o quanto estou
com raiva. Isso está me afastando dele. Isso ousa entrar aqui e tentar nos
separar. Mas desta forma, pelo menos, é em nossos termos. É o nosso
caminho. E sei que esperarei por ele. Não importa o que aconteça nesta vida
ou na próxima, Jackie pertence a mim e nunca vou nos deixar ficar separados
por muito tempo. Você me ouve, Jackie? Você me entende? Você é meu e
essa ou qualquer outra coisa não nos manterá separados.
— Sim, John. Entendo.
— E eu te amo. Você sabe disso, certo?
— Eu sei. É isso? Isso é tudo que você quer dizer?
— Sim, Jackie. É isso. Coloque a câmera na mesa e venha aqui.
Precisa sentir seus ossos.
O vídeo termina.
A tela fica azul.
A cabana fica em silêncio.
Eu grito. Aqui. No escuro.
John e Jackie

— Gabinete do Xerife Douglas County, aqui é Darlene. Como posso


ajudá-lo?
— Darlene, é o Jack. Jack Kemp.
— Jack! Como você está, querido? Como estão as coisas na
montanha?
— Ah... John... John foi embora. Ele se foi.
— Oh, querido. Sinto muito. Sinto muito mesmo.
— Sim. Ele vai precisar... Eu preciso...
— Sei do que precisa, Jack. Não se preocupe com isso. Vamos
mandar uma ambulância aí em cima. Demora cerca de uma hora, ok? Vou me
certificar de que tudo esteja resolvido.
— Ok. O... Obrigado.
— Oh, querido. Por favor, não chore.
— Não estou chorando, Darlene. Apenas tendo um pouco de
dificuldade em recuperar o fôlego, é isso.
— Está se sentindo bem, Jack? Oh, que pergunta horrível. Claro que
não. Estou apenas preocupada. Não posso ter os dois partindo. Isso quebraria
ainda mais meu coração.
— Está tudo bem, Darlene. Estou bem.
— Se você diz. Espero que esteja me contando tudo. Que tal eu ficar
no telefone com você até os caras chegarem aí? Você tem companhia? Odeio
pensar em você sozinho na cabana agora.
— N... Não. Preciso passar algum tempo com ele. Preciso de uma
chance de dizer adeus.
— Ok, se tem certeza. Leve o tempo que precisar. Me liga se precisar
de alguma coisa. Vou esperar aqui por sua chamada.
— Darlene?
— Sim, Jack?
— Você... Você acredita no céu?
— Sim, Jack. E sabe que o John está lá, certo? Se existe alguém que
possa chegar lá, esse alguém seria ele.
— Sim.
— Quando eu era uma garotinha, minha mãe me dizia que o Céu é o
que queremos que seja, que é um presente de Deus para nós por termos
vivido neste mundo, nossa recompensa por todo o nosso sofrimento. Ela me
disse que antes de ser bem recebido em casa, você se lembrará de um
momento no qual sentiu uma forte sensação de paz e ajudará a guiá-lo para o
seu céu. Então aposte que seu John está onde ele estaria mais feliz, e sei que
está esperando por você. E o céu que terão será um onde estarão juntos. Eu
sei disso, Jack. Sei disso com cada fibra do meu ser.
— Eu tenho de ir, Darlene.
— Ok, querido. Eu te vejo em breve.

Desligo o telefone. De alguma forma, ele cai de volta em seu lugar.


— Tenho de dizer adeus. — Digo ao quarto vazio. — Eles estarão aqui
em breve, John. Vão estar aqui em breve para te levar embora, e tenho de
dizer adeus. Eu não quero. John, não quero dizer isso. Não em voz alta. Em
voz alta, será real. Em voz alta significa que é verdade. Em voz alta é... Oh...
Por favor. Isso é um sonho, não é? Quero que isso seja um sonho muito ruim.
Me acorde, por favor. Por favor, me acorde.
Dou um passo em direção a ele e há um espasmo no meu braço
esquerdo. Meus dedos estão formigando e uma gota de suor escorre pela parte
de trás do meu pescoço.
A sala escura parece brilhar um pouco, como se as luzes estivessem
descendo para fora da casa, mas depois está escuro de novo e tudo que
consigo ouvir é o rangido da casa, a batida irregular do meu próprio coração.
A tela azul ainda está na TV e posso ver o contorno de John na cama.
Quero chorar.
Quero desmoronar no chão e gritar minha fúria, minha indignação,
minha tristeza.
Quero que todo o mundo ouça o quanto estou perdido, o quanto acho
que nunca mais ficarei bem de novo.
Mas não choro. De alguma forma, não choro.
Estes são os últimos momentos que passarei com ele sozinho, e
tenho de aproveitá-los ao máximo.
Você tem de viver o melhor que puder, ele me disse no dia em que
chegamos a essa decisão. Pode doer, Jackie, e pode não parecer justo, mas
tem de me prometer que vai viver. Não pode se deixar perder. Você não pode.
Não vou fazer isso se eu não tiver certeza de que ficará bem.
Claro, John, eu disse. Eu ficarei bem.
Foi a maior mentira que já contei a ele.
Prometa-me, Jackie.Você me promete?
Eu...
Jackie
— Eu prometo. — Sussurro em voz alta. — Dói, John. Dói, mas
prometo.
Volto para a cama, rastejo e me deito ao lado dele. Seu rosto está
voltado para o meu, e mesmo que esteja escuro e estamos inundados por uma
luz azul forte, ele ainda parece tão bonito.
Mesmo que ele já não esteja aqui, ainda posso ver o garoto que
conheci todos esses anos atrás.
Aquele que agarrou meu braço e me disse que me chamaria de Jackie
porque ninguém me chamava assim.
O garoto que me viu e soube o que deveríamos ser, mesmo que eu
não soubesse por mim mesmo.
Prometi a ele.
Agora farei o meu melhor, mesmo que estivesse quebrado.
Alcanço e toco sua bochecha. O nariz dele. O ouvido dele. Eu me
inclino para frente e beijo seus lábios suavemente.
— Você se lembra. — Pergunto a ele. — Daquela vez que saímos nas
minhas férias na primavera? Você pegou emprestado aquele carro velho da
oficina e disse que me levaria para ver o oceano, porque eu nunca tinha visto
isso antes e sempre quis ir. Vou levar você, você disse. Você nunca viu e vou
te levar porque vou te dar tudo o que você quiser, Jackie. Então entramos
naquele pequeno carro e nos dirigimos para o oeste.
— Você se perdeu, no entanto, não foi? De alguma forma nós nos
viramos. Não deveria ser tão difícil encontrar o oceano, você disse. É o maldito
oceano. Lembro-me de ter rido de você porque achei que você ficava tão
bonito com o quão vermelho seu rosto ficou, como você rangia os dentes
juntos. Você tentou não brigar comigo, mas eu não sabia ler um mapa e
acabamos brigando. Você lembra? Dissemos algumas coisas horríveis um para
o outro, e eu odiava discutir com você. Odiei aquilo.
Meu braço formiga, mas ignoro.
— Então fui dormir. Você me acordou mais tarde e estava escuro,
mas podia vê-lo sorrindo para mim. Sua mão estava no meu cabelo e você
disse que eu tinha de acordar porque tinha algo para me mostrar. E lembro
apenas que fiquei observando você por causa do jeito que sorria para mim e
soube então que não importava o quanto brigávamos. Não importava o quanto
discutíamos. Sempre encontraríamos o caminho de volta um para o outro e
nada nos separaria.
Ouviu isso, Jackie, você disse. É o oceano. E era mesmo.
Faço uma careta quando uma dor aguda sobe do meu bíceps para o
meu ombro e afunda no meu peito. É uma coisa profunda, uma coisa dolorida,
e meu coração pula uma batida e fecho meus olhos, esperando que isso passe.
Não sei o que é isso, mas não vou deixar isso interromper meus últimos
momentos com...
A dor me golpeia de novo e... Oh, Jesus, isso dói.
Minha mão parece zumbir, e flexiono meus dedos e depois faço um
punho, depois flexiono novamente. As sombras que meus dedos criam no rosto
de John parecem garras negras que estão apertando-o, e deixo cair a mão em
um medo irracional, ignorando o suor na testa, o jeito que meu coração
começa a disparar.
— Vo... Você disse que me levaria a qualquer lugar. Que me seguiria
em qualquer lugar e que, enquanto estivéssemos juntos, nada mais
importaria. Eu faria qualquer coisa por você, Jackie. Foi o que você disse. E é
isso mesmo. Aonde você for, eu vou. Não importa o quê. Isso não...
Uma onda de dor rola sobre mim, fazendo com que minha visão fique
embaçada. Meu peito está pegando fogo. Eu me empurro contra John e sua
cabeça cai no meu ombro e não posso deixar de rir. É um som baixo, um som
áspero, como se estivesse sibilando entre os meus dentes cerrados, mas isso
não importa, porque eu apenas rio.
— É você, John? — Eu grito. — É isso que acontece? Nunca nos
separaremos! Foi o que você disse! Você disse que nunca nos separaríamos!
Solto um gemido enquanto meu coração começa a falhar no meu
peito, quando um rugido começa a tomar meus ouvidos e a luz da TV parece
ficar mais brilhante quando fecho meus olhos.
Sei que deveria levantar.
Eu deveria me levantar e pegar o telefone.
Ligar para Darlene outra vez. Dizer a ela o que está acontecendo.
Essa coisa não está certa. Acho que estou tendo um ataque cardíaco.
Isso não é estranho? Penso loucamente. Nunca, nem uma vez tive
um problema com meu coração.
Tento me mover, mas a cabeça de John está no meu ombro e o peso
é reconfortante e pesado e tudo que quero fazer é dormir. Tudo o que quero
fazer é dormir ao lado do meu marido e nunca mais ter de me preocupar.
— Ah, Cristo! Dói, John! Oh, Deus, isso dói. — E como um trovão,
meu coração ecoa em meus ouvidos, não consigo recuperar o fôlego.
Tento puxar o ar, mas é como chupar um canudo e não é suficiente.
Não está nem perto o suficiente.
Minha garganta está contraída, quase como se as garras negras do
rosto de John tivessem se enrolado no meu pescoço e estivessem se apertando
cada vez mais.
Tenho de respirar. Respire. Inale. Vamos!
Eu me esforço para respirar e tudo o que consigo me lembrar é dele.
A sensação da mão dele no meu cotovelo quando me perguntou o meu nome.
Seus lábios contra os meus pela primeira vez. Seu corpo maltratado. O olhar
de traição em seu rosto. A maneira como o anel desliza sobre o dedo.
E qualquer outra coisa.
Tudo sobre ele.
O gosto dele. O jeito que sorri. A maneira como diz meu nome. Sua
pele contra as pontas dos meus dedos. Sua risada. Sua raiva e sua beleza.
As fotos da nossa vida, empurradas para aquelas caixas, para
aqueles armazéns, explodiram e tudo que eu posso ver é ele, sou engolido por
ele.
Memórias batem juntas e vozes rolam umas sobre as outras e se
encaixam até que tudo que consigo ouvir é Jackie, Jackie, Jackie, e é um
canto, uma carícia amorosa, um grito alegre.
Expire.
Isso queima.
Meu corpo inteiro parece que está pegando fogo, e minha cabeça
balança para trás. A bochecha de John roça na minha.
Ins... pire...
— John. — Sussurro enquanto arqueio minhas costas, os músculos
tensos violentamente.
Ex... pire...
A dor começa a desvanecer-se. Posso sentir seu corpo ao lado do
meu.
Ins...
...pire.
Estou aquecido. Não é... Não é como pensei que seria. Não posso...
isso é...?
Eu acho, John.
Ex...

Houve um momento uma vez, pouco antes da cabana ficar pronta,


quando virei a esquina do meu jardim e vi John de pé no meio do pátio, com
os olhos fechados, o rosto inclinado para o céu.
Ele tinha um pequeno sorriso no rosto enquanto respirava fundo e
deixava escapar.
Naquele momento, eu nunca o tinha visto tão bonito.
Algo veio sobre mim então, e não pude deixar de correr para o lado
dele, agarrando seu rosto em minhas mãos e beijando-o por tudo que valia a
pena.
Ele riu baixinho contra meus lábios, e quando finalmente me afastei,
ele enfiou a mão no meu pescoço e pressionou sua testa na minha.
Nenhuma palavra foi dita, mas não importava.
Eu conhecia seus pensamentos porque estava pensando a mesma
coisa.
Para sempre.

O sol está no meu rosto. Estou deitado de costas. Há grama debaixo


de mim. Uma abelha passa pelo meu ouvido. Ouço ondas batendo em uma
praia. Não parece o oceano.
É... talvez... Um lago? Parece um lago.
Aves à distância. Uma brisa no meu cabelo. Parece verão. Está
quentinho. Parece seguro, como se nada pudesse me machucar. Parece um
sonho e não sei dizer se estou sonhando acordado.
Passos se aproximam e uma sombra atravessa meu rosto. Alguém
está em pé acima de mim, bloqueando o sol. Ouço uma risada profunda e isso
me balança até os meus ossos e quero abrir meus olhos.
Quero muito abri-los, mas não posso correr o risco de não ser real.
Que isso seja um sonho e não real.
Então a figura acima de mim diz apenas uma única palavra, e é dito
por uma voz jovem. Uma voz forte. Uma voz que me faz doer.
E com essa palavra, lágrimas explodem debaixo das minhas
pálpebras e grito uma canção de perda e luto. De desgosto. De alívio, de tanto
alívio que acho que vou me separar da beleza trágica de tudo isso.
E enterrado nesta canção vem uma única memória que surge através
da cacofonia que é minha mente, bem iluminada, como se fosse uma estrela
cadente.
Eu me agarro e seguro porque sei que significa tudo.
Porque sei que é tudo.
Será apenas eu. Apenas eu. Você verá.
Ninguém mais vai te chamar assim como eu. Ninguém nunca vai.
Você ouve esse nome e saberá que está vindo de mim.
E de cima de mim, a palavra vem de novo:
— Jackie. — Diz ele.
Eu abro meus olhos.

Fim

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