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A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA E O CRIME DE RECEPTAÇÃO

THE THEORY OF DELIBERATED BLINDNESS AND THE CRIME OF RECEPTION

Luis Alan Perussolo Teixeira

RESUMO

O crime de receptação está previsto no Código Penal Brasileiro, mais especificamente em seu artigo
180. Diante disso, aquele que, por exemplo, adquire produto proveniente do crime, sendo conhecedor
desta situação, irá responder penalmente pela sua conduta. Trata-se de um tipo penal de extrema
relevância, eis que os crimes de roubo e de furto, tão constantes na sociedade atual, apenas existem
em tamanha quantidade justamente pelo fato de que há diversos indivíduos que se sujeitam à compra
dos produtos deles provenientes, eis que vendidos por valor muito inferior ao de mercado. Portanto,
não há dúvidas de que as penas cabíveis devem incidir sobre estes agentes. Mas, é interessante aqui
sinalizar que no decorrer do processo penal muitas destas pessoas que respondem pelo crime de
receptação alegam ignorância, isto é, que não sabia que o produto adquirido tinha origem ilícita.
Portanto, o fim pretendido neste Trabalho de Conclusão de Curso é averiguar a possibilidade de ser
aplicada a teoria da cegueira deliberada nos casos que envolvem o crime de receptação.

Palavras-Chave: Receptação. Teoria da Cegueira Deliberada. Dolo. Origem Ilícita.

ABSTRACT

The crime of receipt is provided for in the Brazilian Penal Code, more specifically in its article 180.
Therefore, those who, for example, acquire proceeds from the crime, being aware of this situation, will
be criminally liable for their conduct. This is an extremely important criminal offense, as the crimes of
robbery and theft, so common in today's society, only exist in such a large amount precisely because
there are several individuals who are subject to the purchase of products from them, behold, sold for a
value much lower than the market. Therefore, there is no doubt that the applicable penalties must be
imposed on these agents. But, it is interesting here to point out that during the criminal proceedings,
many of these people who are responsible for the crime of receipt claim ignorance, that is, that they
did not know that the product purchased had an illicit origin. Therefore, the intended purpose of this
Final Course Paper is to investigate the possibility of applying the theory of deliberate blindness in
cases involving the crime of reception.

Key-words: Reception. Deliberate Blindness Theory. Dolo. Unlawful Origin.


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1 INTRODUÇÃO

É relevante esclarecer que a teoria da cegueira deliberada consiste em uma


manifestação intencional que advém do agente que se coloca em um estado de
ignorância quanto ao conhecimento de determinada conduta tida como ilícita, cujo
escopo é afastar a responsabilidade penal. Assim, o sujeito deixa de procurar
maiores esclarecimentos a respeito de determinado fato que se mostra suspeito.
Mais especificamente em relação ao crime de receptação, o indivíduo se
abstém de saber sobre a origem dos bens e valores, ainda que estes se encontrem
em manifesta dissonância com o que é objeto de oferta no mercado. Diante disso, o
fim pretendido na pesquisa é promover uma abordagem a respeito da teoria da
cegueira deliberada com o crime de receptação, ora constante no artigo 180, do
Código Penal.

2 ASPECTOS INICIAIS SOBRE O CRIME

2.1 CONCEITO DE CRIME

Indubitavelmente, o crime pode ser definido tanto no âmbito material, quanto


na esfera formal. Analisando-se a esfera material, o crime diz respeito a um aspecto
relevante dentro da órbita jurídica, eis que coaduna a ação humana que está em
desacordo com a legislação a determinada punição prevista na norma penalista,
mais precisamente uma sanção. Na esfera formal, pondera-se o mesmo ser um fato
típico, dotado de antijuridicidade, de acordo com Jesus (2011, p. 193).
Assim sendo, oportuno ressaltar que no âmago formal, a delimitação
conceitual acerca do crime levará em consideração, eminentemente, as
características externas, que engloba, por sua vez, a tipicidade e a ilicitude, nada
obstando que em alguns casos ainda seja inserida a culpabilidade. De maneira
diversa ocorre com a conceituação material, que diz respeito a uma conduta
humana, podendo a mesma se efetivar sob o prisma negativo ou positivo, que
afrontará determinado bem que esteja acobertado sob o manto do direito penal,
segundo Pereira (2012, p. 59).
De acordo com Masson (2015, p. 245), o critério material, também
denominado como substancial leva em consideração o mal que é ocasionado em um
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bem que se encontra protegido na norma penal, norteando a formulação das


intituladas políticas criminais. Já o critério formal, ora também nominado como
analítico, embasa-se eminentemente nos elementos atinentes à estrutura do crime.
No que tange a delimitação conceitual que ronda o aspecto analítico, pode-se
visualizar que no entendimento de Carlos e Friede (2015, p. 105) que para subsistir
a conduta delituosa, faz-se necessário o surgimento de apenas duas figuras, quais
sejam: a tipicidade e a ilicitude, posto que a culpabilidade será analisada apenas no
momento em que a pena for objeto de aplicação.

2.2 CONCEITO DE ILICITUDE X EXCLUDENTE DE ILICITUDE

No entendimento consubstanciado por Cunha (2016, p. 253), a ilicitude é


também intitulada como antijuridicidade e, basicamente, perfaz uma conduta dotada
de tipicidade, que não se coaduna com nenhuma justificação descrita no código
penalista e, portanto, há manifesta contrariedade com o conteúdo inserto no
ordenamento vigente.
Nos moldes assim delimitados doutrinariamente, pode-se afirmar que a
antijuridicidade está intimamente vinculada entre a contrariedade emanada da
conduta do agente, com o regramento jurídico vigente, estabelecendo-se, assim,
que "A antijuridicidade, entendida como relação de contrariedade entre o fato e a
norma jurídica, tem sido definida, por um setor-doutrinário, como puramente objetiva,
sendo indiferente, por isso, a relação anímica entre o agente e o fato justificado", de
acordo com Bitencourt (2010, p. 359).
Diante disso, mediante a implementação da ilicitude, subsiste manifesta
importância no que tange a finalidade para a qual a conduta foi dirigida, eis que,
consoante delimita Curia e Rodrigues (2015, p. 52), há as excludentes que devem
ser analisadas no caso concreto, de modo a pôr termo na conduta inicialmente
considerada como ilícita.
Portanto, tem-se que de acordo com o entendimento de Paschoal (2015, p.
34-35), não há o que se falar em antijuridicidade quando o agente pratica
determinada conduta consubstanciado em legítima defesa, eis que resta elidida a
tipicidade da conduta, na medida em que o indivíduo atuou de maneira a preservar
determinado bem jurídico.
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2.3 TIPO DOLOSO

É importante esclarecer, nos dizeres de Greco (2017, p. 316), que o dolo se


constitui como sendo a vontade, assim como a consciência que resta dirigida para a
realização de um ato que se encontra devidamente inserido na lei penal
incriminadora. Verifica-se, aqui, a consciência, que consiste na esfera intelectual do
dolo, razão pela qual o sujeito deve ter consciência daquilo que está sendo objeto de
execução e que isso efetivamente irá repercutir em um resultado lesivo.
Já em relação à vontade, Greco (2017, p. 317-318) pondera que o agente
deve proceder de forma deliberada, sem qualquer vício, com o fim volitivo de praticar
a conduta descrita no tipo penal incriminador. Carecendo de qualquer um destes
elementos, quais sejam, a consciência e a vontade, não há o que se falar na
caracterização do crime doloso.
O crime doloso está previsto no artigo 18, inciso I, do Código Penal: “Art. 18 -
Diz-se o crime: I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de
produzi-lo”.
Nesse sentido, Capez (2015, p. 366) explicita que o dolo consiste na soma da
vontade e da consciência para o fim de desenvolver uma conduta que esteja
associada ao tipo penal incriminador, consubstanciando-se, assim, na vontade que
se manifesta na pessoa humana para fins de concretizar o ilícito. Consiste no
elemento psicológico da conduta, ao passo que a conduta se subsume a um dos
elementos do fato típico, razão pela qual há de se compreender que o dolo
igualmente se subsume a um dos elementos do fato típico.
A questão do dolo traz em seu bojo algumas teorias. A primeira teoria do dolo
que deve ser sinalizada nesta pesquisa acadêmica é a teoria da vontade, que,
consoante expressa Greco (2017, p. 319), o dolo se encontra intimamente vinculado
apenas com a vontade livre e consciente de querer proceder com a prática
criminosa, fazendo-se erigir, nestes termos, a conduta inserta no tipo penal
incriminador.
Ainda, Greco (2017, p. 319) fala a respeito da teoria do assentimento,
desmembrando que o dolo resta caracterizado quando o indivíduo não deseja o
resultado lesivo de maneira direta, mas, prevê como possível. Nesse enfoque,
assume o risco para o fim de produzi-lo, pouco se importando com a sua ocorrência.
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Há, portanto, três fatores: a) o resultado não é querido pelo agente de forma direta;
b) todavia, entende que ele é possível; e, c) aceita-o.
Para Greco (2017, p. 319), a teoria do assentimento contempla que a
produção do dolo é aceita com indiferença, sendo que o sujeito irá prever o
resultado e, por conseguinte, aceitar os riscos para fins de produção.
Greco (2017, p. 319) também abarca a teoria da representação,
reconhecendo-se o injusto doloso quando se verificar que o sujeito tinha a previsão
do resultado como possível, mas, mesmo assim, não se abstém de praticar a
conduta. Para esta teoria, não há o que se falar na distinção entre dolo eventual e
culpa consciente, eis que o fato de indivíduo prever o resultado já se alavanca uma
conduta a título de dolo.
A respeito da teoria da probabilidade, Greco (2017, p. 319) explicita que esta
teoria “[...] trabalha com dados estatísticos, ou seja, se de acordo com determinado
comportamento praticado pelo agente, estatisticamente, houvesse grande
probabilidade de ocorrência do resultado, estaríamos diante do dolo eventual”.
Por fim, tomando como base o conteúdo inserto no artigo 18, inciso I, do
Código Penal, tem-se que a norma penal brasileira adotou tanto a teoria da vontade,
quanto do assentimento, caracterizando-se o tipo doloso nos casos em que o sujeito
efetivamente deseja a produção do resultado, além das hipóteses em que não
deseja de maneira direta, mas assume o risco para produzir, nos moldes de Greco
(2017, p. 320).
Cumpre ainda analisar as espécies de dolo, residindo, basicamente, no fato
de que a sua distinção primordial recai sobre o fato de ser direto e indireto O dolo
direto, na concepção de Greco (2017, p. 320), condiz com o dolo por excelência, de
tal modo que o indivíduo se comporta para o fim de praticar a conduta descrita no
tipo, com vontade e consciência. É, portanto, a incidência expressa do conteúdo
inserto no artigo 18, inciso I, do Código Penal.
O mesmo entendimento é apontado por Capez (2015, p. 371), sinalizando
que o dolo direto, igualmente nominado como determinado, reside na vontade de
realizar a conduta e, como consequência, produzir o resultado. Assim sendo, o
agente quer a produção do resultado de forma direta.
Por outro lado, cabe trazer a definição a respeito do dolo indireto, que, na
concepção de Nucci (2019, p. 549), consiste na vontade dirigida para o atingimento
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de algum resultado considerado como determinado. O dolo indireto se divide em


eventual e alternativo.
Em relação ao dolo eventual, Greco (2017, p. 322) explicita que “[...] o agente,
embora não querendo diretamente praticar a infração penal, não se abstém de agir
e, com isso, assume o risco de produzir o resultado que por ele já havia sido previsto
e aceito”.
Para Greco (2017, p. 322), o dolo alternativo é aquele em que a vontade do
agente é dirigida de forma alternativa tanto para determinado resultado
(alternatividade objetiva), quanto à pessoa em face da qual o crime e perpetrado
(alternatividade subjetiva).

2.4 TPO CULPOSO

O tipo culposo, nos dizeres de Capez (2015, p. 371), necessita de um prévio


juízo de valor, eis que apenas assim é passível de ser averiguado se está ou não
presente na situação concreta. Assim sendo, cada caso deve ser analisado de
maneira individual, pois, diante da impossibilidade do legislador prever todos os tipos
penais possíveis, encontra-se contemplado apenas de modo genérico no tipo.
O Código Penal Brasileiro traz a sua definição no artigo 18, inciso II,
delimitando que “culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência,
negligência ou imperícia”.
Dentro deste contexto, Greco (2017, p. 330) sinaliza uma série de elementos
que viabilizam a caracterização do tipo culposo, como ocorre, por exemplo, com a
conduta humana voluntária, o resultado lesivo não querido, além da previsibilidade e
da tipicidade.
Diante disso, nota-se que a culpa se encontra intimamente vinculada com um
juízo de valor, fazendo-se necessário, para fins de reconhecimento que sejam
observados alguns elementos no contexto prático para fins de caracterização,
consoante bem exposto por Greco (2017, p. 330). Pode derivar da imprudência, da
negligência e da imperícia.
Verificando-se a questão da imprudência, Greco (2017, p. 336) sinaliza,
desde logo, tratar-se de uma conduta positiva proveniente do agente, que atua no
sentido de não observar o dever de cuidado, o que acaba gerando,
consequentemente, um resultado lesivo que era previsível. Isso ocorre, por exemplo,
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nos casos de acidentes de trânsito em que o sujeito emprega excesso de


velocidade.
Já a negligência, nos moldes de Capez (2015, p. 371), é compreendida como
uma conduta omissiva e, em razão disso, o indivíduo deixa de tomar o devido
cuidado antes de iniciar os seus atos. Assim sendo, de maneira diversa do que
ocorre com a imprudência (concomitância), a negligência resta implementada no
momento em que antecede a conduta, por intermédio da abstenção de determinado
comportamento.
Por fim, cabe aqui falar na imperícia, que, nos termos de Greco (2017, p.
337), diz respeito à inaptidão que recai sobre o indivíduo para o fim de executar
determinada arte, profissão ou ofício, estando, dentro deste enfoque, atrelada à
atividade profissional realizada pelo sujeito. Como exemplo, aponta-se um cirurgião
plástico que efetue atos no decorrer de um procedimento que possa ocasionar
danos ao paciente.
Ademais, a culpa pode ser consciente ou inconsciente. A culpa consciente,
tomando como base o posicionamento de Greco (2017, p. 338), consiste naquela
em que o indivíduo, embora preveja o resultado, ainda procede com a prática do ato,
crendo, sinceramente, que o resultado lesivo não irá ocorrer. Assim, o sujeito
acredita nas suas habilidades e, muito embora preveja como possível a ocorrência
do resultado, acredita que não irá ocorrer.
Por outro lado, nos casos que envolvam a culpa inconsciente, nos dizeres de
Greco (2017, p. 338), inexiste o que falar na previsão do resultado. O mesmo
posicionamento é desmembrado por Capez (2015, p. 384), albergando que a culpa
inconsciente consiste no fato do sujeito não prever aquilo que era previsível.

3 O CRIME DE RECEPTAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Inicialmente, é importante salientar que quando se está diante do crime de


receptação, nota-se, desde logo, que a sua punição remonta o contexto histórico.
Isso porque, mediante uma análise mais detida nos tempos mais antigos, tem-se
que já subsistia a sua punição no bojo do direito romano, bem como na Idade Média,
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estendendo-se até a atualidade. Mais especificamente na doutrina italiana, tal era


nominada como favorecimento, consoante Nucci (2019, p. 712-713).
Dentro deste enfoque, mais precisamente no período de Justiniano, o crime
de receptação abarcava a modalidade pessoal e real, sendo que à figura do
receptador restava conferido o mesmo tratamento daquele atribuído ao ladrão.
Nesta época, Bitencourt (2012, p. 854) assimila que a receptação era compreendida
como cumplicidade subsequente.
Ainda, cumpre transcrever que no século XIX foi erigida a autonomia da
receptação no aspecto que toca o crime antecedente e, de acordo com Bitencourt
(2012, p. 854), “A partir desse período, a receptação passou a ter como pressuposto
não apenas um crime especificamente contra o patrimônio, mas qualquer crime que
pudesse, indevidamente, acarretar vantagem patrimonial em prol do agente”.
Mais precisamente no âmbito das Ordenações Filipinas, a sanção atribuída ao
crime de receptação condizia com o praticado anteriormente, sendo possível
explanar que tanto o Código Criminal do Império, quanto o Código Penal de 1890,
contemplava a receptação como sendo uma forma de cumplicidade posterior em
relação ao crime praticado anteriormente, conforme Bitencourt (2012, p. 854).
Sob esse prisma, é importante desmembrar a importância do crime de
receptação no âmbito dos crimes contra o patrimônio, pois, de acordo com o
delimitado por Nucci (2019, p. 713), quem recebe os produtos das infrações penais
provenientes dos furtos, dos roubos, assim como das extorsões, é o receptador.
Portanto, caso inexistisse esta figura, muito provavelmente os índices dos crimes
contra o patrimônio seriam bem menores.
Na concepção de Nucci (2019, p. 713), “[...] não se pode cair na ficção de que
o crime será eliminado integralmente deste Planeta; ao menos, nesta faixa de
evolução que atravessamos, a resposta é negativa. Diante disso, tratar o receptador
com maior rigor pode ser a trilha mais correta [...]”.
Nesse passo, cabe delimitar neste estudo o aspecto que toca o bem jurídico
tutelado no tipo penal em voga. Tomando como base os ensinamentos de Cunha
(2017, p. 412), há íntima correlação com o patrimônio, que, uma vez violado,
subsistirá a atribuição da competente pena ao criminoso. Mas não é, eis que o bem
jurídico igualmente diz respeito à administração da justiça, já que a sua atuação é
objeto de embaraço por parte da atuação do receptador.
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Assim sendo, segundo bem explanado por Bitencourt (2012, p. 854), percebe-
se de modo nítido que o bem jurídico que é objeto de proteção no caso em tela
consiste no patrimônio, podendo ser ele público ou privado. Levando-se em
consideração que a posse igualmente abarca um instituto de suma importância,
igualmente é passível de ser objeto de roubo ou furto.
A respeito do tema em apreço, Masson (2018, p. 627) fala na autonomia da
receptação, de forma que, muito embora seja compreendida como um crime
acessório, eis que intimamente vinculada à prática de um delito anterior, prescinde
que subsista o conhecimento relativo à autoria ou a possibilidade de punição. Dentro
deste enfoque, apenas se mostra indispensável à existência material do crime
anterior, o que leva a crer em uma independência relativa.
Além do mais, Masson (2018, p. 628-629) desmembra que para fins de
caracterização do crime de receptação prescinde que o crime anterior seja de
idêntica natureza. Portanto, com o escopo de preencher este pressuposto, basta que
o crime anterior seja compatível com a futura receptação. Ainda, o crime se
implementará ainda que a ação penal seja exclusivamente privada ou se esteja
diante de uma ação penal pública condicionada e a vítima se quedar inerte.
Portanto, o que se requer é que o crime de receptação se desencadeie como
verdadeiro produto do crime, ou seja, provenha de seu resultado, pouco importando
ser mediato ou imediato. Ainda, é relevante esclarecer que pouco importa que o
produto tenha substituído por outro, eis que, mesmo assim, restará configurada a
receptação. Isso porque, não há o que se falar no desaparecimento da ilicitude em
razão da sub-rogação da coisa, de acordo com Bitencourt (2012, p. 858). Frise-se
que o resultado do crime pode ser tanto mediato, quanto imediato.
Nesse particular, é interessante também abranger que no termos do
parágrafo 5.º, do artigo 180, “Na hipótese do § 3º, se o criminoso é primário, pode o
juiz, tendo em consideração as circunstâncias, deixar de aplicar a pena. Na
receptação dolosa aplica-se o disposto no § 2º do art. 155”.
De acordo com Estefam (2018, p. 534-536), se está diante, aqui, da
receptação privilegiada, aplicando-se mais especificamente na modalidade de
receptação culposa e dolosa simples. Assim sendo, verificando-se que o criminoso é
primário, aliado ao fato da coisa ser de pequeno valor, plenamente viável que o
magistrado promova a substituição da pena de reclusão pela detenção, abrindo-se
também a possibilidade de minimizar a sanção de um a dois terços, podendo aplicar
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apenas a pena de multa. É possível, inclusive, que o magistrado conceda perdão


judicial para a modalidade culposa.
Por fim, há de ser esclarecido que de acordo com Masson (2018, p. 626), a
ação penal para o crime de receptação é a pública incondicionada, pouco
importando dizer respeito à modalidade dolosa ou culposa.

3.2 RECEPTAÇÃO

É importante esclarecer, desde logo, que o caput, do artigo 180, traz em seu
bojo o tipo geral que pertine a receptação. Elenca, para tanto, diversos verbos,
como, por exemplo, adquirir ou conduzir coisa que sabe ser proveniente do crime,
tanto em proveito próprio, quanto em proveito de terceiro. Nesse passo, a pena
cominada é de um a quatro anos de reclusão, sem prejuízo de multa.
Observe o contido no dispositivo em discussão: “Adquirir, receber, transportar,
conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de
crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte: Pena -
reclusão, de um a quatro anos, e multa”.
Em relação ao objeto material, Capez (2018, p. 464) assimila se tratar do
produto do crime, qual seja, a coisa proveniente da prática de crime anterior, cuja
conduta criminosa igualmente se desencadeou em face do patrimônio. Veja-se, aqui,
que o entendimento que sobressai é que o produto do crime deve ser uma coisa
móvel, ou, ainda, o semovente.
Esse mesmo entendimento é partilhado por Bitencourt (2012, p. 856),
explanando que o objeto de receptação apenas pode ser a coisa móvel, muito
embora inexista no bojo do Código Penal Brasileiro qualquer exigência explícita
neste sentido. Para fins de receptação, é imprescindível que reste viabilizado o
deslocamento da coisa furtada, roubada ou extorquida.
Nesse passo, há de ser mencionado o fato de o indivíduo saber que o objeto
material que está adquirindo é produto do crime se constitui como sendo verdadeiro
requisito típico, como ocorre, por exemplo, com um relógio que foi furtado ou joias
que foram subtraídas. Para Estefam (2018, p. 529), não há o que se falar em delito
na hipótese em que a conduta incide sobre o instrumento, ou, ainda, sobre o preço.
A respeito do sujeito ativo, Nucci (2019, p. 716) enfatiza que qualquer pessoa
pode figurar como autora do crime, ao passo que o sujeito passivo consiste no
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proprietário, ou, ainda, no possuidor da coisa que condiz com o produto do crime.
Ressalta, neste contexto, que a aplicação do princípio da insignificância aos casos
concretos requer a presença de alguns requisitos, a saber: mínima ofensividade da
conduta, ausência de periculosidade social relativamente à ação, mínimo grau de
reprovação quanto ao comportamento desencadeado pelo agente e, ainda, a lesão
jurídica deve ser inexpressiva.
Diante destas circunstâncias, entendeu o julgador pela inaplicação do
princípio da insignificância no caso em discussão, sob o fundamento de que a parte
recorrente é duplamente reincidente, circunstância que inviabiliza a incidência do
aspecto principiológico na situação em voga, conforme Nucci (2019, p. 716).
Averigua-se que o caput, do artigo 180, dispõe a respeito da receptação
simples, que, de acordo com Greco (2017, p. 951-952), alavanca duas espécies,
quais sejam, a receptação própria e a receptação imprópria. Diante disso, será
própria a partir do momento em que se evidenciar que o comportamento do agente
se encaixa perfeitamente a uma das hipóteses transcritas no dispositivo.
Tomando como base os ensinamentos de Estefam (2018, p. 529), a
receptação simples engloba uma série de verbos, como “adquirir”, “receber”,
“ocultar”, “transportar” e, ainda, “conduzir”. Frise-se, ainda, que na hipótese em que
o sujeito praticar mais de uma conduta não restará caracterizado o concurso de
crimes, eis que, diante do princípio da alternatividade, consubstancia-se o
reconhecimento de um delito único.
Mais precisamente em relação à receptação imprópria, Cunha (2017, p. 414)
ensina que o agente do delito não será o receptador, mas sim aquele que proceder
para o fim de influenciar um terceiro, para, por exemplo, adquirir a coisa proveniente
do crime. Todavia, é oportuno esclarecer que o terceiro deve agir de boa-fé, pois,
carecendo tal atributo, figurará como receptador próprio, de forma que o
influenciador irá encenar como partícipe.
De acordo com Greco (2017, p. 952), a receptação será imprópria quando o
indivíduo incorrer na parte final da regra, que contempla a influência exercida sob
terceiro: “Denomina-se imprópria a receptação quando o agente leva a efeito o
comportamento previsto na segunda parte do caput do art. 180 do Código Penal, ou
seja, quando influi para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte”.
No que tange o elemento subjetivo, Bitencourt (2012, p. 910) esclarece que
no aspecto doloso há duas questões a serem observadas. A primeira delas reside
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no sujeito ser conhecedor do produto do crime, ao passo que, em um segundo


momento, verifica-se, no mínimo, que o indivíduo devia saber que o produto é de
origem criminosa.
Nesse sentido, cabe esclarecer que “O caput e o § 1º do art. 180 do Código
Penal traduzem as modalidades dolosas do delito de receptação, sendo que o seu §
3º prevê aquela de natureza culposa”, segundo Greco (2017, p. 961).
O elemento subjetivo, nos moldes conferidos por Estefam (2018, p. 530),
consiste no dolo, isto é, na vontade e na consciência do indivíduo praticar os
elementos objetivos inerentes ao tipo penal. Dentro deste contexto, inclui-se a
necessidade do sujeito ser conhecedor de que o produto advém do crime,
evidenciando-se, aqui, um requisito fundamental para fins de caracterização do
delito.
Além do mais, tomando como base os ensinamentos abarcados por
Bitencourt (2012, p. 855-856), o bem jurídico tutelado diz respeito ao patrimônio
público, ou, ainda, o patrimônio privado, tornando-se possível que a posse
igualmente seja objeto de proteção, tendo em vista se estar diante de um aspecto
que se mostra inerente ao patrimônio.

3.3 RECEPTAÇÃO QUALIFICADA

Nesse particular, cumpre delimitar que a receptação qualificada encontra


guarida no parágrafo 1.º, do artigo 180. Este tipo penal envolve uma série de verbos,
tais como adquirir, conduzir e expor à venda, incluindo-se, aqui, o exercício de
atividade comercial ou industrial. A pena de reclusão é de três a oito anos, incidindo
igualmente a multa. Veja-se que o comércio irregular ou clandestino é equiparado à
referida atividade comercial, nos termos do parágrafo 2.º.
Assim, o primeiro aspecto que pode ser retirado do dispositivo em apreço
consiste no fato de que a receptação qualificada perfaz um crime próprio, levando-se
em consideração o fato de que o agente deve figurar como comerciante ou
industrial, de acordo com Greco (2017, p. 958). Isso porque, conforme bem
delimitado pelo dispositivo em apreço, a ação deve ser objeto de prática no decorrer
do exercício da atividade comercial ou industrial.
Para Cunha (2017, p. 417), “[...] o § 1º em estudo traz inúmeras condutas
típicas não presentes no caput do dispositivo. São elas: ter em depósito, desmontar,
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montar, remontar, vender, expor à venda e utilizar, de qualquer forma, coisa que
deva saber ser produto de crime”. Esta modalidade é punida a título de dolo.
Diante disso, conforme bem assevera Cunha (2017, p. 417), não há dúvidas
de que a receptação qualificada traz em seu bojo uma série de verbos que
viabilizam a configuração do tipo penal, como, por exemplo, “ter em depósito”,
“montar” e “expor à venda” de coisa que o agente deva saber que é proveniente de
produto de crime.

3.4 RECEPTAÇÃO CULPOSA

O parágrafo 3.º, do artigo 180, abarca a hipótese de receptação culposa.


Nesse caso, há presunção de que o indivíduo saiba que a coisa advenha de produto
criminoso pela sua natureza, ou, ainda, em razão da desproporção entre o valor e o
preço. A pena será de detenção de um mês a um ano, ou multa, podendo incidir as
aludidas penas de maneira cumulativa.
Em observância ao previsto na norma, Greco (2017, p. 965) assimila que o
legislador, ao prever o crime de receptação culposa, desvencilhou-se da regra geral,
pois, a partir do momento em que abarca um crime culposo, faz mera menção, como
ocorre, por exemplo, na lesão culposa – se a lesão é culposa – o que não ocorreu
no caso em voga. Diante disso, diversamente do que ocorre nos outros tipos penais
abertos, o legislador preferiu detalhar o comportamento do agente, delimitando,
nesse enfoque, um tipo penal fechado.
Diante disso, é possível averiguar que o caso em voga traz três aspectos
diferentes para fins de reconhecimento da receptação culposa, subsumindo-se na
natureza da coisa, bem como na desproporção que se observa quanto ao aspecto
que toca o valor e o preço, sem se esquecer da condição de quem a oferta. Para
Cunha (2017, p. 422), estas circunstâncias não são cumulativas.

3.5 RECEPTAÇÃO DE ANIMAL

A receptação de animal encontra amparo no artigo 180-A. a regra traz


diversos verbos em seu bojo, como adquirir, conduzir ou vender semovente
domesticável de produção para o fim de produção ou comercialização. A pena de
reclusão é de dois a cinco anos, mais multa.
14

De acordo com o posicionamento proposto por Greco (2017, p. 975), a norma


em apreço traz à baila mais uma qualificadora para o crime de receptação,
aplicando-se na situação concreta ainda que o animal tenha sido objeto de abate,
ou, dividido em partes. Observa-se, desde logo, a intenção do legislador no sentido
de criar um tipo penal mais rigoroso do que a regra geral para os crimes que
englobem a receptação de animais.
Para Cunha (2017, p. 924), não há dúvidas a respeito do intuito do legislador
em proteger o patrimônio, especialmente em razão do grande aumento de furtos e
roubos de animais domesticáveis para fins de comercialização. Mas, não se pode
olvidar que a finalidade também é conferir proteção à saúde pública, já que este
crime é uma forma de fomentar o comércio clandestino de alimentos,
estabelecendo-se de maneira isenta a qualquer fiscalização.

4 A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA E O CRIME DE RECEPTAÇÃO

4.1 NO QUE CONSISTE A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA?

Inicialmente, importa aqui transcrever que a teoria da cegueira deliberada,


originária do direito anglo-saxónico – Willful blindness – pode ser considerada como
sendo um termo utilizado pelo Direito Penal para o fim de delimitar determinada
situação em que o sujeito visa obstar que sobre ele incida a responsabilidade penal
e, em razão disso, coloca-se de modo intencional em um estado de ignorância
quanto à sua conduta, segundo Aido (2018, p. 6).
Dentro deste enfoque, levando-se em consideração os termos expostos por
Vidal (2018, p. 37-38), tem-se que para a teoria da cegueira deliberada o sujeito
manifesta íntima vontade no sentido de fechar os olhos para o fim de não observar a
ilicitude de sua conduta. É exatamente por isso que esta teoria igualmente é
conhecida como “teoria do avestruz” ou das “instruções do avestruz” (ostrich
instructions), já que o indivíduo age como um verdadeiro avestruz, de modo que
esconde a cabeça na terra para fins de proteção.
Diante disso, Vidal (2018, p. 38) reflete a respeito da “[...] alusão ao fato de
que o agente busca camuflar a conduta ilícita que pratica, pois não busca as
informações de que precisa para aferir a ilicitude certa do fato que, diante dele,
oferece elementos suspeitos”.
15

Nesse sentido, conforme bem agrega Soares (2019, p. 114), a teoria da


cegueira deliberada reside em um instituto de direito criminal, que, por sua vez,
viabiliza a responsabilização criminal daqueles sujeitos que obstam qualquer tipo de
conhecimento a respeito do caráter ilícito do fato em que haja concorrido, bem como
a respeito da procedência ilícita dos bens que foram adquiridos, ou, ainda,
movimentados.
Dentro deste enfoque, Paz (2020, p. 59-60) admite que a teoria da cegueira
deliberada foi criada com o escopo de punir aqueles sujeitos que, deliberadamente,
alegam o desconhecimento da ilicitude quanto ao ato que está sendo objeto de
prática. Nesses termos, a situação concreta traz evidências suficientes que se
mostram capazes de gerar a desconfiança de que o bem é proveniente de origem
ilícita, mas mesmo assim o sujeito adquire, obtendo para si a vantagem desejada.
Para fins de aplicação da teoria do avestruz aos casos concretos, o indivíduo
deve se comportar no sentido de assumir o risco para o fim de produzir o resultado
considerado como típico, de modo que, intencional e voluntariamente, comporta-se
de maneira omissiva quanto ao conhecimento relativo a alguma característica do
produto advindo de origem ilícita, segundo Soares (2019, p. 115).
Portanto, conforme bem agrega Soares (2019, p. 115-116), a teoria da
cegueira deliberada tem aplicação a partir do momento em que subsiste suspeita
justificada quanto à ilicitude da ação, ou relativamente à origem dos bens que está
sendo objeto de comercialização, de tal forma que o estado de ignorância do
indivíduo é erigido de maneira intencional.
Mais especificamente sob a perspectiva norte-americana, Soares (2019, p.
117) ensina que a sua aplicação vem sendo aceita a partir do momento em que
restam apresentados nos autos elementos probatórios robustos sobre a elevada
possibilidade do sujeito de ter conhecimento quanto aos bens, direitos e valores que
estão sendo empregados dentro de determinada situação fática, mas, mesmo assim,
comportou-se de maneira diferente.
Considerando este contexto, relacionando-se a teoria da cegueira deliberada
para os crimes de receptação, Vidal (2018, p. 38) assimila que o agente, mediante
sua própria vontade, deixa de enxergar a ilicitude da origem dos bens, direitos,
assim como os respectivos valores, cujo escopo é agir para o fim de obter
determinada vantagem, sem, no entanto, importar-se com a ilegalidade do ato. Isto
é, o sujeito assume o risco de sua conduta.
16

4.2 A APLICAÇÃO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA NOS CRIMES DE


RECEPTAÇÃO

Nesse particular, é interessante ponderar que quando se está diante da


caracterização do crime de receptação, é relevante a necessidade de o sujeito ser
conhecedor da origem ilícita do bem ou serviço. É indiscutível que o caminho mais
fácil a ser seguido no âmbito do processo penal é o levantamento quanto o
desconhecimento do agente relativo ao crime anteriormente praticado, que, muito
embora seja capaz de gerar a absolvição, igualmente viabiliza a condenação com
base na teoria da cegueira deliberada, conforme Paz (2020, p. 63).
Nesse sentido, desmembra Paz (2020, p. 63) que dentro destas
circunstâncias a finalidade basilar da teoria da cegueira deliberada é justamente
identificar o momento em que o sujeito promoveu uma conduta para o fim de adquirir
o bem móvel proveniente do crime, fechando os olhos para as características que
facilmente demonstram o caráter ilícito. Assim sendo, o produto é incorporado ao
seu patrimônio, pouco importando a sua origem.
Segundo Sannini Neto (s.d., p. única), “É, de fato, muito fácil para oportunista
se fazer de ignorante para não perceber a ilegalidade de determinadas situações.
Não por acaso, a teoria em estudo também é chamada de teoria da ignorância
deliberada (deliberate ignorance)”. É uma maneira de punir aqueles indivíduos que
com base no “jeitinho brasileiro” buscam auferir vantagens consideradas como
indevidas, ocasionando prejuízos a terceiros.
De acordo com Vidal (2018, p. 38), é passível de ser aplicada dentro deste
particular, mas, frise-se, que apenas tem lugar quando se evidencia a prática de
crimes dolosos, considerando carregar em seu bojo como fator principal o dolo,
tendo em vista que a vontade do agente se encontra presente no momento em que
se procede com a prática criminosa. Diante disso, seu campo de incidência não
atinge os denominados crimes culposos.
Nos moldes delimitados por Paz (2020, p. 63), é uma maneira eficiente de se
proceder com a competente responsabilização daqueles que auferem determinada
vantagem de maneira ilícita, viabilizando que o Estado proceda para o fim de
condenar aquele sujeito, que, no lugar de recusar um produto que sabe, ou ao
menos deveria saber que advém do crime, acaba fechando os seus olhos para o fim
de obter a vantagem considerada como indevida.
17

Paz (2020, p. 63) ainda enfatiza que “Se esse grupo não desconsiderasse
todas as circunstâncias de que a origem do objeto é ilícita, colaborando para uma
sociedade melhor ao recusar a compra desses objetos [...]”tanto os crimes de
receptação, quanto de lavagem de dinheiro, não necessitariam estarem tipificados
no Código Penal Brasileiro.
Para Sannini Neto (s.d., p. única), não se está diante, aqui, da incidência da
responsabilidade penal objetiva, eis que, para fins de aplicação da teoria da cegueira
deliberada, é relevante que o conjunto probatório traga em seu bojo a efetiva
demonstração de que o agente tinha motivos suficientes no sentido de suspeitar da
origem ilícita do bem, mas, fechou os olhos para o que não era de seu interesse.
Assim sendo, considerando as explanações de Paz (2020, p. 63) a teoria da
cegueira deliberada ganha espaço nos crimes de receptação a partir do momento
em que o indivíduo deixa de lado a vantagem indevida que restou obtida de um
terceiro, possibilitando a sua condenação em razão de ter fechado os olhos para a
origem ilícita do bem.

4.3 UMA ABORDAGEM JURISPRUDENCIAL

Para o fim de analisar de maneira mais precisa a questão da aplicação da


teoria da cegueira deliberada no âmbito dos tribunais pátrios, traz-se nesta pesquisa
julgados provenientes do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, bem como do
Superior Tribunal de Justiça.
Nesse sentido, em um momento inicial, cabe aqui elencar o posicionamento
abarcado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, ora aposto nos autos de
Apelação Crime 00255-95.2016.8.16.0035, figurando como relator o desembargador
Eugenio Achille Grandinetti, da Terceira Câmara Criminal, com julgamento ocorrido
em 22 de agosto de 2019:

APELAÇÃO CRIME. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE


RECEPTAÇÃO (ART. 180, CAPUT DO CP) E CRIME DE ADULTERAÇÃO
DE SINAL IDENTIFICADOR DE VEÍCULO AUTOMOTOR (ART. 311,
CAPUT DO CP). SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. RECURSO DA ACUSAÇÃO
OBJETIVANDO A CONDENAÇÃO NO CRIME DE RECEPTAÇÃO.
POSSIBILIDADE. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. BEM
ENCONTRADO EM POSSE DO ACUSADO. PRESENÇA DO ELEMENTO
SUBJETIVO DO TIPO, NO MÍNIMO DOLO EVENTUAL. INTERESSE EM
OBTER VANTAGEM ECONÔMICA, RÉU ENCONTRADO NA POSSE DE
VEÍCULO ADQUIRIDO POR UM VALOR BEM INFERIOR AO DE
18

MERCADO. AUSÊNCIA DE DOCUMENTAÇÃO. BEM PROVENIENTE DE


ROUBO. DEFESA NÃO SE DESINCUMBIU QUE COMPROVAR A
ORIGEM LÍCITA DO BEM (ART. 156 DO CPP). CRIME DE RECEPTAÇÃO
CONSUMADO. CONDENAÇÃO QUE SE IMPÕE. SENTENÇA
REFORMADA. PENA FIXADA NO MÍNIMO LEGAL. FIXAÇÃO DE
HONORÁRIOS. RECURSO PROVIDO. (...). 1. PARA QUE OCORRA A
APLICAÇÃO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA, DEVE RESTAR
DEMONSTRADO NO QUADRO FÁTICO APRESENTADO NA LIDE QUE O
AGENTE FINGE NÃO PERCEBER DETERMINADA SITUAÇÃO DE
ILICITUDE PARA, A PARTIR DAÍ, ALCANÇAR A VANTAGEM
PRETENDIDA. (...). (AGRG NO RESP 1565832/RJ, REL. MINISTRO JOEL
ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, JULGADO EM 06/12/2018, DJE
17/12/2018)

Considerando as explanações constantes no julgado, pode-se verificar que a


discussão versa a respeito da prática do crime de receptação, sendo devidamente
reconhecido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, eis que a autoria e a
materialidade foram comprovadas nos autos, especialmente pelo fato do bem ter
sido encontrado em posso da parte ré.
Além do mais, verificou-se a presença do elemento subjetivo do tipo, assim
como o dolo eventual, evidenciando-se o intuito do acusado em obter vantagem
econômica, já que o veículo foi adquirido por monta bem inferior ao valor do
mercado. Ressaltou-se, ainda, que para fins de aplicação da teoria da cegueira
deliberada, é indiscutível a necessidade de ser demonstrado que o sujeito finge não
perceber a ilicitude que permeia dentro de determinada situação, para,
consequentemente, alcançar o fim pretendido.
Outro entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná consiste nos
autos de Apelação Criminal 00181757720178160017, atuando como relator o
desembargador Gamaliel Seme Scaff, da Terceira Turma, com julgamento ocorrido
em 14 de outubro de 2019 e publicação em 16 de outubro de 2019:

APELAÇÃO CRIME – RECEPTAÇÃO – ART. 180, DO CÓDIGO PENAL –


CAPUT – CAPUT – SENTENÇA CONDENATÓRIA – INSURGÊNCIA DA
DEFESA – PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS
– NÃO CABIMENTO – AUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVAS
COMPROVADA NOS AUTOS – CONTEXTO PROBATÓRIO ATESTANDO
QUE O APELANTE TINHA CONHECIMENTO DE ORIGEM ILÍCITA DO
BEM – TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA – CONDENAÇÃO
MANTIDA, APELAÇÃO NÃO PROVIDA.

Dentro do contexto fático apresentado no julgado, nota-se mais uma vez a


aplicação da teoria da cegueira deliberada por parte do Tribunal de Justiça do
Estado do Paraná, pois, diante do contexto probatório apresentado nos autos foi
19

devidamente comprovada tanto a autoria, quanto a materialidade do crime de


receptação.
Em que pese à defesa ter se esforçado para o fim de ser reconhecida a
absolvição do acusado ante a suposta insuficiência probatória nos autos, o pleito
não foi atendido pelo tribunal estadual.
Em relação ao entendimento proveniente do Superior Tribunal de Justiça,
cabe aqui contemplar os autos de Agravo em Recurso Especial 1.847.720,
encenando como relator o ministro Humberto Martins, com data de publicação
ocorrida em 28 de abril de 2021:

Quanto à controvérsia, na espécie, o Tribunal de origem se manifestou nos


seguintes termos: "Do arcabouço probatório produzido nos autos, o que
efetivamente restou testificado é que o apelante fora flagrado transportando
uma moto que possuía restrição de roubo. Por outro lado, a versão
apresentada pelo réu no sentido de que, ao encontrar a moto no mato
abandonada, resolveu levá-la até a delegacia mais próxima, não encontra
respaldo nas provas carreadas aos autos. Como bem consignou a
magistrada sentenciante, não parece crível que uma pessoa, ainda que
analfabeta, como registra a defesa, ao encontrar algo abandonado e, mais,
um objeto pesado, que é a motocicleta, ao invés de comunicar tal abandono
à autoridade policial, prefira levá-la até a delegacia mais próxima. É cediço
que o crime de receptação dolosa consiste na aquisição de produto de
crime, sabendo o agente que o objeto adquirido é realmente proveniente de
um ato ilícito praticado anteriormente – dolo direto. Sabe-se também que a
prova direta da consciência da ilicitude dos bens é demasiado difícil de ser
obtida, uma vez que ao Julgador não é possível adentrar ao ânimo do
sujeito e dali extrair a sua intenção e vontade. Assim, dada a sutileza da
prova, entende-se que o dolo pode ser perfeitamente extraído pelas
circunstâncias e indícios que ornamentam a prática criminosa. [...] Como se
vê, a situação dos autos se adequa ao que a doutrina inglesa denomina de
'Teoria da Cegueira Deliberada ou Teoria das Instruções da Avestruz', haja
vista que o apelante, ainda que pudesse chegar à conclusão de motocicleta
era produto do crime, diante das circunstâncias em que a encontrou,
quedou-se inerte, ignorando quaisquer circunstâncias acerca da veracidade
fática. Ora, de todo o contexto fático probatório constante nos autos, o que
se observa é que o apelante, ao encontrar uma moto abandonada no
matagal, tinha capacidade para, pelo menos, suspeitar da origem ilícita do
objeto, de modo que podia agir de maneira diversa, mas não se importou
com isso.

A controvérsia resta calcada no fato de que o acusado se encontrava na


posse de uma motocicleta com alerta de roubo e, quando foi surpreendido pela
abordagem policial, mencionou que a mesma foi achada no matagal e estava se
dirigindo até a delegacia mais próxima para o fim de entregá-la. Esse argumento não
foi acatado pela julgadora, verificando-se verdadeira hipótese de crime de
receptação.
20

Além disso, visualizou no caso dos autos a incidência da Teoria da Cegueira


Deliberada, vez que plenamente possível que no caso fático o acusado concluísse
que a motocicleta tinha origem ilícita, mas que, por sua vez, ignorou esta
circunstância.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, nota-se que a teoria da cegueira deliberada é passível de


aplicação nos crimes que envolvam a receptação. Para esta teoria, que igualmente é
nominada como teoria do avestruz, o escopo é criar um campo de punição para
aqueles sujeitos que de forma consciente e voluntária alegam o desconhecimento
quanto à ilicitude da conduta que está sendo desencadeada.
Especialmente nos crimes de receptação, as circunstâncias concretas trazem
evidências robustas a respeito do caráter ilícito do fato, notadamente quando o
assunto mantém correlação com a origem do bem, posto que alienados em valores
bem inferiores ao do mercado, o que, por si só, já gera desconfiança. Todavia, o
indivíduo simplesmente fecha os olhos para esta situação, obtendo a vantagem tão
almejada.
Trata-se de uma teoria muito importante quando a discussão se encontra
calcada nos crimes de receptação, visto que na maior parte dos casos os réus
manifestam em sua defesa a ignorância, enfatizando que no momento da compra do
bem não percebeu a sua respectiva ilegalidade. Nesse enfoque, procede com a
incorporação do bem ao seu respectivo patrimônio, sem, no entanto, importar-se
com a sua origem.
Aliado a isso, verifica-se a sua relevância, eis que, caso a sociedade não
contribuísse para a prática deste ilícito, certos tipos nem estariam alocados no
Código Penal Brasileiro, como ocorre com o crime de receptação, ora em discussão.
Assim sendo, a partir do momento em que parcela da sociedade contribui
para a efetivação do delito, o que, indiscutivelmente, dá azo a outros, como ocorre
com o furto e o roubo, já que apenas são efetivados justamente pelo fato de que o
infrator sabe que o produto do crime será facilmente alienado, é interessante que
subsista uma abordagem capaz de viabilizar o reconhecimento do delito praticado
por aquele que aufere vantagem ilícita ante o crime de receptação.
21

É indiscutível que esta teoria não tem aplicação quando se estiver diante dos
crimes culposos, mas apenas dolosos. Isso porque, o agente deve agir de maneira
deliberada, com consciência e vontade.
Observando-se o entendimento jurisprudencial, há posicionamentos do
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e do Superior Tribunal de justiça que
aplicaram a teoria da cegueira deliberada em situações submetidas ao seu crivo,
tornando-se mais flexível o campo de incidência deste instituto, o que é bem
importante em uma sociedade que constantemente adquire produtos provenientes
de origem ilícita (furto e roubo), incentivando cada vez mais a prática destes delitos.

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23

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