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Resumo
O presente Artigo visa compreender a origem e o conceito da Teoria da Cegueira
Deliberada, analisando a constitucionalidade da sua aplicação ao tipo penal de
lavagem de capitais, enquanto sinônimo de dolo eventual, sob o prisma do
Garantismo Penal e das garantias fundamentais trazidas pela Constituição da
República Federativa do Brasil.
Abstract
This Article aims to understand the concept of the Willful Blindness Doctrine, also
known as Ostrich Instructions, reviewing de constitutionality of its application to the
crimes of money laundering, from the perspective of “Garantismo Penal”, and the
Constitution of the Federative Republic of Brazil’s fundamental rights.
Introdução
A Teoria da Cegueira Deliberada, originada pelo precedente britânico Regina
x Sleep, no ano de 1861, foi difundida ao longo dos anos. Inicialmente, suas
aparições se deram no âmbito do Common Law, mas logo passaram a ocorrer no
sistema do Civil Law.
Também conhecida como Ostrich Instuctions, consiste na recusa deliberada
de conhecer a origens dos bens que se manuseia, sendo aplicada a casos de desvio
de bens públicos, tráfico de entorpecentes e, mais recentemente, lavagem de
dinheiro.
2
1 FERRAJOLI, Luigi, Direito e Razão (Teoria do Garantismo Penal), 4 ed. – São Paulo, RT, 2014
3
esfera objetiva, de modo que, neste viés, se faz imprescindível a análise subjetiva
das circunstâncias do fato que lhe é imputado.
Em suma, o Princípio da Culpabilidade tem por escopo a limitação do poder
punitivo estatal, mediante a vedação à imposição de pena a um agente por um fato
típico que não cometeu de maneira consciente e voluntária. Para parte da doutrina
pátria, este princípio está implícito na Constituição da República Federativa do
Brasil, sendo uma consequência lógica da dignidade da pessoa humana, prevista
em seu artigo 1º, inciso III.2
Diante do exposto, portanto, extrai-se a premissa de que é vedada a
responsabilidade penal objetiva no Estado Democrático de Direito.
Para melhor compreensão do tema, é mister apresentar noções iniciais
sobre a tipicidade, enquanto elemento constitutivo do crime, à luz do modelo
tripartido.
Em apertadíssima síntese, a tipicidade consiste na subsunção do fato
praticado pelo agente à conduta descrita na norma penal incriminadora. Analisando
com um pouco mais de profundidade, tem-se que a tipicidade pode ser objetiva ou
subjetiva.
A tipicidade objetiva analisa estritamente a conduta penalmente relevante,
ou seja, a ação ou omissão praticada pelo agente.
Por sua vez, a tipicidade subjetiva abrange a análise volitiva da conduta
praticada pelo agente, ou seja, a sua intenção. Neste sentido, surge, portanto, o
conceito de dolo e culpa.
O dolo consiste na vontade do agente de praticar um resultado pretendido,
enquanto a culpa, em regra, surge de uma quebra de dever de cuidado por parte do
agente, que, não intencionalmente, provoca um resultado.
Nesse sentido, dispõe o artigo 18, do Código Penal Brasileiro3:
O dolo eventual ou dolo indireto, por sua vez, é composto tão somente pela
consciência do agente, independendo da sua vontade de produzir o resultado. Sob
o prisma do dolo eventual, o agente, conscientemente, aceita o risco de produzir o
resultado, mas não necessariamente quer produzi-lo.5 Preceitua Florentino:6
“No dolo eventual o agente não pretende realizar diretamente o tipo penal
objetivo, porém, aceita a sua realização como possível e provável,
assumindo o risco de produzir o resultado. O agente realiza a conduta
apesar da previsão do resultando, assumindo o risco de sua realização.”
Nota-se, destarte, que para que esteja configurado o dolo, seja direto ou
eventual, é elementar a presença de um único elemento em comum, a consciência
do agente.
O crime praticado na modalidade culposa, por sua vez, advém de uma
quebra de dever de cuidado por parte do agente, que não pretende produzir o
resultado, mas também não prevê o risco de produzi-lo. Em regra, há que se
demonstrar imperícia, imprudência ou negligência por parte do agente, para que
seja constatada a modalidade culposa. Dispõe Bitencourt: “A tipicidade do crime
4 FLORENTINO, Bruno. Tipo e tipicidade, tipo objetivo e tipo subjetivo. Dolo e culpa. 2014.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/tipo-e-tipicidade-tipo-objetivo-e-tipo-subjetivo-dolo-
e-culpa/183249818. Acesso em: 24 nov. 2023.
5 AZEVEDO, Flávio Olimpio de. Código Penal Comentado: artigo 18. Artigo 18. Disponível em:
https://www.direitocom.com/codigo-penal/codigo-penal/artigo-18-19. Acesso em: 23 nov. 2023.
6 FLORENTINO, Bruno. Op. cit.
5
Dessa forma, ausente dolo e/ou culpa, não há tipicidade no fato praticado.
Essa premissa, portanto, é o principal alicerce da vedação à responsabilidade penal
objetiva. Expõe Fernando Gomes9:
Nesse viés, a alteração mais significativa trazida pela nova lei foi a da
redação do artigo 1º, da Lei 9.613/98, que passou a vigorar da seguinte forma:
11 Ibid.
12 SOARES, Jucelino Oliveira. A Teoria da Cegueira Deliberada e a sua aplicabilidade aos crimes
financeiros. 2019. Disponível em: https://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2019/12/ARTIGO-
6.pdf. Acesso em: 23 nov. 2023
8
13FACHINI, Thiago. Lei 9613/98 ou Lei de lavagem de dinheiro: principais determinações. 2023.
Disponível em: https://www.projuris.com.br/blog/lei-9613-lavagem-de-dinheiro/. Acesso em: 23 nov.
2023.
14 Ibid.
15 GARCIA, Lara. As inovações da Lei nº 12.683, de 9 de julho de 2012. 2014. Disponível em:
https://www.jusbrasil.com.br/artigos/as-inovacoes-da-lei-n-12683-de-9-de-julho-de-2012/169774466.
Acesso em: 23 nov. 2023.
9
Logo, tem-se que, sem prejuízo da conceituação legal, dada pelo art. 1º, da
Lei 9.613/98, acima exposto, a lavagem de dinheiro consiste em travestir, de legais,
bens e valores obtidos de maneira ilícita, para que vistos como se lícitos fossem.
De igual modo, é fundamental pontuar, também, que, para Luiz Regis Prado,
o crime de lavagem de dinheiro “além de ser delito de mera conduta, é também
delito de resultado cortado, em que a obtenção do fim almejado pelo autor não afeta
a sua consumação”.18
16 SOARES, Jucelino Oliveira. A Teoria da Cegueira Deliberada e a sua aplicabilidade aos crimes
financeiros. 2019. Disponível em: https://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2019/12/ARTIGO-
6.pdf. Acesso em: 23 nov. 2023.
17CALLEGARI, André Luís. Imputação Objetiva: lavagem de dinheiro e outros temas do Direito
Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
18PRADO, Luiz Regis. O novo tratamento penal da lavagem de dinheiro (Lei n. 12.683/2012). Revista
dos Tribunais São Paulo, v. 101, n. 926 , p. 401-436, dez. 2012
10
delito ocorra com a prática de qualquer uma das condutas descritas na norma
incriminadora.19
21 Ibid.
22 Ibid.
12
Em que pese o caso Spurr x United States seja o mais antigo no cenário
norte americano, é mister pontuar que a Teoria da Cegueira Deliberada ganhou
destaque com a sua expansão na década de 1970, quando deixou de ser aplicada
somente aos crimes financeiros e falimentares, passando a ser aceita aos casos de
tráfico de drogas.
Para Gehr23, muitos doutrinadores consideram referência sobre o tema, o
precedente United States x Jewel, justamente por ser o retrato da expansão da
teoria, acima mencionada.
À época, Jewel foi condenado por contrabando, após ter atravessado a
fronteira entre os Estado Unidos da América e o México com maconha no porta-
malas de um veículo. Sua tese de defesa consistiu em alegar que desconhecia o
conteúdo que estava no veículo, mas suspeitava que poderia se tratar de algo ilícito.
O Tribunal de Apelações, então, alegou que “a ignorância deliberada e o
conhecimento positivo têm um mesmo grau de culpabilidade”.
Desse modo, a defesa do Réu não logrou êxito em sua absolvição, visto que
a Corte entendeu que a mera suspeita de Jewel sobre o conteúdo ilícito do
automóvel seria suficiente para caracterizar sua recusa de conhecimento sobre o
elemento constitutivo do ilícito.
Já, em âmbito nacional, apesar da existência de julgados anteriores fazendo
menção à Teoria, seu grande destaque se deu no julgado do famoso caso do
assalto ao Banco Central de Fortaleza, no Ceará.
25 SOARES, Jucelino Oliveira. A Teoria da Cegueira Deliberada e a sua aplicabilidade aos crimes
financeiros. 2019. Disponível em: https://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2019/12/ARTIGO-
6.pdf. Acesso em: 23 nov. 2023.
26Supremo Tribunal Federal. Ação Penal nº 470. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. DJe. 22 abr. de
2013. Brasília,2013. Disponível em: ftp:// ftp.stf.jus.br/ap470/InteiroTeor_AP470.pdf. Acesso em: 03
ago.2018. CALLEGARI, André Luís. Imputação Objetiva: lavagem de dinheiro e outros temas do
Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001
27 SOARES, Jucelino Oliveira. Op. cit.
15
“Isso não se aplica a todos os tipos penais, mas àqueles que tratam do
manuseio de produtos decorrentes de infrações prévias, como na
receptação qualificada (art. 180, § 1.º, do CP), e na receptação de animal
(CP, artigo 180-A). Em todos eles o tipo penal se refere a atos relacionados
com produtos derivados de infrações penais, e a possibilidade do dolo
eventual encontra-se expressamente prevista na forma do "deve saber".
“Há certos tipos penais que não admitem o dolo eventual, pois a descrição
da conduta impõe um conhecimento especial da circunstância, tal como o
delito de receptação (CP, artigo 180): "Adquirir, receber, transportar,
conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser
produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba
ou oculte".”
28 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. O dolo eventual e a lavagem de dinheiro. 2023. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2023-ago-07/direito-defesa-dolo-eventual-lavagem-dinheiro/. Acesso em:
23 nov. 2023.
29
CAPEZ, Fernando; PUGLISI, Fábia. Lavagem de dinheiro: considerações sobre o dolo e a
teoria da cegueira deliberada. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-
18/controversias-juridicas-lavagem-dinheiro-dolo-teoria-cegueira-deliberada/. Acesso em: 23 nov.
2023.
16
30 Ibid.
31 Ibid.
17
Considerações Finais
À luz do acima exposto, tem-se que para assegurar as garantias mínimas
relativas ao Estado Democrático de Direito, o Direito Penal deve ser pautado pelos
dez axiomas do Garantismo Penal de Ferrajoli, que visam limitar o poder punitivo
estatal e foram internalizados pelo direito pátrio implícita e explicitamente no texto
constitucional.
Dentre todas as garantias mencionadas por Ferrajoli, para o presente estudo,
destacaram-se duas: a vedação à responsabilidade penal objetiva e a legalidade.
Tais garantias restam consubstanciadas pelo Princípio da Culpabilidade e da
Legalidade, positivados pela Constituição da República Federativa do Brasil, de
1988, respectivamente, em seus artigos 1º, III e 5º, XXXIX, bem como pelo Código
Penal, em seus artigos 18 e 1º.
Com o aumento dos casos de crimes econômicos, sobretudo o de lavagem de
capitais, se fez necessária a tipificação da prática, para que, em respeito ao
Princípio da Legalidade, o Estado pudesse punir adequadamente aqueles que nela
incorressem. Houve, então, a criação da Lei n.º 9.643/98, a Lei Antilavagem de
Dinheiro.
Entretanto, mediante a suposta necessidade de recrudescimento no combate
à lavagem de capitais, a redação original da Lei Antilavagem de Dinheiro foi
alterada, ampliando a tipificação e dando margem à doutrina para interpretações
divergentes sobre a possibilidade, ou não, da responsabilização daqueles que agiam
com dolo eventual em relação à prática.
Referências
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Editora Saraiva, 2015.
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. O dolo eventual e a lavagem de dinheiro. 2023. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2023-ago-07/direito-defesa-dolo-eventual-lavagem-dinheiro/.
Acesso em: 23 nov. 2023.
CALLEGARI, André Luís. Imputação Objetiva: lavagem de dinheiro e outros temas do Direito
Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal / 17. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015
PRADO, Luiz Regis. O novo tratamento penal da lavagem de dinheiro (Lei n. 12.683/2012).
Revista dos Tribunais São Paulo, v. 101, n. 926 , p. 401-436, dez. 2012
Supremo Tribunal Federal. Ação Penal nº 470. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. DJe. 22
abr. de 2013. Brasília,2013. Disponível em: ftp:// ftp.stf.jus.br/ap470/InteiroTeor_AP470.pdf.
Acesso em: 03 ago.2018. CALLEGARI, André Luís. Imputação Objetiva: lavagem de
dinheiro e outros temas do Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001