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Teoria da Cegueira Deliberada a inconstitucionalidade do dolo eventual no tipo

penal de lavagem de capitais

Maria Luisa Funes

Resumo
O presente Artigo visa compreender a origem e o conceito da Teoria da Cegueira
Deliberada, analisando a constitucionalidade da sua aplicação ao tipo penal de
lavagem de capitais, enquanto sinônimo de dolo eventual, sob o prisma do
Garantismo Penal e das garantias fundamentais trazidas pela Constituição da
República Federativa do Brasil.

Palavras-chave: Cegueira Deliberada; Princípio da Culpabilidade; Princípio da


Legalidade; Garantismo Penal; constitucionalidade; dolo eventual; lavagem de
dinheiro.

Abstract
This Article aims to understand the concept of the Willful Blindness Doctrine, also
known as Ostrich Instructions, reviewing de constitutionality of its application to the
crimes of money laundering, from the perspective of “Garantismo Penal”, and the
Constitution of the Federative Republic of Brazil’s fundamental rights.

Keywords: Willfful Blindness Doctrine; Ostrich Instructions; Constitution of the


Federative Republic of Brazil; fundamental rights.

Introdução
A Teoria da Cegueira Deliberada, originada pelo precedente britânico Regina
x Sleep, no ano de 1861, foi difundida ao longo dos anos. Inicialmente, suas
aparições se deram no âmbito do Common Law, mas logo passaram a ocorrer no
sistema do Civil Law.
Também conhecida como Ostrich Instuctions, consiste na recusa deliberada
de conhecer a origens dos bens que se manuseia, sendo aplicada a casos de desvio
de bens públicos, tráfico de entorpecentes e, mais recentemente, lavagem de
dinheiro.
2

Por muitos, a Teoria da Cegueira Deliberada se equipara à modalidade do


dolo eventual, elemento subjetivo do tipo penal, que deve, obrigatoriamente, estar
presente para a configuração de um crime.
Entretanto, a tipificação do delito de lavagem de capitais não prevê
expressamente o dolo eventual, de modo que, para alguns críticos da Teoria, ela
esbarra em limites constitucionais impostos ao Direito Penal.
As asserções feitas pelo Garantismo Penal, de Luigi Ferrajoli,
consubstanciadas nas garantias fundamentais da Constituição da República
Federativa do Brasil e reforçadas pelo Código Penal, podem figurar como barreiras
limitadoras à aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, sob o prisma de dois
princípios penais constitucionais: o Princípio da Culpabilidade e o Princípio da
Legalidade.
Dessa forma, o presente Artigo analisa a constitucionalidade da aplicação da
Teoria da Cegueira Deliberada nos crimes de lavagem de dinheiro, sob o prisma do
Garantismo Penal e do Estado Democrático de Direito.

1. O Garantismo Penal e a vedação à responsabilidade penal objetiva


Segundo Luigi Ferrajoli, o Garantismo Penal se faz imprescindível no Estado
Democrático de Direito, como sendo a ferramenta capaz de limitar o jus puniendi
estatal, garantindo liberdade e segurança jurídica a todos.
A necessidade de limitação do jus puniendi surge com a percepção de que o
Estado é detentor do monopólio de um poder punitivo, que, por muitas vezes, se
manifestou de maneira desmedida e desproporcional com relação à outra parte,
aquela que se pune.
Dessa forma, a teoria garantista se manifesta através de dez axiomas
essenciais ao Direito Material e Processual Penal, expostos por Ferrajoli em sua
obra “Direito e Razão”1. Dentre os quais, para fim de melhor compreensão deste
Artigo, se destacam dois axiomas: “nullum crime sine lege” e “nulla actio sine culpa”,
internalizados no direito pátrio, respectivamente, como “Princípio da Legalidade
Penal” e “Princípio da Culpabilidade”.
Desde logo, enfatiza-se o Princípio da Culpabilidade, à luz do qual o Direito
Penal não é passível de admitir a responsabilização do agente tão somente na

1 FERRAJOLI, Luigi, Direito e Razão (Teoria do Garantismo Penal), 4 ed. – São Paulo, RT, 2014
3

esfera objetiva, de modo que, neste viés, se faz imprescindível a análise subjetiva
das circunstâncias do fato que lhe é imputado.
Em suma, o Princípio da Culpabilidade tem por escopo a limitação do poder
punitivo estatal, mediante a vedação à imposição de pena a um agente por um fato
típico que não cometeu de maneira consciente e voluntária. Para parte da doutrina
pátria, este princípio está implícito na Constituição da República Federativa do
Brasil, sendo uma consequência lógica da dignidade da pessoa humana, prevista
em seu artigo 1º, inciso III.2
Diante do exposto, portanto, extrai-se a premissa de que é vedada a
responsabilidade penal objetiva no Estado Democrático de Direito.
Para melhor compreensão do tema, é mister apresentar noções iniciais
sobre a tipicidade, enquanto elemento constitutivo do crime, à luz do modelo
tripartido.
Em apertadíssima síntese, a tipicidade consiste na subsunção do fato
praticado pelo agente à conduta descrita na norma penal incriminadora. Analisando
com um pouco mais de profundidade, tem-se que a tipicidade pode ser objetiva ou
subjetiva.
A tipicidade objetiva analisa estritamente a conduta penalmente relevante,
ou seja, a ação ou omissão praticada pelo agente.
Por sua vez, a tipicidade subjetiva abrange a análise volitiva da conduta
praticada pelo agente, ou seja, a sua intenção. Neste sentido, surge, portanto, o
conceito de dolo e culpa.
O dolo consiste na vontade do agente de praticar um resultado pretendido,
enquanto a culpa, em regra, surge de uma quebra de dever de cuidado por parte do
agente, que, não intencionalmente, provoca um resultado.
Nesse sentido, dispõe o artigo 18, do Código Penal Brasileiro3:

“Art. 18 - Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)


Crime doloso (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-
lo;(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

2 JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Culpabilidade. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso


Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito
Penal. Christiano Jorge Santos (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, 2017. Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/414/edicao-
1/culpabilidade> acesso em 20/11/2023 às 16h e 44min.
3 BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal.
4

Crime culposo (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)


II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência,
negligência ou imperícia. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser
punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.
(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”

Ao tratar do dolo, a doutrina traz dois conceitos distintos, ambos extraídos do


inciso I, acima destacado: dolo direto e dolo eventual/indireto.
O dolo direto é composto por dois elementos essenciais, a consciência e a
vontade do agente de produzir determinado resultado, conforme dita a passagem:
“quando o agente quis o resultado”. Leciona Bruno Florentino:4

“No dolo direto a finalidade do agente é a produção do resultado proibido


pelo tipo objetivo, ou seja, a vontade e a consciência do agente são
voltadas à realização do fato típico. Nessa espécie de dolo o agente quer o
resultado, quer os meios necessários para produzir o resultado e quer os
efeitos gerados no plano concreto (realidade) com a prática da conduta.”

O dolo eventual ou dolo indireto, por sua vez, é composto tão somente pela
consciência do agente, independendo da sua vontade de produzir o resultado. Sob
o prisma do dolo eventual, o agente, conscientemente, aceita o risco de produzir o
resultado, mas não necessariamente quer produzi-lo.5 Preceitua Florentino:6

“No dolo eventual o agente não pretende realizar diretamente o tipo penal
objetivo, porém, aceita a sua realização como possível e provável,
assumindo o risco de produzir o resultado. O agente realiza a conduta
apesar da previsão do resultando, assumindo o risco de sua realização.”

Nota-se, destarte, que para que esteja configurado o dolo, seja direto ou
eventual, é elementar a presença de um único elemento em comum, a consciência
do agente.
O crime praticado na modalidade culposa, por sua vez, advém de uma
quebra de dever de cuidado por parte do agente, que não pretende produzir o
resultado, mas também não prevê o risco de produzi-lo. Em regra, há que se
demonstrar imperícia, imprudência ou negligência por parte do agente, para que
seja constatada a modalidade culposa. Dispõe Bitencourt: “A tipicidade do crime

4 FLORENTINO, Bruno. Tipo e tipicidade, tipo objetivo e tipo subjetivo. Dolo e culpa. 2014.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/tipo-e-tipicidade-tipo-objetivo-e-tipo-subjetivo-dolo-
e-culpa/183249818. Acesso em: 24 nov. 2023.
5 AZEVEDO, Flávio Olimpio de. Código Penal Comentado: artigo 18. Artigo 18. Disponível em:
https://www.direitocom.com/codigo-penal/codigo-penal/artigo-18-19. Acesso em: 23 nov. 2023.
6 FLORENTINO, Bruno. Op. cit.
5

culposo decorre da realização de uma conduta não diligente causadora de uma


lesão ou de um perigo concreto a um bem-jurídico penalmente protegido.”7
Ressalta-se, também, que a culpa não se presume, bem como, é necessária
expressa previsão legal da modalidade culposa no tipo penal específico. Não
havendo a referida previsão, não há que se falar em condenação do agente que
age culposamente, haja vista a ausência de tipicidade da conduta.
Expostos os conceitos integrantes do elemento subjetivo do tipo, o contexto
favorece a compreensão acerca da vedação à responsabilidade penal objetiva, ora
tratada, que deriva diretamente do Princípio da Culpabilidade, decorrente do
Garantismo Penal, conforme demonstrado alhures.
Em que pese a nomenclatura dada ao Princípio em questão possa confundir,
é mister pontuar que, atualmente, a doutrina majoritária entende que dolo e culpa
são elementos relativos à conduta, logo, integram a seara do fato típico, na análise
tripartida do conceito de crime, que é composta por: tipicidade, conduta, resultado e
nexo causal.
Sobre o tema, aduz Rogério Grecco8:

“Culpabilidade como princípio impedidor da responsabilidade penal objetiva,


ou seja, o da responsabilidade penal sem culpa (...) para determinado
resultado ser atribuído ao agente é preciso que a sua conduta tenha sido
dolosa ou culposa. Se não houve dolo ou culpa, é sinal de que não houve
conduta.”

Dessa forma, ausente dolo e/ou culpa, não há tipicidade no fato praticado.
Essa premissa, portanto, é o principal alicerce da vedação à responsabilidade penal
objetiva. Expõe Fernando Gomes9:

“Nota-se que o principal objetivo do princípio da culpabilidade é o


completo afastamento da responsabilidade objetiva. Entretanto, é
importante destacar que atualmente a doutrina pátria entende que o dolo e
a culpa integram o fato típico e que o princípio da culpabilidade é mais
bem definido como princípio da responsabilidade penal subjetiva.”

À vista disso, é elementar que o Princípio da Culpabilidade, implícito nas


normas constitucionais pátrias, denota suma importância na limitação do jus

7 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Editora Saraiva, 2015.


8 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal / 17. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015
9 GOMES, Fernando. Princípio da culpabilidade e a responsabilidade penal subjetiva. 2015.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/principio-da-culpabilidade-e-a-responsabilidade-
penal-subjetiva/242543075. Acesso em: 23 nov. 2023.
6

puniendi estatal, mediante a vedação da responsabilidade penal objetiva, no intuito


de proteger a parte mais vulnerável da ação penal, assegurando uma persecução
justa, legítima, e, em regra, mais paritária e segura.

2. A tipificação do delito de lavagem de capitais:


O conceito legal de lavagem de capitais surge em 1998, pela Lei n.º 9.613,
sancionada pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.
Inicialmente, seu maior objetivo era coibir a prática relacionada aos ativos
provenientes do tráfico de entorpecentes.
Nesse sentido, até o ano de 2012, a redação do artigo 1º da Lei 9.613/98
apresentava um rol taxativo de crimes antecedentes que poderiam originar os
valores a serem ocultados pela lavagem de dinheiro. Assim vigia sua redação:

“Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição,


movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes,
direta ou indiretamente, de crime:
I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;
II – de terrorismo;
III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à
sua produção;
IV – de extorsão mediante sequestro;
V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para
outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou
preço para a prática ou omissão de atos administrativos;
VI – contra o sistema financeiro nacional;
VII – praticado por organização criminosa.
§ 1º Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização
de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer dos crimes
antecedentes referidos neste artigo:
(...)
§ 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem:
I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores
que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes
referidos neste artigo;”10

Entretanto, com o intuito de aumentar a capacidade punitiva relacionada à


lavagem de capitais, acreditando ser um meio de coibir a prática por ela defesa, em
2012, a então Presidente da República, Dilma Rousseff, sancionou a Lei 12.683, que
altera a redação da Lei 9.613, “para tornar mais eficiente a persecução penal dos
crimes de lavagem de dinheiro”, conforme dispõe sua exposição de motivos.

10 BRASIL. Lei nº 9.613, de 03 de março de 1998. . DOU, Disponível em:


https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9613.htm. Acesso em: 23 nov. 2023.
7

Nesse viés, a alteração mais significativa trazida pela nova lei foi a da
redação do artigo 1º, da Lei 9.613/98, que passou a vigorar da seguinte forma:

“Art. 1o - Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição,


movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes,
direta ou indiretamente, de infração penal.
Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa
§ 1o Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização
de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal
(...)
§ 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem:
I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores
provenientes de infração penal.”11

Nota-se, de antemão, que o legislador substitui a expressão “provenientes,


direta ou indiretamente, de crime”, por “provenientes, direta ou indiretamente, de
infração penal”. Ademais, a nova redação revogou todos os incisos do artigo 1º,
abolindo o rol taxativo de crimes antecedentes dado pela redação anterior.
Dessa forma, a abrangência da tipificação fica expandida, englobando não
somente os crimes antes elencados, mas toda e qualquer infração penal, seja ela
crime ou contravenção, que possa anteceder a prática da lavagem de capitais.
Ademais, o legislador altera a redação do parágrafo 2º do artigo 1º,
removendo o termo “que sabe” ao tratar da origem dos bens, dessa forma, a nova
redação não traz expressamente a necessidade de o agente ter conhecimento da
ilicitude dos valores manuseados. Sobre essa alteração, discorre Soares12:

“A antiga locução “que sabe serem provenientes de qualquer dos


crimes antecedentes” prevista no texto original, em situação similar à
redação positivada, por exemplo, no Art. 180, caput, do Código
Penal, deixava indicada a necessidade de o sujeito ativo do delito
saber da pecha atribuída aos bens, valores e direitos.

Desse modo, para a incriminação dos envolvidos, mostrava-se


necessário maior esforço interpretativo da lei, e análise ainda mais
acurada sobre a omissão deliberada em saber da ilicitude dos bens
em sua origem, sob pena de consagração da responsabilidade
objetiva para tais delitos. Ao passo que na novel redação “utiliza, na
atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores
provenientes de infração penal”, houve por bem o legislador suprimir
a expressão “que sabe”, possibilitando assim a punição de qualquer
pessoa (...)”

11 Ibid.
12 SOARES, Jucelino Oliveira. A Teoria da Cegueira Deliberada e a sua aplicabilidade aos crimes
financeiros. 2019. Disponível em: https://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2019/12/ARTIGO-
6.pdf. Acesso em: 23 nov. 2023
8

Para Fachini13, essas alterações dividiram a opinião da doutrina, entre


aqueles que defenderam a ampliação da tipificação, por entenderem conferir maior
eficácia ao combate à lavagem de dinheiro, e os críticos, que entendem ocorrer uma
espécie de banalização do termo, tendo em vista que qualquer ilícito poderia originar
a lavagem de capitais. Sobre o tema, expõe o Autor14:

“Por um lado, alguns estudiosos do Direito advogam que a exclusão desse


“rol taxativo” garante que a lei estará apta a acompanhar as novas práticas
engenhosamente criadas para ocultar lucros obtidos de modo ilícito.

Outra corrente, no entanto, critica a retirada do rol, que permite que


qualquer conduta dê origem ao crime de lavagem de dinheiro. O principal
argumento, nestes casos, é de que haveria uma “vulgarização” do tema.

Na prática, os críticos apontam que o novo texto legal poderia acabar


originando penas desproporcionais ao feito. Isso porque, a Lei 12.683/12
colocaria lado a lado o traficante internacional de drogas, que oculta e
dissimula seus lucros, e o promotor de um bingo ou quermesse, que deixar
de declarar os valores obtidos na simplória jogatina.”

Ainda, segundo alguns escritores, a tipificação do crime de lavagem de


capitais se divide em três gerações, que possuem como critério de classificação o
crime antecedente à prática. É o que afirma Lara Garcia15:

“A primeira geração detém como único crime antecedente o de tráfico de


drogas para que fosse possível a caracterização do crime ora estudado. Na
segunda geração houve uma ampliação no rol dos crimes antecedentes,
enquanto na terceira geração qualquer crime grave pode figurar como crime
antecedente.

Nesse sentido, podemos depreender que a nova Lei de Lavagem de


Dinheiro está adequada na terceira geração. Tal modificação sofreu
diversas críticas da doutrina, mas, fato é que a norma teve essa evolução.”

Elementar, portanto, que, para essa concepção, a redação atual da Lei


9.613/98, se amolda ao conceito dado pela terceira geração, ou seja, a tipificação do
crime de lavagem de dinheiro é mais abrangente, de modo que não há um rol de
crimes antecedentes específicos para caracterização do ilícito de lavagem de

13FACHINI, Thiago. Lei 9613/98 ou Lei de lavagem de dinheiro: principais determinações. 2023.
Disponível em: https://www.projuris.com.br/blog/lei-9613-lavagem-de-dinheiro/. Acesso em: 23 nov.
2023.
14 Ibid.
15 GARCIA, Lara. As inovações da Lei nº 12.683, de 9 de julho de 2012. 2014. Disponível em:
https://www.jusbrasil.com.br/artigos/as-inovacoes-da-lei-n-12683-de-9-de-julho-de-2012/169774466.
Acesso em: 23 nov. 2023.
9

capitais, bastando a prática de qualquer infração penal prévia para a configuração


do ilícito.
Posteriormente às alterações legislativas em comento, Soares16 afirma não
haver consenso doutrinário sobre o conceito de lavagem de capitais, entretanto, em
que pese pequenas diferenças conceituais, as definições acabam convergindo entre
si:

“A leitura da doutrina especializada revela não haver uniformidade na


conceituação do objeto deste estudo, todavia, convergem os estudiosos em
considerar a lavagem de capitais como um procedimento de caracterização
lícita a bens e valores obtidos de forma espúria.”

Logo, tem-se que, sem prejuízo da conceituação legal, dada pelo art. 1º, da
Lei 9.613/98, acima exposto, a lavagem de dinheiro consiste em travestir, de legais,
bens e valores obtidos de maneira ilícita, para que vistos como se lícitos fossem.

Para Callegari, lavagem de capitais “é a atividade de investir, ocultar,


substituir ou transformar e restituir o dinheiro de origem sempre ilícita aos circuitos
econômico-financeiros legais, incorporando-o a qualquer tipo de negócio como se
fosse obtido de forma lícita.”17

De igual modo, é fundamental pontuar, também, que, para Luiz Regis Prado,
o crime de lavagem de dinheiro “além de ser delito de mera conduta, é também
delito de resultado cortado, em que a obtenção do fim almejado pelo autor não afeta
a sua consumação”.18

Nesse contexto, ainda, alguns Autores ousam a comparar a natureza do tipo


penal de lavagem de dinheiro à do tráfico de drogas, alegando serem similares, visto
que ambos consistem em tipos penais mistos alternativos, no tangente à realização
de mais de uma conduta penalmente relevante, de modo que a consumação do

16 SOARES, Jucelino Oliveira. A Teoria da Cegueira Deliberada e a sua aplicabilidade aos crimes
financeiros. 2019. Disponível em: https://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2019/12/ARTIGO-
6.pdf. Acesso em: 23 nov. 2023.
17CALLEGARI, André Luís. Imputação Objetiva: lavagem de dinheiro e outros temas do Direito
Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
18PRADO, Luiz Regis. O novo tratamento penal da lavagem de dinheiro (Lei n. 12.683/2012). Revista
dos Tribunais São Paulo, v. 101, n. 926 , p. 401-436, dez. 2012
10

delito ocorra com a prática de qualquer uma das condutas descritas na norma
incriminadora.19

Em suma, em que pese a evolução legislativa visasse o recrudescimento da


tipificação da lavagem de capitais e melhor definição de seu conceito, o que foi
compreendido pela doutrina, surgiu, nela, uma série de dúvidas quanto a aplicação
das teorias de responsabilidade subjetiva penal, especificamente, o cabimento (ou
não) do dolo eventual no tipo penal de lavagem de dinheiro, sobretudo com relação
à consciência dos bens objeto da prática.
Nesse âmbito, as discussões se ampliaram, chegando aos Tribunais, mas
sem um consenso definitivo, e com inúmeros posicionamentos divergentes sobre o
tema.

3. Teoria da Cegueira Deliberada e dolo eventual na lavagem de capitais


Ao discutir a aplicação ou não do dolo eventual nos casos de lavagem de
capitais, inevitavelmente, o tema esbarra na Teoria da Cegueira Deliberada.
Referida Teoria, tem origem no direito anglo-saxão, sendo também
conhecida como “Ostrich Instructions”, em tradução livre, “Instruções do Avestruz”.
Recebe essa denominação pois consiste no agente, deliberadamente, se manter
ignorante acerca das circunstâncias do fato que pratica, a fim de se proteger de
eventuais consequências, assim como o Avestruz, que, como mecanismo de defesa,
enterra sua cabeça no chão.
O primeiro precedente relacionado à Teoria ao qual se tem acesso (em que
pese ainda não fosse conhecida pela nomenclatura atual), é o caso britânico Regina
x Sleep, do ano de 1861. Nele se discutia um suposto furto de parafusos de cobre,
embarcados em um navio pelo ferrageiro Sleep. Dentre os parafusos embarcados,
alguns eram sinalizados com uma flecha, o que significava pertencerem à Coroa
Britânica (Regina).20
A acusação era de que Sleep havia praticado o crime de desvio de bens
públicos, tendo sido condenado em primeiro grau.
19 LUZ, Juliana Hermes. A NECESSIDADE DO ELEMENTO SUBJETIVO PARA A
CARACTERIZAÇÃO DO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO: UMA ANÁLISE À LUZ DA TEORIA
DA CEGUEIRA DELIBERADA E DA TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA. 2017. Disponível em:
https://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos
_produtos/bibli_informativo/bibli_inf_2006/Rev-ESMESC_30.14.pdf. Acesso em: 23 nov. 2023.
20 Ibid.
11

Nesse sentido, entendeu-se que o conhecimento da origem dos bens


desviados era elementar do tipo penal, ou seja, para que Sleep pudesse desviar
bens pertencentes à Coroa, o agente deveria, obrigatoriamente, ter consciência de
que os bens a ela pertenciam.
Em sede recursal, a defesa do Réu alegou que ele não possuía a
consciência necessária acerca da origem dos bens em questão, fato não levado em
consideração pelo júri, no primeiro julgamento. O argumento foi acatado pelo
julgador ad quem, que compreendeu a elementar subjetiva do tipo, concordando que
Sleep desconhecera a origem dos bens, bem como, não se abstivera,
deliberadamente, da aquisição desse conhecimento.
Dessa forma, restou consignado que, caso fosse comprovado que o Réu,
deliberadamente, negou saber a procedência ilícita dos bens que transportara, a
sanção penal cabível seria a mesma atribuída a quem da procedência soubesse (ou
seja, àqueles que agissem com dolo direto).
Sobre os acontecimentos posteriores ao caso, discorre Luz:21

“As decisões das cortes inglesas que se seguiram, ressalte-se, não


esclareceram se, para aplicar a equiparação sustentada no precedente
citado, era necessário demonstrar que o sujeito suspeitava, quando menos,
da possibilidade de uma atividade ilícita, ou se esta equiparação só poderia
ser utilizada para possibilitar a punição de acusados que apresentassem
alegações de desconhecimento absolutamente evitáveis.

Fato é que, no final do século XIX, referida equiparação entre o


conhecimento propriamente dito do crime antecedente, e a abstenção
propositada de se informar sobre essa situação ilícita, estava plenamente
assentada na doutrina inglesa para fins de aplicação da lei criminal e suas
respectivas sanções.”

No cenário continental, em que pese ainda se tratando do sistema do


Common Law, a Suprema Corte Estadunidense analisou o precedente Spurr x
United States.
No caso, Spurr, ex-presidente do Commercial National Bank of Nashville,
buscava reverter uma condenação que obteve à época que fora investido no cargo,
por ter certificado alguns cheques sem fundos. Para o direito estadunidense, o
preceito primário do delito em comento levava em consideração somente a violação
dolosa dos procedimentos bancários. Comenta Luz:22

21 Ibid.
22 Ibid.
12

“O Tribunal deliberou que, se uma autoridade bancária certifica cártulas


para que o emissor obtenha dinheiro do banco, mesmo sem a existência de
fundos para provimento, tal certificação pode ser equiparada à conduta de
violação à lei penal, seja pela ação deliberada de fraudar os registros
bancários, seja pela omissão qualificada consistente em se furtar,
intencionalmente, ao conhecimento (informação) sobre a real situação
creditícia da conta relacionada aos cheques.

De acordo com a Suprema Corte, a omissão qualificada poderia ser


presumida pelo fato de o Réu se manter, deliberadamente, na ignorância
acerca da existência de fundos na conta, considerada sua posição de
presidente da instituição, ou mesmo pela demonstração de grande
indiferença, a despeito de seu dever funcional de se assegurar da
circunstância indevidamente certificada”

Em que pese o caso Spurr x United States seja o mais antigo no cenário
norte americano, é mister pontuar que a Teoria da Cegueira Deliberada ganhou
destaque com a sua expansão na década de 1970, quando deixou de ser aplicada
somente aos crimes financeiros e falimentares, passando a ser aceita aos casos de
tráfico de drogas.
Para Gehr23, muitos doutrinadores consideram referência sobre o tema, o
precedente United States x Jewel, justamente por ser o retrato da expansão da
teoria, acima mencionada.
À época, Jewel foi condenado por contrabando, após ter atravessado a
fronteira entre os Estado Unidos da América e o México com maconha no porta-
malas de um veículo. Sua tese de defesa consistiu em alegar que desconhecia o
conteúdo que estava no veículo, mas suspeitava que poderia se tratar de algo ilícito.
O Tribunal de Apelações, então, alegou que “a ignorância deliberada e o
conhecimento positivo têm um mesmo grau de culpabilidade”.
Desse modo, a defesa do Réu não logrou êxito em sua absolvição, visto que
a Corte entendeu que a mera suspeita de Jewel sobre o conteúdo ilícito do
automóvel seria suficiente para caracterizar sua recusa de conhecimento sobre o
elemento constitutivo do ilícito.
Já, em âmbito nacional, apesar da existência de julgados anteriores fazendo
menção à Teoria, seu grande destaque se deu no julgado do famoso caso do
assalto ao Banco Central de Fortaleza, no Ceará.

23GEHR, Amanda. Aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no Direito Brasileiro. Trabalho de


Conclusão de Curso de Direito. Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
2012
13

A Ação Penal n.º 2005.81.00.014586-0 julgou o furto de R$164.755,150,00


(cento e sessenta e quatro milhões, setecentos e cinquenta e cinco mil, cento e
cinquenta reais) da sede do Banco, e todos os demais delitos a ele relacionados,
incluindo, os casos de lavagem do dinheiro subtraído.
À época, ainda vigente a redação pretérita da Lei Antilavagem, quando seu
art. 1º, §2º, ainda contava com a locução “que sabe serem provenientes de qualquer
dos crimes...”, conforme acima mencionado, expressão que afastava expressamente
a aplicação do dolo eventual ao delito de lavagem de capitais.
Eram julgados por lavagem de dinheiro os irmãos, José e Francisco Vieira,
que, proprietários de uma revendedora de automóveis, no dia após o furto, ainda
sem saberem de sua ocorrência, realizaram a venda de 11 automóveis, tendo
recebido o pagamento em espécie, acrescido de um valor extra para custear uma
compra futura de outros automóveis, não especificados no momento do “aporte”.
No caso, os Réus foram condenados em primeiro grau, ocasião em que o
julgador aplicou a Teoria da Cegueira Deliberada, considerando a peculiaridade da
operação, pelo alto valor pago em espécie, bem como a ocorrência do furto no dia
anterior, presumiu que os irmãos deveriam saber da origem dos valores por eles
recebidos.
Entretanto, em sede recursal, a sentença de piso fora reformada pelos
eméritos magistrados do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que entenderam
pela incompatibilidade do dolo eventual com o delito de lavagem de dinheiro, de
modo que os réus não poderiam ser responsabilizados pelo crime, visto que não
possuíam condições de conhecer a origem dos valores. Destaca-se da decisão:

“Entendo que a aplicação da teoria da cegueira deliberada depende da sua


adequação ao ordenamento jurídico nacional. No caso concreto, pode ser
perfeitamente adotada, desde que o tipo legal admita a punição a título de
dolo eventual. [...] No que tange ao tipo de utilizar “na atividade econômica
ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de
qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo” (inciso I do § 2º), a
própria redação do dispositivo exige que o agente SAIBA que o dinheiro é
originado de algum dos crimes antecedentes. O núcleo do tipo não se utiliza
sequer da expressão DEVERIA SABER (geralmente denotativa do dolo
eventual). Assim sendo, entendo que, ante as circunstâncias do caso
concreto, não há como se aplicar a doutrina da willful blindness. As
evidências não levam a conclusão de que os sócios da BRILHE CAR
sabiam efetivamente da origem criminosa dos ativos. Não há a
demonstração concreta sequer do dolo eventual.”24

24 Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Apelação Criminal n° 5520, Processo nº


2005.81.00.014586-0. Brasília,2005. Disponível em: . Acesso em: 06 out. 2018
14

Ademais, Oliveira, destaca o julgamento da Ação Penal n.º 470, pelo


Supremo Tribunal Federal, relativa ao escândalo de corrupção popularmente
conhecido como “Mensalão”. Pontua o Autor:25

“A aplicação da willful blindness não encontrou unanimidade na Corte, tendo


alguns ministros rechaçado, expressamente, a conformação dos preceitos
primários dos crimes previstos na Lei nº 9.613/1998 ao dolo eventual.
Todavia, a maioria dos julgadores admitiu esta modalidade, reconhecendo-a
como possível mesmo em cenário prévio às mudanças trazidas pela Lei
12.683/2012”

Oportunamente, dispôs a Corte Constitucional:

“O Direito Comparado favorece o reconhecimento do dolo eventual,


merecendo ser citada a doutrina da cegueira deliberada construída pelo
Direito anglo-saxão (willful blindness doctrine). Para configuração da
cegueira deliberada em crimes de lavagem de dinheiro, as Cortes norte-
americanas têm exigido, em regra, (i) a ciência do agente quanto à elevada
probabilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos provenham de
crime, (ii) o atuar de forma indiferente do agente a esse conhecimento, e (iii)
a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de
todos os fatos, quando possível a alternativa. Nesse sentido, há vários
precedentes, como US vs. Campbell, de 1992, da Corte de Apelação
Federal do Quarto Circuito, US vs. Rivera Rodriguez, de 2003, da Corte de
Apelação Federal do Terceiro Circuito, US vs. Cunan, de 1998, da Corte de
Apelação Federal do Primeiro Circuito. Embora se trate de construção da
common law, o Supremo Tribunal Espanhol, corte da tradição da civil law,
acolheu a doutrina em questão na Sentencia 22/2005, em caso de lavagem
de dinheiro, equiparando a cegueira deliberada ao dolo eventual, também
presente no Direito brasileiro, Na hipótese sub judice, há elementos
probatórios suficientes para concluir por agir doloso - se não com dolo
direto, pelo menos com dolo eventual -,quanto a Pedro Corrêa, Pedro
Henry, Valdemar da Costa Neto, Jacinto Lamas, estes dois na extensão do
voto do Revisor, Enivaldo Quadrado e a Breno Fischberg.”26

Sobre o tema, Soares27 pontua que nitidamente Suprema Corte, ao admitir a


aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, a compara com o dolo eventual, ou a
uma espécie de dolo por assentimento.

25 SOARES, Jucelino Oliveira. A Teoria da Cegueira Deliberada e a sua aplicabilidade aos crimes
financeiros. 2019. Disponível em: https://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2019/12/ARTIGO-
6.pdf. Acesso em: 23 nov. 2023.
26Supremo Tribunal Federal. Ação Penal nº 470. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. DJe. 22 abr. de
2013. Brasília,2013. Disponível em: ftp:// ftp.stf.jus.br/ap470/InteiroTeor_AP470.pdf. Acesso em: 03
ago.2018. CALLEGARI, André Luís. Imputação Objetiva: lavagem de dinheiro e outros temas do
Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001
27 SOARES, Jucelino Oliveira. Op. cit.
15

No entanto, em que pese o precedente do Pretórito Excelso, a aplicação da


Teoria da Cegueira Deliberada e/ou a admissibilidade do dolo eventual nos crimes
de lavagem de capitais ainda divide opiniões na doutrina.

Para Bottini, o dolo eventual é incompatível com o tipo penal da lavagem de


dinheiro. Tal afirmação se sustenta ao comparar o tipo em comento com tipos
semelhantes, nos quais, ao admitir a figura do dolo eventual, o legislador sempre o
faz expressamente, em regra, pela expressão “dever saber”. Argumenta o Autor28:

“Isso não se aplica a todos os tipos penais, mas àqueles que tratam do
manuseio de produtos decorrentes de infrações prévias, como na
receptação qualificada (art. 180, § 1.º, do CP), e na receptação de animal
(CP, artigo 180-A). Em todos eles o tipo penal se refere a atos relacionados
com produtos derivados de infrações penais, e a possibilidade do dolo
eventual encontra-se expressamente prevista na forma do "deve saber".

O tipo penal de lavagem de dinheiro previsto no caput do artigo 1º da Lei


9.613/98, assim como o de favorecimento real (CP, artigo 349), também
mencionam proveitos de crime, mas não apresentam essa expressão
"devendo saber", como fazem os outros tipos apontados, a indicar a
ausência da modalidade de dolo eventual nestes casos.”

Nesse mesmo viés, pontuam, Capez e Puglisi:29

“Há certos tipos penais que não admitem o dolo eventual, pois a descrição
da conduta impõe um conhecimento especial da circunstância, tal como o
delito de receptação (CP, artigo 180): "Adquirir, receber, transportar,
conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser
produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba
ou oculte".”

Para os Autores, a existência do crime de lavagem de dinheiro pressupõe


uma infração penal antecedente, que seja do conhecimento do agente, de modo que
o desconhecimento da origem dos bens ocasiona, automaticamente, a inexistência
do crime. Sobre isso, lecionam:

“A primeira ação consiste em "ocultar", isto é, esconder, retirar do


conhecimento das autoridades, valores que o agente sabe serem produto
de infração penal. Quem oculta, quer esconder. Se quer esconder, é porque
tem consciência da necessidade de fazê-lo. Esconde porque sabe que
precisa esconder, e sabe que precisa esconder porque conhece a origem
ilícita do que está escondendo. Assim, tal consciência da necessidade,

28 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. O dolo eventual e a lavagem de dinheiro. 2023. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2023-ago-07/direito-defesa-dolo-eventual-lavagem-dinheiro/. Acesso em:
23 nov. 2023.
29
CAPEZ, Fernando; PUGLISI, Fábia. Lavagem de dinheiro: considerações sobre o dolo e a
teoria da cegueira deliberada. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-
18/controversias-juridicas-lavagem-dinheiro-dolo-teoria-cegueira-deliberada/. Acesso em: 23 nov.
2023.
16

exige conhecimento inequívoco da origem ilícita do bem ocultado. Com


efeito, só oculta quem quer esconder algo que sabe ser ilícito.

O mesmo raciocínio serve para a ação de dissimular, só que com ainda


maior razão. A dissimulação pressupõe todo o desenvolvimento de um
aparato para dar aparência de legalidade a bens de origem ilícita. Todo o
estratagema desenvolvido para dissimular valores de qualquer natureza
pressupõe um conhecimento prévio a motivar todo o esforço para o ardil
simulatório.”30

Nesse sentido, se faz imprescindível a demonstração do dolo direto do


agente, visto que, para Capez e Puglisi, caso o legislador desejasse que o tipo
alcançasse aquele que tem dúvidas sobre a ilicitude do objeto da lavagem de
capitais se valeria da expressão “dever saber”, assim como faz nos tipos de
receptação qualificada (art. 180, §1º, do Código Penal) e receptação de animal (art.
180-A, do Código Penal).

No entanto, a tipificação da lavagem de dinheiro não faz essa menção, de


modo que não se deve admitir o dolo eventual para esse delito, nem sob o
argumento de uma suposta maior eficácia da repressão da prática, visto que o
Princípio constitucional da Legalidade, derivado do axioma Nullum Crime Sine Lege,
mencionado alhures, veda a analogia e/ou interpretação extensiva de normas
incriminadoras.

Lecionam, Capez e Puglisi:

“É certo que em outras legislações é perfeitamente possível distinguir a


cegueira deliberada do dolo eventual, encontrando-se aquela em um
estágio anterior de consciência e vontade. O sujeito tinha condições de
investigar, mas preferiu permanecer na dúvida e dela beneficiar-se. Ocorre
que o artigo 18 do CP só prevê o dolo direito e o indireto, não sendo
admissível em nosso sistema a ampliação do elemento psicológico, sob
pena de ofensa à legalidade estrita e à responsabilidade subjetiva, dogmas
insuperáveis do nosso Direito Penal.”31

Ademais, em consonância com o entendimento acima exposto, Bottini


acrescenta que a aceitação do dolo eventual impõe insegurança às atividades
econômicas e financeiras, haja vista que, a todo momento, é possível duvidar da
origem de bens a serem transacionados, motivo pelo qual a tipicidade subjetiva do
delito de lavagem de capitais deve se limitar tão somente ao dolo direto. Expõe:

30 Ibid.
31 Ibid.
17

“Ainda que se afirme que o dolo eventual exige razoável suspeita da


procedência ilícita dos recursos, a linha que demarca o início dessa dúvida
fundada não é suficientemente clara para conferir segurança àqueles que
operam recursos alheios, como bancos e similares.” 32

Para o Autor, a simples desídia do agente não configura dolo eventual, no


máximo, em uma interpretação forçosa, a culpa consciente.
Em suma, não havendo previsão legal, seja de dolo eventual, seja de culpa
consciente, no tipo penal da lavagem de capitais, resta plenamente demonstrada a
atipicidade da conduta praticada, não podendo ensejar a condenação do agente,
sob pena da violação dos Princípios da Culpabilidade e da Legalidade.

Considerações Finais
À luz do acima exposto, tem-se que para assegurar as garantias mínimas
relativas ao Estado Democrático de Direito, o Direito Penal deve ser pautado pelos
dez axiomas do Garantismo Penal de Ferrajoli, que visam limitar o poder punitivo
estatal e foram internalizados pelo direito pátrio implícita e explicitamente no texto
constitucional.
Dentre todas as garantias mencionadas por Ferrajoli, para o presente estudo,
destacaram-se duas: a vedação à responsabilidade penal objetiva e a legalidade.
Tais garantias restam consubstanciadas pelo Princípio da Culpabilidade e da
Legalidade, positivados pela Constituição da República Federativa do Brasil, de
1988, respectivamente, em seus artigos 1º, III e 5º, XXXIX, bem como pelo Código
Penal, em seus artigos 18 e 1º.
Com o aumento dos casos de crimes econômicos, sobretudo o de lavagem de
capitais, se fez necessária a tipificação da prática, para que, em respeito ao
Princípio da Legalidade, o Estado pudesse punir adequadamente aqueles que nela
incorressem. Houve, então, a criação da Lei n.º 9.643/98, a Lei Antilavagem de
Dinheiro.
Entretanto, mediante a suposta necessidade de recrudescimento no combate
à lavagem de capitais, a redação original da Lei Antilavagem de Dinheiro foi
alterada, ampliando a tipificação e dando margem à doutrina para interpretações
divergentes sobre a possibilidade, ou não, da responsabilização daqueles que agiam
com dolo eventual em relação à prática.

32 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op. cit.


18

Nesse ponto, o tema esbarra na Teoria da Cegueira Deliberada, originária do


direito anglo-saxão, e aplicada, recentemente, em casos esparsos no ordenamento
jurídico brasileiro.
Consistente na ignorância deliberada da origem dos bens manipulados como
impeditivo de consumação de determinados tipos penais, para o Supremo Tribunal
Federal, a Teoria pode ser considerada sinônimo de dolo eventual, se aplicada aos
casos de lavagem de dinheiro.
A Cegueira Deliberada nos casos de lavagem de capital, entretanto, está em
dissonância com os princípios constitucionais acima elencados, da Culpabilidade e
da Legalidade.
A partir da redação do art. 1º, da Lei 9.643/988, não há previsão expressa da
modalidade do dolo eventual para o tipo penal em questão, diferentemente de outros
tipos que tratam de crimes com origens semelhantes (como a receptação qualificada
e a receptação de animais).
Dessa forma, a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, enquanto
sinônimo do dolo eventual, para condenação de Réus pelo crime de lavagem de
dinheiro, viola o Princípio da Legalidade, visto ser vedada a analogia e interpretação
extensiva da legislação penal, bem como o Princípio da Culpabilidade, uma vez não
ser admitida a responsabilidade penal objetiva (posto que, ausente a previsão da
modalidade culposa e do dolo eventual no tipo em comento, não há presença do
elemento subjetivo do tipo).
19

Referências
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BOTTINI, Pierpaolo Cruz. O dolo eventual e a lavagem de dinheiro. 2023. Disponível em:
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