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Liga Acadêmica de Direito e Processo Penal da Faculdade de Direito da

Universidade Federal de Minas Gerais (LADPEN-UFMG)

Relatório

Responsáveis: Marcos Vinícius da Silva e Maya Chaves Machado Borges

AULA 4: Dolo Eventual X Cegueira Deliberada

Conceito de Dolo:

O dolo é um elemento subjetivo do tipo penal e, em linhas gerais, é apresentado


no Código Penal Brasileiro no Art. 18, I:

Art. 18 - Diz-se o crime:

Crime doloso

I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de


produzi-lo;

Nesse ponto de vista, tem-se a definição de dolo sendo muito escassa, o que pode gerar
dúvidas acerca da sua aplicação, principalmente em torno de casos concretos, levando
em consideração que a subjetividade do autor é, quase sempre, difícil de ser averiguada
no caso concreto.

Segundo Zaffaroni “dolo é uma vontade determinada que, como qualquer


vontade, pressupõe um conhecimento determinado”1, sendo esse o conceito da teoria
finalista. Portanto, em linhas gerais, o dolo é composto por dois grandes elementos,
sendo um deles volitivo (a vontade) e o outro cognitivo (a consciência). Dentro desses
dois elementos, é necessário, dentro do aspecto da consciência, o conhecimento e de
todos os elementos objetivos do tipo penal, excluindo-se, todavia, a necessidade da
consciência da ilicitude, que antes era necessária, mas foi deslocada, transformando-se
em critério da culpabilidade2. Tal conhecimento dos elementos do tipo pode ser
deduzido da redação do Art. 20 do Código, que diz que: “erro sobre elemento
constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo”3. Isso significa que, para que haja
dolo, é necessário ter ciência dos elementos constitutivos do tipo o que, novamente, não

1
ZAFFARONI, Eugénio Raul. Manual de derecho penal – Parte general, p. 405
2
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Volume I, p. 343
3
BRENNER, Guilherme. A punição da culpa a título de dolo: O problema da chamada cegueira
deliberada, p. 191
inclui a consciência da antijuridicidade da conduta. Além disso, como aponta NUCCI,
“é indispensável que a vontade do agente seja capaz de produzir o evento típico”4.

Simplificadamente, apenas a existência desses dois elementos já caracteriza o


chamado dolo direto, sendo esse representado pela primeira parte do Art. 18, I, “quis o
resultado”. Esse tipo de dolo pode ser subdividido em dois: dolo direto de primeiro grau
e dolo direto de segundo grau ou de consequências necessárias. Para Bitencourt “O
objeto do dolo direto é o fim proposto, os meios escolhidos e os efeitos colaterais
representados como necessários à realização do fim pretendido”5. A diferença na
conceituação de ambos está justamente na ideia de efeitos colaterais citada pelo
penalista. Enquanto no dolo direto de primeiro grau há consciência dos elementos do
tipo e vontade (intenção) de alcançar o resultado, no dolo direto de segundo grau, a
utilização de determinado meio como forma de cometer o delito resulta na obtenção de
efeitos colaterais não necessariamente almejados pelo autor, mas que eram certos de
ocorrer e necessários ante a utilização desse meio. É o caso da utilização de um
explosivo para matar alguém, mas que acaba matando e ferindo outras pessoas. O dolo
do indivíduo em relação à vítima inicial é direto de primeiro grau e, nas demais vítimas,
de consequências necessárias.

Além dessa classificação, há outro tipo de dolo, chamado de dolo eventual, que
será aprofundado ao longo dessa aula.

Conceito de Dolo eventual:

O conceito de dolo eventual está previsto no Art. 18, I, in fine, “assumiu o risco
de produzi-lo”. Segundo o professor Jair Leonardo Lopes “São casos em que o agente
não quer o resultado, mas, também, não se detém diante da previsão de sua ocorrência e
a admite”6. A partir daí, observa-se qual é a diferença do dolo direto para o eventual. No
primeiro, há a “vontade orientada no sentido do fim antecipado mentalmente pelo
agente”7; já no segundo, o resultado gerado pela ação do agente não era querido por ele,
mas era razoavelmente previsível e, seja pela indiferença ou pela assunção do risco, o
agente deixa que esse resultado ocorra. Sendo assim, apesar de não querer diretamente o
resultado, o dolo eventual ainda pressupõe a existência do elemento volitivo, mesmo

4
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal, p. 165
5
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Volume I, p. 347
6
LOPES, Jair Leonardo. Curso de Direito Penal – Parte Geral, p. 122
7
LOPES, Jair Leonardo. Curso de Direito Penal – Parte Geral, p. 121
que indireto, levando em conta sua atitude de persistir mesmo sabendo que pode gerar
uma consequência ruim.

Contextualização no Brasil:

O dolo eventual no Brasil é expressamente adotado pelo Código no Art. 18, I,


mas, historicamente, teve sua primeira aparição na redação original do Código Penal de
1940, sendo o artigo 15 o que definia o que era dolo, também abrangendo o dolo direto
e o eventual. Na exposição de motivos da redação original do código, diz o legislador
que:

Segundo o preceito do art. 15, n. I, o dolo (que é a mais grave forma


de culpabilidade) existe não só quando o agente quer diretamente o
resultado (effectus sceleris) como quando assume o risco de produzí-
lo (sic). O dolo eventual é, assim plenamente equiparado ao dolo
direto. É inegável que arriscar-se conscientemente a produzir um
evento vale tanto quanto querê-lo: ainda que sem interesse nele, o
agente o ratifica ex ante, presta anuência ao seu advento.8

Com isso, pode-se dizer que a origem da previsão do dolo eventual no Código
brasileiro é a adequação do Direito Penal à teoria do consentimento ou assentimento,
acompanhada da teoria da vontade. Segundo Rogério Greco, existem três principais
teorias que demonstravam importantes correntes a respeito do significado de dolo,
sendo elas a teoria da vontade, do assentimento e da representação. A primeira diz
respeito ao dolo ser fruto da vontade e da consciência de praticar determinada ação
prevista em tipo penal. Já a segunda, que abarca o conceito de dolo eventual, é a
definição da prática de uma ação em que o agente prevê o resultado, que não é seu
objetivo de alcançar, mesmo assim assume o risco de ele ocorrer. Por fim, a teoria da
representação, que não é utilizada pela sua imprecisão em relação ao conceito de dolo,
define esse conceito como sendo fruto de uma ação em que era previsível o resultado9.
O grande problema dessa última teoria é que ela não permite a distinção entre o dolo
eventual e a culpa consciente, que será abordada no próximo tópico.

Diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente:

Ao adentrar nesse tema, é importante ressaltar que, segundo o Art. 18, § único
do Código Penal, “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei N. 2048 – 7-12-40. Exposição de motivos (redação original), p. XI
8

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Volume I, p. 297


9
previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”. Isso significa que a culpa é
aplicada apenas nos casos previsos em lei, isto é, quando o tipo penal possui
expressamente uma forma culposa. Nos casos em que não há essa previsão, o agente é
punido apenas a título de dolo, sendo esse, como já visto, direto ou eventual, não tendo
uma diferenciação legal (são equiparados).

Nesse sentido, a culpa é outra espécie de elemento subjetivo no qual a


previsibilidade não está prevista (casos de culpa inconsciente), e que há, portanto, uma
conduta marcada pela negligência, imprudência ou imperícia. A culpa consciente, por
sua vez, é muito próxima do dolo eventual, pois possui como elemento a previsibilidade
do resultado e, por isso, é importante fazer uma distinção conceitual. Ademais, é
necessário entender que, em casos concretos, não há diferenciação clara desses dois
institutos, levando a discricionariedade do juiz ao analisar o ocorrido.

Sendo assim, na culpa consciente, o agente prevê o resultado, acredita


sinceramente que não ocorrerá, mas acaba não conseguindo evitá-lo. A diferença,
portanto, apesar de ambos envolverem a previsibilidade do resultado, está no fato do
dolo eventual haver assunção do risco. Sendo assim, segundo Bitencourt, o que
diferencia o dolo eventual da culpa consciente é justamente um dos elementos principais
do dolo, que é a vontade10. Vontade essa, como visto anteriormente, que não é direta no
sentido de o agente ter a almejado desde o início, mas indiretamente, ao assumir o risco
ou praticar a atitude de maneira indiferente a ocorrência desse resultado. Jair Leonardo,
de modo simplificado, as diferencia utilizando duas frases: “Na culpa consciente, o
agente diria “Deus me livre do resultado” e, no dolo eventual, dirá “haja o que houver,
custe o que custar”11. É, também, um modo didático para entender a divergência entre
os conceitos através da ideia de que, no caso de culpa consciente, o agente, caso tivesse
certeza de que o resultado ocorreria, desistiria da atitude, algo que não ocorre no dolo
eventual, mais uma vez destacando a existência do elemento volitivo12.

Bitencourt ressalta que, na aplicação prática, quando houver dúvidas, deve-se


aplicar o que é mais favorável ao réu, ou seja, a culpa consciente13. Entretanto, isso não
é o que ocorre na prática forense, sobretudo nos casos que geram mais dúvidas a

10
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Volume I, p. 349
11
LOPES, Jair Leonardo. Curso de Direito Penal – Parte Geral, p. 124
12
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Volume I, p. 372
13
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Volume I, p. 373
respeito da existência de dolo ou culpa, que são os casos de crimes de trânsito, incluindo
direção embriagada e excesso de velocidade.

Um grande exemplo que gerava muitas controvérsias era o do crime de racha,


que consiste na corrida de carros em via pública. Para conseguir distinguir o dolo
eventual da culpa, foi necessário a modificação da lei, trazendo expressamente a
possibilidade da ocorrência do crime por culpa. Através da redação do texto legal “Se da
prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que
o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo”, pode-se inferir que
foram retiradas as hipóteses do artigo 18, I, tanto na modalidade de dolo direto quanto
na de dolo eventual14.

Caso Boate Kiss:

O conhecido caso da Boate Kiss, tragédia que resultou em centenas de mortes, é


um exemplo da distinção, em caso concreto, da aplicação do dolo direto, dolo eventual e
da culpa consciente.

Os acusados, na peça feita pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, foram
denunciados por homicídio, tendo como elemento subjetivo o dolo eventual,
evidenciado pelo trecho:

“[...] assumiram o risco de produzir mortes das pessoas que estavam na


boate, revelando total indiferença e desprezo pela segurança e pela
vida das vítimas, pois, mesmo prevendo a possibilidade de matar
pessoas em razão da falta de segurança, não tinham qualquer controle
sobre o risco criado pelas diversas condições letais da cadeia causal
[...]”15

Nesse sentido, em nota de rodapé o Ministério Público argumenta os motivos


pelos quais a conduta dos 4 agentes se enquadraria em dolo eventual. Os réus, no caso
em concreto, não visavam diretamente o resultado morte, mas havia grande
previsibilidade de que este poderia ocorrer. Isso é provado faticamente, tendo em vista
que no momento de construção das provas e da busca pela verdade processual no
Processo Penal, é impossível ter certeza da subjetividade dos agentes, sendo necessária
a análise dos fatos e dos comportamentos objetivos dos indivíduos. Portanto, era
razoável, tanto para os donos da boate, quanto para os membros da banda, que a
14
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal, p. 175
15
MINISTÉRIO Público do Rio Grande do Sul. Denúncia caso Boate Kiss, p.6
infraestrutura do local, incluindo materiais altamente inflamáveis, má sinalização e
superlotação, somados ao fato de que os sinalizadores utilizados eram de uso externo,
incompatíveis com o ambiente da boate, gerariam um grande risco aos indivíduos que
estavam na boate, inclusive o resultado morte.

A argumentação do MP vai além, afirmando que, mesmo sendo um caso de


previsibilidade do resultado, não pode ser enquadrado em culpa consciente, pois os
agentes, de fato, assumiram o risco do resultado, visto que não tomaram cuidados e
atitudes necessárias para acreditarem, ainda que levianamente, que o resultado poderia
ser evitado.

Além da denúncia, a sentença do caso, proferida em 13/12/2021 condenou os


acusados por crime doloso contra a vida, entendendo, assim como o Ministério Público,
que houve dolo eventual na conduta, afastando a possibilidade de culpa consciente.
Nessa sentença, o juiz argumenta sobre o elemento da indiferença, que se equipara ao
elemento de assumir o risco do resultado, pois ambos denotam o elemento volitivo em
face do resultado proibido. Ademais, ressalta que a conduta dos indivíduos é essencial
para que esse dolo seja averiguado, citando o pensamento de Porciúncula, que entende
que quando alguém comete uma ação e tem conhecimento do resultado, sendo esse
previsto em tipo penal, pode-se concluir que a pessoa quer expressar tal resultado16.

Por fim, ainda sobre o dolo, a sentença proferida expressa que, segundo o Art.
18, I, há equiparação entre dolo direto e eventual, não sendo constatável a ideia de que
dolo direto é mais grave que o eventual. Diante das peculiaridades do caso, o juiz
entendeu que, mesmo se tratando de dolo eventual, a aplicação de pena deveria levar em
consideração a gravidade desse tipo subjetivo, que resultou na morte e ferimento de um
número enorme de indivíduos.

Caso HC 220384 / RN - RIO GRANDE DO NORTE:


Esse é um caso ocorrido no Rio Grande do Norte que envolve a diferenciação
entre dolo eventual e culpa consciente em relação a um crime de trânsito. Os fatos
ocorreram na cidade de Natal e o réu, dirigindo um veículo por volta das 5 horas da
manhã com uma velocidade acima da permitida na via (em torno de 80 a 105 km/h
como constatado na perícia), estava indo para casa do seu pai, quando decidiu pegar seu
celular no banco de trás do carro, perdendo a direção do veículo e atropelando um

16
PODER Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul. Sentença Boate Kiss, p.8.
ciclista. Logo após isso, o sujeito foge do local, sem prestar socorro à vítima. Em
interrogatório à polícia ele confessa sobre o que foi alegado na denúncia.
A questão principal é que o réu foi acusado por crime doloso contra a vida, já
que a vítima (ciclista) morreu em decorrência desse atropelamento. O Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Norte realizou a pronúncia, ou seja, compreendeu
que se tratava de um crime de competência do tribunal do júri, alegando como indícios
da assunção do risco em relação ao resultado a velocidade elevada na via e o uso do
celular, ambos sendo condutas que atestariam o seu descaso com a vida de um cidadão.
Entretanto, ao ser julgado pelo STF, o Ministro relator André Mendonça entendeu que
não havia indícios suficientes de que o réu assumiu o risco do resultado morte. Sendo
assim, dependeria de mais provas materiais acerca do caso concreto que atestassem a
sua vontade, elemento diferenciador entre dolo e culpa. Ademais, cita ideias de Heleno
Cláudio Fragoso, que diz “(...) assumir o risco significa prever o resultado como
provável ou possível e aceitar ou consentir sua superveniência”. Portanto, apenas a
previsibilidade do resultado, como argumentado pelo TJRN não é indicador claro de
dolo eventual. Portanto, o STF concedeu a ordem ao Habeas Corpus, desclassificando a
conduta do réu para homicídio culposo.

Dolo eventual nos crimes omissivos impróprios:

Pela conceituação de dolo, já se sabe que é necessário ter conhecimento dos


elementos do tipo. No caso dos crimes omissivos impróprios, em que o agente pratica
uma omissão (e não uma ação) e esse agente está em posição de garantidor, é necessário
que ele tenha conhecimento dessa situação, isto é, das circunstâncias que o tornam
garantidor. Para isso, não é necessário ter conhecimento da lei ou de convenção que o
deixa nessa posição, mas apenas, através dos fatos, entender que o caso exige que ele
haja com um especial dever de proteção17.

Dolo eventual e erro de tipo:

Outra diferenciação importante para se ter em mente é a limitação trazida pela definição
do erro de tipo.

17
TAVARES. J. As controvérsias em torno dos crimes omissivos, p. 97
O instituto previsto no art. 20 do Decreto Lei 2848/1940 emerge quando há erro quanto
a elemento constitutivo do próprio tipo penal, excluindo o dolo do agente, mas
permitindo sua punição na modalidade culposa, desde que previsto em lei. Segundo
Bitencourt18, seria a falsa percepção da realidade sobre um elemento do crime, a
ignorância ou a falsa representação de qualquer dos elementos que o constituem. Já para
Horta19, não se trataria tão somente da falsa ou equivocada representação mental de um
determinado objeto, mas também a ignorância ou completa ausência de sua
representação.

Depreende-se, portanto, que o limite trazido pelo erro de tipo impõe a necessidade de
uma correta representação mental do agente no cometimento do ilícito para sua punição
na modalidade dolosa, ainda que essa esteja permeada por um conhecimento parcial ou
imperfeito das circunstâncias fáticas, hipóteses em que estariam abarcadas pelo dolo
eventual, com a obrigação do agente de promover a devida averiguação ou ainda se
abster de praticar a conduta, sob pena de assumir o risco e incorrer na tipicidade.

Dessa forma, a exclusão do dolo somente se daria quando evidente o descontrole sobre
a percepção dos fatos ou seu equívoco acerca deles, mas não quando evidente a
suspeição de que a conduta venha a ser típica por parte do agente.

O desenvolvimento da Cegueira deliberada na Espanha

A teoria da cegueira deliberada enquanto conceito não propriamente jurídico, advinda


de uma construção inglesa e amplamente aplicada no contexto jurídico norte-americano,
pode ser compreendida como um estado subjetivo em que o agente opta
deliberadamente pelo desconhecimento ou ainda pela permanência em um estado de
ignorância acerca de determinado fato.

Para PARDINI, assim poderia ser definida:

(...) cegueira deliberada é o estado mental formado a partir de


uma decisão do sujeito pela não obtenção de conhecimento
possível em relação a um fato e, assim, pela sua manutenção em

18
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Volume I, p.139
19
HORTA, Frederico. Elementos normativos das leis penais e conteúdo intelectual do dolo: da natureza
do erro sobre o dever extrapenal em branco. São Paulo: Marcial Pons, 2016. p. 117, nota 1;
ignorância; pode ser parcial, se adotada após o contato com
indícios e a formação de algum tipo de suspeita inicial, ou
absoluta, se inviabilizadora da obtenção de qualquer grau de
suspeita; e, ainda, passiva, se consistente na mera inércia e
ausência de iniciativa de se buscar o conhecimento, ou ativa,
caso inclua, também, a efetiva oposição de barreiras a que o
conhecimento chegue ao sujeito20

Como é comumente aplicada em países de common law, especialmente Estados Unidos,


a teoria da cegueira deliberada proporciona a equiparação entre o conhecimento sobre
os elementos configuradores do tipo penal com o desconhecimento proposital ou
construído acerca de tais elementares para promover a responsabilização subjetiva21.

Aplicação curiosa da teoria, todavia, é a que se tem presenciado na Espanha. País de


tradição jurídica romano-germânica, assim como o Brasil, que passou a aplicar a
cegueira deliberada inicialmente em um caso envolvendo receptação (Sentencia de 10
de enero de 2000) e usualmente vista como fundamento de decisões envolvendo o
tráfico de drogas, constituindo substitutivo do próprio dolo, independentemente da
constatação de seu elemento cognitivo22.

Segundo Ragués i Vallès (2007, p. 193-6), a aplicação da teoria em tais circunstâncias


se daria em razão da redação do próprio Código Penal Espanhol, a qual não abarca uma
clara definição acerca do dolo, restringindo-se a afirmar que “sem dolo, não há crime”,
inclusive possibilitando que hipóteses de cegueira deliberada sejam incluídas no texto
legal.

O dolo eventual e a cegueira deliberada no Brasil

Diferentemente da construção norte-americana, a teoria da cegueira deliberada desafia


sua utilidade no sistema jurídico brasileiro. Isso porque, nos casos em que o agente opte

20
PARDINI, Lucas. Imputação dolosa do crime omissivo impróprio ao empresário em cegueira
deliberada. Tese (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito e Ciências do Estado, Universidade
Federal de Minas Gerais. Minas Gerais. p. 46. 2019.
21
CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Atlas, 2014.
22
RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. La ignorancia deliberada en Derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007.
25-9
por se manter em desconhecimento, possuindo uma representação mental e percepção
fática de que poderia incorrer em conduta típica, certo é que, se não procedeu a
averiguação das circunstâncias as quais estaria submetido ou ainda não se absteve de
praticar a conduta, o dolo eventual abarcaria essa assunção do risco.

Dessa forma, em nosso ordenamento, não há um hiato entre o conhecimento pleno


(knowledge) e o descuido (recklessness23) para fins de imputação subjetiva, mas sim
duas categorias bem definidas, notadamente o dolo e culpa.

Evidencia-se, assim, que a aplicação da teoria em nosso sistema jurídico trata de mero
adorno retórico ou hermenêutico, quando não indevidamente utilizada em afronta à
previsão do dolo eventual ou ainda para criar um dever de conhecimento que não se
verifica diante da insuficiência de provas, conforme aponta Lucchesi em seu
levantamento jurisprudencial24.

Por fim, ainda segundo o autor, essa incompatibilidade poderia ser facilmente
ultrapassada se o operador do direito se atentasse muito mais à correta identificação do
dolo e de seu conceito do que à definição de cegueira deliberada.25

Referências:

ZAFFARONI, Eugénio Raul. Manual de derecho penal – Parte General. Buenos Aires:
Ediar, 1996.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Volume I. 29ª edição revista
e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2023.

LUCCHESI, G. B. A punição da culpa a título de dolo: o problema da chamada


“cegueira deliberada”. Tese (Doutorado) – Curso de Direito, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2017.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 18ª edição revista e atualizada.
Rio de Janeiro: Editora Forense, 2022.

23
PARDINI, Lucas. Imputação dolosa do crime omissivo impróprio ao empresário em cegueira
deliberada. Tese (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito e Ciências do Estado, Universidade
Federal de Minas Gerais. Minas Gerais. 2019; p. 17 e 18.
24
LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil.
São Paulo: Marcial Pons, 2018.
25
LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p. 163.
LOPES, Jair Leonardo. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 4ª edição revista e
atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Volume I. Niterói: Editora Impetus, 2020.
TAVARES, J. As controvérsias em torno dos crimes omissivos. S/L: Instituto Latino-
Americano de Cooperação Penal, 1996.

BRASIL. Decreto-Lei N. 2048, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal; Exposição de


motivos (redação original). Brasília, DF. Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-
1940-412868-exposicaodemotivos-pe.pdf> Acesso em: 12 out. 2023

BRASIL, Supremo Tribunal Federal (2. Turma). Habeas Corpus 220384/RN. Habeas
Corpus. Tribunal do Júri. Pronúncia. Homicídio a título de dolo eventual. Indício de
crime doloso contra a vida: inexistência. Ausência de comprovação do elemento
volitivo. Desclassificação para crime culposo. Revaloração fática que não se
confunde com revolvimento do conjunto fático probatório. Relator: Min. André
Mendonça. Julgamento: 22/08/2023. Publicação: 29/08/2023. Disponível em:
<https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=770232784>
Acesso em: 12 out. 2023

RIO GRANDE DO SUL, Ministério Público. Denúncia do caso da Boate Kiss.


Disponível em: <
https://www.mprs.mp.br/media/areas/criminal/arquivos/denunciakiss.pdf> Acesso em
12 out. 2023

RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (1ª vara do júri do
Foro Central). Sentença referente ao processo 001/2.20.0047171-0 (CNJ:.0047498-
35.2020.8.21.0001). Disponível em: <https://www.tjrs.jus.br/static/2021/12/Sentenca-
1012.pdf> Acesso em 12 out. 2023

PARDINI, Lucas. Imputação dolosa do crime omissivo impróprio ao empresário em


cegueira deliberada. Tese (Mestrado) – Faculdade de Direito e Ciências do Estado,
Universidade Federal de Minas Gerais. Minas Gerais. 2019.
HORTA, Frederico. Elementos normativos das leis penais e conteúdo intelectual do
dolo: da natureza do erro sobre o dever extrapenal em branco. São Paulo: Marcial Pons,
2016.

CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. São


Paulo: Atlas, 2014;

RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. La ignorancia deliberada en Derecho penal. Barcelona:


Atelier, 2007.

LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira


deliberada no Brasil. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 175.

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