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Educação Psicomotora
Edição revisada
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
__________________________________________________________________________________
S578e
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-2981-5
Filogênese da motricidade....................................................................................................9
O corpo hábil.........................................................................................................................25
Corpo hábil – síntese esquemática............................................................................................................29
Revisão..................................................................................................................................63
Referências............................................................................................................................67
Apresentação
O
trabalho que ora apresentamos foi elaborado com o intuito de servir como apoio didático
para as videoaulas. Cientes de que tal disciplina não tem o caráter de formar psicomotricistas,
mas de subsidiar os estudos e a prática da Pedagogia, a partir dos conhecimentos produzidos
no campo da Psicomotricidade, colocamos como meta para este estudo os seguintes objetivos:
conhecer os princípios teóricos e práticos que orientam as várias linhas de abordagem
psicomotora.
apreender os processos históricos que fundamentam os marcos teóricos dessas diversas linhas.
analisar a inserção da Psicomotricidade e suas diferentes perspectivas no campo educacional
e psicopedagógico.
conhecer a relação entre: o movimento e a criança; o desenvolvimento motor e as múltiplas
inteligências.
reconhecer a dança, a expressão dramática e a criatividade como possibilidades a serem
desenvolvidas no sujeito psicomotor.
Para efetivarmos esta tarefa, dividimos o material em unidades temáticas, a partir das quais orientamos
a análise sobre os fundamentos da Psicomotricidade e suas implicações nos processos formativos.
Iniciamos o estudo, deixando explícito o referencial teórico pelo qual abordaremos nosso objeto,
bem como aprofundamos a discussão sobre a centralidade do trabalho no processo de desenvolvimento
da motricidade humana.
Discutimos o conceito de Psicomotricidade, bem como introduzimos os diversos campos de
atuação psicomotora, os quais serão aprofundados nos capítulos subsequentes – Corpo hábil, Corpo
consciente propostos por Jean Le Camus, em sua obra O Corpo em Discussão.
Em algumas aulas é apresentado um texto base, que se segue imediatamente à abertura da
aula – no qual o aluno encontrará um panorama geral do período em questão. Além dos conteúdos
teóricos, elaboramos um resumo esquemático para complementar as informações relativas a cada um
dos conteúdos propostos, tarefa esta que sugerimos ser efetivada em duas etapas: 1) individualmente,
durante a aula; 2) em grupo de discussão, posteriormente à explanação do professor.
Na sequência, apresentamos: O movimento e a criança; um estudo sobre A relação entre
desenvolvimento motor e as múltiplas inteligências; A dança na Educação Infantil e Educação e
Criatividade.
Esperamos que este material, considerando as limitações inerentes a qualquer produção
acadêmica, uma vez partindo de uma perspectiva histórica e crítica do corpo, das técnicas e métodos
que dele vêm se ocupando ao longo dos tempos, possa ampliar o entendimento da Psicomotricidade
como prática educativa e, portanto, como prática social, bem como, adicionar reflexões aos estudos e
à futura prática no campo da Psicopedagogia.
Bom trabalho!
Psicomotricidade:
considerações preliminares
A
passagem do modo de produção feudal para o capitalista implicou profundas modificações,
acompanhadas de transformações nas formas de organização social, que envolveram diferen-
tes dimensões – cultural, política, educacional e econômica. A prática do artesão, trabalhador
do período feudal, era caracterizada como própria de um trabalhador total, o qual
[...] dispunha do domínio teórico-prático do processo de trabalho como um todo. Isto é, dominava um projeto
teórico, intencional, necessário à realização de um certo produto, e, para produzi-lo, contava com formação anterior
que lhe assegurava destreza especial, a força necessária e habilidades específicas para operar certos instrumentos
sobre a matéria-prima adequada, ao longo de todas as etapas do processo de trabalho. (ALVES, 1998, p. 37)
Neste percurso, o trabalhador foi sendo alienado do processo de produção como um todo e,
com os avanços da mecanização industrial, também ficou alheio ao produto em si, transformando-se
num acessório vivo de um organismo morto – a máquina. Expropriado, inclusive, do conhecimento
produzido pelo seu próprio ofício, “o operário fabril passou a realizar operações rotineiras que
não exigiam qualquer destreza especial. Com isso, a produção capitalista, enquanto domínio do
trabalho simples, se realizou em sua plenitude” (ALVES, 1998, p. 39).
As ideias de Alves encontram apoio na análise realizada por Marx e Engels (1987, p. 68), na
qual “[a] indústria e o comércio, a produção das necessidades de vida, condicionam, por seu lado,
a distribuição, a estrutura das diferentes classes sociais, para serem, por sua vez, condicionadas por
estas em seu modo de funcionamento”.
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Psicomotricidade: considerações preliminares
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Filogênese da motricidade
Toda riqueza provém do trabalho, asseguram os economistas.
E assim o é na realidade: a natureza proporciona os materiais que o
trabalho transforma em riqueza. Mas o trabalho é muito mais do que
isso: é o fundamento da vida humana. Podemos até afirmar que,
sob determinado aspecto, o trabalho criou o próprio homem.
P
Engels, 1876
ara que possamos entender a Psicomotricidade, seus objetos de estudo e de trabalho, ao longo da
história, faz-se necessário explicitar o fator que jogou a motricidade no processo de hominização.
Ao estudarmos a filogênese da motricidade humana, acompanhando as transformações anáto-
mocorticais desde os macacos até o Homo sapiens sapiens, evidencia-se com extrema clareza que,
assim como refere Marx (2001), o trabalho é um processo pelo qual o homem, à medida que modifica
a natureza externa, modifica a sua própria natureza.
Da quadrupedia terrestre à apropriação do meio arbóreo-aéreo, como modo de remediar sua
condição de vulnerabilidade frente aos predadores, nossos ancestrais remotos ficaram imersos em no-
vas necessidades. Tal situação colocou em marcha uma série de modificações na organização social,
alimentar, esquelética e cerebral desses pré-hominídeos.
Explicitando as transformações cerebrais relativas à organização tônica, resultante das novas
necessidades impostas pelo habitat aéreo, explica Fonseca (1982, p. 69) que
[...] a locomoção aérea põe mais problemas de equilibração e coordenação que a locomoção terrestre, na medida
em que os estímulos proprioceptivos tendem a multiplicar-se, até porque, se encontram conjugados com os es-
tímulos exteroceptivos visuais, razão pela qual as conexões corticais e cerebelosas se inter-relacionam cada vez
mais, favorecendo um desenvolvimento cerebeloso que tem como função coordenar as informações que vêm dos
músculos, dos tendões e das articulações e submetê-las à apreciação da motricidade, responsável pela equilibração
(sistema extrapiramidal-teleocinático) e pela coordenação (sistema piramidal-ideocinático).
Tais modificações, de ordem cerebelar, além de terem garantido a precisão dos movimentos
amplos, a partir da independização das mãos pela postura verticalizada, influenciaram decisiva-
mente na possibilidade de manipular objetos e construir instrumentos. Citando Sanides, Fonseca
(1982, p. 69) enfatiza que
[...] [ao] grau mais elevado da diferenciação da representação motora neocortical, com o aperfeiçoamento progres-
sivo dos movimentos unilaterais das extremidades, corresponde um aperfeiçoamento cerebeloso que assegura a
harmonia do movimento mais complicado através de sistemas cerebelosos proprioceptivos.
Neste sentido, Sanides evidencia que a capacidade de planejamento e execução das ações, fator
de distinção entre o homem e seus antecessores primatas, ou seja, o desenvolvimento do neocórtex
bem como a especialização dos hemisférios cerebrais, entre outras coisas, é resultante de um processo
que visou equacionar as necessidades impostas pelo meio arbóreo.
Com a emancipação da mão, até então necessária às funções de locomoção arborial, novas
funções apresentaram-se, a princípio, ligadas às necessidades básicas adaptativas, por exemplo, de
preparação alimentar, apanhando e selecionando os alimentos antes de introduzi-los na boca etc.
Assim, a destralidade manual, pouco a pouco, colocou-se como um dos principais instrumentos de
apropriação do real e de relação com este.
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Filogênese da motricidade
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Filogênese da motricidade
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Psicomotricidade:
uma categoria em discussão
Q uando perguntamos aos nossos alunos o que entendem por Psicomotricidade, aparecem
respostas como:
Movimento, cérebro;
Técnicas para desenvolver o conhecimento das partes do corpo;
Ligação corpo-mente;
Equilíbrio;
Técnicas voltadas ao desenvolvimento de pré-requisito para leitura e escrita;
Corpo e emoção;
Exercícios de coordenação motora;
Corpo e cognição;
Desenvolvimento infantil;
Esquema corporal;
Lateralidade etc.
Como se pode observar, uma gama bastante vasta, que vai desde concepções mais funcionais
(maturação do sistema nervoso, processos neuromotores, pré-requisitos, coordenação etc.), até pers-
pectivas mais ligadas aos aspectos relacionais da motricidade humana (corpo e emoção).
Esta variedade de noções que surgem, no senso comum, em conexão ao termo Psicomotricida-
de, reflete o próprio processo histórico pelo qual esta área do conhecimento vem se constituindo.
Preliminarmente, segundo alguns estudos mais difundidos, que procuram explicitar a es-
pecificidade deste campo, podemos visualizar a abrangência da Psicomotricidade por meio do
seguinte esquema:
Psico Motricidade
Aspectos biomaturacionais Movimento
Aspectos cognitivos Ação corporal
Aspectos afetivos
Partindo desta multiplicidade de aspectos que estabelecem uma inter-relação com a motricida-
de, a Sociedade Brasileira de Psicomotricidade (SBP) (fundada em 1980), em meados dos anos 1990,
procurando especificar a abrangência da Psicomotricidade no país, elaborou um primeiro conceito geral
desta área do conhecimento: Psicomotricidade é “uma ciência que tem por objeto o estudo do homem,
através de seu corpo em movimento, nas relações com seu mundo interno e externo” (SBP, 1995).
Sentimos a necessidade de especificar um pouco mais o conceito de Psicomotricidade elaborado
pela SBP. Neste sentido, superando a visão idealista vigente, concordamos com Silva (2002) quando
afirma que Psicomotricidade, numa perspectiva de totalidade, define-se como, “uma área do conheci-
mento que tem por objeto o corpo e o movimento humano em suas relações sociais e de produção”.
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Psicomotricidade: uma categoria em discussão
Educação psicomotora
Abrange todas as aprendizagens da criança, processando-se por etapas
progressivas e específicas conforme o desenvolvimento geral de cada
indivíduo. Realiza-se em todos os momentos da vida por meio de percepções
vivenciadas, como uma intervenção direta nos aspectos cognitivo, motor e
emocional, estruturando o indivíduo como um todo. A educação passa pela
facilitação das condições naturais e prevenção de distúrbios corporais1. Ela
se realiza na escola, na família e no meio social, com a participação dos
educadores, dos pais e dos professores em geral (professores de natação, de
atividades aquáticas, judô, balé, ginástica, dança, arte-educadores, magistério
etc.). Dirige-se prioritariamente às crianças em condições de frequentar a
escola e sem comprometimentos maiores. Muitos autores enfatizam essa área
1 Referimo-nos aos distúr-
bios corporais orgânicos,
psicomotores funcionais, de
de atuação e acreditamos que a base educativa acaba permeando as outras
comportamentos ou sociais, (reeducação, estimulação e terapia).
em que a educação psico-
motora pode e deve intervir,
Le Boulch (1981) comenta que “a educação psicomotora deve ser considerada
prevenindo-os. como uma educação de base na escola elementar, ponto de partida de todas as
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Psicomotricidade: uma categoria em discussão
Reeducação psicomotora
É a ação desenvolvida em indivíduos que sofrem com perturbações ou
distúrbios psicomotores. A reeducação psicomotora tem como objetivo retomar
as vivências anteriores com falhas ou as fases de educação ultrapassadas
inadequadamente. Em termos gerais, reeducar significa educar o que o indivíduo
não assimilou adequadamente em etapas anteriores. Deve começar em um tempo
hábil em razão da instalação das condutas psicomotoras, diagnosticando as
dificuldades a fim de traçar o programa de reeducação.
A atribuição da reeducação está contida em várias áreas profissionais:
pedagogia, educação física, fonoaudiologia, fisioterapia, terapia educacional,
psicologia, arte-educadores, educadores, médicos da especialidade motora
ou psíquica, entre outros. Mas, o mais importante para uma boa reeducação é
a tranquilidade e o intercâmbio afetivo entre o presente do reeducador com o
reeducando, condição básica para uma boa reeducação.
O artigo 7.º da proposição da lei francesa de 15/2/74 cita que a reeducação
deve ser “neurológica em sua técnica, psicológica e psíquica em sua meta, destinada
pela intermediação do corpo a atuar sobre as funções mentais e psicológicas
perturbadas tanto na criança como no adolescente ou no adulto”.
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Psicomotricidade: uma categoria em discussão
A reeducação embasa sua eficácia no fato de que se remonta às origens, aos mecanismos
de base que estão na origem da vida mental, controle gestual e do pensamento, controle
das reações tônico-emocionais, equilíbrio, fixação na atenção, justa preensão do tempo e
do espaço. (apud BUENO, 1998, p. 85)
Terapia psicomotora
Dirigida a indivíduos com conflitos mais profundos na sua estruturação, associados aos
[aspectos] funcionais ou com desorganização total de sua harmonia corporal e pessoal. En-
volve [por exemplo] crianças com agressividade acentuada, pulsões motoras incontroladas,
casos de excepcionalidade e dificuldades de relacionamento corporal e também destinada
a indivíduos que possuem associação de transtornos da personalidade. Está baseada nas
relações e na análise dessas relações por meio do jogo de movimentos corporais. (BUENO,
1997, p. 85)
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Psicomotricidade:
um estudo preliminar de suas categorias
P
ara iniciar nossos estudos, temos que abordar algumas categorias fundamentais para a reflexão
sobre as produções teóricas e técnicas no campo da Psicomotricidade. São elas: esquema corporal,
imagem corporal e tono. Para as duas primeiras categorias, esquema corporal e imagem corporal,
utilizaremos, fundamentalmente, a obra de Michel H. Ledoux, Introdução à Obra da Françoise Dolto. Já
o assunto tono será abordado a partir de um artigo de Vitor da Fonseca, em sua obra Psicomotricidade.
Referente ao esquema corporal, Ledoux (1991, p. 85), psicanalista francês, colaborador de
Françoise Dolto, oferece a seguinte formulação:
O esquema corporal especifica o indivíduo como representante da espécie. Mais ou menos idêntico em todas as
crianças da mesma idade, ele é uma realidade de fato, esteio e intérprete da imagem do corpo. Graças a ele, o corpo
atual fica referido no espaço à experiência imediata. Ele é inconsciente, pré-consciente e consciente.
Seguindo esta posição, podemos considerar que o esquema corporal é definido pela área da
Psicomotricidade como a organização de estruturas cerebrais que outorga ao indivíduo a capacidade
funcional, ou seja, o conhecimento progressivo das partes e funções do corpo, a partir de etapas
sucessivas, determinadas pela maturação neurocortical e pela relação da pessoa com o meio físico
e humano. Esta organização, segundo a Psicomotricidade, tem como função propiciar ao indivíduo
noções de globalidade de si, equilíbrio postural, afirmação da lateralidade, entre outras habilidades.
(FREIRE, 1989, p. 194)
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Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias
A imagem corporal, por sua vez, radica nas impressões resultantes das
relações de prazer e desprazer estabelecidas entre a pessoa e seus pares, sobretudo
na infância, que lhe dispensam cuidados básicos cotidianamente. Segundo Ledoux
(1991, p. 84-85),
[...] [a] imagem inconsciente do corpo não é o corpo fantasiado, mas um lugar inconsciente
de emissão e recepção das emoções, inicialmente focalizado nas zonas erógenas de prazer.
Ela se tece em torno do prazer e do desprazer de algumas zonas erógenas. [...] trata-se de uma
memória inconsciente da vivência relacional, de uma encarnação do Eu em crescimento.
[...] a imagem do corpo, individual, está ligada à história pessoal, a uma relação libidinal
marcada por sensações erógenas eletivas. Como vestígio estrutural da história emocional,
e não como prolongamento psíquico do esquema corporal, ela se molda como elaboração
das emoções precoces com os pais tutelares.
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Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias
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Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias
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Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias
lisa e o sistema hormonal, interconexão esta estabelecida pela função tônica que
intervém na regulação do sistema muscular voluntário (de relação), do sistema
neurovegetativo e do sistema hormonal, como argumenta Paillard.
Wallon sublinhou que a função tônica intervém na dialética da atividade
de relação e no campo da psicogênese. Entre o indivíduo e o seu meio,
estabelece-se um diálogo corporal, em que a função tônica integra a história das
informações exteriores e inter-relacionais, para dar origem à fenomenologia do
comportamento humano.
O estudo da função tônica, iniciado no princípio do século XX por
Sherrington põe em destaque a necessidade de integrar o estudo do tônus na
atividade organizada pelo sistema nervoso. Desde os estudos da atitude deste
mesmo autor, e também de Rademaker, Liddel, Granit, Eccles, Kaada e tantos
outros, a função tônica situa-se no campo da atividade cinética e também, como
defendem Mamo e Laget, na vastidão e complexidade da neurofisiologia. Vasto,
porque não é de formação nervosa exclusiva; complexo, porque forma o fundo das
atividades motoras e posturais, preparadoras do movimento, fixadoras da atitude,
projetando o gesto e mantendo a estática e a equilibração.
A função tônica constitui uma função específica e organizada, que prepara a
musculatura para as diferentes formas de atividade motora. A posição antigravítica
dos segmentos do corpo é uma ilustração elementar de sua função motora.
A aquisição da atitude bípede, grande responsável pela hominização, conferiu
ao ser humano uma aptidão para qualquer forma de ação motora suscetível de
satisfazer a sua natureza investigadora e as suas necessidades de ajustamento ao
meio ambiente.
Esta função tônica é a vigilância do ser humano, elemento essencial da vida
orgânica emancipada, provocando a estreita relação do somático aos contornos
do psiquismo.
A vigilância, suportada pela função tônica, é o alicerce dos múltiplos aspectos
da função motora. São inúmeras as variedades de tônus que lhe conferem o grau de
função mais plástica de todas as que constituem a formação e a organização motora.
Deste modo, temos: tônus de repouso, tônus de postura, tônus de suporte, tônus motor
etc. Paillard defende que o tônus se encontra na base das manifestações organizadas,
harmoniosamente repartidas na musculatura, a serviço de uma função específica –
equilibração ou movimento bem definido – e de expressões mais difusas, específicas
e de caráter geral. Como resposta a um estímulo que se exerce permanentemente
(a gravidade), o organismo reage por meio de uma atividade nervosa constate
autorregulada e, portanto, inconsciente.
O que é importante assinalar é a dupla atividade do músculo, que é suscetível
de atividade clônica (fásica, de movimento) rápida e altamente energética, e de
atividade tônica, lenta, pouco energética, de suporte, responsável pela postura.
Cabe dizer que a análise cuidadosa do tônus requer métodos de estudo,
como a eletrofisiologia, a eletromiografia, a eletrofonia, a cinematografia etc., que
testemunham com precisão a atividade elétrica desenvolvida pelas miofibrilas e
pelos motoneurônios.
Não vamos entrar num estudo detalhado do fuso neuromuscular, nem nas
implicações do sistema gama na organização motora do ser humano; apenas
apontamos novos campos experimentais que possam auxiliar na observação e na
compreensão dos fenômenos da motricidade humana.
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Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias
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O corpo hábil
E
mbora estudos sobre as práticas corporais considerem os primórdios da Psicomotricidade
datados dos séculos XVII-XVIII, momento em que as técnicas corporais passam a ser uti-
lizadas, deliberadamente, para um investimento político e econômico do corpo, Le Camus
(1986) situa o “nascimento” da Psicomotricidade no final do século XIX. Este marco deve-se ao
fato de o autor considerar a Psicomotricidade como saber derivado das ciências médicas e não
das ciências humanas.
Sendo assim, em vez de concebida enquanto produto e produtora das necessidades materiais
e de organização social do capitalismo moderno, segundo aquele autor, são as descobertas na área
da neurologia as principais responsáveis pelo batismo desta nova área do conhecimento. Segundo
Vigarello (1986, p. 16) “[o] adjetivo psicomotor teria nascido pouco após 1870, quando foi preciso
dar um nome às regiões do córtex cerebral situadas além das áreas propriamente motoras [...] onde
podia operar-se a junção ainda bem misteriosa, entre imagem mental e movimento.”
Segundo estudos sistematizados por Le Camus, o marco inaugural da Psicomotricidade
deve-se às experiências de Broca (1861), que descobre a ligação entre uma lesão cerebral
localizada e os sintomas da afasia. Isto outorga ao conhecimento médico da época a ideia de que
havia uma estreita relação entre movimento e processos cerebrais, estabelecendo-se o que se
denominou paralelismo psicomotor.
(FONSECA, 1982)
Área de Broca
(output)
Área auditiva Área visual
(input)
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O corpo hábil
Antiga hipótese de Gall sobre a localização das facilidades mentais. (WELLS &
Huxley, 1955, p. 42) Centros do: (1) sentido das dimensões; (2) sentido da causalidade;
(3) disposição para imitar; (4) sentido das cores; (5) sentido do tempo; (6) talento;
(7) sentido da admiração; (8) otimismo; (9) firmeza de caráter; (10) vaidade;
(11) constância na amizade; (12) cuidados com a prole; (13) capacidade de amar;
(14) agressividade; (15) prudência; (16) poesia; (17) sentido da melodia;
(18) sentido da ordem; (19) aptidão matemática; (20) sentido mecânico;
(21) cupidez; (22) astúcia; (23) gula; (24) crueldade.
[...] [na] representação imaginária que os dominantes se fazem da infância, esta é percebida
como superfície chata e plana, facilmente moldável, mas ao mesmo tempo como ser dotado
de características e vícios latentes, que deveriam ser corrigidos por técnicas pedagógicas
para constituir-se em sujeito produtivo da nação.
[...] [por] Educação Física não se deve entender apenas o exercício muscular do corpo,
mas também e principalmente o treinamento dos centros psicomotores pelas associações
múltiplas e repetidas entre movimento e pensamento e entre pensamento e movimento.
(apud Le Camus, 1986, p. 16)
Sob estas bases surge uma técnica de abordagem corporal que, auxiliada
pelos conhecimentos das áreas médicas, paramédicas e das ciências humanas, foi
denominada ginástica educativa, posteriormente, dividindo-se em dois grandes
ramos: ginástica pedagógica, destinada a todas as crianças, e ginástica médica,
reservada à reabilitação das crianças com necessidades especiais (apud LE
CAMUS, 1986, p. 24).
Estava, em embrião, lançada a ideia daquilo que posteriormente denominou-
-se Educação Psicomotora e Reeducação Psicomotora.
No contexto nacional, este processo de cientificização do corpo encontrará
sua aplicabilidade em escalas maiores a partir dos anos 30, do século passado.
Neste período, enquanto para a primeira infância as intervenções aproximavam-
-se daquelas tidas como cuidados ideais que a maternidade deveria suprir (noções
alimentares, de higiene, de saúde etc.), a segunda infância e a adolescência eram
submetidas a processos de exercícios físicos que garantiam a afirmação do ideário
liberal – ordem e progresso, por meio da máxima grega – mente sã em corpo são.
Acompanhando o processo de verticalização dos saberes-poderes sobre o
corpo, Foucault (1988, p. 126) explicita que
[...] [muitas] coisas são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle:
não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade
indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem
folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos, atitude, rapidez:
poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não
mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a
economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre
as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. A
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O corpo hábil
modalidade enfim: implica uma coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos
de atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que
esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos.
[...] [a] principal dificuldade na fábrica automática consistia em sua disciplina necessária,
em fazer seres humanos renunciarem a seus hábitos irregulares no trabalho e se identificar
com a invariável regularidade do grande autômato. Divisar um código de disciplina fabril
adequado às necessidades e à velocidade do sistema automático e realizá-lo com êxito foi
um empreendimento digno de Hércules.
A verdade é que este êxito não foi total, o capital jamais conseguiu
controlar totalmente a força de trabalho humano. Se por um lado isto constituiu
um problema para o capital, também implementou uma busca incessante neste
sentido, fato que resultou em processos cada vez mais requintados de diagnóstico
e encaminhamento das questões relativas à relação corpo-mente.
Um exemplo disso são os estudos de Edouard Guilmain, o qual empenhou-
-se em “[encontrar] um método de exame direto que [descobrisse] o próprio fundo
do qual os atos são a consequência.” Sua ambição era conseguir identificar quais
estruturas psicomotoras, solidariedades interfuncionais, concomitâncias de sintomas
(síndromes) ou de disposições (tipo) que incidiam sobre as esferas motora e afetiva
da criança. Deste modo, ao estabelecer um protótipo do Exame Psicomotor (1935),
Guilmain procurou desenvolver um instrumento de medida, meio diagnóstico,
indicador terapêutico e de prognóstico das disfunções psicomotoras. Além da
identificação e classificação dos “desviantes” de modo precoce e a sistematização de
um modo de tratá-los, ou melhor, adaptá-los aos imperativos sociais ainda quando
crianças, este tipo de instrumento permitia averiguar as causas de sintomas das
desordens psicomotoras que acometiam a população trabalhadora ativa, e organizar
medidas para saná-las (Reeducação Psicomotora).
Com o avanço dos processos de produção, o aumento da população, os problemas
da automação, as necessidades da sociedade burguesa tornam-se mais complexas. O
conhecimento de que psiquismo e dinamismo constituem-se numa díade inseparável
já não era mais suficiente para garantir a disciplinarização do corpo e da mente
frente às novas necessidades sociais e de produção que se apresentam. O tratamento
mecanizado, autômato, infringido ao corpo, suficiente para o encaminhamento das
necessidades em tempos anteriores, começava a apresentar sinais de falência.
Desse modo, tornou-se premente uma superação dos modos vigentes de forjar,
utilizar e controlar a classe trabalhadora, bem como, o seu potencial produtivo. Mais
uma vez, ao corpo e às ciências que dele se ocupam, caberia um lugar central neste
processo. Além de recuperar os “anormais” (termo utilizado na época, quando se
referiam a pessoas deficientes) que, pelo seu volume de incidência, já se tornavam
um problema socioeconômico, era preciso também criar artifícios compensatórios
que pudessem suprir a precariedade das condições necessárias para um satisfatório
desenvolvimento a que estavam sujeitas as crianças, garantindo, assim, a continuidade
do sistema produtivo e a sobrevivência das classes dominadas.
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O corpo hábil
Organizador:
Paralelismo
Modelo:
Mecanicista
Dualismo cartesiano
(corpo-mente)
Concepção de corpo:
Receptáculo da tradição
Bases teóricas:
Neurologia
Neuropsiquiatria infantil
Anatomofisiológica estática
“Existem íntimas ligações entre
pensamento e movimento... laços
íntimos e recíprocos unem a cere-
bração e a musculação, isto é, psi-
quismo e o dinamismo” (TISSIÉ,
apud LE CAMUS,1986, p. 24).
Autores:
Per Henrik Ling (1778-1839)
Philippe Tissié (1852-1935)
Corticopatológica
"Insistindo na variabilidade dos fo-
cos de lesão que permitiram superar
o esquema estático da anatomopato-
logia [...] Não é, portanto, a própria
função que se perdeu mas certo uso
dessa função” (LE CAMUS).
Autor:
Hugo Liepmann
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O corpo hábil
Neurofisiológica
“...todo o movimento, mesmo o
mais simples, tem um significado
biológico: o reflexo nociceptivo de
flexão é um ato de defesa, o reflexo
miotático de extensão permite ga-
rantir a postura. A medula espinhal
é reconhecida como capaz de “inte-
grar” a informação, isto é, de anali-
sar os estímulos e responder a eles
de modo adaptado” (LE CAMUS).
Autores:
John Hughlings Jackson (1834-1911)
Charles Sherrington (1852-1952)
Henri Wallon
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O corpo hábil
Edouard Guilmain
Reeducação psicomotora
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O corpo hábil
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