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D E VESPAS A LOCOMOTIVAS
Nos últimos mil anos, os estados europeus experimentaram uma evolução
peculiar: passaram de vespas a locomotivas. Por muito tempo se concentraram na
guerra, deixando a maioria das atividades para outras organizações, somente
enquanto essas organizações produzissem tributos em intervalos apropriados. Os
estados extorquidores de tributos continuaram belicosos, mas leves em peso quando
comparados aos seus sucessores mais avultados; ferroaram, mas não esgotaram.
Com o passar do tempo, os estados - mesmo as variedades de grande inversão de
capital - assumiram as atividades, os poderes e os compromissos que foram
obrigados a manter. Os dois trilhos em que essas locomotivas corriam eram o da
sustentação por parte da população e o da manutenção por intermédio de um quadro
de pessoal civil. Fora dos trilhos, as máquinas de guerra não funcionavam.
O mínimo de atividades essenciais de um estado são três:
/' criação do estado: atacando e controlando os competidores e desafiantes
dentro do território reclamado pelo estado;
prática da guerra: atacando os antagonistas fora do território já reclamado
pelo estado;
y proteção: atacando e controlando os antagonistas dos principais aliados dos
governantes, quer dentro quer fora do território reclamado do estado.
Contudo, não dura muito um estado que negligencia uma quarta atividade crucial:
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vínculos com Roma, mas com isso assumiu a obrigação de fornecer estipêndios
vitalícios a todos os padres que adotassem a sua versão da Reforma.
No conjunto, os funcionários dos estados que se desenvolveram em meio à
rede de cidades mercantis que se estendia da Itália do Norte a Flandres e ao Báltico
se encontraram perto do primeiro extremo, negociando com as oligarquias mu
nicipais que tinham a sua esfera de ação, sobreviveram e se tornaram os principais
componentes do estado; as cidades-império como Veneza são um exemplo do caso
extremo. Os agentes dos estados-em-formação que se constituíram dentro da faixa
de cidade-estado muitas vezes tiveram de negociar com os grandes proprietários de
terras e sua clientela, e criaram durante o processo novas instituições represen
tativas. Naqueles estados maiores, os nobres muitas vezes obtiveram confirmações
de seus privilégios e monopólios das patentes militares mais altas em troca de sua
colaboração com as tentativas reais de instituir exércitos nacionais. No entanto, ao
longo do continuum, a negociação em torno das exigências extrativas do estado
produziu direitos, privilégios e instituições de proteção que não existiam
anteriormente.
A autonomia e rapina dos janízaros acabou por obstruir de forma tão séria o
governo otomano que, em 1826, os soldados do sultão, a seu comando, juntaram-
se às multidões de Constantinopla para assassinar os remanescentes desse corpo de
tropa. Os grandes riscos do governo indireto eram não só o saque feito pelos
intermediários, que suscitava a oposição a esses por parte da população em geral,
mas também a resistência da parte dos intermediários, que estimulava a recalci-
trância de regiões inteiras ao papel nacional.
No entanto, no mais das vezes, os dirigentes locais governaram de forma
relativamente estável e compraram uma espécie de proteção para a população loca!
mediante o pagamento tempestivo de tributo ao estado otomano. Nesse ínterim, na
Prússia os Junkers foram ao mesmo tempo donos de suas grandes herdades, juizes,
comandantes militares e porta-vozes da coroa, enquanto que na Inglaterra a pequena ’
nobreza, a grande nobreza e o clero dividiram o trabalho de administração civil fora
da capital. Em circunstâncias favoráveis, os intermediários dotados assim de pode
res atenuaram os efeitos d& expansão do estado sobre a organização social e a ri-
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* Maréchaussée, corpo de cavaleiros encarregado outrora de velar pela segurança pública, substituído
em 1790 pelos gendarines. (N. do T.)
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chamou-o de volta em fevereiro de 1794. Durante esses seis meses, Javogues contou
intensamente com suas ligações existentes, concentrou-se na repressão aos inimigos
da Revolução, agiu em grande parte com base na teoria de que os padres, os nobres
e os ricos senhores de terra eram os inimigos, negligenciou e estropiou questões
administrativas como a organização do abastecimento de alimentos e deixou atrás
de si uma reputação de arbitrariedade e crueldade.
Não obstante, Javogues e seus colaboradores reorganizaram, de fato, a vida
local. Ao seguirmos a sua ação no Loire, encontramos clubes, comitês de vigilância,
forças armadas revolucionárias, comissários, tribunais e représentants en mission.
Percebemos uma tentativa quase incrível de estender a ação administrativa direta
do governo central à vida quotidiana do indivíduo. Reconhecemos a importância
da mobilização popular contra os inimigos da Revolução - verdadeiros ou imagi
nários que se transformou numa força que substituiu os antigos intermediários.
Portanto, conseguimos ter uma idéia do conflito entre dois objetivos do Terror:
extirpação dos opositores da Revolução e forja dos instrumentos de trabalho da
Revolução. Descobrimos mais uma vez a grande importância do controle dos ali
mentos, que se converteu num desafio administrativo, num ponto de contenção polí
tica e num incentivo à ação popular.
Ao contrário da antiga imagem de um povo uniforme que acolhe com prazer
a chegada de uma reforma há muito aguardada, as histórias locais da Revolução
deixam claro que os revolucionários da França estabeleceram o seu poder através
de luta, e muitas vezes contra uma obstinada resistência popular. E verdade que a
maior parte dessa resistência assumiu a forma muitas vezes da evasão, da trapaça e
da sabotagem e não da rebelião aberta. Entretanto, onde as linhasjie falha eram
profundas, a resistência consolidou-se em contra-revolução: a formação de eficien
tes autoridades em substituição àquelas designadas pela Revolução. A contra-
revolução aconteceu não onde todos se opunham à Revolução, mas onde diferenças
irreconciliáveis separavam blocos bem-definidos de partidários e oponentes.
O Sul e o Oeste da França, mediante processos semelhantes, produziram as
maiores zonas de contra-revolução sustentada (Lebrun & Dupuy 1987, Nicolas
1985, Lewis & Lucas 1983). A geografia das execuções durante o Terror fornece
um quadro racional da atividade contra-revolucionária. Entre os departamentos que
apresentam mais de 200 execuções contam-se: Loire Inférieure (3 548), Seine
(2 639), Maine-et-Loire (1 886), Rhône (1 880), Vendée (1 616), Ille-et-Vilaine
(509), Mayenne (495), Vaucluse (442), Bouches-du-Rhône (409), Pas-de-Calais
(392), Var (309), Gironde (299) e Sarthe (225). Esses departamentos são
responsáveis por 89% de todas as execuções durante o Terror (Greer 1935: 147).
Com exceção do Seine e do Pas-de-Calais, concentraram-se no Sul, no Sudeste e,
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ENCARGOS NÃO-PLANEJADOS
A luta pelos meios de guerra produziu estruturas de estado que ninguém havia
planejado criar, nem mesmo particularmente desejado. Como nenhum governante
ou coligação dirigente tinha poder absoluto e como as classes estranhas à coligação
dirigente sempre detinham controle diário sobre uma parcela expressiva dos recursos
que os governantes extraíam para a guerra, nenhum estado conseguiu fugir à cria
ção de alguns encargos organizacionais que os governantes teriam preferido evitar.
Um segundo processo paralelo também gerou para o estado encargos não-planejados:
enquanto criavam organizações ou para fazer guerra ou para extrair os recursos de
guerra da sua população - não apenas exércitos e marinhas mas também escritórios
de impostos, serviços alfandegários, tesouros, administrações regionais e forças
armadas para desenvolver o seu trabalho entre a população civil - os governantes
descobriram que as próprias organizações desenvolveram interesses, direitos,
emolumentos, necessidades e demandas que exigiam atenção por parte deles
próprios. Falando de Brandenburgo-Prússia, Hans’R osenberg diz que a burocracia
adquiriu um esprit de corps e desenvolveu um a força formidável suficiente para rem odeiar o
sistem a do governo à sua própria imagem. Restringiu a autoridade autocrática do m onarca.
Deixou de ser responsável perante o interesse dinástico. Conseguiu o controlada adm inistra
ção central e da ação política pública.
(Rosenberg 1958: víi-viii.)
Tabela 4.2 Gastos do estado em serviços sociais em relação ao PNB, 1900-1975 (%).
Ano* Áustria França Reino Unido Holanda Dinamarca “Alemanha”
Í900 0,7 1,0
1920 2,0 2,8 4,1 3,2 2,7 7,5
1940 2,3 5,1 5,3 4,4 4,8 11,1
I960 7,3 8,9 9,6 8,7 7,6 14,9
1975 10,8 9,2 15,0 17,2 24,6 20,8
* Dados aproximados.
Fome: Flora 1983: l, 348-49.
* Em francês no texto, “recrutamento maciço”: o chamamento de todos os homens válidos para a defe
sa do país. (N. do T.)
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0,5 a 0,9%: Dinamarca (0,6), Alemanha Ocidental (0,8), Itália (0,9), Holanda
(0,7), Noruega (0,9), Espanha (0,9), Reino Unido (0,6), Polônia (0,9), Romênia
(0,8), Áustria (0,7), Suécia (0,8);
1,0a 1,4%: Bélgica (1,1), França (1,0), Portugal (1,0),Tchecoslováquia (1,3),
Alemanha Oriental (1,0), Hungria (1,0), URSS (1,4), Albânia (1,4), Finlândia (1,1),
Iugoslávia (1,0);
1,5% ou mais: Grécia (2,0), Turquia (1,6), Bulgária (1,6).
Alguns estados essencialmente desmilitarizados têm agora menos de 0,5% de
sua população em armas, e alguns militarizados registram acima de 1,4%, mas a
maioria dos estados europeus estão situados no meio. Todos esses números - mesmo
os das beligerantes Grécia eTurquia-estão muito abaixo dos 8% de sua população
que a Suécia tinha em armas em seu apogeu até 1710. Além disso, com altas
proporções de suas populações fisicamente capazes já em atividade e baixas
proporções na agricultura, os estados europeus enfrentam agora severas limitações
ao número de soldados adicionais que podem mobilizar em tempo de guerra sem
necessidade de grandes reorientações em suas economias.
Nesse meio tempo, as atividades não-militares se estavam expandindo tão
depressa que, apesar do grande crescimento dos orçamentos da maioria dos estados,
a parcela destinada aos gastos militares diminuiu. Tomando os mesmos países de
antes, vamos encontrar tendências decrescentes na parcela do orçamento destinada
aos gastos militares mostrada na tabela 4.4. Em todo estado, a tendência a longo
prazo conduziu a uma proporção decrescente dos gastos na atividade militar.
Na verdade, eventualmente a renda nacional aumentou mais depressa do que
os gastos militares. Em 1984, a proporção do Produto Nacional Bruto destinada aos
gastos militares variou mais ou menos de acordo com o número de homens em
armas (Sivard 1988: 43-44):
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menos de 2%: Islândia (0,0), Luxemburgo (0,8), Romênia (1,4), Áustria (1,2),
Finlândia (1,5), Irlanda (1,8), Malta (0,9);
de 2 a 3,9%: Bélgica (3,1), Dinamarca (2,4), Alemanha Ocidental (3,3), Itália
(2,7), Holanda (3,2), Noruega (2,9), Portugal (3,5), Espanha (2,4), Hungria (2,2),
Polônia (2,5), Suécia (3,1), Suíça (2,2), Iugoslávia (3,7);
de 4 a 5,9%: França (4,1), Turquia (4,5), Reino Unido (5,4), Bulgária (4,0).
Tchecoslováquia (4,0), Alemanha Oriental (4,9), Albânia (4,4);
6% ou mais: Grécia (7,2), URSS (11,5).
A igualdade de forças entre os Estados Unidos e a URSS ajudou a criar essa
distribuição dos gastos. Em 1984, os Estados Unidos gastavam em atividade militar
6,4% de seu enorme PNB para equiparar-se aos 11,5% que a União Soviética sacava
de sua economia consideravelmente menor. Não obstante, na Europa a tendência
geral era de decréscimo: proporções menores da população em armas, parcelas
menores dos orçamentos do estado destinadas aos militares, porcentagens menores
da renda nacional gastas com soldados e armas. Essas mudanças foram uma
conseqüência da contenção organizacional dos militares e no final acabaram por
fortalecê-la. Em cada passo dado do patrimonialismo à corretagem, da corretagem
à nacionalização e da nacionalização à especialização, então, foram criadas novas
e significativas barreiras para limitar o poder autônomo dos militares.
Alguns desvios da seqüência idealizada confirmam a sua lógica. A Espanha e
Portugal fugiram do controle civil do governo mediante a drenagem de receitas
coloniais para uma parcela maior dos gastos militares, continuando a recrutar os
oficiais entre a aristocracia espanhola e os soldados entre as classes mais pobres e
mantendo os oficiais militares como representantes da coroa nas províncias e
colônias (Ballbé 1983: 25-36; Sales 1974, 1986). Todos esses fatores minimizaram
o tipo de negociação em torno dos meios de guerra com a população que em outros
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