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CONFÚCIO – “Os analectos” (fragmentos)1

Comentário introdutório:
Os Analectos de Confúcio não discutem problemas de forma sistemática, como se vê nos textos
da cultura ocidental contemporânea. Boa parte das obras clássicas chinesas são compilações de
máximas e ditos sapienciais. Dentro dessa tradição, os Analectos deram origem a um gênero literário
chamado “registro das tradições orais” [...], cujo conteúdo é apenas uma seleção de notas tomadas
pelos discípulos, reproduzindo o que disse o Mestre, e coligidas postumamente num volume. De
qualquer maneira, para tornar o texto mais acessível, procurou-se distinguir temas específicos em
cada um dos vinte capítulos, com base na anotação inicial de cada capítulo do comentário de Xing
Bing. Espera-se que isso possa tanto ajudar a situar cada passagem num contexto maior como
oferecer elementos para que se possa julgar a unidade da obra. O tema deste capítulo, “a porta para o
Caminho”, foi extraído de uma anotação de Zhu Xi. Aqui o modelo de cultivo moral de Confúcio é
apresentado em suas linhas gerais. Nessa tradição de pensamento, não existe contradição entre
moralidade individual e política; ao contrário, o exercício de funções públicas é a culminação de um
processo de aperfeiçoamento ético que passa tanto pela instrução formal quanto pela convivência
com pessoas de ideais comuns. Esse processo, chamado de “Estudo”, compreendia um currículo
formal de textos, mas sua essência era a transformação de atitudes e comportamentos do indivíduo,
centrada num conjunto de virtudes fundamentais.

1.1 O Mestre disse: “Aprender algo e depois poder praticá-lo com regularidade, isso não
é um contentamento? Se amigos vêm de lugares distantes, isso também não é uma
alegria? Se as pessoas não reconhecem [meu valor], e eu, apesar disso, não sinto rancor,
isso também não é [característica] do Homem Nobre?”.

Comentários:
Essa primeira passagem apresenta os grandes temas discutidos pelos Analectos. Os chineses
qualificam Confúcio como “pensador, estadista, educador”; nos Analectos, essas três dimensões
(filosofia, política, educação) aliam-se em torno de um tema fundamental: o “Estudo”. “Estudar”,
portanto, não significa busca de conhecimentos, mas um Dao, um Caminho, um método que pode
resolver, ao mesmo tempo, problemas morais, éticos e sociais e, assim, harmonizar as relações na
sociedade. Essa é a proposta de Confúcio e um resumo simplista do argumento dos Analectos.
O primeiro grande tema, talvez o tema central deste livro, é mesmo “Estudar”, que tem
conotações bastante diferentes das que são dadas ao termo em português. Em chinês clássico,

1Este documento apresenta alguns excertos da obra:


CONFÚCIO. Os analectos. Tradução, introdução, comentários e notas de Giorgio Sinedino. São Paulo: Folha de S. Paulo,
2015. 560 p. (Coleção Folha grandes nomes do pensamento).
aprender e estudar correspondem ao mesmo ideograma (學, xue). Tanto o processo (estudar) como
seu resultado (aprender) estão unidos num único termo, o que significa que aquilo que se estuda deve
necessariamente ter uma utilidade definida, e isso só pode ser atingido por meio de uma prática
regular. “Estudar” tem como fim criar hábitos e disciplinas de vida. Daí que o modelo confuciano
exige a existência de um mestre e sua centralidade no processo de aprendizagem. Na prática,
“Estudar” requer que o discípulo tome o mestre como modelo e inspire-se em suas palavras e atitudes.
Zhu Xi diz, de forma contundente, que aprender significa imitar. Em outras palavras, esse processo
envolve não apenas repetição e memorização de textos, mas também um constante escrutínio moral
entre mestre e discípulo. Embora em teoria essa proposta seja fascinante, na prática sempre é difícil
preservar a criatividade, a liberdade de expressão e, por vezes, até o próprio ideal de aperfeiçoamento
moral.
O segundo tema evocado por essa passagem é a amizade. O que é amizade? Em chinês clássico,
“amigo é aquele com quem se têm ideais comuns”. Os chineses antigos diziam que as coisas que
possuem a mesma natureza permanecem juntas, donde se percebe que a amizade tinha uma
dimensão moral muito clara. Há uma série de palavras em chinês antigo que permitem distinguir os
“conhecidos” dos “amigos” e os “amigos” dos “amigos de verdade”. Essa primeira passagem emprega
um dos termos mais poderosos do chinês antigo para amigo: duas pessoas de naturezas similares,
lado a lado (o ideograma 朋, peng, é composto pelo desenho de duas luas). Algumas interpretações
dessa passagem indicam a possibilidade de que os amigos vêm de longe para discutir o Caminho,
fazer-se conhecer, criar comunidades ou escolas de pensamento. Eis a natureza ideal de uma das mais
importantes relações sociais no confucianismo: a amizade.
O terceiro e último tema abordado é o do Homem Nobre (tradução que adotamos para 君子,
junzi), modelo de perfeição para os que se dedicam ao Caminho do Estudo (no sentido confuciano),
aos quais nos referiremos por “Estudiosos” ( 學 者 , xuezhe). A perfeição do Homem Nobre é
eminentemente moral, mas existe certa dualidade na origem do termo que contamina o que deveria
ter um sentido puramente moral. Tanto a palavra chinesa quanto a tradução adotada aqui
reproduzem essa dualidade: “nobreza” tem uma dimensão ética e, ao mesmo tempo, social. Assim, o
Homem Nobre de Confúcio transita pelos dois campos da perfeição moral e da nobreza de sangue, o
que é compreensível, já que a sociedade da época de Confúcio era aristocrática e assim permaneceu
até a transição da dinastia Tang para a Song. Contudo, o que até certo ponto é revolucionário aqui é a
tentativa de Confúcio de postular uma filosofia que tenta adotar a expressão “Homem Nobre” numa
dimensão precipuamente moral, situada acima do sentido social.
Outro aspecto desse terceiro tema é como fazer prevalecer o modelo moral do Homem Nobre.
Se, para o desenvolvimento moral do indivíduo, Estudar basta, no plano coletivo é necessário criar
instituições para acolher essa nova elite ética que Confúcio se propunha educar. Assim como os
representantes das outras escolas de pensamento da época, Confúcio procurou uma solução de
acomodação para o problema da maneira mais autenticamente chinesa: a nova elite de estudiosos
deveria assumir a administração pública, na condição de assessora das aristocracias regentes.
Naturalmente, isso criava um sério problema: o Homem Nobre de Confúcio deveria ser reconhecido
como tal por seus iguais e superiores e ter oportunidade de mostrar suas aptidões num cargo público.
Isso dependia, assim, do aval dos detentores do poder político, que não necessariamente reconheciam
(ou poderiam reconhecer) os valores propalados pela escola do Mestre. De certo modo, essa
dependência do poder constituído influenciou o destino da proposta confuciana de governo. Vê-se,
passagem a passagem, como a proposta de criação de uma burocracia ética e moral lutou contra esse
paradoxo. Mas o que se nota desde já é que a angústia natural de não ser reconhecido levava, em
última instância, ao questionamento do próprio sentido de Estudar. Portanto, o confucianismo
enquanto doutrina ética funda-se numa série de contradições, como entre o individual e o coletivo,
entre o espiritual e o material, entre o ideal e o possível. A respeito das opções feitas pela tradução, é
preciso destacar os ideogramas 悅 (yue) e 樂 (le), vertidos nessa primeira passagem para
“contentamento” e “alegria”. Em chinês, os dois substantivos relacionam-se de modo que
“contentamento” é a alegria que se sente para si, enquanto “alegria” é a manifestação desse
contentamento para os outros. Isso tem sentido na medida em que o confucianismo não advoga uma
pura disciplina social: ele envolve também o aperfeiçoamento psicológico do indivíduo. Um dos
pontos mais marcantes dessa doutrina é a sutileza das intuições a respeito da natureza moral do
indivíduo, sem ignorar sua profundidade psicológica.

2.11 O Mestre disse: "Ao relembrarmos o que aprendemos no passado, conseguimos


intuir coisas novas e podemos [assim] nos tornar mestres".

Comentários:
Nessa passagem, Confúcio propõe um critério para julgar a capacidade de alguém de se tornar
um mestre. Mas, para isso, pressupõe que se tenham não apenas conhecimentos amplos, como
também uma boa memória. O mais importante, contudo, é que esse conhecimento seja um
conhecimento “vivo”, isto é, que propicie a compreensão de novas coisas a respeito da realidade. É
preciso lembrar que o conhecimento em questão não é puramente formal, como normalmente é
concebido. Se para muitos o conhecimento é uma informação ou um conjunto de dados, para
Confúcio ele é instrumental, voltado para a prática, destinado a ajudar o indivíduo a se situar no
mundo e a tornar decisões no dia a dia. Há boas razões para se fazer essa leitura. Em primeiro lugar,
um dos significados originais do ideograma 溫 (wen), traduzido aqui por “relembrar”, é “morno”;
metaforicamente, “relembrar” ou revisar o que se aprendeu implica “reaquecê-lo” na memória, isto é,
praticá-lo. Em segundo lugar, a prática do que se aprendeu no passado — literalmente, “de coisas
velhas” (故, gu) — deve levar ao conhecimento de coisas novas.
Mas que tipo de conhecimento é esse?
O ideograma 知 (zhi), que significa saber, conhecer, foi traduzido aqui por “intuir” para tentar
explicar a diferença entre as tradições chinesa e ocidental de pensamento. Enquanto o pensamento
ocidental se baseia na teoria do silogismo e na dialética para investigar o mundo, o pensamento
oriental assenta-se na arte da intuição e da síntese. Portanto, nessa passagem, é preciso ter cuidado
para não interpretar apressadamente a intenção de Confúcio como um convite à descoberta
intelectual do mundo. A reflexão do Mestre está contida num sistema de verdades preestabelecidas,
fixadas em cânones, como se disse anteriormente. Zhu Xi diz que o objetivo do Estudo não é
simplesmente decorar o que se ouve do Mestre, mas “tê-lo no coração”. “Tendo-o no coração”, sabe-se
como reagir às situações e os ensinamentos tornam-se vivos.

2.15 O Mestre disse: “Estudar sem pensar, isso leva a incertezas. Pensar sem Estudar,
isso leva a riscos”.

Comentários:
Essa é mais uma passagem que discorre sobre os fundamentos da Arte de Governo. Ela remete
ao comentário de Zuo, citado no início deste capítulo: “Estudar [primeiro], para depois entrar nos
assuntos políticos”. Como se disse, o objetivo do Estudo é o aperfeiçoamento moral e a capacitação
para uma carreira pública. Mas quando o discípulo está pronto para deixar a casa do mestre e
ingressar na vida pública? Quando se torna autônomo, ou seja, quando é capaz de julgar por si
mesmo e tomar as decisões corretas. Confúcio explica aqui o que é atingir autonomia no processo
educativo. Esse é mais ou menos o significado da palavra chinesa que foi traduzida por “pedagogia”
(教學法, jiaoxuefa).
Nessa passagem, a autonomia é descrita como uma relação dinâmica entre Estudar (學, xue) e
pensar ( 想 , si). Estudar significa decorar textos, aprender a interpretá-los da maneira correta e
praticar esse conhecimento sob a orientação do mestre; pensar significa considerar os casos concretos
e tomar decisões.
Para Zhu Xi, pensar é “buscar algo no coração”, isto é, pensar não se resume a um exercício de
pura racionalidade, de adequação entre meios e fins ou de custo e benefício. Na visão chinesa, razão e
emoção não se contrapõem formalmente; ao contrário, o pensamento é considerado um tipo de
emoção. Na medicina chinesa, o corpo humano é visto como resultado da harmonia entre cinco
órgãos: fígado, coração, baço, pulmões e rins. Além de funções vitais, esses órgãos têm funções
psicológicas, também divididas em cinco: coragem (fígado), alegria (coração), pensamento (baço),
tristeza (pulmões) e pavor (rins). Isso significa que, em que pese a evidência da medicina chinesa, os
chineses não concebem o raciocínio e a racionalidade como uma função suprema, mas como o
primeiro entre iguais, ainda que ocupem o centro moderador do edifício humano. Fisiologicamente,
não há dualidade entre cérebro e coração. A influência budista reforçou a ideia de que o coração é o
centro das funções intelectuais e, ao mesmo tempo, o palco das emoções e da vida sentimental.
Mêncio falava de “quatro brotos” (四端,siduan), isto é, quatro emoções humanas fundamentais que
poderiam ser cultivadas até amadurecerem corno as quatro virtudes cardinais.
Nessa passagem, Confúcio mostra que tanto o conhecimento da tradição adquirido por
intermédio de um mestre quanto a capacidade de agir com base em sentimentos e intuições a respeito
dessa tradição seriam imprescindíveis, em tese, para se tornar um Homem Nobre e exercer uma
função pública. Sem essa capacidade de agir, o indivíduo afunda em incertezas, mesmo que tenha um
bom conhecimento da tradição e siga os conselhos do mestre. Falta-lhe a subjetividade que pode ser
desenvolvida ao se pensar autonomamente. Em sentido oposto, sem conhecimento da tradição, o
Homem Nobre corre perigo, ainda que possua profunda intuição e sensibilidade. Falta-lhe a
objetividade que o Estudo pode oferecer.
E se for necessário escolher entre Estudar e pensar? Uma leitura sistemática dos Analectos
mostrará que Confúcio prezava o Estudo acima de tudo, o que relativiza o sentido desta passagem.
Em 15.30 o Mestre apresenta-se como exemplo numa situação em que o livre pensar não conseguiu
resolver suas dúvidas, aconselhando então resumir-se ao Estudo e cultivo da tradição.

2.17 O Mestre disse: “You! Não lhe ensinei [o que significa] saber algo? Se você sabe,
então sabe; se você não sabe, então não sabe. Nisso consiste o saber”.

Comentários
O texto ensina como se comportar em relação ao saber. Conhecer as próprias limitações é
fundamental. O sentido dessa passagem pode ser entendido de duas perspectivas. Na primeira,
Confúcio fala de um de seus discípulos mais corajosos e leais, You (Zilu). Nove anos mais novo que
Confúcio e de origens humildes, You foi guarda-costas do Mestre no longo período de catorze anos
que Confúcio deixou Lu para procurar uma posição em outros países. É sabido que pessoas corajosas
tendem a exceder seus limites, ainda mais alguém impulsivo e rude como You. Aqui, o saber a que se
refere o Mestre pode ser tanto o saber algo (teórico) como o saber agir (prático). Confúcio chama a
atenção de You e exorta-o a corrigir seus defeitos. Mas essa passagem tem também um sentido mais
geral. Na Arte de Governo, uma das habilidades mais importantes é saber dar bom uso ao talento das
pessoas. Mas isso só é possível quando se sabe conhecer os próprios limites e reconhecer seus erros.

5.27 O Mestre disse: “Num pequeno vilarejo de dez famílias, certamente haverá
pessoas leais e confiáveis como Qiu, mas não haverá quem goste tanto de estudar
quanto ele”.

Comentários:
Confúcio fala de Qiu, isto é, ele próprio. Os chineses tinham o hábito de se referir a si mesmos
pelo nome para demonstrar humildade. Vê-se por essa passagem que Confúcio não se considerava
uma pessoa de virtudes incomuns, ao contrário, diz que a lealdade e a confiabilidade podem ser
encontradas mesmo em uma minúscula vila, entre pessoas consideradas em geral incultas e
socialmente inferiores. Pode-se deduzir disso que a visão confuciana da Natureza Humana é positiva
e otimista. Em passagens anteriores, já se disse que a virtude não é privilégio de poucos. Todavia, a
parte final dessa passagem deixa claro que ser naturalmente virtuoso não torna mais fácil o Caminho
do sábio. Os shi se diferenciam das pessoas comuns justamente porque se dedicam ao Estudo.
O Estudo é condição imprescindível para aperfeiçoar o homem. Podem-se seguir duas vias de
interpretação nessa passagem. A primeira faz coro à leitura tradicional e insiste que Confúcio era um
sábio, um modelo de ação na comunidade, por isso todos devem se esforçar para seguir seu Caminho
(Dao). O Estudo ajuda a compreender a Natureza Humana. Por exemplo, os camponeses de bom
coração não se dão conta dos diversos tipos de pessoa que existem no mundo, não entendem a
complexa relação entre interesses pessoais e coletivos que os governantes têm de enfrentar. Pessoas
socialmente inferiores não entendem a tradição nem o significado histórico dos valores morais que
praticam. O homem bom é simplesmente um homem bom, ao passo que o homem sábio serve às
pessoas e pode ordenar a sociedade. O homem sábio simboliza um ideal de perfeição.
A segunda via de interpretação dessa passagem leva em consideração o contexto de
desigualdades sociais da China antiga. Há poucas razões para acreditar que o Caminho do Sábio
defendido pelo confucionismo estivesse ao alcance de um público amplo. Ele exigia dedicação e uma
série de atividade intelectuais que não estava nem poderia estar à disposição da sociedade. Por outro
lado, as peculiaridades da relação entre mestre e discípulo, assim como o tipo de inserção social que o
Estudo proporcionava, talvez impossibilitassem o autocultivo independente, como já se pôde
perceber, fora da guerra entre escolas ou sem o patrocínio da elite.

6.19 O Mestre disse: “Com pessoas [com capacidade de compreensão de níveis] médio
e superior, pode-se falar [em nível] alto. Com pessoas [com capacidade de
compreensão] abaixo da média, não se pode falar [em nível] alto”.

Comentários:
Confúcio é considerado o primeiro educador da China, o primeiro professor particular a
oferecer seus serviços à comunidade em geral, sem distinção classe ou origem. Nesse sentido, os
Analectos fazem uma série de registros a respeito da concepção pedagógica e da metodologia do
Mestre. Nessa passagem, Confúcio explica como o professor deve conversar com seus alunos. Em
uma passagem anterior, já se viu que, para ele, o professor deve transmitir seus conhecimentos de
acordo com as peculiaridades do aluno. Aqui, ele é mais direto e diz que as pessoas têm graus
diferentes de compreensão. O professor deve adequar o ensino ao nível de compreensão do aluno,
aprofundando-o à medida que o aluno evolui.
6.25 O Mestre disse: “O Homem Nobre estuda amplamente as Tradições Escritas e
sintetiza-as nos Ritos. [Dessa forma,] não infringirá [o Caminho dos Sábios da
Antiguidade]”.

Comentários:
Confúcio reforça aqui mais um importante binômio de sua doutrina: a relação entre as

“Tradições Escritas” (文, wen) e os “Ritos” (禮, li). A palavra tem um significado amplo, como texto,

documento e mesmo cultura, 文化, wenhua). Isso mostra a grande importância da tradição textual na
cultura chinesa, é claro, mas também exige que os textos sejam vistos como algo vivo. No
entendimento chinês, os textos, embora não mudem — sua forma é idealmente inviolável —, estão
sempre revelando uma nova realidade. Na perspectiva do ru, eles incorporam a verdade, não uma
verdade que possa ser qualificada como revelação religiosa, mas como um tipo de verdade “natural”.
Nos clássicos chineses, a ideia de deuses ou espíritos é importante, mas não é o principal para
explicar o mundo; os textos, ao contrário, revestem-se de uma autoridade inquestionável. Confúcio
argumenta que esse tipo de conhecimento, que não conhece fronteiras nem limites, não deve se opor
à realidade da vida social. Por isso, ele convida as pessoas a adequar o que estudam à prática Ritos.
Essa é uma leitura conservadora, mas coerente. É preciso lembrar que, para os chineses, a contenção
dos conflitos e a promoção da Ordem e da estabilidade social são o que há de mais importante. O
confucianismo contribuiu para isso com um ideal de educação capaz de comprovar que existem
fundamentos históricos, raciais e morais para a defesa e a manutenção dessa Ordem, afirmando um
caminho dos homens sábios que se confunde com o dos Reis Sábios.

7.2 O Mestre disse: “Em silêncio memorizar [o que se aprendeu], estudar sem se cansar,
guiar as pessoas sem se fatigar. Qual dessas [três características] possuo em mim?”.

Comentários:
Essa passagem explica o que Confúcio considera um bom mestre. São três suas características:
boa memória, avidez pelos estudos, dedicação à orientação moral e intelectual dos discípulos. A
pergunta ressalta que essas três características não são adquiridas para todo o sempre. Confúcio, ao
se perguntar qual das três características possui em si, quer mostrar que é necessário um esforço
contínuo para preservá-las. Não basta que se tenha tido uma boa memória na juventude ou que se
tenha aplicado nos estudos antes de se casar ou se preocupado em orientar as pessoas antes de mudar
de emprego. A leitura que se faz aqui é que esses três compromissos são para toda a vida e devem ser
renovados dia a dia.
Segundo a explicação ortodoxa de Zhu Xi, Confúcio está sendo modesto quando se pergunta se
possui uma dessas três características. Para o pensador chinês, elas não são coisas exclusivas dos
Homens Sábios, mesmo pessoas comuns podem tê-las. A modéstia de Confúcio seria um
encorajamento para pessoas menos privilegiadas.

7.6 O Mestre disse: “Aspirar ao Caminho [dos Sábios da Antiguidade], manter-se na


virtude, adequar-se à Humanidade, passear pelas Artes”.

Comentários:
Essa passagem dá mais algumas instruções sobre o modo correto de se conduzir no estudo, isto
é, o processo de autoaperfeiçoamento moral defendido pelos confucianos. A máxima é composta de
quatro elementos: Caminho, virtude, Humanidade e Artes. Esses quatro elementos estão dispostos
em ordem decrescente de profundidade. As Artes são, portanto, o que há de mais tangível nessa
passagem.
Como se viu anteriormente, as Seis Artes estabelecidas no currículo confuciano (Ritos, Música,
arco e flecha, condução de carruagem, escrita e contagem) são as disciplinas indispensáveis para a
qualificação de um shi a um público, de serviço a algum nobre. Nessa passagem, o que Confúcio quer
dizer é que, qualquer que seja a profissão (“arte” é um conhecimento especializado), deve ser exercida
na perspectiva cada vez mais abrangente da Humanidade, da virtude e do Caminho.
Na sociedade da época de Confúcio, as carreiras especializadas também eram vistas como um
meio de ganhar a vida. Em geral, as carreiras não tinham (e não têm) outra finalidade além dos
benefícios diretos que se obtinham pelo trabalho. Mas Confúcio não via as coisas desse modo. Para
ele, o trabalho e o estudo, qualquer que seja, devem ser postos numa perspectiva de realização do
Caminho. O primeiro passo para isso é fazer o trabalho ou o estudo responderem à humanidade. Zhu
Xi diz que, desse modo, por menores sejam, as coisas não se perdem e repercutem positivamente para
o crescimento individual. Em outras palavras, quando trabalha ou estuda contemplando a
humanidade, o indivíduo se coloca acima de seus interesses privados. É isso que Zhu Xi quer dizer
com a frase: “Conservar-se na Humanidade é fazer uso constante da força da virtude, de modo que
nossos desejos materiais não se fazem presentes”.
No modo de pensar de Confúcio, a ambição, o proselitismo, a bajulação e tantos outros
problemas que se veem no dia a dia não fazem sentido para quem deseja se tornar um Homem Nobre.
A Humanidade ancora-se num poder maior, que é a virtude. Zhu Xi reforça que a Humanidade é o
“esgotamento de nossos desejos egoístas e a plenitude das virtudes do coração”. A passagem da
Humanidade para a virtude pode ser descrita como um salto do bem construído individualmente para
o bom que existe na natureza humana. Virtude é o poder de transformar a si mesmo e conter as
paixões para beneficiar as outras pessoas.
O estudo confuciano é um estudo “para dentro” e não “para fora”. Seu objetivo principal é
transformar a moralidade em algo mais do que uma simples norma de convívio social. Isso é possível?
Confúcio diz que, para isso, é preciso “aspirar ao Caminho [dos sábios da Antiguidade]”. O sábio é o
ideal de perfeição humana do confucianismo: sem perder sua condição de mortal, ele conseguiu
atingir um profundo entendimento da plenitude da natureza humana, que, para os confucianos, é a
bondade (人性本善, renxing weishan). Ela pode ser descrita como uma norma de conduta humana, já
que impõe deveres concretos conforme a posição que se ocupa na sociedade. Por isso, Zhu Xi, ao
comentar o sentido de “Caminho”, diz que é “aquilo que deve ser cumprido pelas pessoas nas
obrigações do dia a dia, prescrito conforme o tipo de relação interpessoal que se mantém”.
Para concluir, uma nota sobre a tradução. “Passear” foi o termo que se adotou para o
ideograma 遊 (you) nessa passagem. Textos chineses de várias épocas costumam empregar
expressões como “brincar com as palavras”, “jogar com o sentido” etc., que, de certo modo, têm o
mesmo tom jocoso e lúdico de “passear pelas artes”. Isso chama a atenção dos que estão acostumados
à tradição de pensamento ocidental, em que esse tipo de linguagem não é adequado em passagens de
tamanha importância. Não se tem aqui uma explicação madura para essa atitude, mas presume-se
que, de certa maneira, os chineses têm uma relação diferente com o trabalho intelectual. Talvez os ru
nem sequer admitissem a ideia de “trabalho intelectual”, por mais sérios e dedicados que fossem. Em
seus comentários, Zhu Xi explica que “‘passear pelas artes’ significa brincar com as coisas para ajustar
as emoções”. Essa explicação realça o tipo de relação — eventual, temporária — que se mantém com
as coisas. Assim, quem reflete sobre o sentido dos Clássicos talvez não consiga alcançar a totalidade
de sua significação e apenas “brinque” com suas diferentes possibilidades, não se comprometendo
com uma alternativa em particular.

7.7 O Mestre disse: “Aquelas pessoas que me deram uma trouxinha de carne-seca ou
mais, nunca deixei de ensiná-las”.

Comentários:
Confúcio notabilizou-se por ter sido o primeiro professor a oferecer seus serviços
“privadamente” na China. E essa passagem mostra que ele não exigia altas remunerações. Vale a pena,
então, examinar o papel de Confúcio na história da educação chinesa.
A julgar pelos Registros dos Ritos ( 禮 記 , liji), desde tempos imemoriais havia “escolas
públicas” em Tudo sob o Céu, sobretudo para crianças nobres, mas também para os filhos mais
brilhantes dos camponeses. Naturalmente, o sistema de ensino não se parecia em nada com o que se
conhece hoje: crianças e adolescentes estudavam juntos e os conteúdos não eram ministrados de uma
forma sistemática. Na China antiga, as escolas eram voltadas para a vida comunitária; não havia uma
noção clara de conhecimento fatual nem um projeto de investigação intelectual como o que se
desenvolveu na Grécia antiga, muitas vezes à margem da sociedade.
Confúcio fundou seu projeto pedagógico sobre esses princípios, mas também reforçou o papel
da escola como formadora e padronizadora de caráteres. Sua originalidade foi ter realizado esse
projeto fora do eixo da sociedade aristocrática, com base numa ideologia capaz de unificar
culturalmente o país. Por esse motivo, alguns chineses apresentam Confúcio como o promotor do
ensino universal. Na verdade, ele foi originalmente o prógono de uma escola de pensamento que
formou uma classe de indivíduos com uma visão particular sobre o aperfeiçoamento pessoal e o
governo da coletividade. Durante muito tempo, esses indivíduos — os ru — não conseguiram produzir
um movimento social que desse corpo político à supremacia que tinham na vida social. Nos mais de
setecentos anos que separam as dinastias Wei, Jin e os Reinos do Norte e do Sul das Cinco Dinastias
(séculos III a X), o pensamento confuciano foi submetido às ideologias da corte, em especial o
taoismo e o budismo. Somente a partir da dinastia Song, quando os exames de acesso às carreiras
públicas se expandiram, os ru ganharam representatividade e legitimidade para serem os porta-vozes
da cultura chinesa. Portanto, considerando-se o longo desenvolvimento do confucionismo, o Mestre
conseguiu que o mérito individual dos alunos fosse reconhecido, independentemente de sua origem
social, mas não foi ele quem criou o ensino universal e gratuito.
Na China, a relação entre professor e aluno é também uma relação de subordinação. A
remuneração do professor não o obriga a ensinar, assim como não dá ao aluno o direito de exigir que
ele o ensine. Essa remuneração é uma obrigação ritual, não uma taxa contratual. O professor espera
que o aluno esteja a sua disposição para servi-lo, conforme a necessidade. Isso é inconcebível para as
culturas ocidentais, mas na China parece ser uma longa tradição. Era comum que Confúcio fosse
servido por seus discípulos, mesmo em assuntos do dia a dia: ele os enviava em longas viagens ao
exterior, entregava-lhes a administração de seus bens etc. Isso tinha uma função de treinamento
moral: exigia humildade e devoção dos discípulos e preparava-os para o serviço público, segundo os
moldes chineses.

7.8 Mestre disse: “Se [o discípulo] não se confunde, [o mestre] não deve lhe dar pistas;
se não gagueja, não deve lhe completar as palavras; se [o mestre] diz [qual é] um canto
[do quadrado] e [o discípulo] não responde com [os outros] três, então não [lhe] ensina
coisas novas”.

Comentários:
O ensino confuciano pressupõe um intercâmbio constante entre mestre e discípulo. Trata-se de
uma relação absolutamente pessoal e familiar. Nessa passagem, Confúcio explica como orientar os
discípulos, possivelmente durante a recitação de um texto. Afirma que é necessário lhes dar liberdade
e certa margem de autonomia. E dá três exemplos, concernentes às três etapas do processo de
recitação e discussão dos textos. Em primeiro lugar, o mestre provoca o discípulo com uma questão e
este deve responder, normalmente recitando um texto de memória. Confúcio diz que o discípulo deve
ter tempo para pensar e, no processo de escolha da resposta, o mestre não deve lhe dar dicas. Em
segundo lugar, enquanto o discípulo estiver recitando o texto, o mestre só deve auxiliá-lo se a
recitação não for fluida. Mesmo que o aluno recite lentamente, deve prosseguir, sem interferência do
mestre. Uma vez concluída a recitação, chegamos a um terceiro momento. Se o discípulo não for
capaz de deduzir o todo com base na parte indicada pelo mestre, este não perde tempo lhe ensinando
coisas novas. Se no Ocidente os estudantes são ensinados a analisar, na China antiga são estimulados
a desenvolver sua capacidade de intuir. O professor lança perguntas para avaliar se o aluno é capaz de
interpretar os textos clássicos para usá-los em circunstâncias concretas. Já no Ocidente as
preocupações são mais claramente teóricas. Isso também se evidencia na metáfora do quadrado que
Confúcio emprega aqui. Os quatro ângulos do quadrado representam a completude de algo a ser
intuído. Ao discutir o sentido do texto recitado, o Mestre oferece apenas um ângulo, uma pista. O
aluno deve ser capaz de encontrar o sentido da passagem, de descrever os outros três lados.

7.17 [Entre] aquilo de que o Mestre fala frequentemente, há os Poemas, há os


Documentos, há a prática dos Ritos, tudo isso é do que [o Mestre] fala frequentemente.

Comentários:
Essa passagem pode ser lida em conexão com a anterior [7.16]. Sabe-se que o currículo
confuciano previa o estudo formal dos Clássicos. Na passagem anterior, o Mestre acentuou a
importância do estudo do Clássico das mutações até o fim da vida, já que só as pessoas com longos
anos de dedicação a sua pesquisa e prática podem chegar perto de compreendê-lo. Dessa vez, os
discípulos dizem que Confúcio falava com frequência de três outros Clássicos: os Poemas, os
Documentos e os Ritos. Segundo Zhu Xi, cada um desses textos tinha propósitos morais específicos:
os Poemas serviam para adequar a natureza e as emoções de cada um; os Documentos eram
empregados para ordenar os atos políticos e os Ritos prestavam-se a solenizar as regras de
comportamento. Note-se que, dos três, apenas os Ritos são acompanhados do substantivo “prática”.
Isso porque exigem, além da leitura e da memorização, um tipo de atividade física.
Nessa passagem, a tradução do ideograma 雅 (ya) é problemática. Em chinês, ya significa
correto, padrão, refinado, constante. Aqui, ele aparece como 雅言 (yayan), que era a língua oficial na
época, o dialeto empregado em Zhou. Isso dá a entender que Confúcio a usava para ensinar os
Clássicos, mas não é certo que 所雅言 (suoyayan) possa ser traduzida por “usando a língua comum”.
O sentido da frase se perderia nesse caso. A sugestão de Zhu Xi, “fala frequentemente”, parece ser a
mais adequada.

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