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Resumo: O presente artigo analisa as normas existentes para a regulação dos con-
flitos de interesses entre a entidade gestora e os participantes do fundo de capital de
risco e alguns mecanismos previstos para o alinhamento desses interesses, debru-
çando-se sobre a possibilidade de transposição, para os gestores dos fundos de capi-
tal de risco, da business judgement rule aplicável aos administradores das sociedades
anónimas, da qual poderá resultar o afastamento, no caso concreto, da responsabi-
lidade da entidade gestora em ação de responsabilidade civil que lhe seja movida
pelos participantes do fundo.
Devido às características da relação fiduciária entre a entidade gestora e os parti-
cipantes do fundo de capital de risco e dos tipos de interesses em conflito nessa
relação, bem como do conteúdo dos deveres previstos na lei para a entidade gestora
na sua atividade de gestão do fundo, existe uma aproximação, na gestão dos fundos
de capital de risco, à relação fiduciária subjacente à gestão das sociedades anónimas,
que poderá servir de base, quando as circunstâncias do caso concreto o justifiquem,
a uma aplicação analógica da business judgement rule à atividade de gestão dos fundos
de capital de risco, permitindo aos administradores da entidade gestora afastar a
responsabilidade desta provando o fundo foi gerido de acordo com elevados níveis
de zelo, honestidade, diligência e de aptidão profissional.
Abstract: This article analyses the existing rules for the regulation of conflicts of
interest between the managing entity and the participants of a venture capital fund
and some mechanisms established for the alignment of such interests, focusing on
the possibility of transposition, for the managers of venture capital funds, of the
business judgement rule applicable to the directors of limited liability companies
(“sociedades anónimas”), which might result, in some cases, in the exclusion of the
liability of the managing entity in a civil liability action which is brought against it
by the participants of the fund.
Due to the features of the fiduciary relationship between the managing entity and
the participants of a venture capital fund and the interests in conflict in such rela-
tionship, as well as to the content of the duties established by law for the managing
entity in its activity of management of the venture capital fund, there is proximity,
in the management of venture capital funds, to fiduciary relationship in which
management of limited liability companies (“sociedades anónimas”) is based on,
which might serve as basis to an application by analogy of the business judgement
rule to the activity of management of venture capital funds, allowing the directors
of the managing entity to exclude the liability of such entity by proving that the
fund was managed according to high levels of effort, honesty, diligence and pro-
fessional ability.
1
Pedro Pais de Vasconcelos, ”O acionista de capital de risco – dever de gestão”, II Congresso
DSR, Coimbra, 2012, 157-170.
empresa ou numa start-up em fase de crescimento (early stage) com vista à sua
instalação no mercado4.
O mercado das fusões e aquisições português assistiu, desde 2014, a um
aumento do investimento por parte dos fundos de capital de risco, que se apre-
sentaram como uma alternativa interessante ao financiamento bancário (o qual
traz associado o efeito de alavancagem). De acordo com o Relatório Anual
da Atividade de Capital de Risco elaborado pela Comissão do Mercado de
Valores Mobiliários (doravante, “CMVM”)5 para o ano de 2016, que tem
por base a informação reportada à CMVM até à data de 20.07.2017, a atividade
de venture capital cresceu, com referência a esta data, para 4,4 biliões de euros a
nível europeu, tendo ativos sob gestão do setor do capital de risco em Portugal
atingido 4,6 mil milhões de euros. Manteve-se, assim, a tendência de cresci-
mento verificada em anos anteriores6, tendo esta evolução ficado a dever-se
essencialmente ao crescimento do valor direcionado para outros ativos afetos
ao investimento em capital de risco (posições sobre derivados e outros ativos).
Os setores mais relevantes do ponto de vista do investimento em capital de
risco foram, para além do setor das sociedades gestoras de participações sociais
em empresas não financeiras, os setores da indústria transformadora e o setor
imobiliário – em resultado da dinâmica recente do mercado imobiliário em
Portugal. O mesmo relatório realça que a atividade de venture capital continuou,
à semelhança do que aconteceu em anos anteriores, a ter menor relevância face
à de private equity, “ganhando as fases de management buyout e turnaround maior
relevo nos últimos anos (em detrimento das fases de expansão e de capital de
substituição)”7.
4 Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, 2015, Almedina, Coimbra, p.69, e
Paulo Cateano, Capital de Risco, 2013, Almedina, Coimbra, 14-17.
5
Relatório Anual da Atividade de Capital de Risco da CMVM, 2016, disponível para consulta em
http://www.cmvm.pt/pt/EstatisticasEstudosEPublicacoes/Publicacoes/CapitaldeRisco/
Documents/RAC_2016.pdf
6
Desde o ano de 2014, que assinalou a saída da Troika de Portugal, a economia portuguesa
demonstrou sinais de evolução, tendo o mercado de fusões e aquisições e o mercado de venture
capital e private equity acompanhado esta tendência. Para esta evolução foi crucial o dinamismo
da Portugal Capital Ventures e atividade dos fundos de reestruturação geridos pelos principais
gestores de venture capital e private equity em Portugal. Vide Tomás Pessanha e Manuel Liberal
Jerónimo, The Private Equity Review, Fourth Edition, Law Business Reasearch Ltd, 2015, Londres
(Capítulo sobre Portugal), pp. 411-422
7 O maior recurso por parte das empresas portuguesas ao fi nanciamento através do capital de
risco justifica-se, por um lado, pelo aumento do número de investidores em capital de risco a
atuar no mercado nacional – beneficiando de um enquadramento legislativo e fiscal favorável – e,
por outro lado, pela mudança de mentalidade das empresas portuguesas, que deixaram de ver os
investidores de capital de risco como oportunistas que pretendiam apenas aproveitar-se dos lucros
da empresa, para passarem a vê-los como parceiros de negócio, que contribuem para a empresa
com o seu know-how, as suas redes de contactos e os seus conhecimentos de gestão e marketing.
8 Cfr. artigo 1.º RJCR. Vide Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 2016,
Almedina, Coimbra, pp. 845-854 e Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance,
cit., pp. 80-82.
9 Ao abrigo do artigo 11.º, n.º 1, do RJCR.
10 Cfr. artigo 11.º, n.º s 2 e 3 do RJCR. As sociedades de capital de risco eram qualificadas como
sociedades financeiras à luz da versão originária do Regime Geral das Instituições de Crédito
e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro. Esta
qualificação foi abandonada através da alteração a esse diploma, introduzida pelo Decreto-Lei n.º
319/2002, de 28 de Dezembro, por ter sido considerado que implicava um sobrepeso excessivo
no regime jurídico do capital de risco. Sobre esta matéria, vide Paulo Câmara, Manual de Direito
dos Valores Mobiliários, cit., p. 852.
11 Cfr. artigo 17.º, n.º 2, do RJCR.
12 Vide Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 2016, Almedina, Coimbra, p. 852.
21
Aplica-se-lhes, portanto, o regime geral dos valores mobiliários, contido no Código dos Valores
Mobiliários. Vide Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, cit., p. 851. Cfr., também,
o artigo 1.º, alínea c) do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-lei n.º 486/99,
de 13 de novembro e republicado pela Lei n.º 35/2018, de 20 de julho (doravante, “CVM”).
22 Cfr. artigo 17.º, n.º 2, do RJCR.
23 Através de sociedade à qual esteja ligada por uma gestão ou controlo comuns, ou por uma
25
Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, cit., p. 23.
que seria prejudicial para os resultados a longo prazo, tanto para as sociedades
como para os investidores”26.
O papel que os investidores fundos de investimento (organismos de inves-
timento coletivo) e os fundos de capital de risco têm vindo a desempenhar no
mercado de financiamento societário fez, também, com que fossem repensados
os tipos de conflitos existentes no seio destas, sendo que os desafios que se
colocam ao nível do governo das sociedades são diferentes para os fundos de
investimento e para os fundos de capital de risco.
Relativamente aos fundos de investimento, estes são “suscetíveis de se assu-
mirem como atores fundamentais na promoção de retornos para os acionistas na lógica da
stewardship”27, podendo, atento o peso das participações sociais por eles detidas,
desempenhar um importante papel no governo dessas sociedades no que diz
respeito à estratégia da sociedade a longo prazo.
Em contraste, os fundos de capital de risco têm uma lógica de atuação
diferente: são investidores profissionais que baseiam a sua atuação numa lógica
de curto/médio prazo, procurando a rápida valorização das suas participações
sociais e preocupando-se com o desempenho do mercado de capitais em geral
e da sua carteira de ativos, pelo que os seus interesses entrarão, muitas vezes, em
conflito com os restantes acionistas da sociedade investida28.
Verificam-se mudanças no tipo de conflitos existentes nas sociedades em
que estes fundos investem, uma vez que estes exercerão o seu direito de voto
no sentido mais favorável ao mercado e ao desempenho da respetiva carteira de
ativos. Por outro lado, detendo os fundos de capital de risco participações em
muitas sociedades, estes não terão tantos incentivos para se preocuparem com a
gestão da sociedade a longo prazo e para se informarem sobre a melhor forma
de exercerem o seu direito de voto numa lógica de longo prazo, uma que, se a
sociedade não lhes permitir ter bons retornos do investimento, alienarão a sua
participação social – em caso de descontentamento, verifica-se o exit e não o
voice. Nesta medida, não se ignoram as semelhanças entre a atuação de alguns
fundos de capital de risco e os hedge funds.
Por outro lado, é importante realçar que os fundos de capital de risco
desempenham um importante papel no financiamento de sociedades em fase
inicial (startups), sendo esse investimento, como o próprio nome indica, um
investimento de risco, dada a fase de arranque em que a empresa se encontra.
Como contrapartida desse investimento, os fundos de capital de risco recebem
26
Cfr. Considerando (14) da Diretiva dos Acionistas.
27
Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, cit., p. 68.
28 Sobre este tipo de confl itos, vide Pedro Pais de Vasconcelos, ”O acionista de capital de risco
uma participação social, que traz muitas vezes direitos especiais associados, tais
como ações preferenciais e o direito de designar membros do órgão de admi-
nistração. Estes investidores passam, assim, a ter controlo sobre a administração
da sociedade em que investem, o que reduz os custos de agência entre o fundo
de capital de risco e os administradores da sociedade investida, mas aumenta
os conflitos de interesses entre o fundo de capital de risco e os restantes sócios
dessa sociedade29.
Para além dos conflitos de interesses que se verificam no seio das socieda-
des nas quais os fundos de investimento e os fundos de capital de risco inves-
tem, a atuação deste tipo de investidores levanta, ainda, problemas ao nível dos
conflitos de interesses dentro da sua própria estrutura organizacional. Um dos
principais problemas se colocam quanto ao governo destes fundos é problema
do distanciamento entre os participantes do fundo e a entidade gestora e o risco
da prossecução, por parte desta, dos seus interesses estratégicos, ou de entidades
com ela relacionadas, em detrimento dos interesses financeiros dos participantes
do fundo, que visam a maximização do seu investimento 30.
Este segundo tipo de desalinhamento de interesses, que será aprofundado
no presente estudo, está relacionado com o facto de existir, entre a entidade
gestora e os participantes do fundo, uma relação fiduciária, que se reconduz ao
tradicional problema de separação entre propriedade (ownership) e gestão (mana-
gement), estudado pela teoria da agência (agency). A agency theory, originária do
direito anglo-saxónico, pretende explicar a dicotomia estabelecida nas socie-
dades comercias entre a posição dos sócios – denominados por principais – os
quais são os titulares de participações no capital social da sociedade e, portanto,
os seus proprietários, e a posição dos titulares dos órgãos de administração –
denominados por agentes – os quais são gerentes profissionais que administram a
atividade exercida pela sociedade. Desta dicotomia decorrem alguns problemas,
relacionados com a assimetria informativa entre sócios e gerentes ou adminis-
tradores das sociedades e com a dificuldade de monitorização, pelos primeiros,
da atuação dos últimos, o que constitui um incentivo a comportamentos opor-
tunistas por parte destes – existe um risco moral (moral hazard), resultante do
facto de os sócios serem incapazes de assegurar que os gerentes ou administra-
dores cumprem integralmente e corretamente a prestação a que se obrigaram.
Estes problemas são designados por problemas de agência ou custos de agência.
29
Jesse M. Fried e Mira Ganor, “Agency Costs of Venture Capitalist Control in Startups”,
New York Univesity Law Review, Vol. 81, número 3, junho de 2006, disponível para consulta em:
http://www.nyulawreview.org/sites/default/files/pdf/NYULawReview-81-3-Fried-Ganor.pdf .
30 Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, cit., p.64 e 68-69.
31 Sobre os confl itos de interesses entre a entidade gestora e os participantes nos organismos de
investimento coletivo, vide artigos 15.º, 52.º, n.º 1, alínea a), 72.º-A, n.º 1, alínea e), 79.º-G, alínea
e), 88.º-A, a 88.º-D, 89.º, 89.º-A e 90.º, do RGOIC.
32 Cfr. Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, 2017, Almedina, Coimbra,
p. 72.
33 Cfr. Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, cit., 75-79.
34
Recorde-se que os fundos de investimento podem ser geridos por sociedade de capital de risco,
por uma sociedade de desenvolvimento regional ou por outra entidade legalmente habilitada a
gerir organismos de investimento alternativo fechados, nos termos do artigo 17.º, n.º 2, do RJCR.
35 Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, cit, p. 69.
36 Cfr. Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, cit, p. 71 e Hugo Moredo
Santos, “Um governo para os fundos de investimento”, in O governo das organizações. A vocação
universal do corporate governance, 2011, Almedina, Coimbra, p. 379.
37
Cfr. artigo 12.º, n.º 1, alínea a) da Diretiva 2011/61/UE do Parlamento Europeu e do Conselho
de 8 de junho de 2011, relativa aos gestores de fundos de investimento alternativos, que estabelece
que os Estados-Membros devem assegurar que os gestores de fundos de investimento alternativos
cumprem a todo o tempo o dever de agir com honestidade, com a devida competência e com
zelo, diligência e correção na condução das suas atividades. Nos termos do artigo 15.º, n.º 3,
alínea a), da mesma Diretiva, os gestores dos fundos de investimento alternativo deverão cumprir
regularmente o dever de devida diligência (due diligence), de forma apropriada e documentando-o,
nos investimentos efetuados em nome do fundo de investimento alternativo, de acordo com a
estratégia de investimento e com o perfi l de risco do mesmo. Cfr., ainda, os artigos 30.º a 36.º
do Regulamento Delegado (UE) N.º 231/2013 da Comissão de 19 de Dezembro de 2012 que
complementa a Diretiva 2011/61/UE do Parlamento Europeu e do Conselho no que diz respeito
às isenções, condições gerais de funcionamento, depositários, efeito de alavanca, transparência e
supervisão.
38
Cfr. artigo 63.º, n.º 1, a) do RJCR.
39
Cfr. Artigo 20.º, n.ºs 1 e 2 do RJCR.
40 Cfr. Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, cit, p. 71-72.
41
Discute-se na doutrina nacional e estrangeira (tendo este tema sido mais aprofundado pela
doutrina norte-americana) quais as vantagens e inconvenientes da componente fixa e da
componente variável da remuneração, e qual o esquema remuneratório que permite um melhor
alinhamento de interesses.
42 Como exceção a esta regra, cfr. o disposto no artigo 38.º, n.º 3, do RJCR.
43 Ao contrário do que acontece com os organismos de investimento coletivo abertos – cfr. artigos
44
Cfr. artigo 17.º, n.º 2, do RJCR. Vide p. 4 supra.
45
Cfr. Artigo 15.º, n.º 4, do RJCR.
46 Adotamos, neste ponto, a sistematização feita por Pedro Simões Coelho e Orlando Vogler
Guiné, quanto aos fundos de investimento fechados e alternativos em geral. Vide Pedro Simões
Coelho e Orlando Vogler Guiné, “Substituição da Entidade Gestora de Fundos de Investimento
Alternativos”, in Estudos de Advocacia em Homenagem a Vasco Vieira de Almeida, 2017, Almedina,
Coimbra, p. 116.
47 Cfr. artigos 87.º e ss. do CSC.
48 Vide, quanto aos fundos de investimento mobiliário abertos, Maria João Vaz Tomé, Aspetos
Financeiros e Civis dos Fundos de Investimento Mobiliário Abertos, in Direito dos Valores Mobiliários,
volume I, 1999, Coimbra Editora, 1999, p.58.
49
Um outro tipo contratual que se aproxima do tipo geral do contrato de mandato civil é o
contrato de gestão de carteiras, previsto no artigo 290.º, n.º 1, alínea c) do CVM. A gestão de
carteiras distingue-se da gestão de fundos de investimento por ser uma gestão de um conjunto
de ativos que não está institucionalizado (uma carteira), e por respeitar apenas valores mobiliários
e não de outros ativos. Vide Alexandre Brandão da Veiga, Fundos de Investimento Mobiliário e
Imobiliário. Regime Jurídico, cit., p. 558-559.
50 Pedro Simões Coelho e Orlando Vogler Guiné, “Substituição da Entidade Gestora de
Fundos de Investimento Alternativos”, cit. p. 116-121. Vide, ainda, Catarina Romão Pinho,
“Os fundos de investimento mobiliário no Direito Português: natureza jurídica e exercício do
direito de voto pela entidade gestora”, in Revista de Direito das Sociedades, IV, 1, 2012, Almedina,
Coimbra p. 129.
51 André Figueiredo, O negócio fiduciário perante terceiros – com aplicação especial na gestão de valores
seus frutos) para a esfera do fiduciante, de onde resulta que o fiduciário ficará
investido numa propriedade temporária, porque sujeita a um dever contratual
de transferir para a esfera do fiduciante os bens que integrem o acervo do
fiduciário52.
No caso dos fundos de capital de risco, os participantes atribuem à entidade
gestora poderes de gestão do fundo, a qual dispõe de uma margem de discricio-
nariedade nos atos jurídicos que pratica, devendo sempre pautar a sua atuação
pelos interesses dos participantes. Estamos, portanto, perante uma representa-
ção em nome e por conta de outrem, que se aproxima do mandato com pode-
res de representação53.
52 André Figueiredo, O negócio fiduciário perante terceiros – com aplicação especial na gestão de valores
vide André Figueiredo, O negócio fiduciário perante terceiros – com aplicação especial na gestão de valores
mobiliários, cit., pp. 76-78.
54 Cfr. artigos 17.º, n.º 4 e 18.º, n.º 1, do RJCR.
55 De acordo com o artigo 15.º, n.º 4, do RJCR, os fundos de capital de risco regem-se, além das
57
Alexnadre Brandão da Veiga, Fundos de Investimento Mobiliário e Imobiliário. Regime Jurídico,
1999, Almedina, Coimbra, pp. 57-65
58 Cfr. respetivamente, os artigos e 7.º, n.º 2, a) e 52.º, n.º 2, a) do RJCR.
60
Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.07.2014 (Proc. 841/13.9TVLSB.L1-7),
disponível para consulta em www.dgsi.pt.
61
Face à dificuldade em apurar os danos que poderão resultar da conduta da entidade gestora,
uma das soluções consiste na aplicação do artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, que determina
que o tribunal deverá recorrer a critérios de equidade. Esta solução foi apontada por Miguel Brito
Bastos na sessão com o tema “Regulamento de Gestão e Discricionariedade da Entidade Gestora”,
ministrada no I Curso Intensivo de Especialização em Fundos de Capital de Risco.
62 De acordo com João Calvão da Silva, esta bifurcação, operada pela reforma ao Código das
que lhe forem causados, ao abrigo de ação movida pelos sócios, nos termos do
artigo 77.º do CSC. O artigo 72.º, n.º 1, do CSC encerra uma presunção de
culpa63, o que significa que à sociedade bastará alegar e provar a ilicitude do
comportamento do administrador. No entanto, o n.º 2 artigo 72.º do CSC
prevê a exclusão da responsabilidade dos gerentes ou administradores para com
a sociedade, pelos danos que os seus atos ou omissões lhe causem, em violação
do dever de cuidado previsto no artigo 64.º, n.º 1, alínea b), no caso de estes
provarem que atuaram em termos informados, livres de qualquer interesse pes-
soal e seguindo critérios de racionalidade empresarial64. Faz-se, assim, inverter
o ónus da prova que de outra forma sobre eles recairia, por estar em causa uma
responsabilidade civil de natureza contratual – em virtude da relação contratual
(fiduciária) existente entre os gerentes ou administradores e os sócios da socie-
dade por eles gerida.
O artigo 72.º, n.º 2, do CSC, transpôs a business judgement rule, de origem
americana65, que consiste numa presunção legal relativa de que as decisões de
gestão tomadas pelos gerentes e administradores são devidamente informadas,
tomadas de boa-fé e economicamente racionais, ou seja, de que as decisões
são tomadas pelos gerentes ou administradores na razoável convicção de estas
visarem o melhor interesse da sociedade. Gozando os gerentes e administrado-
res de uma margem de discricionariedade empresarial na tomada de decisões
de gestão, a bitola para avaliar o cumprimento do dever geral de cuidado é,
portanto, a do gestor criterioso e ordenado, sendo que a lei societária atribui
aos gerentes e administradores a possibilidade de afastar a sua responsabilidade
quando provem que agiram dentro do nível de diligência imposta pela business
judgement rule.
Coimbra Editora, Coimbra, n.º 3940, p. 33 e Alan Watson, Legal transplants. An approach to
comparative law, 2ª Edition, University Press of Virginia1993, Virginia, p.91.
63
Cfr. artigo 799.º do Código Civil.
64 Vide João Soares da Silva, “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades: os
Deveres Gerais e os Princípios da Corporate Governance”, in ROA, Almedina, Coimbra, ano 57,
II, Abril 1997, pp. 515 e 516, Pedro Pais de Vasconcelos, “Responsabilidade Civil dos Gestores
das Sociedades Comerciais”, in DSR, ano 1, volume 2, Março 2009, Almedina, Coimbra, 11-32,
Jorge Manuel Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Ramos, “Responsabilidade Civil de
Administradores e de Sócios Controladores” in IDET – Miscelâneas, 2004, n.º 3, Almedina, p. 13.
65 Manuel Carneiro da Frada, “A business judgement rule no quadro dos deveres gerais dos
66
Nomeadamente, João Calvão da Silva, “Corporate Governance – Responsabilidade Civil dos
Administradores não executivos, da Comissão de Auditoria e do Conselho Geral e de Supervisão”,
cit., pp. 51 e 52.
67 Vide, entre outros, Luís Brito Correia, Os Administradores de Sociedades Anónimas, Almedina,
Coimbra, 1993, p.600, Maria Elisabete Ramos, Responsabilidade Civil dos Administradores e
Directores de Sociedades Anónimas Perante os Credores Sociais in Stvdia Ivridica, n.º 67, 2002, Coimbra
Editora, Coimbra, p. 95, e Ricardo Costa,” Responsabilidade dos Administradores e Business
Judgment Rule “ in Reformas do Código das Sociedades Comerciais, IDET, 2007, Colóquios n.º 3,
Almedina, Coimbra, p.78.
68 João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 2002, Almedina,
Coimbra, p. 202.
idêntico aos deveres fiduciários previstos no artigo 64.º do CSC para os admi-
nistradores das sociedades anónimas.
Esta questão foi já alvo de atenção por parte da doutrina estrangeira, em
particular pela doutrina alemã69, e assume, como se poder ver, um enorme
interesse em caso de litígio entre os participantes ou o fundo de capital de risco
e a entidade gestora70.
A questão da aplicabilidade da business judgement rule aos administradores
da entidade gestora dos fundos de capital de risco tem, também, vindo a ser
discutida na doutrina e jurisprudência americanas (particularmente na juris-
prudência do Estado do Delaware, onde a business judgement rule foi criada),
sobretudo relativamente aos casos em que esses administradores são, ao mesmo
tempo, administradores da sociedade investida pelo fundo, designados por este
enquanto acionista71.
É possível afirmar que existem diversas semelhanças entre a gestão dos fun-
dos de capital de risco e a gestão das sociedades comerciais, em particular das
sociedades anónimas, quer devido à relação fiduciária existente entre os partici-
pantes do fundo de capital de risco e a entidade gestora do fundo, quer devido
à aproximação entre a posição dos participantes dos fundos de capital de risco e
a posição dos acionistas das sociedades anónimas, quer devido aos interesses em
conflito na gestão do fundo de capital de risco. Conforme foi já referido, nos
fundos de capital de risco os participantes atribuem à entidade gestora poderes
de gestão do fundo, que administrará o fundo em nome e no interesse dos
participantes, aproximando-se essa relação do mandato sem representação72.
Existe, portanto, entre e entidade gestora do fundo de capital de risco e os par-
ticipantes do fundo uma relação fiduciária, de confiança, característica dos casos
de cisão entre propriedade (ownership) e gestão (management) e em tudo idêntica
à relação existente entre os administradores da sociedade anónima e os sócios.
É também notória a proximidade entre a previsão dos deveres de gestão
previstos para as entidades gestoras dos fundos de capital de risco nos artigos
69
Remetemos, mais uma vez, para a sessão ministrada por Miguel Brito Bastos, com o tema
“Regulamento de Gestão e Discricionariedade da Entidade Gestora”, no âmbito do I Curso
Intensivo de Especialização em Fundos de Capital de Risco.
70 Os fundos de capital de risco não têm personalidade jurídica, mas têm personalidade judiciária
instauração de ações de responsabilidade civil pelos acionistas, vide Steven E. Bochner e Amy L.
Simmerman, “The venture capital board member’s survival guide: handling confl icts effectively
while wearing two hats”, Delaware Journal of Corporate Law, 2016, Vol. 41 número 1, disponível
para consulta em https://www.wsgr.com/publications/PDFSearch/survival-guide-2016.pdf.
72 Vide ponto 7.2. supra.
17.º, n.º 4 e 18.º, n.º 1, do RJCR, que visam a boa gestão do património do
fundo, e a previsão dos deveres de cuidado e de lealdade previstos para os
gerentes e administradores. O dever de lealdade dos gerentes e administrado-
res, previsto no artigo 64.º, n.º 1, alínea a) do CSC, estabelece que os gerentes
e administradores deverão visar, na sua atuação, o interesse social73, colocan-
do-o acima dos seus próprios interesses74. Aos gerentes e administradores cabe,
portanto, a prossecução do interesse da sociedade, o qual que deve prevalecer
sobre os seus interesses próprios75. No que toca à lealdade devida pelos gerentes
e administradores, ela decorre não só do princípio da boa-fé, mas também de
uma ideia de tutela da confiança – para muitos autores, a posição do adminis-
trador é uma posição de fiduciário da sociedade (Treühänder)76.Os gerentes e
administradores, deverão, portanto, evitar, nas suas decisões de gestão colo-
car-se em situações de conflito entre os seus interesses pessoais e o interesse
social (no-conflict rule). O dever de cuidado pressupõe a obrigação, por parte dos
gerentes e administradores, de exercer a gestão societária com a competência
técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções,
empregando para esse efeito “a diligência de um gestor criterioso e ordenado”.
73 Questão mais complexa é a de saber que interesses deverão ser prosseguidos pelos gerentes e
e culpa e o artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais”, in DSR, ano 1, volume 2, Outubro
2009, Almedina, Coimbra, p.64.
76 Em sentido contrário, João Calvão da Silva considera que a posição do administrador na sociedade
diverge da posição do trustee. Vide João Calvão da Silva, “Corporate Governance – Responsabilidade
Civil dos Administradores não executivos, da Comissão de Auditoria e do Conselho Geral e de
Supervisão”, cit., p. 53.
8. Conclusões
77
Não sendo as entidades gestoras dos fundos de capital de risco intermediários financeiros (cfr.
artigo 2.º, n.º 1, do RJCR), não podemos deixar de o disposto no artigo 149.º, n.º 1, alínea g),
do CVM, nos termos do qual, o intermediário financeiro poderá excluir a responsabilidade pela
desconformidade do conteúdo do prospeto se provar que agiu sem culpa.