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A gestão dos fundos de capital de risco – Conflitos

de interesses entre a entidade gestora e os participantes


DR.ª ANA NUNES TEIXEIRA

Sumário: 1. Considerações introdutórias – a relevância do investimento em capital de


risco no mercado português. 2. Estrutura e forma de investimento em capital de risco. 3. Os
novos problemas de agência (agency). 4. Os conflitos de interesses no capital de risco. 5. Os
conflitos de interesses entre a entidade gestora e os participantes do fundo de capital de risco.
6. Mecanismos de alinhamento de interesses; 7. A responsabilidade da entidade gestora pela
violação dos deveres de gestão: 7.1. A gestão dos fundos de capital de risco; 7.2.Os deveres
da entidade gestora; 7.2. Da aplicabilidade da business judgment rule às entidades gesto-
ras dos fundos de capital de risco. 8. Conclusões.

Resumo: O presente artigo analisa as normas existentes para a regulação dos con-
flitos de interesses entre a entidade gestora e os participantes do fundo de capital de
risco e alguns mecanismos previstos para o alinhamento desses interesses, debru-
çando-se sobre a possibilidade de transposição, para os gestores dos fundos de capi-
tal de risco, da business judgement rule aplicável aos administradores das sociedades
anónimas, da qual poderá resultar o afastamento, no caso concreto, da responsabi-
lidade da entidade gestora em ação de responsabilidade civil que lhe seja movida
pelos participantes do fundo.
Devido às características da relação fiduciária entre a entidade gestora e os parti-
cipantes do fundo de capital de risco e dos tipos de interesses em conflito nessa
relação, bem como do conteúdo dos deveres previstos na lei para a entidade gestora
na sua atividade de gestão do fundo, existe uma aproximação, na gestão dos fundos
de capital de risco, à relação fiduciária subjacente à gestão das sociedades anónimas,
que poderá servir de base, quando as circunstâncias do caso concreto o justifiquem,
a uma aplicação analógica da business judgement rule à atividade de gestão dos fundos
de capital de risco, permitindo aos administradores da entidade gestora afastar a
responsabilidade desta provando o fundo foi gerido de acordo com elevados níveis
de zelo, honestidade, diligência e de aptidão profissional.

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Abstract: This article analyses the existing rules for the regulation of conflicts of
interest between the managing entity and the participants of a venture capital fund
and some mechanisms established for the alignment of such interests, focusing on
the possibility of transposition, for the managers of venture capital funds, of the
business judgement rule applicable to the directors of limited liability companies
(“sociedades anónimas”), which might result, in some cases, in the exclusion of the
liability of the managing entity in a civil liability action which is brought against it
by the participants of the fund.
Due to the features of the fiduciary relationship between the managing entity and
the participants of a venture capital fund and the interests in conflict in such rela-
tionship, as well as to the content of the duties established by law for the managing
entity in its activity of management of the venture capital fund, there is proximity,
in the management of venture capital funds, to fiduciary relationship in which
management of limited liability companies (“sociedades anónimas”) is based on,
which might serve as basis to an application by analogy of the business judgement
rule to the activity of management of venture capital funds, allowing the directors
of the managing entity to exclude the liability of such entity by proving that the
fund was managed according to high levels of effort, honesty, diligence and pro-
fessional ability.

1. Considerações introdutórias – a relevância do investimento em


capital de risco no mercado português

O investimento em capital de risco traduz-se no conjunto de operações


que consistem na aquisição, por parte do investidor, por um período de tempo
limitado, de participações sociais na sociedade financiada, envolvendo um
apport ao nível da gestão e a assunção do risco da empresa financiada. Este inves-
timento tem em vista a valorização da sociedade financiada para a posterior
alienação das participações sociais do investidor, que virá a ser remunerado pelo
ganho da mais valia alcançada no desinvestimento1. Os traços característicos
do financiamento societário através do capital de risco são, por isso, o facto de
ser tendencialmente um investimento de curto prazo, que visa a valorização da
sociedade investida para a posterior venda das participações sociais adquiridas
com a uma mais-valia considerável e o facto de proporcionar à sociedade inves-
tida o acesso ao know-how e à rede de contactos do investidor.
Em Portugal, o investimento em capital de risco encontra-se plasmado
no Regime Jurídico do Capital de Risco, do Empreendedorismo Social e do

1
Pedro Pais de Vasconcelos, ”O acionista de capital de risco – dever de gestão”, II Congresso
DSR, Coimbra, 2012, 157-170.

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Investimento Especializado, aprovado pela Lei n.º 18/2015, de 4 de março, e


recentemente alterado pelo Decreto-Lei n.º 56/2018, de 9 de julho (doravante,
“Regime Jurídico do Capital de Risco” ou, abreviadamente, “RJCR”)2.
O artigo 3.º, n.º 1, do RJCR, define investimento em capital de risco
como “a aquisição de instrumentos de capital próprio e de instrumentos de
capital alheio em sociedades com elevado potencial de desenvolvimento, como
forma de beneficiar da respetiva valorização”. O investimento em capital de
risco é realizado através das operações identificadas no artigo 9.º, n.º 1, do
RJCR, nomeadamente as operações de investimento em instrumentos de capi-
tal próprio, valores mobiliários ou em direitos convertíveis, permutáveis ou
que confiram o direito à sua aquisição, as operações de investimento em instru-
mentos de capital alheio, incluindo em empréstimos e créditos, das sociedades
em que os organismos de investimento em capital de risco participem ou em
que se proponham participar, e as operações de investimento em instrumentos
híbridos das sociedades em que os organismos de investimento em capital de
risco participem ou em que se proponham participar3.
Dentro do conceito de capital de risco, distinguem-se duas realidades dis-
tintas: private equity – subscrição ou aquisição de participações sociais numa
empresa já instalada no mercado com vista à sua reestruturação – e venture
capital – subscrição ou aquisição de participações sociais numa pequena e média

2 O Decreto-Lei n.º 56/2018, de 9 de julho, que procedeu à primeira alteração ao Regime

Jurídico do Capital de Risco, do Empreendedorismo Social e do Investimento Especializado,


alterou também o Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo aprovado pela
Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro (doravante”RGOIC”), no contexto da transposição para
o direito nacional da Diretiva 2014/65/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de
maio de 2014, relativa aos mercados de instrumentos financeiros (DMIF II). Relativamente ao
RJCR, destaca-se a eliminação do limite temporal do investimento e a ampliação do âmbito dos
investimentos de empreendedorismo social a outras entidades além de sociedades. Salientam-se,
ainda, as modificações relativas ao regime de autorização dos fundos de investimento de longo
prazo da União Europeia com a designação «ELTIF» sob forma societária autogeridos. Finalmente,
procede-se à adaptação da ordem jurídica interna ao Regulamento (UE) 2017/1991, do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2017, que altera o Regulamento (UE) n.º 345/2013,
do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2013, relativo aos fundos europeus de
capital de risco (EuVECA) e o Regulamento (UE) n.º 346/2013, do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 17 de abril de 2013, relativo aos fundos europeus de empreendedorismo social
(EuSEF). A este respeito, veja-se, ainda, a Instrução da CMVM n.º 8/2016 aplicável aos Organismos
de Investimento em Capital de Risco relativa aos deveres de reporte de informação à CMVM para
efeitos de intercâmbio de informações relativas às potenciais consequências sistémicas da atividade
de gestão e comercialização de organismos de investimento alternativo.
3 Para a lista completa das operações autorizadas às sociedades de investimento em capital de risco

e aos investidores em capital de risco, cfr. Artigo 9.º, n.º 1, do RJCR.

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empresa ou numa start-up em fase de crescimento (early stage) com vista à sua
instalação no mercado4.
O mercado das fusões e aquisições português assistiu, desde 2014, a um
aumento do investimento por parte dos fundos de capital de risco, que se apre-
sentaram como uma alternativa interessante ao financiamento bancário (o qual
traz associado o efeito de alavancagem). De acordo com o Relatório Anual
da Atividade de Capital de Risco elaborado pela Comissão do Mercado de
Valores Mobiliários (doravante, “CMVM”)5 para o ano de 2016, que tem
por base a informação reportada à CMVM até à data de 20.07.2017, a atividade
de venture capital cresceu, com referência a esta data, para 4,4 biliões de euros a
nível europeu, tendo ativos sob gestão do setor do capital de risco em Portugal
atingido 4,6 mil milhões de euros. Manteve-se, assim, a tendência de cresci-
mento verificada em anos anteriores6, tendo esta evolução ficado a dever-se
essencialmente ao crescimento do valor direcionado para outros ativos afetos
ao investimento em capital de risco (posições sobre derivados e outros ativos).
Os setores mais relevantes do ponto de vista do investimento em capital de
risco foram, para além do setor das sociedades gestoras de participações sociais
em empresas não financeiras, os setores da indústria transformadora e o setor
imobiliário – em resultado da dinâmica recente do mercado imobiliário em
Portugal. O mesmo relatório realça que a atividade de venture capital continuou,
à semelhança do que aconteceu em anos anteriores, a ter menor relevância face
à de private equity, “ganhando as fases de management buyout e turnaround maior
relevo nos últimos anos (em detrimento das fases de expansão e de capital de
substituição)”7.

4 Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, 2015, Almedina, Coimbra, p.69, e
Paulo Cateano, Capital de Risco, 2013, Almedina, Coimbra, 14-17.
5
Relatório Anual da Atividade de Capital de Risco da CMVM, 2016, disponível para consulta em
http://www.cmvm.pt/pt/EstatisticasEstudosEPublicacoes/Publicacoes/CapitaldeRisco/
Documents/RAC_2016.pdf
6
Desde o ano de 2014, que assinalou a saída da Troika de Portugal, a economia portuguesa
demonstrou sinais de evolução, tendo o mercado de fusões e aquisições e o mercado de venture
capital e private equity acompanhado esta tendência. Para esta evolução foi crucial o dinamismo
da Portugal Capital Ventures e atividade dos fundos de reestruturação geridos pelos principais
gestores de venture capital e private equity em Portugal. Vide Tomás Pessanha e Manuel Liberal
Jerónimo, The Private Equity Review, Fourth Edition, Law Business Reasearch Ltd, 2015, Londres
(Capítulo sobre Portugal), pp. 411-422
7 O maior recurso por parte das empresas portuguesas ao fi nanciamento através do capital de

risco justifica-se, por um lado, pelo aumento do número de investidores em capital de risco a
atuar no mercado nacional – beneficiando de um enquadramento legislativo e fiscal favorável – e,
por outro lado, pela mudança de mentalidade das empresas portuguesas, que deixaram de ver os
investidores de capital de risco como oportunistas que pretendiam apenas aproveitar-se dos lucros

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A importância que os fundos de investimento, em geral, e de fundos de


capital de risco, assumem no financiamento de sociedades, a nível europeu e
nacional, trouxe novos desafios ao estudo do governo das organizações – por
um lado, no jogo de interesses dentro da estrutura das sociedades investidas e,
por outro lado, na própria estrutura de organização dos fundos.
É precisamente esta segunda dimensão que irá ser abordada ao longo do
presente estudo, pretendendo-se, num primeiro momento, identificar quais as
situações de conflitos de interesses que decorrem da divisão, dentro da estrutura
organizativa dos fundos de capital de risco, entre a propriedade (ownership) e a
gestão (management) do fundo e, num segundo momento, abordar a questão de
saber se e em que medida são transponíveis para este tipo de organizações as
soluções de alinhamento de interesses existentes para as sociedades comerciais.

2. Estrutura e forma de investimento em capital de risco

Não se pretendendo fazer uma análise extensiva, importa, antes de mais,


identificar alguns traços e conceitos do regime jurídico português do capital
de risco que poderão revelar-se úteis para a análise da matéria dos conflitos de
interesses.

a) Tipos de investidores em capital de risco

O RJCR admite como instituições de capital de risco as sociedades de


capital de risco, as sociedades gestoras de fundos de capital de risco (incluindo
os fundos europeus de capital de risco, designados «EuVECA», para os efeitos
previstos no Regulamento (UE) n.º 345/2013, do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 17 de abril), as sociedades de investimento em capital de risco, os
fundos de capital de risco e os investidores em capital de risco8.
As sociedades de capital de risco são sociedades comerciais constituídas
segundo o tipo de sociedades anónimas9. A sua firma deve obrigatoriamente
conter a expressão “Sociedade de Capital de Risco” ou a abreviatura “SCR” e

da empresa, para passarem a vê-los como parceiros de negócio, que contribuem para a empresa
com o seu know-how, as suas redes de contactos e os seus conhecimentos de gestão e marketing.
8 Cfr. artigo 1.º RJCR. Vide Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 2016,

Almedina, Coimbra, pp. 845-854 e Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance,
cit., pp. 80-82.
9 Ao abrigo do artigo 11.º, n.º 1, do RJCR.

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o seu capital social mínimo é de 125.000 euros, obrigatoriamente representado


por ações nominativas10. As sociedades de capital de risco podem investir em
capital de risco diretamente ou indiretamente, através da gestão de fundos de
capital de risco11.
Os investidores de capital de risco correspondem, sensivelmente, aos cha-
mados business angels12, ou seja, “investidores individuais de capital de risco,
que atuam movidos por razões financeiras, mas também pessoais”13. Os inves-
tidores de capital de risco assumem a forma de sociedades unipessoais por quo-
tas cujo sócio único é obrigatoriamente uma pessoa singular 14, devendo a sua
firma conter a expressão “Investidor em Capital de Risco” ou a abreviatura
“ICR”.
Os fundos de capital de risco são patrimónios autónomos, sem persona-
lidade jurídica, mas com personalidade judiciária, pertencentes ao conjunto
dos investidores titulares das respetivas unidades de participação (os partici-
pantes)15. Sendo organismos de investimento alternativo fechados16, os fundos
de capital de risco são um subtipo de fundos de investimento (organismos de
investimento coletivo)17, cujo capital é fixo, e com a especificidade de o inves-
timento ser realizado através de participações em sociedades, em vez de através
de valores mobiliários ou imobiliários18 Os fundos de capital de risco têm um
capital mínimo de subscrição de 1 milhão de euros19, sendo o seu património
representado por unidades de participação sem valor nominal 20. As unidades de
participação dos fundos de capital de risco são consideradas valores mobiliários,
sendo transmissíveis (artigo 22.º, n.º 3, do RJCR), agrupáveis em conjuntos
fungíveis, constituindo uma categoria (artigo 23.º, do RJCR) e assumem a

10 Cfr. artigo 11.º, n.º s 2 e 3 do RJCR. As sociedades de capital de risco eram qualificadas como

sociedades financeiras à luz da versão originária do Regime Geral das Instituições de Crédito
e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro. Esta
qualificação foi abandonada através da alteração a esse diploma, introduzida pelo Decreto-Lei n.º
319/2002, de 28 de Dezembro, por ter sido considerado que implicava um sobrepeso excessivo
no regime jurídico do capital de risco. Sobre esta matéria, vide Paulo Câmara, Manual de Direito
dos Valores Mobiliários, cit., p. 852.
11 Cfr. artigo 17.º, n.º 2, do RJCR.

12 Vide Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 2016, Almedina, Coimbra, p. 852.

13 Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, cit., p. 347.

14 Cfr. artigo 14.º, n.ºs 1 e 2, do RJCR.

15 Cfr. Artigo 15.º, n.º 1, do RJCR.

16 Cfr. Cfr. artigo 3.º, n.º 3, do RJCR.

17 Cfr. Artigo 2.º, n.º 1, aa), ii) do RGOIC.

18 Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, cit., p. 81.

19 Cfr. Artigo 21.º, n.º 1, do RJCR.

20 Cfr. Artigo 22.º, n.º 1, do RJCR.

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natureza nominativa (artigo 22.º do RJCR)21. O RJCR consagra, no artigo


15.º, o princípio da autonomia patrimonial dos fundos de capital de risco, numa
dupla vertente: (i) por um lado, o património do fundo não responde pelas
dívidas dos seus participantes, da entidade gestora, do depositário, da entidade
comercializadora ou de outros fundos; (ii) por outro lado, pelas dívidas do
fundo apenas responde o património do fundo. Sendo patrimónios autónomos
sem personalidade jurídica, os fundos de capital de risco são heterogeridos,
sendo a respetiva gestão feita por uma sociedade de capital de risco, por uma
sociedade de desenvolvimento regional ou por outra entidade legalmente habi-
litada a gerir organismos de investimento alternativo fechados22.

b) Regimes de investimento em capital de risco

O RJCR prevê dois regimes diferentes para a atividade de investimento em


capital de risco: o regime simplificado e o regime qualificado.
Aplica-se um regime simplificado quando os ativos sob a gestão dos fundos
de capital de risco ou das sociedades de capital de risco (direta ou indiretamen-
te)23 não excedamos seguintes limiares24:

(i) 100.000 euros, quando as carteiras incluam ativos adquiridos através do


recurso ao efeito de alavancagem (ou seja, quando a posição em risco
da carteira é aumentada, através de métodos tais como a contratação
de empréstimos em numerário ou em valores mobiliários, o recuso a
posições sobre derivados, entre outros);
(ii) 500.000 euros, quando as carteiras não incluam ativos adquiridos atra-
vés do recurso ao efeito de alavancagem e em relação às quais não
existam direitos de reembolso que possam ser exercidos durante um
período de cinco anos a contar da data do investimento.

O regime qualificado é aplicável à atividade de investimento em capital


de risco por parte das sociedades gestoras de fundos de capital de risco e das

21
Aplica-se-lhes, portanto, o regime geral dos valores mobiliários, contido no Código dos Valores
Mobiliários. Vide Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, cit., p. 851. Cfr., também,
o artigo 1.º, alínea c) do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-lei n.º 486/99,
de 13 de novembro e republicado pela Lei n.º 35/2018, de 20 de julho (doravante, “CVM”).
22 Cfr. artigo 17.º, n.º 2, do RJCR.

23 Através de sociedade à qual esteja ligada por uma gestão ou controlo comuns, ou por uma

participação direta ou indireta significativa. Cfr. artigo 17.º, n.º 7 do RJCR.


24 Cfr. artigo 6.º, n.º 2, do RJCR.

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sociedades de investimento em capital de risco, quando os dos ativos sob gestão


ultrapassem os limiares acima previstos.
Estes regimes distinguem-se pelo diferente nível de exigência no que
toca aos requisitos de constituição e funcionamento dos organismos por eles
abrangidos.

3. Os novos problemas de agência (agency)

O relevo dos investidores institucionais, em especial dos fundos de investi-


mento e dos fundos de capital de risco, no financiamento de sociedades, a nível
europeu e nacional, trouxe novos desafios aos modelos de tradicionais de ges-
tão societária. Assim, assinala-se, no estudo do governo das sociedades (corporate
governance), uma maior preocupação com o papel dos investidores profissionais
na gestão das sociedades nas quais investem, tendo sido desenvolvida a teoria
de promoção do envolvimento sustentável (engagement) e da responsabilidade
destes investidores na sociedade na qual investem – a stewardship theory O con-
ceito de stewardship reporta-se, portanto, ao conjunto de regras e princípios
que visam a maior responsabilidade dos investidores institucionais para com a
sociedade investida25. A Diretiva (UE) 2017/828 do Parlamento Europeu e do
Conselho de 17 de maio de 2017, que altera a Diretiva 2007/36/CE no que
se refere aos incentivos ao envolvimento dos acionistas a longo prazo (dora-
vante, “Diretiva dos Acionistas”), reconheceu a importância dos investido-
res profissionais e dos gestores de ativos no governo das sociedades europeias,
tendo dado um grande passo no sentido do engagement deste tipo de acionistas
no governo das sociedades em que investem: “Os investidores institucionais e
os gestores de ativos são frequentemente acionistas importantes de sociedades
cotadas na União e podem portanto desempenhar um papel importante no
governo das sociedades em causa, mas também, de um modo mais geral, no que
diz respeito à sua estratégia e ao seu desempenho a longo prazo. No entanto,
a experiência dos últimos anos mostrou que os investidores institucionais e os
gestores de ativos muitas vezes não se envolvem nas sociedades em que detêm
participações de capital, e há indícios de que os mercados de capitais exercem
frequentemente pressão sobre as sociedades para operarem a curto prazo, o que
pode pôr em risco o seu desempenho financeiro e não financeiro a longo prazo
e, entre outros efeitos negativos, pode conduzir a um nível de investimento
subotimizado, por exemplo, em termos de investigação e desenvolvimento, o

25
Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, cit., p. 23.

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que seria prejudicial para os resultados a longo prazo, tanto para as sociedades
como para os investidores”26.
O papel que os investidores fundos de investimento (organismos de inves-
timento coletivo) e os fundos de capital de risco têm vindo a desempenhar no
mercado de financiamento societário fez, também, com que fossem repensados
os tipos de conflitos existentes no seio destas, sendo que os desafios que se
colocam ao nível do governo das sociedades são diferentes para os fundos de
investimento e para os fundos de capital de risco.
Relativamente aos fundos de investimento, estes são “suscetíveis de se assu-
mirem como atores fundamentais na promoção de retornos para os acionistas na lógica da
stewardship”27, podendo, atento o peso das participações sociais por eles detidas,
desempenhar um importante papel no governo dessas sociedades no que diz
respeito à estratégia da sociedade a longo prazo.
Em contraste, os fundos de capital de risco têm uma lógica de atuação
diferente: são investidores profissionais que baseiam a sua atuação numa lógica
de curto/médio prazo, procurando a rápida valorização das suas participações
sociais e preocupando-se com o desempenho do mercado de capitais em geral
e da sua carteira de ativos, pelo que os seus interesses entrarão, muitas vezes, em
conflito com os restantes acionistas da sociedade investida28.
Verificam-se mudanças no tipo de conflitos existentes nas sociedades em
que estes fundos investem, uma vez que estes exercerão o seu direito de voto
no sentido mais favorável ao mercado e ao desempenho da respetiva carteira de
ativos. Por outro lado, detendo os fundos de capital de risco participações em
muitas sociedades, estes não terão tantos incentivos para se preocuparem com a
gestão da sociedade a longo prazo e para se informarem sobre a melhor forma
de exercerem o seu direito de voto numa lógica de longo prazo, uma que, se a
sociedade não lhes permitir ter bons retornos do investimento, alienarão a sua
participação social – em caso de descontentamento, verifica-se o exit e não o
voice. Nesta medida, não se ignoram as semelhanças entre a atuação de alguns
fundos de capital de risco e os hedge funds.
Por outro lado, é importante realçar que os fundos de capital de risco
desempenham um importante papel no financiamento de sociedades em fase
inicial (startups), sendo esse investimento, como o próprio nome indica, um
investimento de risco, dada a fase de arranque em que a empresa se encontra.
Como contrapartida desse investimento, os fundos de capital de risco recebem

26
Cfr. Considerando (14) da Diretiva dos Acionistas.
27
Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, cit., p. 68.
28 Sobre este tipo de confl itos, vide Pedro Pais de Vasconcelos, ”O acionista de capital de risco

– dever de gestão”, cit.,, 157-170.

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uma participação social, que traz muitas vezes direitos especiais associados, tais
como ações preferenciais e o direito de designar membros do órgão de admi-
nistração. Estes investidores passam, assim, a ter controlo sobre a administração
da sociedade em que investem, o que reduz os custos de agência entre o fundo
de capital de risco e os administradores da sociedade investida, mas aumenta
os conflitos de interesses entre o fundo de capital de risco e os restantes sócios
dessa sociedade29.
Para além dos conflitos de interesses que se verificam no seio das socieda-
des nas quais os fundos de investimento e os fundos de capital de risco inves-
tem, a atuação deste tipo de investidores levanta, ainda, problemas ao nível dos
conflitos de interesses dentro da sua própria estrutura organizacional. Um dos
principais problemas se colocam quanto ao governo destes fundos é problema
do distanciamento entre os participantes do fundo e a entidade gestora e o risco
da prossecução, por parte desta, dos seus interesses estratégicos, ou de entidades
com ela relacionadas, em detrimento dos interesses financeiros dos participantes
do fundo, que visam a maximização do seu investimento 30.
Este segundo tipo de desalinhamento de interesses, que será aprofundado
no presente estudo, está relacionado com o facto de existir, entre a entidade
gestora e os participantes do fundo, uma relação fiduciária, que se reconduz ao
tradicional problema de separação entre propriedade (ownership) e gestão (mana-
gement), estudado pela teoria da agência (agency). A agency theory, originária do
direito anglo-saxónico, pretende explicar a dicotomia estabelecida nas socie-
dades comercias entre a posição dos sócios – denominados por principais – os
quais são os titulares de participações no capital social da sociedade e, portanto,
os seus proprietários, e a posição dos titulares dos órgãos de administração –
denominados por agentes – os quais são gerentes profissionais que administram a
atividade exercida pela sociedade. Desta dicotomia decorrem alguns problemas,
relacionados com a assimetria informativa entre sócios e gerentes ou adminis-
tradores das sociedades e com a dificuldade de monitorização, pelos primeiros,
da atuação dos últimos, o que constitui um incentivo a comportamentos opor-
tunistas por parte destes – existe um risco moral (moral hazard), resultante do
facto de os sócios serem incapazes de assegurar que os gerentes ou administra-
dores cumprem integralmente e corretamente a prestação a que se obrigaram.
Estes problemas são designados por problemas de agência ou custos de agência.

29
Jesse M. Fried e Mira Ganor, “Agency Costs of Venture Capitalist Control in Startups”,
New York Univesity Law Review, Vol. 81, número 3, junho de 2006, disponível para consulta em:
http://www.nyulawreview.org/sites/default/files/pdf/NYULawReview-81-3-Fried-Ganor.pdf .
30 Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, cit., p.64 e 68-69.

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4. Os conflitos de interesses no capital de risco

No seio dos fundos de capital de risco, à semelhança do que acontece com


os organismos de investimento coletivo31, surgem problemas relacionados com
o equilíbrio de forças entre o fundo e os seus participantes, a entidade gestora
e a sociedade investida.
Importa, antes de mais, atentar que, no investimento em capital de risco,
nem todos os conflitos de interesses são necessariamente vistos como algo per-
nicioso: é, inclusivamente, defendido que se, em relação a determinado inves-
timento, os investidores em capital de risco não beneficiarem de um acesso pri-
vilegiado a determinadas informações ou de uma influência (“having an edge”),
relativamente a outros investidores, ao ponto de se encontrarem numa situação
de conflito de interesses, não terão interesse em investir. Importa, a este res-
peito, relembrar a máxima atribuída ao investidor em capital de risco ameri-
cano John Doerr : No conflict, no interest”32.
Adotando a esquematização feita por Ana Perestrelo de Oliveira33, pode-
mos delinear os seguintes principais tipos de conflitos de interesses no capital
de risco:
(i) Conflitos de interesses entre a entidade gestora, a sociedade investida
e os seus administradores;
(ii) Conflitos de interesses entre as várias empresas em que investe o
mesmo fundo de capital de risco;
(iii) Conflitos de interesses entre as várias empresas geridas pela mesma
entidade gestora, mas por intermédio de diferentes fundos;
(iv) Conflitos de interesses entre a entidade gestora e o fundador;
(v) Conflitos de interesses entre a entidade gestora entre outros investi-
dores/acionistas da sociedade investida;
(vi) Conflitos de interesses entre a entidade gestora (incluindo os seus
administradores, colaboradores e sócios) e os fundos por si geridos;
(vii) Conflitos de interesses entre a entidade gestora e os participantes no
fundo por si gerido;
(viii) Conflitos de interesses entre os fundos geridos pela mesma entidade
gestora.

31 Sobre os confl itos de interesses entre a entidade gestora e os participantes nos organismos de

investimento coletivo, vide artigos 15.º, 52.º, n.º 1, alínea a), 72.º-A, n.º 1, alínea e), 79.º-G, alínea
e), 88.º-A, a 88.º-D, 89.º, 89.º-A e 90.º, do RGOIC.
32 Cfr. Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, 2017, Almedina, Coimbra,

p. 72.
33 Cfr. Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, cit., 75-79.

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570 Ana Nunes Teixeira

Debruçar-nos-emos sobre o penúltimo tipo de conflitos de interesses iden-


tificado: os conflitos de interesses entre a entidade gestora e os participantes do
fundo por si gerido.

5. Os conflitos de interesses entre a entidade gestora e os participan-


tes do fundo de capital de risco

O estudo do governo dos fundos de capital de risco levanta diversos pro-


blemas, de entre os quais os conflitos de interesses entre a entidade gestora
(incluindo os seus sócios e os administradores)34 e os participantes do fundo.
Do distanciamento entre os participantes e a entidade gestora dos fundos
de capital de risco resultam problemas de alinhamento de interesses – custos de
agência – ligados ao risco de a entidade gestora prosseguir os seus próprios inte-
resses estratégicos (ou os interesses estratégicos de entidades com ela relaciona-
das)35 em detrimento dos interesses dos participantes. De facto, existirão casos
em que a entidade gestora terá uma tendência para adotar decisões de inves-
timento que façam aumentar a sua remuneração, não estando esse interesse
necessariamente alinhado com o interesse dos participantes na maximização
dos investimentos feitos no fundo. Acresce que é frequente a entidade gestora
estar integrada no mesmo grupo do depositário e da entidade comercializadora,
tendo incentivos para gerir o fundo nos seus interesses próprios e nos interesses
do grupo no qual se encontra inserida36.
O RJCR prevê a matéria dos conflitos de interesses no capital de risco nos
seus artigos 17.º, n.º 4, 18.º, 53.º, n.º 1, alíneas a), b) e d), e 54.º, recaindo a
obrigação de evitar ou gerir os conflitos de interesses sobre a entidade gestora.
Nos termos do artigo 17.º, n.º 4, “a entidade gestora, no exercício das suas
funções, atua por conta dos participantes de modo independente e no interesse
exclusivo destes, competindo-lhe praticar todos os atos e operações necessários
à boa administração do fundo de capital de risco, de acordo com elevados níveis
de zelo, honestidade, diligência e de aptidão profissional”.
Neste sentido, dispõe o artigo 18.º, quanto aos deveres das entidades ges-
toras dos fundos de capital de risco, que estas devem exercer a sua atividade no

34
Recorde-se que os fundos de investimento podem ser geridos por sociedade de capital de risco,
por uma sociedade de desenvolvimento regional ou por outra entidade legalmente habilitada a
gerir organismos de investimento alternativo fechados, nos termos do artigo 17.º, n.º 2, do RJCR.
35 Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, cit, p. 69.

36 Cfr. Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, cit, p. 71 e Hugo Moredo

Santos, “Um governo para os fundos de investimento”, in O governo das organizações. A vocação
universal do corporate governance, 2011, Almedina, Coimbra, p. 379.

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A gestão dos fundos de capital de risco – Conflitos de interesses entre a entidade… 571

sentido da proteção dos legítimos interesses dos titulares de unidades de par-


ticipação de fundos de capital de risco por si geridos, conferindo-lhes um tra-
tamento justo e equitativo. O mesmo artigo 18.º estabelece, no seu n.º 2, que
as entidades gestoras dos fundos de capital de risco devem abster-se de intervir
em negócios que gerem conflitos de interesses com os titulares das unidades de
participação dos fundos de capital de risco sob sua gestão.
Por outro lado, o n.º 1, do artigo 53.º prevê para as sociedades gestoras
dos fundos de capital de risco a obrigação de cumprirem, a todo o tempo, os
deveres de agir com honestidade, com a devida competência e com zelo, dili-
gência e correção na condução das suas atividades [alínea a)]; agir em defesa
dos melhores interesses dos participantes e dos organismos de investimento em
capital de risco por si geridos e da integridade do mercado [alínea b)]; e tomar
todas as medidas razoáveis para evitar conflitos de interesses e, caso estes não
possam ser evitados, para identificar, gerir e acompanhar e, se for caso disso,
divulgar tais conflitos de interesses, a fim de evitar que estes afetem negativa-
mente os interesses dos organismos de investimento em capital de risco e dos
participantes, bem como para assegurar que os organismos de investimento em
capital de risco por si geridos recebam um tratamento justo [alínea d)]. Assim,
os conflitos de interesses deverão ser evitados ou, na impossibilidade de serem
evitados, deverão ser mitigados pela entidade gestora.
A disciplina dos conflitos de interesses no regime jurídico do capital de
risco é sistematizada pelo artigo 54.º.
De acordo com este preceito, as sociedades gestoras de fundos de capital de
risco e as sociedades de investimento em capital de risco deverão tomar todas
as medidas razoáveis para identificar a possível ocorrência de conflitos de inte-
resses no decurso da gestão de organismos de investimento em capital de risco
ocorridos:

a) Entre a própria sociedade, incluindo os seus membros dos órgãos de


administração, colaboradores e pessoas singulares ou coletivas que
tenham uma relação de controlo direta ou indireta com eles, por um
lado, e o organismo por si gerido ou os participantes neste, por outro;
b) Entre o organismo de investimento em capital de risco por si gerido ou
os respetivos participantes, por um lado, e outro organismo de investi-
mento em capital de risco ou os respetivos participantes, por outro;
c) Entre o organismo de investimento em capital de risco por si gerido ou
os respetivos participantes, por um lado, e outro cliente da sociedade,
por outro; ou
d) Entre dois clientes da sociedade.

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572 Ana Nunes Teixeira

As sociedades gestoras de fundos de capital de risco e as sociedades de


investimento em capital de risco deverão, ainda, manter e aplicar mecanis-
mos organizativos e procedimentos eficazes, com vista a identificar, prevenir,
gerir e acompanhar conflitos de interesses que prejudiquem os interesses dos
organismos de investimento em capital de risco por si geridos e dos respetivos
participantes.
Adicionalmente, o artigo 54.º exige às sociedades gestoras de fundos de
capital de risco e as sociedades de investimento em capital de risco a manuten-
ção de uma separação, no contexto do seu funcionamento próprio, entre as
funções e responsabilidades que possam ser consideradas incompatíveis entre si
ou que possam gerar conflitos de interesses sistemáticos, bem como a avaliação
se as suas condições de funcionamento podem implicar quaisquer outros con-
flitos de interesses significativos e divulgar esses eventuais conflitos aos partici-
pantes dos organismos de investimento em capital de risco.
Caso as medidas de organização adotadas pelas sociedades gestoras de fun-
dos de capital de risco e sociedades de investimento em capital de risco para
identificar, prevenir, gerir e acompanhar os conflitos de interesses não forem
suficientes para assegurar, com um grau de certeza razoável, que os riscos de
os interesses dos participantes serem prejudicados foram afastados, estas socie-
dades deverão informar claramente os participantes, antes de efetuar qualquer
operação em seu nome, da natureza genérica e das fontes desses conflitos de
interesses, e colocarem em prática políticas e procedimentos adequados nesse
contexto.
Estas normas, que se encontram em linha com a Diretiva 2011/61/UE do
Parlamento Europeu e do Conselho de 8 de junho de 2011, relativa aos ges-
tores de fundos de investimento alternativos37, têm como fundamento último
a proteção dos investidores dos fundos de capital de risco e visam assegurar

37
Cfr. artigo 12.º, n.º 1, alínea a) da Diretiva 2011/61/UE do Parlamento Europeu e do Conselho
de 8 de junho de 2011, relativa aos gestores de fundos de investimento alternativos, que estabelece
que os Estados-Membros devem assegurar que os gestores de fundos de investimento alternativos
cumprem a todo o tempo o dever de agir com honestidade, com a devida competência e com
zelo, diligência e correção na condução das suas atividades. Nos termos do artigo 15.º, n.º 3,
alínea a), da mesma Diretiva, os gestores dos fundos de investimento alternativo deverão cumprir
regularmente o dever de devida diligência (due diligence), de forma apropriada e documentando-o,
nos investimentos efetuados em nome do fundo de investimento alternativo, de acordo com a
estratégia de investimento e com o perfi l de risco do mesmo. Cfr., ainda, os artigos 30.º a 36.º
do Regulamento Delegado (UE) N.º 231/2013 da Comissão de 19 de Dezembro de 2012 que
complementa a Diretiva 2011/61/UE do Parlamento Europeu e do Conselho no que diz respeito
às isenções, condições gerais de funcionamento, depositários, efeito de alavanca, transparência e
supervisão.

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A gestão dos fundos de capital de risco – Conflitos de interesses entre a entidade… 573

que as decisões de investimento são tomadas de forma esclarecida e evitar que


os investidores sejam expostos a riscos alheios à gestão profissional e diligente
dos montantes investidos, tais como a prossecução, pela entidade gestora, de
interesses próprios.
Apesar dos deveres de prestação de informação aos participantes previstos
no RJCR para a entidade gestora38, a atividade da entidade gestora não é
facilmente monitorizável pelos principais (participantes do fundo de capital de
risco): estes estarão alheados da gestão do fundo, terão menos conhecimentos
técnicos ao nível da gestão deste tipo de patrimónios e não conhecerão tão
bem o mercado onde o fundo investe. Note-se ainda, que os participantes não
poderão destituir a entidade gestora caso não estejam satisfeitos com a gestão
por ela exercida, e que mesmo a sua substituição não depende da iniciativa dos
participantes, mas sim de proposta apresentada pela própria entidade gestora
para a alteração do regulamento de gestão39.
Por outro lado, o regime legal constante do RJCR, apesar de conter regras
importantes, poderá revelar-se insuficiente, para, no caso concreto, prevenir e
solucionar problemas de agência e assegurar o bom governo do fundo de capi-
tal de risco ao serviço dos seus participantes.
Consideramos assim, aplicável a afirmação de Ana Perestrelo de Oliveira,
relativamente aos organismos de investimento coletivo40, aos fundos de capital
de risco “Não basta a exigência legal da atuação fiduciária do gestor e do depo-
sitário segundo critérios de independência e de prossecução dos interesses dos
participantes dos fundos. Este estado de coisas faz com que possam ser tomadas
decisões de investimento em função de interesses diferentes que não os do par-
ticipante do fundo”.

6. Mecanismos de alinhamento de interesses

Atentas as insuficiências que poderão resultar da aplicação do RJCR na


prevenção e solucionamento de problemas de agência na gestão dos fundos de
capital de risco, importa referir alguns mecanismos existentes para o alinha-
mento entre os interesses da entidade gestora e os interesses dos participantes
do fundo de capital de risco.

38
Cfr. artigo 63.º, n.º 1, a) do RJCR.
39
Cfr. Artigo 20.º, n.ºs 1 e 2 do RJCR.
40 Cfr. Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, cit, p. 71-72.

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574 Ana Nunes Teixeira

a) A remuneração da entidade gestora

A remuneração da entidade gestora dos fundos de capital de risco funciona


como um incentivo económico para o alinhamento dos interesses entre esta e
os participantes do fundo. Nos termos do artigo 33.º do RJCR, a remunera-
ção da entidade gestora pelos serviços de gestão do fundo de capital de risco
deve constar do regulamento de gestão, o qual deverá conter informação clara,
completa e transparente sobre as condições de cálculo e cobrança da mesma.
A remuneração da entidade gestora poderá ser composta por uma comissão de
gestão fixa e uma comissão de gestão variável dependente do desempenho do
fundo de capital de risco (carried interest)41.

b) A reputação da entidade gestora

Um importante incentivo não económico ao alinhamento de interesses nos


fundos de capital de risco é a proteção da reputação da entidade gestora. Sendo
os fundos de capital de risco organismos de investimento alternativo fechados,
a regra é a de que os participantes não poderão resgatar as suas unidades de par-
ticipação e reaver o seu investimento até ao final da duração do fundo42. Não
beneficiando os participantes do direito de sair do fundo (exit right)43, o seu
verdadeiro direito de oposição face à atuação da entidade gestora que pratica
uma má gestão do fundo consiste em não investir em outros fundos que esta
venha a gerir. A questão da reputação da entidade gestora, é, portanto, essencial
na abordagem dos conflitos de interesses existentes entre esta e os participantes
dos fundos por ela geridos – a entidade gestora terá interesse em fazer uma boa
gestão do fundo (visando a maximização dos investimentos dos participantes)
de forma a que os participantes invistam em outros fundos que esta venha a
gerir e que a recomendem para a gestão dos outros fundos, divulgando a sua
reputação no mercado.

41
Discute-se na doutrina nacional e estrangeira (tendo este tema sido mais aprofundado pela
doutrina norte-americana) quais as vantagens e inconvenientes da componente fixa e da
componente variável da remuneração, e qual o esquema remuneratório que permite um melhor
alinhamento de interesses.
42 Como exceção a esta regra, cfr. o disposto no artigo 38.º, n.º 3, do RJCR.

43 Ao contrário do que acontece com os organismos de investimento coletivo abertos – cfr. artigos

10.º, n.º 2 e 18.º do RGOIC.

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A gestão dos fundos de capital de risco – Conflitos de interesses entre a entidade… 575

7. A responsabilidade da entidade gestora pela violação dos deveres


de gestão

Tendo abordado o problema dos conflitos de interesses entre a entidade


gestora do fundo de capital de risco os participantes do fundo à luz das normas
do RJCR, bem como e alguns mecanismos existentes para o alinhamento des-
ses interesses, passamos, agora, à análise da possibilidade de responsabilização da
entidade gestora pela violação dos seus deveres na gestão do fundo de capital
de risco e, concretamente, da possibilidade, já aventada em outras jurisdições,
da aplicação da business judgement rule à atuação da entidade gestora, para efeitos
do afastamento dessa responsabilidade. Para tal, começaremos por fazer uma
análise da relação existente entre a entidade gestora e dos participantes do fundo
de capital de risco e dos deveres que impendem sobre a primeira no âmbito da
sua atividade de gestão do património do fundo.

7.1. A gestão dos fundos de capital de risco

Sendo os fundos de capital de risco patrimónios autónomos, a respetiva


gestão é assegurada por uma entidade gestora, que poderá ser uma sociedade de
capital de risco, uma sociedade de desenvolvimento regional ou outra entidade
legalmente habilitada a gerir organismos de investimento alternativo fechados
– a entidade gestora44. O RJCR dispõe, no seu artigo 2.º, n.º 1 que, não obs-
tante o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 293.º do Código dos Valores
Mobiliários, estas sociedades não são intermediários financeiros.
O funcionamento dos fundos de capital de risco rege-se pelas normas do
RJCR e do respetivo regulamento de gestão45. São, portanto, organismos de
investimento coletivo de natureza contratual.
Aquando da subscrição de unidades de participação de um fundo de capital
de risco, os participantes aceitam o submeter-se aos documentos constitutivos
do fundo, entre os quais o regulamento de gestão (nos termos do artigo 19.º,
n.º 2, do RJCR, “a subscrição ou a aquisição de unidades de participação do
fundo de capital de risco implica a sujeição ao respetivo regulamento de ges-
tão”). Através do ato de subscrição de unidades de participação, os participantes
conferem, também, à entidade gestora, os poderes necessários para realizar os
atos relativos à administração do fundo. Assim, a subscrição de unidades de par-
ticipação de um fundo de capital de risco tem duas consequências fundamen-

44
Cfr. artigo 17.º, n.º 2, do RJCR. Vide p. 4 supra.
45
Cfr. Artigo 15.º, n.º 4, do RJCR.

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576 Ana Nunes Teixeira

tais: (i) a aceitação, sem reservas, do disposto nos documentos constitutivos; e


(ii) a atribuição de poderes de gestão necessários à entidade gestora para gerir o
património do fundo, pertença dos participantes46.
Por seu turno, a entidade gestora obriga-se, nos termos do artigo 17.º, n.º
4, do RJCR a gerir o fundo por conta dos participantes, “de modo indepen-
dente e no interesse exclusivo destes, competindo-lhe praticar todos os atos
e operações necessários à boa administração do fundo de capital de risco, de
acordo com elevados níveis de zelo, honestidade, diligência e de aptidão pro-
fissional”. Acresce que o artigo 2.º, n.º 4, do RJCR estipula que as sociedades
encarregues da gestão dos fundos de capital de risco agem de modo indepen-
dente e no exclusivo interesse dos participantes.
Dentro da estrutura organizativa do fundo de capital de risco existe, por-
tanto, um jogo entre a autonomia da vontade (ou liberdade negocial) dos par-
ticipantes, que aceitam a conformação da sua relação com a entidade gestora
através do regulamento de gestão e a independência e autonomia da entidade
gestora na gestão do fundo.
Do exposto resulta, em primeiro lugar, que o vínculo entre os participantes
do fundo de capital de risco e a entidade gestora é um vínculo contratual, sendo
que, ao subscreverem (ou adquirirem) unidades de participação os participantes
atuam no domínio da sua liberdade contratual: ou aceitam submeter as suas
relações aos termos do regulamento de gestão, onde se encontra estabelecida a
política de investimento do fundo – ou não aceitam e então não subscrevem as
unidades de participação do fundo (lógica de “take it or leave it”). Nesta medida,
a posição dos participantes do fundo de capital de risco assemelha-se à do indi-
víduo que participa num aumento de capital de uma sociedade anónima47.
Para uns autores, o contrato entre a entidade gestora e os participantes de
um fundo de investimento é um contrato de administração (da perspetiva da
entidade gestora) ou de participação (da perspetiva dos participantes) de pendor
fiduciário, e não propriamente um contrato de mandato48.
No entanto, ao conferirem à entidade gestora a administração do patrimó-
nio fundo de capital de risco os participantes atribuem-lhe poderes fiduciários,

46 Adotamos, neste ponto, a sistematização feita por Pedro Simões Coelho e Orlando Vogler

Guiné, quanto aos fundos de investimento fechados e alternativos em geral. Vide Pedro Simões
Coelho e Orlando Vogler Guiné, “Substituição da Entidade Gestora de Fundos de Investimento
Alternativos”, in Estudos de Advocacia em Homenagem a Vasco Vieira de Almeida, 2017, Almedina,
Coimbra, p. 116.
47 Cfr. artigos 87.º e ss. do CSC.

48 Vide, quanto aos fundos de investimento mobiliário abertos, Maria João Vaz Tomé, Aspetos

Financeiros e Civis dos Fundos de Investimento Mobiliário Abertos, in Direito dos Valores Mobiliários,
volume I, 1999, Coimbra Editora, 1999, p.58.

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A gestão dos fundos de capital de risco – Conflitos de interesses entre a entidade… 577

podendo esta relação ser aproximada à figura do mandato civil, definido no


artigo 1157.º do Código Civil como o contrato pelo qual uma das partes se
obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta de outra. De facto, para
parte da doutrina, este é a figura da qual mais se aproxima a gestão de um fundo
de investimento49.
Contudo, esta recondução será sempre uma recondução cum grano salis,
uma vez que existem traços característicos da gestão de um fundo de inves-
timento que não se enquadram dentro deste tipo contratual – desde logo, a
previsão, no artigo 17.º, n.º 4, do RJCR da atuação independente por parte da
entidade gestora50.
Em segundo lugar, a relação contratual existente entre participantes e enti-
dade gestora de um fundo de capital de risco é uma relação fiduciária: os parti-
cipantes encarregam a entidade gestora de gerir e administrar o fundo de risco,
prosseguindo o seu interesse exclusivo. O contrato entre a entidade gestora e os
participantes é, portanto, um negócio fiduciário de gestão do fundo.
De acordo com André Figueiredo, o negócio fiduciário é “o negócio
mediante o qual uma parte – o fiduciário, é investido, direta ou indiretamente,
na propriedade de um bem, comprometendo-se a geri-lo (lato sensu) no inte-
resse de outrem – o fiduciante –, a quem, uma vez finda a relação fiduciária,
deverá ser devolvido o acervo patrimonial resultante da atividade gestória” 51.
O autor delimita o núcleo definidor de um conceito-tipo de negócio fiduciário
de gestão com base em três traços distintivos: (i) a atribuição de um bem a um
fiduciário, com a consequente imputação à esfera jurídica deste da titularidade
plena e exclusiva de um direito patrimonial; (ii) a limitação funcional dessa
atribuição à prossecução de um interesse do fiduciante; e (iii) a imposição de
uma obrigação de (re)transmissão do bem fiduciário (incluindo, em regra, dos

49
Um outro tipo contratual que se aproxima do tipo geral do contrato de mandato civil é o
contrato de gestão de carteiras, previsto no artigo 290.º, n.º 1, alínea c) do CVM. A gestão de
carteiras distingue-se da gestão de fundos de investimento por ser uma gestão de um conjunto
de ativos que não está institucionalizado (uma carteira), e por respeitar apenas valores mobiliários
e não de outros ativos. Vide Alexandre Brandão da Veiga, Fundos de Investimento Mobiliário e
Imobiliário. Regime Jurídico, cit., p. 558-559.
50 Pedro Simões Coelho e Orlando Vogler Guiné, “Substituição da Entidade Gestora de

Fundos de Investimento Alternativos”, cit. p. 116-121. Vide, ainda, Catarina Romão Pinho,
“Os fundos de investimento mobiliário no Direito Português: natureza jurídica e exercício do
direito de voto pela entidade gestora”, in Revista de Direito das Sociedades, IV, 1, 2012, Almedina,
Coimbra p. 129.
51 André Figueiredo, O negócio fiduciário perante terceiros – com aplicação especial na gestão de valores

mobiliários, Dissertação para Doutoramento em Direito Privado pela Faculdade de Direito da


Universidade Nova de Lisboa, sob a orientação de Rui Pinto Duarte, p. 4, disponível para consulta
em https://run.unl.pt/bitstream/10362/7340/1/Figuiredo_2012.PDF.

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578 Ana Nunes Teixeira

seus frutos) para a esfera do fiduciante, de onde resulta que o fiduciário ficará
investido numa propriedade temporária, porque sujeita a um dever contratual
de transferir para a esfera do fiduciante os bens que integrem o acervo do
fiduciário52.
No caso dos fundos de capital de risco, os participantes atribuem à entidade
gestora poderes de gestão do fundo, a qual dispõe de uma margem de discricio-
nariedade nos atos jurídicos que pratica, devendo sempre pautar a sua atuação
pelos interesses dos participantes. Estamos, portanto, perante uma representa-
ção em nome e por conta de outrem, que se aproxima do mandato com pode-
res de representação53.

7.2. Os deveres da entidade gestora

De acordo com os supracitados artigos 17.º, n.º 4, e 18.º, n.º 1, do RJCR,


no exercício da atividade de gestão do fundo de capital de risco recaem sobre
a entidade gestora os deveres gerais de exercer uma boa administração do
fundo, de acordo com elevados níveis de zelo, honestidade, diligência e de
aptidão profissional e de exercer a sua atividade no sentido da proteção dos
exclusivos e legítimos interesses dos titulares de unidades de participação de
fundos de capital de risco por si geridos, conferindo-lhes um tratamento justo
e equitativo54.
No exercício da sua atividade de gestão do fundo de capital de risco, a enti-
dade gestora deverá, para além das disposições previstas no RJCR, observar o
cumprimento das normas constantes do regulamento de gestão de cada fundo55.
O regulamento de gestão é elaborado pela entidade gestora56 e deverá obriga-
toriamente conter os elementos previstos no artigo 19.º, n.º 2, do RJCR. De
entre os elementos que integram o conteúdo conformador do regulamento de
gestão, pode ser feita a distinção entre elementos formais (os quais são essen-
cialmente elementos de identificação, tais como a identificação do fundo, da

52 André Figueiredo, O negócio fiduciário perante terceiros – com aplicação especial na gestão de valores

mobiliários, cit., pp. 70-76.


53 Sobre a recondução do negócio fiduciário de gestão ao tipo legal do mandato sem representação,

vide André Figueiredo, O negócio fiduciário perante terceiros – com aplicação especial na gestão de valores
mobiliários, cit., pp. 76-78.
54 Cfr. artigos 17.º, n.º 4 e 18.º, n.º 1, do RJCR.

55 De acordo com o artigo 15.º, n.º 4, do RJCR, os fundos de capital de risco regem-se, além das

normas do RJCR, pelas normas do respetivo regulamento de gestão.


56 Cfr. Artigo 19.º, n.º 1, do RJCR.

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A gestão dos fundos de capital de risco – Conflitos de interesses entre a entidade… 579

entidade gestora e do depositário), elementos estratégicos (a política de investi-


mento) e os elementos económicos (tais como os preços de subscrição das uni-
dades de participação e a remuneração da entidade gestora e do depositário)57.
O elemento do regulamento de gestão que mais nos interessa para a análise
do tratamento da matéria dos deveres aos quais a entidade gestora está obrigada
na gestão do fundo é a política de investimento. De facto, o regulamento de
gestão deverá conter a definição de qual será a estratégia de investimento do
fundo, levada a cabo pela entidade gestora – desde logo, que tipos de investi-
mentos serão feitos, que tipos de ativos serão adquiridos, que tipo de sociedades
target, e qual a atuação territorial do fundo. A principal função da política de
investimento é a de balizar a atuação da entidade gestora: a entidade gestora
deverá, no exercício da sua atividade de gestão do fundo, praticar os atos jurí-
dicos que visem a prossecução dos interesses dos participantes, definidos na
política de investimento.
O regulamento de gestão pode ser alterado, desde que tal não contrarie
disposição legal imperativa, por decisão aprovada em assembleia de partici-
pantes, sob proposta da entidade gestora. Do exposto decorre que a alteração
da política de investimento do fundo, depende de proposta apresentada pela
entidade gestora.
Os problemas surgem quando, em virtude do desalinhamento dos interesses
da entidade gestora e dos participantes do fundo de capital de risco, a entidade
gestora pratica atos no seu interesse próprio, ou no interesse do grupo de socie-
dade onde se encontre inserida, indo contra a política de investimento e em
detrimento dos interesses dos participantes do fundo. A este respeito, pense-se,
por exemplo, nos casos (já referidos anteriormente) em que a entidade gestora
toma uma decisão de investimento com vista à maximização da sua remunera-
ção, em detrimento dos interesses dos participantes em maximizar os respetivos
investimentos. Em caso de violação, pela entidade gestora do regulamento de
gestão, o RJCR prevê duas consequências: a possibilidade de cancelamento do
registo da entidade gestora (no caso de a entidade gestora ser uma sociedade de
capital de risco) ou de revogação da autorização da entidade gestora (no caso de
a entidade gestora ser uma sociedade gestora de fundos de capital de risco) pela
CMVM58 e a possibilidade de dissolução do fundo de capital de risco, por deci-
são da CMVM59 – simplesmente, estas consequências legais, que se traduzem

57
Alexnadre Brandão da Veiga, Fundos de Investimento Mobiliário e Imobiliário. Regime Jurídico,
1999, Almedina, Coimbra, pp. 57-65
58 Cfr. respetivamente, os artigos e 7.º, n.º 2, a) e 52.º, n.º 2, a) do RJCR.

59 Cfr. artigo 46.º, n.º 1, d) e n.º 6 do RJCR.

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580 Ana Nunes Teixeira

em medidas sancionatórias para a entidade gestora, poderão não constituir as


melhores soluções para os investidores do fundo de capital de risco – pense-se,
no caso da dissolução do fundo de capital de risco, do interesse dos participantes
na manutenção do fundo.

7.3. Da aplicabilidade da business judgmement rule às entidades gestoras


dos fundos de capital de risco

A relação entre a entidade gestora e os participantes do fundo de capital de


risco rege-se pelas normas constantes do regulamento de gestão, vendo a enti-
dade gestora a sua discricionariedade limitada pelo conteúdo conformador do
regulamento de gestão em geral e, em especial, pela política de investimento
nele prevista. No entanto, é à entidade gestora que compete avaliar, em cada
momento, qual a melhor decisão de investimento – trata-se, conforme já se
explicou, de uma atuação independente.
A este propósito, veja-se o acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa,
de 09.07.2014, que decidiu que não existiu incumprimento dos deveres de
gestão por parte da entidade gestora que realizou apenas um investimento
em nome do fundo de capital de risco durante quatro anos (tendo feito,
durante esse período três chamadas de capital), por o mercado não permi-
tir fazer investimentos: “Tendo presente as normas que regem a actuação e
incumbências por parte da Sociedade Gestora […] e independentemente do
posicionamento que se defenda no que toca à natureza jurídica das relações
que se estabelecem entre o Fundo e aquela […], não resta a menor dúvida
de que a mesma é dotada de uma plena autonomia ao nível da tomada de
decisões sobre a gestão do Fundo, sendo que é sobre ela que impende a ini-
ciativa de despoletar deliberação (em Assembleia) quanto aos aspectos cruciais
do destino do Fundo (a redução/reestruturação, prorrogação do prazo da
sua duração, liquidação e partilha). A sua actuação mostra-se, por isso, sobe-
rana, sem interferência quer externa, quer interna, ou seja, neste caso, dos
titulares das unidades de participação que formam o próprio Património (os
Participantes)”. “Nestes termos, considerando que, conforme supra referido,
a lógica de governação do Fundo se mostra marcada pela autonomia dos
poderes atribuídos (mandatados […]) à Entidade Gestora (sem interferência
dos Participantes pois que, estes, por sua autónoma vontade, entregaram ao
critério daquela a definição do que, em cada momento, é o seu interesse
enquanto um todo), dado que os elementos fácticos provados não evidenciam
negligência na política de gestão e administração do Fundo, encontrando-se
factualmente afastada a prática de injustificada remuneração, não é possível

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A gestão dos fundos de capital de risco – Conflitos de interesses entre a entidade… 581

imputar à Sociedade Gestora qualquer violação dos deveres a que se encontra


adstrita”.60 A entidade gestora goza, assim, de autonomia e independência
nas decisões de investimento que toma, tendo discricionariedade para decidir
quando, onde e como investir – ou não investir.
Tendo em conta a margem de discricionariedade de que a entidade gestora
do fundo de capital de risco dispõe na gestão do património do fundo, poderá
colocar-se a questão de saber se, face a uma ação de responsabilidade civil que
seja instaurada contra uma entidade gestora (representada pelos seus administra-
dores), pelos danos que a gestão feita pelos seus administradores cause ao patri-
mónio do fundo de capital de risco61 a responsabilidade poderá ser afastada se se
provar que estes agiram de acordo com elevados níveis de zelo, cuidado e apti-
dão profissional, aplicando analogicamente a business judgement rule prevista no
artigo 72.º, n.º 2, do CSC, relativa à responsabilidade dos administradores das
sociedades comerciais para com a sociedade que administram. O interesse da
questão é o de saber, justamente, até que ponto poderá a entidade gestora defen-
der-se de uma ação de responsabilidade que lhe seja movida pelos participantes
do fundo que aleguem que determinada decisão de investimento (ou decisão de
não realizar um investimento, conforme sucedeu no caso acima descrito) causou
danos no património do fundo, provando que adotou tal decisão no cumpri-
mento dos seus deveres de zelo, honestidade, diligência e de aptidão profissional.
Chegados a este ponto, importa fazer um breve enquadramento da business
judgement rule e do regime legal da responsabilidade dos administradores das
sociedades.
O artigo 64.º, n.º 1, do CSC estabelece uma bifurcação dos deveres gerais
dos gerentes e administradores das sociedades comerciais, prevendo, por um
lado, um dever geral de cuidado [alínea a)] e, por outro lado, um dever geral
de lealdade [alínea b)]62. Em caso de violação de um destes deveres, os geren-
tes e administradores poderão ser responsabilizados pela sociedade pelos danos

60
Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.07.2014 (Proc. 841/13.9TVLSB.L1-7),
disponível para consulta em www.dgsi.pt.
61
Face à dificuldade em apurar os danos que poderão resultar da conduta da entidade gestora,
uma das soluções consiste na aplicação do artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, que determina
que o tribunal deverá recorrer a critérios de equidade. Esta solução foi apontada por Miguel Brito
Bastos na sessão com o tema “Regulamento de Gestão e Discricionariedade da Entidade Gestora”,
ministrada no I Curso Intensivo de Especialização em Fundos de Capital de Risco.
62 De acordo com João Calvão da Silva, esta bifurcação, operada pela reforma ao Código das

Sociedades Comerciais, introduzida pelo Decreto-Lei 76-A/2006, de 29 de Março, consiste


num um mero transplante legal do conceito de “fiduciary duty” existente na Common Law. Vide
João Calvão da Silva, “Corporate Governance – Responsabilidade Civil dos Administradores não
executivos, da Comissão de Auditoria e do Conselho Geral e de Supervisão”in RLJ, 2006-2007,

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582 Ana Nunes Teixeira

que lhe forem causados, ao abrigo de ação movida pelos sócios, nos termos do
artigo 77.º do CSC. O artigo 72.º, n.º 1, do CSC encerra uma presunção de
culpa63, o que significa que à sociedade bastará alegar e provar a ilicitude do
comportamento do administrador. No entanto, o n.º 2 artigo 72.º do CSC
prevê a exclusão da responsabilidade dos gerentes ou administradores para com
a sociedade, pelos danos que os seus atos ou omissões lhe causem, em violação
do dever de cuidado previsto no artigo 64.º, n.º 1, alínea b), no caso de estes
provarem que atuaram em termos informados, livres de qualquer interesse pes-
soal e seguindo critérios de racionalidade empresarial64. Faz-se, assim, inverter
o ónus da prova que de outra forma sobre eles recairia, por estar em causa uma
responsabilidade civil de natureza contratual – em virtude da relação contratual
(fiduciária) existente entre os gerentes ou administradores e os sócios da socie-
dade por eles gerida.
O artigo 72.º, n.º 2, do CSC, transpôs a business judgement rule, de origem
americana65, que consiste numa presunção legal relativa de que as decisões de
gestão tomadas pelos gerentes e administradores são devidamente informadas,
tomadas de boa-fé e economicamente racionais, ou seja, de que as decisões
são tomadas pelos gerentes ou administradores na razoável convicção de estas
visarem o melhor interesse da sociedade. Gozando os gerentes e administrado-
res de uma margem de discricionariedade empresarial na tomada de decisões
de gestão, a bitola para avaliar o cumprimento do dever geral de cuidado é,
portanto, a do gestor criterioso e ordenado, sendo que a lei societária atribui
aos gerentes e administradores a possibilidade de afastar a sua responsabilidade
quando provem que agiram dentro do nível de diligência imposta pela business
judgement rule.

Coimbra Editora, Coimbra, n.º 3940, p. 33 e Alan Watson, Legal transplants. An approach to
comparative law, 2ª Edition, University Press of Virginia1993, Virginia, p.91.
63
Cfr. artigo 799.º do Código Civil.
64 Vide João Soares da Silva, “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades: os

Deveres Gerais e os Princípios da Corporate Governance”, in ROA, Almedina, Coimbra, ano 57,
II, Abril 1997, pp. 515 e 516, Pedro Pais de Vasconcelos, “Responsabilidade Civil dos Gestores
das Sociedades Comerciais”, in DSR, ano 1, volume 2, Março 2009, Almedina, Coimbra, 11-32,
Jorge Manuel Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Ramos, “Responsabilidade Civil de
Administradores e de Sócios Controladores” in IDET – Miscelâneas, 2004, n.º 3, Almedina, p. 13.
65 Manuel Carneiro da Frada, “A business judgement rule no quadro dos deveres gerais dos

administradores”, in Sociedades Abertas, Valores Mobiliários e Intermediação Financeira, 2007, Almedina,


Coimbra, 201-242.

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A gestão dos fundos de capital de risco – Conflitos de interesses entre a entidade… 583

Para parte da doutrina66, este critério de conduta corresponde a uma expli-


citação do critério civilístico do bom pai de família aplicado às circunstâncias do
caso concreto (artigo 487.º, n.º2 do Código Civil). No entanto, não podemos
deixar de concordar com os autores que consideram que este critério é mais
exigente do que o critério civilístico comum – estando em causa, portanto,
uma bitola mais exigente, atendendo às qualificações profissionais daqueles a
quem é atribuída a gestão das sociedades comerciais67.
No caso de nãos ser cumprido o nível de diligência imposto pela da business
judgement rule, haverá um incumprimento do dever de cuidado por parte do
gerente ou administrador, podendo este ser responsabilizado perante a socie-
dade, através de ação de responsabilidade movida pelos sócios, em observância
do artigo 77.º do CSC.
Nos termos do artigo 10.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, os casos que a lei não
preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos, existindo
analogia sempre que no caso omisso procedam razões justificativas da regula-
mentação do caso previsto na lei. “Dois casos dizem-se análogos quando neles se
verifique um conflito de interesses paralelo, isomorfo ou semelhante – de modo a que o
critério valorativo adoptado pelo legislador para compor esse conflito de interesses num dos
casos seja por igual ou maioria de razão aplicável ao outro […]”.68
De forma a podermos chegar a uma conclusão sobre a possibilidade da
aplicação analógica das normas sobre a responsabilidade dos administradores
previstas no CSC aos gestores dos fundos de capital de risco teremos, então,
que verificar, primeiro, se a relação existente entre a entidade gestora e os par-
ticipantes do fundo de capital de risco se aproxima à relação existente entre os
administradores e os sócios das sociedades anónimas (por este ser o tipo societá-
rio mais próximo dos fundos de capital de risco, atendendo à ausência de traços
personalísticos e à tendencial maior dispersão do capital) e, em segundo lugar,
se os deveres de gestão que recaem sobre a entidade gestora têm um conteúdo

66
Nomeadamente, João Calvão da Silva, “Corporate Governance – Responsabilidade Civil dos
Administradores não executivos, da Comissão de Auditoria e do Conselho Geral e de Supervisão”,
cit., pp. 51 e 52.
67 Vide, entre outros, Luís Brito Correia, Os Administradores de Sociedades Anónimas, Almedina,

Coimbra, 1993, p.600, Maria Elisabete Ramos, Responsabilidade Civil dos Administradores e
Directores de Sociedades Anónimas Perante os Credores Sociais in Stvdia Ivridica, n.º 67, 2002, Coimbra
Editora, Coimbra, p. 95, e Ricardo Costa,” Responsabilidade dos Administradores e Business
Judgment Rule “ in Reformas do Código das Sociedades Comerciais, IDET, 2007, Colóquios n.º 3,
Almedina, Coimbra, p.78.
68 João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 2002, Almedina,

Coimbra, p. 202.

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584 Ana Nunes Teixeira

idêntico aos deveres fiduciários previstos no artigo 64.º do CSC para os admi-
nistradores das sociedades anónimas.
Esta questão foi já alvo de atenção por parte da doutrina estrangeira, em
particular pela doutrina alemã69, e assume, como se poder ver, um enorme
interesse em caso de litígio entre os participantes ou o fundo de capital de risco
e a entidade gestora70.
A questão da aplicabilidade da business judgement rule aos administradores
da entidade gestora dos fundos de capital de risco tem, também, vindo a ser
discutida na doutrina e jurisprudência americanas (particularmente na juris-
prudência do Estado do Delaware, onde a business judgement rule foi criada),
sobretudo relativamente aos casos em que esses administradores são, ao mesmo
tempo, administradores da sociedade investida pelo fundo, designados por este
enquanto acionista71.
É possível afirmar que existem diversas semelhanças entre a gestão dos fun-
dos de capital de risco e a gestão das sociedades comerciais, em particular das
sociedades anónimas, quer devido à relação fiduciária existente entre os partici-
pantes do fundo de capital de risco e a entidade gestora do fundo, quer devido
à aproximação entre a posição dos participantes dos fundos de capital de risco e
a posição dos acionistas das sociedades anónimas, quer devido aos interesses em
conflito na gestão do fundo de capital de risco. Conforme foi já referido, nos
fundos de capital de risco os participantes atribuem à entidade gestora poderes
de gestão do fundo, que administrará o fundo em nome e no interesse dos
participantes, aproximando-se essa relação do mandato sem representação72.
Existe, portanto, entre e entidade gestora do fundo de capital de risco e os par-
ticipantes do fundo uma relação fiduciária, de confiança, característica dos casos
de cisão entre propriedade (ownership) e gestão (management) e em tudo idêntica
à relação existente entre os administradores da sociedade anónima e os sócios.
É também notória a proximidade entre a previsão dos deveres de gestão
previstos para as entidades gestoras dos fundos de capital de risco nos artigos

69
Remetemos, mais uma vez, para a sessão ministrada por Miguel Brito Bastos, com o tema
“Regulamento de Gestão e Discricionariedade da Entidade Gestora”, no âmbito do I Curso
Intensivo de Especialização em Fundos de Capital de Risco.
70 Os fundos de capital de risco não têm personalidade jurídica, mas têm personalidade judiciária

– cfr. artigo 15.º, n.º 1, do RJCR.


71 Para uma abordagem de qual a conduta que o órgão de administração deverá adotar para evitar a

instauração de ações de responsabilidade civil pelos acionistas, vide Steven E. Bochner e Amy L.
Simmerman, “The venture capital board member’s survival guide: handling confl icts effectively
while wearing two hats”, Delaware Journal of Corporate Law, 2016, Vol. 41 número 1, disponível
para consulta em https://www.wsgr.com/publications/PDFSearch/survival-guide-2016.pdf.
72 Vide ponto 7.2. supra.

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A gestão dos fundos de capital de risco – Conflitos de interesses entre a entidade… 585

17.º, n.º 4 e 18.º, n.º 1, do RJCR, que visam a boa gestão do património do
fundo, e a previsão dos deveres de cuidado e de lealdade previstos para os
gerentes e administradores. O dever de lealdade dos gerentes e administrado-
res, previsto no artigo 64.º, n.º 1, alínea a) do CSC, estabelece que os gerentes
e administradores deverão visar, na sua atuação, o interesse social73, colocan-
do-o acima dos seus próprios interesses74. Aos gerentes e administradores cabe,
portanto, a prossecução do interesse da sociedade, o qual que deve prevalecer
sobre os seus interesses próprios75. No que toca à lealdade devida pelos gerentes
e administradores, ela decorre não só do princípio da boa-fé, mas também de
uma ideia de tutela da confiança – para muitos autores, a posição do adminis-
trador é uma posição de fiduciário da sociedade (Treühänder)76.Os gerentes e
administradores, deverão, portanto, evitar, nas suas decisões de gestão colo-
car-se em situações de conflito entre os seus interesses pessoais e o interesse
social (no-conflict rule). O dever de cuidado pressupõe a obrigação, por parte dos
gerentes e administradores, de exercer a gestão societária com a competência
técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções,
empregando para esse efeito “a diligência de um gestor criterioso e ordenado”.

73 Questão mais complexa é a de saber que interesses deverão ser prosseguidos pelos gerentes e

administradores no exercício deste dever de lealdade, destacando-se na doutrina, três principais


correntes doutrinas: (i) uma corrente contratualista, mais tradicional, nos termos da qual o
interesse que os gerentes e administradores deverão visar no exercício das suas funções de gestão
é o interesse da coletividade dos sócios em que a sociedade obtenha o maior lucro possível para
se distribuir pelos mesmos; (ii) uma segunda corrente, institucionalista, que assenta na ideia de
que a empresa societária é um agente económico independente (teoria da “ Unternehmen an sich”),
com interesses que não se resumem aos interesses dos sócios, pelo que o interesse que deverá ser
prosseguido pelos gerentes e administradores na sua gestão é o interesse da empresa societária
no exercício da sua atividade económica; e (iii) uma corrente pluralista, para a qual os gerentes
e administradores deverão agir tendo em conta os interesses da sociedade no seu conjunto, ponderando
os interesses da coletividade dos sócios com os interesses de todos os outros sujeitos afetados
pela sustentabilidade da sociedade, tais como os trabalhadores, credores, fornecedores, clientes e
comunidades e autoridades locais – os stakeholders.
74
Artigo 64.º, n.º 1, alínea b). Vide Pedro Caetano Nunes, Responsabilidade dos administradores
perante acionistas, 2001, Almedina, Coimbra, p. 89, e Jorge Manuel Coutinho de Abreu, “
Responsabilidade Civil de Gerentes e Administradores em Portugal” in Questões de Direito Societário
em Portugal e no Brasil, 2012, Almedina, Coimbra, pp.136-139.
75 Pedro Pais de Vasconcelos, “Business judgment rule, deveres de cuidado e de lealdade, ilicitude

e culpa e o artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais”, in DSR, ano 1, volume 2, Outubro
2009, Almedina, Coimbra, p.64.
76 Em sentido contrário, João Calvão da Silva considera que a posição do administrador na sociedade

diverge da posição do trustee. Vide João Calvão da Silva, “Corporate Governance – Responsabilidade
Civil dos Administradores não executivos, da Comissão de Auditoria e do Conselho Geral e de
Supervisão”, cit., p. 53.

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586 Ana Nunes Teixeira

Centrando-nos sobre o dever da entidade gestora de administrar o fundo


de capital de risco de acordo com elevados níveis de zelo, honestidade, dili-
gência e de aptidão profissional, está em causa, também aqui, uma bitola mais
exigente do que a bitola do critério civilístico comum do “bom pai de família”:
atendendo ao facto de a entidade gestora do fundo de capital de risco ser uma
sociedade comercial cujo objeto consiste na realização de investimentos em
capital de risco, o critério para avaliar o cumprimento, pela entidade gestora,
dos seus deveres de gestão, será muito superior à média, sendo que o próprio
preceito legal se refere a elevados níveis de zelo, honestidade, diligência e aptidão
profissional77.
Consideramos, assim, que, atentas as semelhanças da relação entre a enti-
dade gestora e os participantes do fundo de capital de risco com a relação entre
os administradores e os sócios das sociedades anónimas e do conteúdo dos
deveres da entidade gestora na gestão do fundo com os deveres que recaem
sobre os gerentes e administradores ao abrigo do artigo 64,.º, n.º 1, do CSC,
é defensável a tese que afirma a possibilidade de aplicação analógica da business
judgement rule à atividade de gestão dos fundos de capital de risco, permitindo
o afastamento, quando as circunstância do caso concreto o justifiquem, da res-
ponsabilidade da entidade gestora pelos danos que uma decisão de investimento
(ou de não realização de um investimento) cause no património do fundo,
provando que os seus administradores tomaram essa decisão de acordo com os
elevados níveis de zelo, honestidade, diligência e de aptidão profissional que
sempre deverão pautar a atividade de administração dos fundos de capital de
risco (cfr. o artigo 17.º, n.º 4, do RJCR, em conjugação com o artigo 72.º,
n.º 2, do CSC).

8. Conclusões

A relevância que os fundos de investimento, em geral, e de fundos de capi-


tal de risco, em particular, têm vindo a assumir no financiamento de sociedades,
trouxe novos desafios aos modelos de tradicionais de gestão – quer ao nível do
alinhamento dos interesses dos investidores de capital de risco com os restantes
acionistas da sociedade investida quer ao nível da própria gestão dos fundos de
capital de risco.

77
Não sendo as entidades gestoras dos fundos de capital de risco intermediários financeiros (cfr.
artigo 2.º, n.º 1, do RJCR), não podemos deixar de o disposto no artigo 149.º, n.º 1, alínea g),
do CVM, nos termos do qual, o intermediário financeiro poderá excluir a responsabilidade pela
desconformidade do conteúdo do prospeto se provar que agiu sem culpa.

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A gestão dos fundos de capital de risco – Conflitos de interesses entre a entidade… 587

Este segundo tipo de problemas, que consistem no desalinhamento entre


os interesses da entidade gestora dos fundos de capital de risco e os interesses
dos participantes do fundo reconduz-se ao tradicional problema de separação
entre propriedade (ownership) e gestão (management): do distanciamento entre os
participantes e a entidade gestora dos fundos de capital de risco e das assimetrias
informativas entre estes dois tipos de intervenientes resultam custos de agên-
cia, ligados ao risco de a entidade gestora prosseguir os seus próprios interesses
estratégicos ou os interesses estratégicos de entidades com ela relacionadas em
detrimento dos interesses dos participantes.
Tendo analisado as normas do RJCR para a regulação dos conflitos de inte-
resses entre a entidade gestora e os participantes do fundo de capital de riscos
e alguns mecanismos existentes para esse alinhamento, debruçámo-nos sobre
questão da possibilidade, ou não, de transposição, para os gestores dos fundos
de capital de risco, da business judgement rule aplicável aos administradores das
sociedades anónimas, da qual poderá resultar o afastamento, no caso concreto,
da responsabilidade da entidade gestora em ação de responsabilidade civil que
lhe seja movida pelos participantes do fundo.
Chegámos à conclusão de que, devido às características da relação fiduciária
existente entre a entidade gestora e os participantes do fundo de capital de risco
e dos tipos de interesses em conflito nessa relação, e do conteúdo dos deveres
previstos para a entidade gestora na sua atividade de gestão do fundo ao abrigo
do RJCR, existe uma aproximação, na gestão dos fundos de capital de risco, ao
modelo de gestão das sociedades anónimas, que poderá servir de base, quando
as circunstâncias do caso concreto o justifiquem, a uma aplicação analógica
da business judgement rule à atividade de gestão dos fundos de capital de risco,
permitindo aos administradores da entidade gestora afastar a responsabilidade
desta provando que o fundo foi gerido de acordo com elevados níveis de zelo,
honestidade, diligência e de aptidão profissional.

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