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MENINA DE SC: PROMOTORA MANDOU

POLÍCIA BUSCAR FETO NO HOSPITAL APÓS


ABORTO LEGAL
Mesmo sem haver crime a ser investigado, Mirela Dutra Alberton decidiu
averiguar ‘causa da morte’ após aborto legal.
Paula Guimarães
6 de jul de 2022, 09h25

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Ilustração: Amanda Miranda para o Intercept Brasil

Em colaboração com:
A PROMOTORA Mirela Dutra Alberton, que se opôs ao aborto legal da
menina de 11 anos estuprada em Santa Catarina, começou uma investigação
para determinar a “causa que levou à morte do feto” após o procedimento –
embora, pela lei, não haja nenhum crime a ser averiguado. O aborto em caso de
estupro é permitido desde 1940 e, como a menina tem menos de 14 anos, não
há dúvidas de que foi vítima de estupro de vulnerável.

Mesmo assim, em 24 de junho, Alberton pediu que os restos fetais fossem


recolhidos por policiais do Instituto Geral de Perícias no Hospital Universitário
da UFSC para a realização de uma necrópsia. No mesmo dia, véspera da alta da
menina, o juiz José Adilson Bittencourt Junior afirmou em despacho que não se
opunha ao requerimento, nem ao acesso a informações médicas da paciente.

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Tivemos acesso ao requerimento da promotora, enviado ao perito-geral da


polícia científica de Santa Catarina, Giovani Eduardo Adriano. Em ofício com o
título “urgente”, Alberton pediu que fosse feito “exame pericial” para identificar
“a causa que levou à morte do feto”. A promotora busca confirmar, em especial, se
houve a aplicação de cloreto de potássio para a parada dos batimentos cardíacos
ainda no útero, ou seja, se foi realizada a assistolia fetal.
“No tocante ao requerimento de autorização para que o IGP possa buscar e
efetuar necropsia do corpo de delito (feto), bem como o acesso do prontuário da
paciente, não há óbice deste juízo, pois tais órgãos (MPSC e IGP) possuem
competências que o autorizam a assim proceder”, afirma o juiz no despacho. A
decisão afirmava que o HU havia sido intimado a encaminhar “toda a
documentação e relatório médico detalhado” sobre a realização do aborto em até
48 horas.

Como informamos quando a menina teve alta, o procedimento foi feito por
meio de medicamentos, de forma que o feto saísse do útero já sem batimentos
cardíacos. A criança ficou na companhia da mãe durante todo o processo. De
acordo com o médico obstetra Olímpio Moraes, professor da Universidade de
Pernambuco e diretor do Cisam, hospital referência em aborto legal no Recife,
para casos acima de 22 a 24 semanas de gestação, é recomendada a indução de
assistolia fetal antes da indução do aborto. “Induz ao óbito do feto intra-útero
para não ocorrer sofrimento”, explicou.

‘A promotora está criando um crime na cabeça


dela, de acordo com sua ideologia e contra a lei’.
Mirela Dutra Alberton, lotada na 2ª Promotoria de Justiça do município de
Tijucas, é a promotora que, na mesma audiência em que a juíza Joana Ribeiro
Zimmer tentou induzir a menina a desistir do aborto legal, propôs que a criança
mantivessse a “barriga” por mais “uma ou duas semanas”. “Em vez de deixar ele
morrer – porque já é um bebê, já é uma criança –, em vez de a gente tirar da tua
barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil
não concorda com a eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para
ele…”, ela disse à criança. A conduta da promotora é investigada pelo Conselho
Nacional do Ministério Público.

Procurada, a polícia científica disse que não irá se pronunciar “até a finalização
dos procedimentos médico-legais, devido às repercussões e por estar tramitando
em segredo de justiça” e que, quando finalizado o procedimento, o resultado será
enviado à vara criminal responsável.

O Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina também afirmou não


poder fazer “manifestações públicas sobre o assunto”, porque a apuração de
“qualquer caso envolvendo atuação médica” ocorre de forma sigilosa no órgão. O
CRM-SC acrescentou, no entanto, que está apurando o caso.

Já o Hospital Universitário da UFSC disse que “as informações confidenciais


sobre o caso da menor apenas foram compartilhadas com órgãos que detêm
poder requisitório previsto em lei, em autos sob sigilo” e que se “solidariza com a
criança e seus familiares, bem como com a sua equipe assistencial”.

A promotora Mirela Dutra Alberton.


Foto: Divulgação/PM de Garopaba

Não há crime a ser investigado


Para fontes ouvidas pelo Intercept e pelo Portal Catarinas, a investigação que
Alberton deseja iniciar não tem fundamento legal, já que a garantia do direito ao
aborto nos casos previstos em lei não pode ser criminalizada. “É um delírio,
porque é uma excludente de ilicitude, não tem nenhum indício de crime”, analisa
a criminalista Marta Machado, professora FGV São Paulo e pesquisadora da
Afro Cebrap — Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial.
“Ela está criando um crime na cabeça dela, de acordo com a orientação
ideológica dela, contra a lei. Está violando o princípio da legalidade, que é o
direito ao aborto legal”.

Na avaliação da criminalista, a investida de Alberton amplia a revitimização da


menina e sua família. “Ela está instrumentalizando o estado para perseguir um
crime que não existe. Está claramente abusando do poder dela. Além disso, viola
o direito à intimidade da menina”, avalia.

Perguntamos à promotora Mirela Dutra Alberton quais as justificativas para seu


requerimento e que leis ampararam seu pedido, levando em conta que o aborto
foi realizado de forma legal. Questionamos também qual o crime a ser
investigado e quem seriam os possíveis suspeitos. A assessoria de imprensa do
Ministério Público respondeu, porém, que não poderia se manifestar, já que o
processo corre em sigilo.

As mesmas perguntas foram feitas ao juiz José Adilson Bittencourt Junior, via
assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Por e-mail, o
TJSC disse que “são inverídicas as informações de que o juiz autorizou o
recolhimento do feto e deferiu a disponibilização do prontuário médico”. Por
telefone, a assessoria acrescentou que “o magistrado tão somente se manifestou
no sentido de que não caberia a ele decidir sobre tal pedido”. A assessoria
também afirmou que, em uma decisão posterior, o juiz recusou o pedido de
recolhimento do prontuário da menina. O Intercept não teve acesso a esse
documento.
Na prática, foi o despacho do juiz, contudo, que possibilitou que os restos fetais
fossem recolhidos. O IGP foi ao hospital na tarde de 24 de junho e o hospital se
recusou a fazer a entrega. De noite, contudo, os policiais retornaram com um
novo documento e foram liberados os restos.

O despacho do juiz José Adilson Bittencourt Junior.

A promotora de justiça Fabiana Dal’Mas, presidente da Comissão de Saúde


Reprodutiva da Fédération Internationale des Femmes des Carrières Juridiques
[Federação Internacional das Mulheres de Carreira Jurídica, em tradução livre],
explica que a equipe médica não pode ser investigada por garantir o exercício do
direito da criança. Ela lembra que os profissionais estão respaldados pelo artigo
128 do Código Penal e pela própria recomendação do Ministério Público
Federal para que o hospital realizasse o aborto na menina vítima de estupro. “O
que a gente vê é que há uma tentativa do estado brasileiro como um todo de
impedir o acesso das meninas e mulheres aos seus direitos sexuais e reprodutivos,
inclusive o direito ao aborto legal”, contextualiza.
A procuradora do Ministério Público Federal Daniela Escobar, que recomendou
ao hospital da UFSC que fizesse o aborto na menina, disse desconhecer os
processos que correm na justiça estadual. “Sequer sei os fundamentos jurídicos
que embasaram um pedido destes. Nossa atribuição como MPF foi atuar para
garantir o acesso a um direito daquela criança, um serviço de saúde prestado
pelo HU. Saiu dessa esfera, não tenho conhecimento quase nenhum sobre o
caso”, ela afirmou.

A constitucionalista Eloisa Machado, professora da FGV em São Paulo,


considera que a investigação da “causa da morte” do feto, após a garantia do
direito da menina, é grave. “Caso o sistema de justiça continue perseguindo a
menina e sua mãe pela busca do exercício regular de seu direito, teremos uma
situação ainda mais grave. A tentativa de transformar o aborto legal, previsto em
lei desde a década de 1940 em um crime de homicídio, é algo inconstitucional,
inconvencional e ilegal”, afirmou.

Para Machado, o acesso a dados pessoais, sensíveis, da menina e da mãe – como


os expostos no relatório médico a que Alberton conseguiu acesso – só podem ser
disponibilizados se houver devido processo que “afaste qualquer possibilidade de
que isso seja mais um capítulo na terrível violência institucional a que elas foram
submetidas”.

Machado assinala que a atuação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho


Nacional do Ministério Público, frente à “gravíssima violência institucional” por
parte da promotora e da juíza Joana Ribeiro Zimmer, que estava à frente do caso,
será decisiva. “Não só para promover uma devida responsabilização nesse caso,
mas também para sinalizar para todo o sistema de justiça que uma menina vítima
de violência sexual que busca a interrupção da gestação tem que ter o seu direito
garantido”.
Atualização: 6 de julho, 14h12
Este texto foi atualizado para incluir a informação, enviada pelo TJSC, de que o
juiz indeferiu o pedido de acesso ao prontuário em decisão posterior à
mencionada neste texto.

ULTRAJANTE! A repórter Schirlei Alves foi condenada a um ano de prisão aberta e


multa de R$ 400 mil por ter revelado no Intercept Brasil a revitimização de
Mari Ferrer por autoridades judiciais em seu processo de estupro.

A reportagem levou a uma lei nacional, à censura do juiz e desencadeou um


debate nacional que os membros do judiciário não querem ter. Esse é o impacto
de nosso trabalho.

Agora eles querem nos silenciar. Nos ajude a resistir e a cobrir os custos legais de
Schirlei e de todos os nossos jornalistas.

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