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Laure Pigeon perdeu a sua mãe quando tinha apenas cinco anos de idade e por conta
disso a jovem foi criada pela sua avó que lhe deu uma educação severa e conservadora. Aos vinte
nove anos se casou com um dentista contra a vontade da sua família e depois de vinte e dois anos
se separaram devido a uma traição. Por conta disso Pigeon foi morar em uma pensão aonde
conheceu uma senhora que lhe introduziu ao espiritismo. Quinze anos depois ela se mudou para
um apartamento em Paris aonde começou a praticar o espiritismo por conta própria, sendo que a
partir de 1935 ela começou a fazer os seus desenhos com inspiração mediúnica. Os seus
desenhos eram feitos com tinta preta e azul e continham mensagens e profecias que sob o efeito
do transe eram ilegíveis. Laure Pigeon escondia os seus desenhos de forma que somente foram
descobertos após a sua morte.
A obra que será analisada não tem título e supostamente foi produzida em 1961 e foi feita
de tinta azul e preta. Quando eu vejo a obra eu enxergo uma moça, cujo cabelo parece se
transformar em um manto azul de penas, de forma que a moça quase se transforma em pássaro,
de modo a adquirir asas e fugir da vida solitária que leva. No momento em que Laure fez este
desenho ela já havia perdido o marido, com o qual se reconciliou alguns anos após a traição, a
avó e a mãe, de forma que estava sozinha no mundo. Na minha interpretação o desejo de se
transformar em pássaro seria a ambição de fugir das condições de existência, remetendo à
impotência de Laure em sair de uma situação de solidão no qual se encontra. Aliás o símbolo do
pássaro será relevante nas obras da artista, tanto que o termo aparece em seu nome Pigeon que
em francês remete à pombo. A transformação seria completa se não fosse pelo rosto que continua
sendo de mulher e alguns fios de cabelo que escapam do manto, estas madeixas se transmutam
em lagrimas que caem dos olhos da moça. A incapacidade de transcender a situação encontrada
que é de extrema solidão leva a uma situação de depressão e de tristeza que se expressam nas
penas do manto que estariam abatidas e cabisbaixas, como se elas estivessem impotentes. O fato
de se desejar voar e não o conseguir remete a um sentimento de falta de liberdade, como se o
meio sufocasse e coagisse o indivíduo e isso irá engendrar o desejo de fugir da realidade. Este
sentimento por sua vez leva a uma concepção de liberdade que opõe consciência e mundo, de
forma que o indivíduo deseja se fechar em um mundo alternativo criado na sua cabeça sem que
precise agir na realidade tal como ela se apresenta.
Hannah Arendt irá mostrar esta concepção de liberdade como aparecendo pela primeira
vez na história da filosofia com Santo Agostinho na experiência de conversão religiosa. O
filosofo relegou a liberdade ao domínio interno do indivíduo ao associá-la à vontade livre no
qual inexiste coação externa. Esta interpretação da liberdade faz com que a mesma permaneça
sempre sem manifestação externa, porque foi fruto de um estranhamento da realidade e implica
sempre em uma retirada para a interioridade. Este modo de pensar será privilegiado por aqueles
que não tem espaço no mundo, ou seja, os escravos, porque o seu objetivo era fazer com que o
dominado ainda se sentisse livre na sua existência terrena. Isto justificará a recomendada retirada
para a ‘cidadela interior’, já que em nenhum lugar o homem será tão livre de coação como
quando dentro de si mesmo. A liberdade ascética de Agostinho se opõe à liberdade como ação no
qual se age sobre o mundo e em função do mundo, como no caso do político virtuoso de
Maquiavel que sabe dançar com a fortuna. Hannah Arendt coloca que o mundo deve se tornar
em um palco para a ação, para que a liberdade tenha uma realidade concreta de forma a superar a
vida contemplativa do cristianismo. A liberdade proposta tanto por Arendt como por Merleau-
Ponty estaria associada a uma tradição grega no qual a liberdade será uma ação que chama à
existência o que antes não existia. A capacidade de agir sobre o mundo e modifica-lo não
depende de uma vontade, mas sim de uma força para seguir uma certa intencionalidade. A
vontade somente aparece para o ser humano quando o mesmo vivência uma impotência, fazendo
com que o indivíduo tente se refugiar em uma interioridade, como forma de se proteger do
sentimento de fraqueza. Ao analisar a fantasia humana em seu texto escritores criativos e
devaneio, Freud coloca que o motivo escondido por trás de toda fantasia humana é a insatisfação
de modo que a força motriz por trás de todo devaneio e fuga do mundo é do desejo insatisfeito.
Assim toda a fantasia, inclusive a religiosa, não passa de uma realização de um desejo que visa
corrigir uma realidade insatisfatória, remetendo a uma impotência humana de alterar uma
situação dada. Ao entrar em estado de devaneio o indivíduo cria um mundo próprio reajustando
os elementos do mundo de uma nova forma de modo a lhe agradar. O pássaro cabisbaixo de
Pigeon remete à experiencia de impotência e de fraqueza, que faz com que o indivíduo tome
consciência da vontade que se opõe ao mundo, criando o desejo de uma interioridade ascética
que rejeita o mundo tal como ele é.
Merleau-Ponty deseja justamente superar este mal-estar com uma outra concepção de
liberdade que se afasta da liberdade absoluta presente na interioridade que rejeita o mundo
devido ao seu potencial de frustrar o indivíduo. Deseja-se afastar da capacidade criativa total que
existe no devaneio ao se defender uma liberdade condicionada na qual o indivíduo dialoga com o
mundo tal como ela se apresenta. A liberdade para poder se manifestar na existência deve se
apoiar em um ser em situação e será somente na sua relação com o mundo que o homem poderá
transcender um determinado contexto. O poder de arrancamento e de renascimento da liberdade
está obrigatoriamente no envolvimento com o mundo, conforme a Fenomenologia da Percepção.
Neste sentido o indivíduo deve realizar as transformações necessárias e viver a sua vida neste
mundo e não em um outro plano qualquer. Para Merleau-Ponty a liberdade estaria justamente no
nascer e no criar que sempre ocorre no mundo e para o mundo. Devido ao fato de a realidade já
estar constituída ela solicita certas atitudes do indivíduo, mas ela não está completamente
formatada de modo que o sujeito também tem certas possibilidades ao qual pode agir sobre. Por
conta disso não existe nem um fatalismo absoluto e nem uma total liberdade de escolha, de
forma que o indivíduo deve aprender a lidar com a impotência em certas situações de modo que
possa fazer uso das suas potencialidades em outras, sem deixar que as suas decepções se
transformem em uma desculpa para se refugiar uma interioridade. Desta forma a liberdade deve
obrigatoriamente se apoiar no ser que existe tanto no mundo como no sujeito, de forma que uma
ação que parece partir somente do indivíduo de fato se ancora em uma situação histórica dada,
estabelecendo uma liberdade condicionada pelo mundo e uma realidade que é afetada e
transformada pelo indivíduo.