Você está na página 1de 13

Anabolizantes: Impressões sobre o confronto

entre informações midiáticas e científicas

Anabolizantes: impressões sobre o confronto entre informações midiáticas e científicas

Autor: André Sevá Pessoa

Fonte:

http://www.efdeportes.com/efd165/anabolizantes-informacoes-midiaticas-e-cientificas.htm

Introdução

Adolf Butenandt e Leopold Ruzicka foram os pioneiros na pesquisa sobre anabolizantes, contribuindo de forma

decisiva para os avanços da pesquisas posteriores. Já, em 1929, eles isolaram o estrogênio, vindo em seguida obter os

princípios ativos da androsterona (1931), da progesterona e da testosterona (1934), determinando, conseguinte, as

relações entre tais anabólicos e os esteróides, o que possibilitou uma forma de produzi-los sinteticamente, fato que os

consagraram com o Prêmio Nobel de Química em 19391.

A partir das primeiras descobertas, os anabolizantes foram pesquisados na esfera da clandestinidade, havendo relatos

que os mesmos foram largamente utilizados durante a segunda guerra pelos nazistas criando soldados com

“capacidades físicas superiores”. Mesmo após o final da guerra, as pesquisas continuaram, ainda sem as bases

definidas dos princípios éticos. Relata-se que, durante o período chamado de Guerra Fria, na Alemanha Oriental,

mais de dez mil atletas foram testados com as novas substâncias (muitas vezes sem o conhecimento dos próprios),

sob a supervisão da Stasi (“Ministerium für Staatssicherheit"), o Ministério de Segurança do Estado3,4, durante um

programa denominado de "State Plan Research Theme 14.25", gerando um conhecimento inestimável sobre o

assunto, pois todos os estudos foram documentados e arquivados no próprio prédio da Stasi.

Esta atitude fez que com recordes de várias modalidades, principalmente de levantamento olímpico e arremesso de

peso, fossem imortalizados, permanecendo ainda sob domínios de ex-repúblicas comunistas. Durante esta época, o

doping era algo totalmente desconhecido pelos atletas e somente os cientistas obtinham um conhecimento primário

sobre os mecanismos metabólicos dos anabolizantes. A desinformação sobre o assunto era tanta – bem como a
irrelevante divulgação científica da temática – que nem as agências antidoping sabiam como identificar outras drogas,

com exceção da testosterona2,3,4,5. Coincidentemente ou não, foi exatamente neste período que surgiu o Turinabol,

produzido pela empresa Jenapharm, na Alemanha Oriental, e que passou a ser comercializado a partir de 1962, sendo

a principal droga utilizada no programa de pesquisas da Stasi3,6,7,8.Com a queda do muro de Berlim, em 1989,

grande parte dos estudos foram destruídos, sobrando apenas os relatos das pessoas que tiveram a coragem de

processar o Estado por terem sido usadas como “cobaias”2,4. Tem-se, aqui, um capítulo inacabado da história para a

compreensão dos eventos iniciais da obtenção dos precursores anabólicos que hoje são divulgados.

Após a revelação desse acontecimento, os governos e a mídia parecem ter optado em não divulgar, de forma

contextualizada, tanto pelo conhecimento científico até então obtido quanto pela história relatada, o potencial dos

anabolizantes como “drogas melhoradoras de performance”. Talvez, se considerarmos por uma ótica do medo do

desconhecido, tal atitude visava prevenir um alto custo com medicamentos e o tratamento de doenças causadas pelo

uso sem parcimônia dos ditos anabólicos. Um fator para tal atitude unilateral seria os poucos estudos que sobraram;

ressaltamos, aqui, que muitos destas pesquisas possuíam erros metodológicos, da mesma forma que outras não

possuíam qualquer correlação com os anabolizantes.

O assunto sobre os anabolizantes entra na rota contemporânea da mídia e da ciência no momento que surge o

jamaicano naturalizado canadense Benjamin "Ben" Sinclair Johnson, quebrando vários recordes a partir de 1984,

tornando-se um ídolo do esporte (na prova dos 100 metros rasos, do atletismo) e, por outro lado, gerando

desconfiança entre os demais atletas. Carl Lewis, atleta olímpico americano e principal rival de Ben Johnson, em uma

entrevista à BBC (British Broadcasting Corporation), após o Campeonato Mundial de 1987, em Roma, “alardou” que

vários atletas estavam competindo dopados. Neste mesma entrevista, Lewis foi enfático ao dizer: “há medalhistas de

ouro que usam drogas…esta corrida vai ser vista por muitos anos para que se encontre mais razões”, referindo-se

após o Meeting de Zurique, na Suiça9.

Foi quando que, em 1988, nos Jogos Olímpicos de Seul, na Coréia do Sul, Ben Johnson foi finalmente acusado

positivo nos exames anti-doping utilizando a substância chamada Stanozolol, na época fabricada somente pela

Pharmacia Upjohn com o nome de Winstrol. O escândalo causado por Ben Johnson foi o marco da divulgação dos

esteróides para o mundo dos esportes e o início da “demonização” dos anabolizantes10. Após esta data, inúmeros

atletas começaram a utilizar os anabolizantes, que até então não eram medicamentos controlados. Isso fez que com o

esporte fosse perdendo a sua principal característica, o "fair play".


A partir deste fato, acreditamos que, para resgatar os princípios primordiais dos ideais olímpicos, inicia-se um

desencontro entre mídia e informação científica, o que aprofundou, ainda mais, a distorção da realidade sobre os

anabolizantes. Em muitas situações, percebemos falsas informações nos meios de comunicação de massa, omitindo as

informações concretas e realmente comprovadas, publicando notícias sem qualquer informação científica e muitas

vezes de caráter duvidoso, o que veio a gerar interpretações múltiplas para tentar diminuir o número crescente de

jovens aderindo ao uso de anabolizantes11.

A Influência da mídia

A influência e o poder da mídia sobre a manipulação das massas atingiram seu ápice durante a Segunda Guerra

Mundial, com a promoção e a rápida ascensão do nazismo, distorcendo ideais e omitindo informações de milhões de

pessoas. Nos nossos dias, quando publicam uma notícia em jornais ou na televisão, normalmente médicos são

entrevistados11,12. Eles são considerados pelos leigos como os profundos conhecedores do corpo humano; portanto,

se algum médico diz que anabolizante faz mal à saúde ou causa tal efeito colateral, isso é tido como verdade. Mas tal

condição de divulgação de informação pode ser compreendida se considerarmos que os cientistas da área da

Bioquímica, Genética e Biologia Molecular evitam envolvimentos mais polêmicos quando o assunto é

“anabolizantes”, pelo fato das pesquisas estarem sob controle de Comitês Éticos de Pesquisas, com sanções rigorosas

de regras para manuseio dos dados obtidos. Também pode-se levar em conta que os periódicos científicos

conceituados e cultuados, cujas informações circulam apenas na esfera dos catedráticos e dos “iniciados”

cientificamente, possuem intransigências quanto aos conflitos de interesse das posses dos estudos.

Até o final dos anos de 1990, poucos eram os periódicos científicos disponíveis na Internet e de forma gratuita. Mas

cremos que o principal fator pela ausência mais acentuada de informações científicas sobre os anabolizantes é a

extrema dificuldade em conseguir desenvolver pesquisas longitudinais, com acompanhamento por mais de vinte anos

dos sujeitos em estudo13. A grande maioria das pesquisas é de caráter transversal, com observações de manifestações

agudas dos efeitos dos anabolizantes14. A própria teoria da “Síndrome do Estresse”, proposta por Hans Selye15,

considera que o conhecimento de uma resposta estressora necessita ser vista em três domínios: a fase de alarme, que

seria justamente os eventos agudos iniciais das perturbações orgânicas (os quais nem sempre representam “perigo” ao

organismo, pois devem ser considerados “ajustes regulatórios” e não necessariamente manifestação patológica);

a fase de resistência, caracterizada pela adaptação ao agente estressor (se pensarmos em pesquisas de caráter

transversal, tais resultados nem sempre serão confiáveis, pois os diferentes sistemas orgânicos possuem um

heterocronismo quanto às respostas adaptativas); a fase de exaustão, a qual pode levar o sujeito ao desenvolvimento
de síndrome generalizada de estresse, o que no esporte caracteriza-se como o “overtraining”16, ou até mesmo a

morte. Fica a pergunta, que responderemos adiante: quantos casos de morte por uso de anabolizantes são de

reconhecimentos e relatados no campo da pesquisa científica? Quantos casos foram divulgados pela mídia de massa

comprovando a morte de adeptos ao uso dos anabolizantes, a não ser os efeitos geralmente das pesquisas transversais

realizadas com animais? A preocupação em divagar por este tema reside única e exclusivamente sobre como os

veículos de comunicação podem formar opiniões unilaterais e, conseqüentemente, trazer a questão da omissão e falta

de interesse, por parte dos pesquisadores, em divulgarem um olhar que transmita mais confiabilidade.

Muitas vezes, por ouvir termos científicos vindos de uma pessoa com tal status profissional (e não competência

profissional), o leigo o toma como profundo conhecedor de tal tema. É evidente que esse preconceito deveria fazer

com que os profissionais fossem mais cautelosos ao afirmarem algo que poderia prejudicar a imagem de certa pessoa

ou produto, porém isso raramente acontece no caso do uso de anabolizantes. Poucos afirmam que existem vários

benefícios e que os riscos podem ser controlados (sobretudo, se deixarmos a questão da estética e performance de

lado e considerarmos os tratamentos para doenças crônicas, tais como o HIV/AIDS e as distrofias musculares)17,

mas a primeira afirmação ao serem questionados sobre anabolizantes é que fazem mal à saúde de um modo geral.

Isto pode se agravar mais ainda quando o profissional que é questionado sobre os efeitos do uso dos anabolizantes

não está interado e integrado aos estudos científicos e também sobre os pormenores dos mecanismos de ação de

anabólicos nas centenas de organelas e estruturas moleculares que formam uma única célula. Se considerarmos que

cada tecido corporal possui mecanismos moleculares próprios e estruturas distintas e, indo além, que a interação

“anabólico-estrutura alvo” será diferenciada para cada unidade molecular, o montante de conhecimento a ser

adquirido por um único profissional deverá ser notável! Por isso que a ausência dos argumentos científicos

combinados com as informações de acesso facilitador para leigos torna-se um abismo para a formação de opiniões

realísticas. Juntando a tudo isso, que dificilmente um profissional não interado dos argumentos científicos em seu

“estado da arte” consiga chegar a uma conclusão satisfatória quando é questionado sobre os efeitos do uso dos

anabolizantes pelos jovens nas academias de ginástica (é a abordagem mais senso comum que se encontra na mídia),

este terá duas saídas: argumentar com meias-verdades (que acabam se tornando respostas “jogadas ao vento”) ou

simplesmente assumir que não é qualificado para dar uma opinião sobre um assunto tão complexo, que envolve

conhecimento das áreas das ciências biológicas, da bioética e da antropologia cultural. Ao assumir em dar uma

resposta mediada pela limitação de conhecimentos, fica o pensar de Nicolau Maquiavel “O homem que tenta ser bom

o tempo todo está fadado à ruína entre os inúmeros outros que não são bons”.

A realidade distorcida
Um paradoxo que existe atualmente é esse jogo promovido pela mídia, valorizando o culto ao corpo ao extremo, seja

ele conseguido através de inúmeras horas de árduos treinos, seja através dos anabolizantes, ou talvez pela forma mais

radical e agressiva de mudar o visual, a cirurgia plástica. Porém, ao mesmo tempo em que o corpo esculpido é

valorizado, assim como as pinturas e esculturas retratavam os titãs e deuses gregos19,20, a mídia distorce não só a

imagem, mas também valores. Acontece que os métodos ou meios utilizados para atingir esse padrão são criticados

ou ignorados. Muitas vezes a mídia confunde determinação com insanidade e gera estereótipos não como uma forma

de criticar, mas para promover repercussão de assunto. A pessoa que passa horas treinando geralmente é chamada

“rato de academia”18. É interessante notar como atletas, da maioria das modalidades, não são estereotipados, mas os

fisiculturistas sim. Mas eles também não são atletas? Passam algumas horas na academia, normalmente não mais do

que três horas diárias, o que em termos de tempo para treinamento de alto nível é pouco. Mas por que os triatletas,

competidores de maratonas, “iron mans” e outros atletas de provas de resistência não são estereotipados? São

ovacionados como heróis.

Recentemente, com o avanço fantástico das lutas de MMA (Mixed Martial Arts), um comentarista esportivo

renomado no Brasil, referiu-se aos atletas desta modalidade como os “gladiadores do terceiro milênio”21. Um título

tão pomposo que gerou repercussão e comoção nacional com a vitória do brasileiro Júnior “Cigano” dos Santos sobre

o americano Cain Velásquez, em evento que ocorreu em novembro de 2011, no Rio de Janeiro. A audiência chegou a

16 pontos na média nacional segundo o Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística) e 43% de

“shares” (número de televisores sintonizados no canal), praticamente um marco histórico no esporte televisionado no

Brasil, ainda mais considerando que o evento foi transmitido em uma madrugada de final se semana. O último evento

da UFC 142 (“Ultimate Fighting Championship”), no mês de janeiro de 2012, onde a luta principal foi entre o

brasileiro José Aldo e o americano Chad Mendes, pela disputa do título mundial na categoria pesos penas, foi visto,

de acordo com a Rede Globo de Televisão, pois mais de 1 bilhão de telespectadores22! Fica a indagação do quanto os

patrocinadores destes eventos disponibilizam para que haja aceitação tão rápida por parte da sociedade de uma

modalidade que sempre foi vista com certo receio de divulgação na mídia. Afinal de contas, vivemos a era da

“Violência Não” (conjunto de conceitos sobre moralidade, poder e conflitos que rejeitam completamente o uso da

violência nos esforços para a conquista de objetivos sociais e políticos)23. Quanto aos “apenas” fisioculturistas, ficam

os rótulos nada pomposos20,esquecendo-se que muitos dos praticantes são consumidores vorazes de informações

científicas, buscam acompanhamento de profissionais qualificados nos âmbitos da nutrição esportiva e treinamento

personalizado. A quase totalidade dos fisioculturistas profissionais dedica-se ao esporte em tempo integral, mas

vivendo de patrocínios inigualáveis aos montantes divulgados por outras modalidades.


Parece haver certo preconceito em relação à quantidade de massa corporal independente da pessoa ser fisiculturista

profissional, ou apenas alguém preocupado com a estética, e mesmo a pessoa tendo utilizado alguma substância

anabólica ou não. É interessante como não se dá importância a todos os procedimentos necessários para ser alcançado

aquele físico invejável para muitos. Tanto o fisiculturista quanto os atletas de provas de resistência são determinados

disciplinados a ponto de se dedicarem várias horas diariamente para atingirem seus objetivos. Mas, neste aspecto, os

atletas de resistência deveriam ser mais estereotipados ainda, pois ultrapassam facilmente três horas diárias de treino.

O mais leigo sobre a temática acharia que há alguma relação entre massa magra/tempo de treino para que certas

pessoas possam sofrer algum tipo de preconceito devido a isso!

Interessante, neste momento, visitar o olhar antropológico dos estudiosos da “Cultura Corporal” sobre o conceito de

fisioculturismo. Daólio24, ao transcorrer sobre o assunto, ressalta que a maioria dos profissionais da Educação Física

apropria-se do conceito de técnica não como um “ato cultural”, mas delineado de um conjunto de movimentos

considerados sempre corretos, precisos, melhores do que outros. Fica evidente em nossa análise, por este parâmetro,

que o fisioculturista, por apresentar um corpo imaginado como “perfeito”, distancia-se do foco humanista das

reflexões sobre a “Cultura Corporal” e torna-se um sujeito diferenciado, quase um divisor da condição de membro da

espécie humana24:

“Acreditamos já ser possível pensar no duplo sentido do termo Cultura Corporal. No primeiro, que rebatemos, se

pressupõe uma única técnica sobre o corpo; a palavra cultura acaba sendo usada como sinônimo de treinamento,

adestramento do corpo. É neste sentido que termos como culturismo e fisioculturismo são utilizados, constituindo-se

em mais um discurso sobre o corpo, apenas uma das técnicas sobre ele colocadas. Não a única, nem a melhor”

(p.26).

As observações sobre corporeidade e fisioculturismo são transpostas pela dramaticidade destes “olhares” da

Antropologia Cultural. Como ressaltado na citação acima, o termo fisioculturismo nada mais é que um dos discursos

sobre o corpo, não o único e nem o melhor. O que não se deve ocorrer, no âmbito acadêmico, que haja um “status”

dito humanista sobre as teorias que advogam sobre os meios (e técnicas) voltados ao treinamento físico. Os conceitos

tendem a sofrer convergências no campo teórico/ideológico, mas não se pode afirmar que haja supremacia daquele

que se alinha ao pensamento filosófico em seu sentido romântico. ..

Outra questão interessante sobre o preconceito estético são as cirurgias plásticas. Poucos médicos desestimulam os

pacientes que recorrem às cirurgias somente para fins estéticos, mesmo que os objetivos possam ser conseguidos

brevemente com dietas e um treinamento adequado. De todos os métodos para melhorar os aspectos estéticos, relata-
se que a cirurgia plástica seja o mais agressivo e lesivo ao organismo25, tanto pelas incisões que já causam certo

estresse no metabolismo quanto pelos medicamentos utilizados durante e pós-cirurgia. Não precisamos aprofundar

muito nesta questão sobre os aspectos fisiológicos ou bioquímicos, mas há autores que citam as cirurgias sendo os

processos mais estressantes ao metabolismo25.

É notável a maneira como a mídia divulga um padrão estético totalmente delineado, mas não discute os métodos para

atingi-lo. Não se mostra as dietas seguidas à risca, a determinação acima de tudo, e o esforço para se obter este

padrão. Mas o esforço do cirurgião plástico e os avanços nos procedimentos estéticos são amplamente divulgados.

Para complicar ainda mais sobre as questões de estereótipos, estudiosos colocam num mesmo patamar de fórum

temas que vão da “cultura da malhação” às cirurgias plásticas, consumos de cosméticos e estilos de vidas e classe

econômica26. No trabalho de Goldenberg28, ao relatar um estudo de César Sabino, vemos:

“Em seu trabalho, o autor relata a busca intermitente da ciência por substâncias que otimizem a forma do corpo,

modificando a morfologia individual, sempre valorizando uma imagem impositiva de masculinidade e juventude. A

‘Indústria da Saúde’ é legitimada pelos ‘discursos especializados’ presentes nos meios de comunicação, o que leva,

segundo Sabino, indivíduos comuns a investirem no consumo de ‘dietas, exercícios, anabolizantes, clínicas estéticas e

academias’. Para o autor, o ‘hedonismo racionalista’ é produto de um “controle disciplinar sem par na história’,

levando a um tipo de ‘ascetismo’ associado à diversão e ao consumo” (p.335).

O conceito de ascetismo, supracitado, é referenciado em uma moral filosófica baseada no desprezo do corpo e das

sensações corporais, e que tende a assegurar, pelos sofrimentos físicos, o triunfo do espírito sobre os instintos e as

paixões27! Duas questões (dentre muitas) são inquietantes: é possível um estudioso alicerçar-se solidamente sobre e

entre áreas tão distintas e cheias de pormenores conceituais, como as biológicas e humanas, a ponto da indagação

citada? O sujeito provido de informações científicas, tão ou mais intelectualizado em relação a muitos estudiosos da

“cultura corporal”, será também considerado um “mártir acéfalo do terceiro milênio” por ser um praticante de

fisioculturismo? O que deveria ser informação científico-acadêmica mais parece, em situações extremas, como

desencontros promovidos pela ausência de conhecimento específico e o não reconhecimento de que um pesquisador

também pode ser leigo e ter opinião adestrada no senso-comum. Este é o terreno mais perigoso para se basear em

formação de opinião. Critica-se o corpo conseguido através de muito esforço, dedicação e determinação, de forma

natural (ou não), sem qualquer invasão e, ao invés de sangue, muito suor derramado. Fica evidente, novamente, que

não há uma aproximação entre divulgação científica e especulação midiática. Quando haverá esse confronto?
Não apenas a forma de valorizar o culto ao corpo é forçada através de imagens, de modelos, mas também de

produtos. E esses começam a estimular este valor de forma errada já na infância. Provavelmente nossos pais nunca se

preocuparam em quantos “gomos” eles teriam no abdômen ou a percentagem de gordura corporal. Não só os estudos,

mas também os produtos mostram (ou levam a) a obsessão pelo corpo. De acordo com os estudos do Dr. Harrison

Pope e equipe, da Universidade de Harvard, os bonecos demonstram claramente essa preocupação pelo corpo, e todas

as imagens que vemos na televisão, revistas ou desenhos enviam a mensagem que o verdadeiro homem é grande e

musculoso28. Durante uma pesquisa sobre o mesmo assunto, revelou a seguinte informação: em 1964 um boneco

popular tinha um bíceps equivalente a 12,5” (o equivalente a 31,7cm); em 1991 cresceu para 16,5” (o equivalente a

41,9cm) e, durante a década de 90, saltou para 27” (o equivalente a 68,5cm)29! A maior mudança relatada foi nos

bonecos G.I. Joe, na década de 60. Quando foi lançado, tinha apenas um talho na vertical, separando o lado esquerdo

do peito do lado direito, sendo essa a única protuberância do corpo; o bíceps era totalmente reto, assim como o

ombro. Em meados de 1970, foi lançada outra versão do boneco, sendo que essa já possuía um ombro arredondado, já

mais saliente, seis “gominhos” no abdômen e o peito já tinha um certo volume; em 1999 foi lançada mais uma

versão, com abdômen totalmente definido, com o músculo serrátil aparecendo notoriamente, o trapézio inserindo-se

quase na metade do pescoço e o bíceps 6” maior (cerca de 15 cm maior)! Isso seria um olhar “aguçado” de uma

realidade distorcida.

Os fatos e as omissões

Segundo o Center of Disease Control (USA) as mortes causadas pelo uso excessivo de anabolizantes em 2006 foram

três30; as internações e/ou visitas em salas de emergências estavam em 142° lugar na lista de ocorrências5. Seria

mais importante a mídia divulgar que o próprio Center of Disease Control considera que a vitamina C,

antiinflamatórios, analgésicos e cafeínas, por exemplo, são alguns dos compostos classificados como “anabolizantes“

em sua lista e que não apresentam uso controlado(atualmente há uma maior divulgação sobre efeitos colaterais dos

anti-inflamatórios)5.

O trecho de uma matéria publicada no site da BBC News, em novembro de 2003, ajuda-nos a entender melhor como

a mídia pode distorcer as informações: “pesquisadores descobriram que o uso excessivo de paracetamol ou aspirina

está relacionado à calcificação dos rins, causando a falência renal”31. Essa era a mensagem principal, com um

destaque impressionante, escrita em vermelho numa fonte bem maior do que a do texto mesmo. Só no texto

especificaram que a dose considerada excessiva é tida como uma dose maior do que 300g/ano. Continuando a leitura,

via-se o seguinte trecho quase no final da matéria31:


Cientistas do Centro de Estudo Nacional de Analgésicos e Neuropatias dizem: "Nós concluímos que o uso pesado de

analgésicos por pelo menos 9 anos tende a desenvolver uma falência renal irreversível que está associada com uma

pequena mudança anatômica, identificada como calcificação dos rins”.

Ao colocar somente no final do texto a informação de que são necessários pelo menos nove anos de uso excessivo, a

notícia distorce totalmente os dados sobre o produto, ou dá destaque para um fato praticamente insignificante para

pessoas que não utilizam esses produtos diariamente (somente quem tem artrite ou sofre de dores crônicas utiliza uma

dose tão alta assim). Mas quem só visse de relance a matéria e, se fosse leigo no assunto, tenderia a reproduzir a

demais pessoas que antiinflamatório causa falência renal ou outras coisas piores, revelando uma notícia parcialmente

distorcida. Porém, estudos citam o parecetamol como um dos principais medicamentos responsáveis por várias

patologias hepáticas25. Pesquisas32 provam que muitos medicamentos vendidos sem qualquer controle dos órgãos

responsáveis, ou vendidos sob prescrição médica causam efeitos colaterais a curto ou longo prazo. Muitos desses

medicamentos comercializados ainda não possuem em suas bulas diversos efeitos colaterais comprovados

cientificamente.

De acordo com Adock e colaboradores33, dependendo da dosagem, tipo do glicocorticóide inalado e duração da

terapia, efeitos sistemáticos como supressão do crescimento (diminuição do nível de GH), insuficiência adrenal, risco

aumentado de fraturas, desenvolvimento de catarata e/ou glaucoma, hiperglicemia e desordens psicológicas podem

ser induzidas. Longui34 completa a informação de que os glicocorticóides podem, ainda, reduzir a absorção de

cálcio, provocar tumor e ser imunossupressores. Tais efeitos colaterais não são vistos nas bulas dos medicamentos

talvez pelo mesmo fato de não haver um confronto de interesses entre os pesquisadores (que na maior parte têm seus

estudos financiados pela indústria farmacêutica) e pela própria mídia, que não obstante tem seus eventos (sobretudo

os esportivos) patrocinados por grandes multinacionais da Farmácia. No Brasil, a indústria farmacêutica apresentou

parcerias importantes com o futebol, o esporte mais lucrativo em termos televisivos35.

O fim do fair-play e a venda restringida

Após Bem Johnson ter sido flagrado nos exames anti-doping nos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1988, a FDA

(USA;Food and Drug AdministrationHYPERLINK "http://www.fda.gov/" ) e a DEA (USA; Drug Enforcement

Administration) em conjunto com o FBI (Federal Bureau of Investigation) iniciaram a “Equine Operation”, em 1989.

O principal objetivo dessa operação era descobrir e prender os principais fornecedores de anabolizantes nos EUA36.

Durante os anos de 1990 e 1991, descobriram que um dos maiores fornecedores de anabolizantes tinha relações com

um famoso “personal trainer” da época, e este tinha um grande relacionamento com Jose Canseco, o maior astro do
Baseball na época3. Não só Canseco estava envolvido com o doping, mas dezenas de jogadores profissionais,

revelando um número crescente de “Home Runs” na década de 90 (número)3. Nesta época, devido ao escândalo do

doping no Baseball, a mídia retomou uma imagem subliminar dos anabolizantes como “drogas melhoradoras de

performance”. Para tentar reverter o crescente número de jovens aderindo ao uso de anabolizantes, foi relacionado o

uso destes com o esporte como uma péssima atitude (cheaters), afastando, portanto, uma nova possibilidade de

confrontar informação científica e divulgação coerente de informações sobre os tais anabólicos.

Criaram-se vários programas para “reeducação esportiva”, tentando diminuir a propensão ao doping dos jovens

atletas na idade escolar dos EUA. Porém, esses programas revelaram somente o lado ruim dos anabolizantes,

deixando de lado os inúmeros tratamentos que são feitos e as constatações científicas. Logicamente que o objetivo era

trazer as ressalvas sobre o uso dos anabolizantes, mas um programa que se intitula educacional não pode se privar de

todas as vertentes de uma temática abordada.

De acordo com os dados da Universidade de Michigan, em 2005, “Monitorando os Estudos Futuros”, utilizados nos

estudos de Collins32, os resultados mostraram uma redução significativa na quantidade de usuários de anabolizantes:

 Alunos de 8ª Série que assumiram ter utilizado pelo menos uma vez algum anabolizante: 2,5% em 2002; 1,7% em

2005.

 Alunos de 2º Colegial: 3,5% em 2002; 3,0% em 2003; 2,4% em 2004 e 2,0% em 2005.

 Alunos de 4º Colegial: 4,0% em 2002; 3,5% em 2003; 3,4% em 2004 e 2,6% em 2005.

Se utilizarmos esses dados como parâmetro, cerca de 28,6% dos jovens nos EUA teriam utilizado algum tipo de

anabolizante entre os anos de 2002 e 2005. Como substância altamente nociva à saúde, sobretudo ao metabolismo

hepático, os anabolizantes poderiam ter induzido patologias em praticamente 1/3 da população de jovens; porém, não

foi encontrado nenhum estudo referente a um fato alarmante como este.

Segundo Collins32, em 1990, durante uma reunião no Capitol Hill, foi criado o “Anabolic Steroid Control Act”,

tornando os anabolizantes substâncias controladas como uma alternativa para tentar diminuir o uso de esteróides por

parte dos atletas. A parte mais estranha dessa reunião é que os anabolizantes se tornaram medicamentos controlados

apesar da Food and Drugs Administration (FDA), American Medical Association (AMA) e a Drug Enforcement

Administration (DEA) mandarem seus representantes votarem contra tornarem os anabolizantes uma substância

controlada, alegando que os abusos desses hormônios não causavam dependências física e/ou psicológica, requisito
necessário para se tornar um medicamento controlado32. Ano após ano, o “Anabolic Steroid Control Act37” foi

modificado, sendo acrescentadas novas substâncias anabólicas descobertas.

Considerações finais

As informações geradas no âmbito do conhecimento científico são resultados de anos de estudos e comprometimento

ético dos pesquisadores envolvidos em suas temáticas de interesse. São tais informações que chegarão a uma pequena

parcela de pessoas, inseridas no contexto acadêmico, sobretudo superior, possibilitando que os conhecimentos

básicos sejam integrados aos delineamentos práticos gerados no interior dos laboratórios. Quando o confronto

saudável entre as referências científicas e as informações midiáticas de massa não ocorre, ou, além disso, há um

desencontro pautado por interesses não velados, a distorção dos temas recorrentes na mídia, como os efeitos

induzidos pelos anabolizantes, passa a gerar um “efeito cascata” com capacidade infinita de abalar a formação de

opinião pautada pela responsabilidade. Desta forma, acreditamos que os profissionais envolvidos com a pesquisa

científica deveriam tomar as rédeas da inserção das discussões que regem interesse de saúde pública.

Referências bibliográficas

1. Butenandt, Adolf The Nobel Prize in Chemistry 1939. Nobel Prize Foundation. Nobel Lectures, Chemistry 1922-

1941, Elsevier Publishing Company, Amsterdam, 1966. Disponível

em: http://nobelprize.org/nobel_prizes/chem… t-bio.html. Acesso em Junho de 2008.

2. Rooper A. Revelead: the great olympic drug scandal, 2008. DVD (47:26), sound, color.

3. Tobin RG. On the potential of a chemical bonds: possible effects of steroids on home run productions in

baseball. American Journal of Physiology, v. 76, n. 01, p. 15-20, 2008.

4. Ungerleider S. Faust’s gold: inside the east German doping machine. New York: Thomas Dunnes Books, St.

Martin’s Press, 2001.

5. Bell C. Bigger stronger faster: the side effects of being American, Magnolia Pictures, 2008. DVD (1:46:34), sound,

color.

6. Lenehan P. Anabolic steroids and other performance-enhancing drugs. London: Taylor & Francis, New Fetter

Lane, 2003.

7. Llewellyn W. Anabolics: anabolic steroid reference manual, 2009 Edition”. Florida: Body Of Science, Jupiter,

2009.

8. Superhuman faking it. National Geographic, Base Productions Inc., 2007. DVD (47:20), sound, color.
9. Ben Johnson (atleta). Disponível em: http://es.wikipedia.org/wiki/Ben_Johnson_(atleta)

10. Ben Johnson athlete – canadian reaction to 979: a wisdom archive on Ben Johnson. Disponível

em:http://www.experiencefestival.com/ben_johnson_athlete__canadian_reaction_to_979

11. A sedução e os perigos dos anabolizantes. Disponível em:http://www.brasilmedicina.com/especial/mdesp_t4s2.asp

12. Mídia desinformada vs. fisioculturismo. Disponível em: <;http://brauliocolmanetti.blogspot.com/2011/12/midia-

desinformada-vs fisiculturismo.html>;

13. Tavares FAG; Suffredini TS; Oliveira, CCES; Biagini AP; Oliveira NML. Atuação dos esteróides anabolizantes na

regeneração musculoesquelética. Revista Arquivos de Ciências da Saúde, v.15, n.03, p. 145-149, 2008.

14. Silva PRP; Danielski R; Czepielewski MA. Esteróides anabolizantes no esporte. Revista Brasileira de Medicina do

Esporte, v.08, n. 06, p. 235-243, 2002.

15. Selye H. The stress of life. New York: Mc Graw-Hill, 1956.

16. Kuipers h, Keizer HA. Overtraining in elite athletes. Review and directions for the future. Sports Medicine, v.06,

n.02, 79-92, 1988.

17. Palermo PCG; Feijó OG. Exercício físico e infecção pelo HIV: atualização e recomendações. Revista Brasileira de

Fisiologia do Exercício, v. 02, n. 03, p. 218-246, 2003.

18. Machado EP. Ratos de academia on-line: o corpo perfeito para usuários de um fórum virtual relacionado à

musculação. Monografia de Conclusão de Curso, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009.

19. Júnior, H. A. Leonardo e Vesalius no Ensino de Anatomia Humana. Revista Metrocamp Pesquisa, v. 1, n. 1, p.

118-130, jan./jun. 2007.

20. Corrêa TP; Hernadez JAE. Estereótipos sociais vinculados ao corpo. EFDeportes.com, revista digital, Buenos

Aires, Ano 14, v. 140, 2010. Disponível em:http://www.efdeportes.com/efd140/estereotipos-sociais-vinculados-ao-

corpo.htm

21. Galvão se torna atração de vitória de Cigano: "gladiadores do 3º milênio!". Disponível

em:http://esportes.terra.com.br/lutas/noticias/0,,OI5468301-EI15532,00-

Galvao+se+torna+atracao+de+vitoria+de+Cigano+gladiadores+do+milenio.html

22. Magnho José. É ‘imensurável’ a visibilidade da Raspadinha do Rio e da Loterj durante o UFC 142. Disponível

em: http://www.magocom.com.br/bnl/blogListagem.aspx

23. Não Violência. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/N%C3%A3o_viol%C3%AAncia

24. Daólio J. Os significados do corpo na cultura e as implicações para a Educação Física. Movimento, n. 02, p. 24-28,

1995.

25. Kunar V; Fausto N; Abbas A. Robbins and Cotran: pathologic bases of diseases. Philadelphia: Saunders Elsevier,

2010.
26. Goldenberg M. O corpo carioca desnudado. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 12, n. 01, p. 331-346, 2004.

27. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível

em:http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-

portugues&palavra=ascetismo&CP=19034&typeToSearchRadio=exactly&pagRadio=50

28. Pope Jr HG; Phillips KA; Olivardia R. The Adonis complex: the secret crisis of male body obsession”. Free Press.

New York, 2000.

29. Starr L. “1994-1998 The Tipping Point”. Fort Lauderdale, Flórida. Disponível

em:http://sports.espn.go.com/espn/eticket/story?page=steroids&num=5. Acesso em Setembro de 2005

30. Collins R. “Pumped: A truth-enhancing seminar on steroid use and the law”, 2006. Disponível

em:http://www.drugpolicy.org/docUploads/PUMPED051006.pdf

31. BBC News “Painkiller Cause Kidney Damage”. Disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/hi/health/3271191.stm.

Acesso em Setembro de 2009.

32. Bastiani A; Abreu LC; Silveira KL; Limberger JB. O uso abusivo de medicamentos. Disciplinarum Scientia. Série:

Ciências da Saúde, Santa Maria, v. 06, n. 01, p. 27-33, 2005.

33. Adcock, Ian M. & Chung, Kian F. In: “Overcoming Steroid Insensitivity in Respiratory Disease”. Southern Gate,

Chichester: John Wiley & Sons Ltd, The Atrium, 2008.

34. Longui CA. Corticoterapia: minimizando efeitos colaterais. Jornal de Pediatria, v. 83, n. 05, p. S163-S171, 2007.

35. Futebol: Brasileirão 2010 ganha apoio de uma das maiores indústrias do país. Disponível

em:http://www.teuto.com.br/?i=br&pg=imprensa&id_noticia=233

36. Baker M. Operation equine – when steroid investigation targeted dealers not athletes”. 2005. Disponível

em:http://www.mesomorphosis.com/blog/2009/03/31/operation-equine-steroid-investigation-targeted-dealers/.

Acesso em Setembro de 2009.

37. S.4032 – Designer Anabolic Steroid Control Act of 2010. Disponível em:http://www.opencongress.org/bill/111-

s4032/show

Você também pode gostar