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V. 21 N . <l994):183-205
MORALIDADE E ESTADO DE
NATUREZA EM ROUSSEAU*
Edgard José Jorge Filho
PUC — Rio
R e s u m o . S u s t e n t a m o s que o h i p o t é t i c o estado de n a t u r e z a p r i m i t i v o de
Rousseau n i o é u m estado amoral. Partimos da interpreta;3a d a sua c o n c e p ç ã o
d o direito natural, em que descobrimos u m tríplice fundamenta: dois senti-
mentos — amot-de-si-mcsmo e piedade natural — e a consciência da liberda-
d e . E m s e g u i d a , d e f e n d e m o s q u e a l i b e r d a d e e a c o n s c i ê n c i a e x i s t e m e m ato
j i naquele estado. F i n a l m e n t e , verificamos, de maneira p r e l i m i n a r , a hipótese
d a p i o i i m i d a d e d e s t e a u m " p o n t o á t i m o " d e r e a l i z a - l o da l i b e r d a d e e d a
c o n s c i ê n c i a , i n c l u i n d o - o entre o s i d e a i s a l t e r n a t i v o s d e R o u s s e a u .
A t i s l r a r l . W e s u s t a i n l h a l R o u s s e a u ' s p r i m i t i v e State o f n a i u r e is n o t a n a m o r a l
state. W e start f r o m l h e i n i e r p r e l a t i o n o f h i s c o n c e p t i o n of n a i u r a l r i g h t , i n
w h i c h w e find a threefold foundation: two feelings — self-love and natural
c o m p a s s i o n — a n d c o n s c i o u s n e s s oF l i b e r t y . T h e n , w e s u s t a i n l h a t l i b e r t y a n d
c o n s c x o u s n e s s are a c c o m p l i s h e d a i r e a d y ín t h e a b o v e m e n l i o n e d s l a l e . F i n a l l y ,
w e v e r í f y , i n a p r e l i m i n a r m a n n e r , l h e h y p o t h e s i s of l h e p r o n i m i t y of I h i s s t a l e
I o a n o p i i m u m p o i n i of a c c o m p l i s h m c n l of l i b e r t y a n d c o n s c i o u s n e s s , i n c l u d i n g
it a m o n g s i R o u s s e a u ' s a l t e m a l i v e i d e a i s .
AnIe essa célebre carta, não seria mais sensato nos render à
evidência, dar meia-volta e abandonar uma linha de interpreta-
ção frágil? Talvez, mas a obstinação nos impele. O que podería-
mos, contudo, promover a nosso favor? Julgamos possível ex-
plorar certas ambigüidades do pensamento de Rousseau, com
vistas a pelo menos debilitar aquela evidência. Conviria mostrar
as razões para se admitir a atualização da piedade humana, da
liberdade e da consciência, já no estado de natureza original.
Cabe, portanto, dirigir os esforços para a análise e discussão de
certos aspectos desse estado.
O ser moral supõe a liberdade em ato, e esta por sua vez depen-
de da inteligência, da possibilidade de submeter-se à lei com
conhecimento, ainda que este se configure como imediato, não
elaborado pela razão, mas próprio de u m ser ignorante das luzes
a adquirir. Moralidade — liberdade e ignorância não se excluem
mutuamente, enquanto esta significar u m conhecimento natural
imediato, independente da razão discursiva, como que intuitivo:
///
" Ó vós, a quem a voz celeste não se fez ouvir e que não
reconheceis para essa espécie outro destino senão o de
terminar em paz esla curta vida, vós, que podeis deixar
no meio das cidades vossas funestas aquisições, vos-
sos espíritos inquietos, vossos corações corrompidos e
vossos desejos desenfreados, retomai, posto que depen-
de de vós, vossa antiga e primeira inocência, ide aos
bosques esquecer o espetáculo e a memória dos crimes
dos vossos contemporâneos e não temais aviltar vossa
espécie renunciando às suas luzes para renunciar a seus
vícios"".
1. C . B-, p « S .
10. Cf. Goldschmidl, V. - AnlfuapoloS'' f' Poliliilue. Irs jjrínfijm du syslímr de Romíreu, Vaca.
I - V n n . 1974, Dfralhé. R, - U Rnlionalismt de /.-/, ROUSSÍOU, Paris, PUF, 1948.
11. C . B . p 936.
14 C f D D , p 163
16. No livro IV do EjniJío, dÍ7-se que "a consciência í para alma o que o inslinlo é para o
corpo" íp. 5951- Ambos lôm c m comum o caráler inalo, rtlo-adquirido; daí talvez, o aulor
cliamar a consafncia de "instinto divino" EJe se o p ^ ao empirismo da filos^kfia moderna,
que poslula o cantler adquindo d c Iodas as idéias c contwximenlos. Todavia, tcconliece a
obscuridade do significado da palavra instinto, entendido como uma JacuJdade "que parece
guiar us animais, sem qualquer conheamenlo adquindo, para algum fim" {E., p. 395).
(D. D., pp. 194-5). Observemos que Rousseau nSo quer operar tom um conceilo
de virtude em sentido físico (como qualidade que contribui p,^ra a auto-
conservação), mas sim com esse corKcilo no sentido ordinário, moral, levando
isso em conta, interpretemos o cometo da dtflç,lo. Aí nSo se afirma a ineiistênda
de virtudes (morais) no eslndo de oalure/a primevo, üpenas se exibe uma apa-
rência ("parece, de inido, que os homens,,, n i o tinham virtudes (.. )"|, n i o endos-
sada pelo autor. Ademais, a inexislftiaa de relaçio moral e de deveres conheci-
dos nilo significa a amoralidade desse estado, mas latvsomenle a ausínda de
uma relaçio convcnciofwda entre os homens (o quahficalivo "nniral" possui aqui
o mesmo sentido que quando atribuído A desigualdade, no Exúrdio: deperulenle
de uma espéde de convençüo, auKmzado pelo coTBenlunentodas homens) (d. D, D,,
p, 157),
28. D. D , p 186, nola. Também na Leilre A Philopolis. <p 248, riammarion), lê-se. a respeilo
das relações das fêmeas dc outras espécies com os seus lilhutcs: "Desde que os pinlos saem
do ovo. venlica-sc que a galinha nSo lem nenhuma necessidade deles, no enlanio sua
ternura maternal nio os cede a nenhuma outra galintia".
30 D . D . p 198.
31. Note:
"Qu.indo mc perguntam qual é a causa que dclerirana minfia vontade, cu de
minha parte pergunto i.|ual é a causa que determina o meu juízo: pois ê claro que
cs.sas duas causas s.lo apenas unvi só 1..) o homem escolhe o bem como julga o
verdadeiro, se ele julga falsamente, escolhe mal. — 'Qual é, pois, a causa que
determina sua vontade? 1- o seu juízo. E qual í a causa que determina seu juízo?
É a sua faculdade inieligenie, é seu poder de |ulgar a causa delerminanle esti
ítelc mesmo Para além dislo, rvlo eniendo mais nada'" (E-, p 586)
P.mbora pareça ler uma significaçío mais teórica, a ra7.ao, assim definida, assemelha-se A
cunsciínda, cuja dimensão prática í mais evidenle.
"(i apenas pelos Isentimentos naturais relativos ao indivíduo mesmo e ^ espécie!
que conhecemos a conveniência ou a náo-conveniência que existe entre nAs e as
coisas que devemos buscar ou evitar. (...) E é do sistema moral formado píir essa
dupla relaçáo, a si mesmo e aos seus semelhantes, que nasce a impulsAo naiural
da consciência." ( C M . - 5 , p. 1109).
Que a i n m t e z a SOIHC a questão nSo é apenas aparente ou simulada, pode-se verificar pelo
confronto de duas pas.4agens- Na primeira lemos: " A natureza ordena a Iodo animal e He
obedece t..) pois a Hsica explica de alguma maneira o mecirusino doe sentidos r a formação
das idéias í . . ) . " ÍD. D . p 1711. E . na segunda: "Aliás, o movimento progressivo c cspontã>
neo d i h animais, as scnsaçAes, o poder de pensar, a liberdade de querer c d c agir. que
encontro em mim mesmo e nos meus semelhanies. ludo isso ultrapassa as noções da me-
cânica que pos-so deduzir das propriedades conliecidas da matéria" ÍSur Dteu eí ín K^^^ntioií,
p. ]0^?i) Mais uiTwi vez nos deparamos com a p r u d ê n a a e a perspicácia na formula\;ão
leórica. cuja admirável combinação com a a eloqüência é distintiva do pensamento
rousseauniano.
46 I ) . I ) . . p 194.
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