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Crítica | Ferrari (2023) -


Plano Crítico
Luiz Santiago

6–8 minutos

Embora o público tenha voltado a ter um gostinho da


direção de Michael Mann na série Tokyo Vice, de 2022,
aquilo não foi o suficiente para suprir o hiato que o
cineasta ficou sem lançar um grande projeto — seu
último filme, Hacker, estreara em 2015. Ao longo desse
período, porém, o diretor seguiu na tentativa de
emplacar Ferrari, longa inspirado em um livro que ele
sempre elogiou (Enzo Ferrari: O Homem, os Carros, as
Corridas, a Máquina, de Brock Yates) e que também
deveria sustentar a sua tese de que obras sobre
automobilismo não deveriam focar apenas na dinâmica
das corridas e nos carros, mas deveriam trabalhar um
bom drama, com personagens fortes e marcantes para
que o público se sentisse atraído pelo projeto. A bem da
verdade, a luta para a criação deste filme vinha desde o
ano 2000, e foi realmente uma longa batalha para que
as filmagens se iniciassem, em agosto de 2022: houve
troca de produtora, troca de protagonista (Christian
Bale e Hugh Jackman chegaram a ser oficialmente
escalados para interpretar Enzo Ferrari) e a sempre
esperada luta por conta do orçamento, que dificultou
bastante a realização do filme.

Tanto o roteirista Troy Kennedy Martin quanto o


escritor Brock Yates já são falecidos (2009 e 2016,
respectivamente), o que nos indica que o texto para
Ferrari já estava pronto há um bom tempo e que, se
houveram mudanças na versão final, elas não foram
substanciais. De certo modo, isso traz um problema para
a fita. Em essência, o filme é sobre um indivíduo. Muito
bem interpretado por Adam Driver, Enzo Ferrari é
mostrado desde o início como um homem de família,
um homem duro de feições e atos; estrategista, e que
pretende ir até o fim na luta por aquilo que quer.
Enquanto foca nos aspectos pessoais e nas relações
desse personagem com sua empresa e com as mulheres
de sua vida (vividas por uma excelente Penélope Cruz e
por uma deslocada Shailene Woodley), o longa flui com
o mínimo de tropeços narrativos. Isso já não acontece
quando a empresa é colocada no centro da narrativa.
Como precisa criar cenas e sequências mais ou menos
introdutórias para o público que não entenda nada de
carros, de corridas ou da história do próprio Enzo
Ferrari, os “blocos institucionais/didáticos” precisam
acontecer, e é aí que temos alguns pontos fracos da obra,
com pouco peso, conexão frágil com cenas anteriores e
posteriores e até mesmo um tratamento visualmente
mais pobre, se comparado às cenas familiares ou
íntimas do enredo, sempre incrivelmente fotografadas.

O diretor de fato conseguiu mostrar que obras de


conteúdo automobilístico precisam de bom elenco e de
um bom drama pessoal e/ou familiar para ganhar maior
“valor de mercado” frente aos espectadores, mas a
relação entre essas duas partes nem sempre é harmônica
aqui. Para nossa alegria, o elenco está muito
azeitadíssimo, e exceto pela estranha escolha de alguns
no nível de “sotaque italiano” (especialmente Shailene
Woodley) e nos momentos em que esse “sotaque”
aparece (algumas cenas me lembraram as entonações
vergonhosas de Casa Gucci), o grupo está muito bem em
cena, guiado pela inteligente e cuidadosa direção de
Mann, que sabe como ninguém dar características
sólidas aos personagens e ao ambiente sem precisar de
muita coisa. Também gosto das cenas de direção das
corridas, especialmente da Mille Miglia de 1957. Em
relação ao terrível acidente que acontece com o piloto
Alfonso de Portago (interpretado pelo brasileiro Gabriel
Leone), muitos reclamaram do teor da cena, mas não
vejo problema algum nisso. A constituição dela é que é
ruim, devido ao péssimo uso de CGI, isso sim. Deveria
ser uma cena marcante em todos os sentidos, mas os
efeitos e a sua construção tiraram essa possibilidade,
deixando apenas o choque e o horror diante da tragédia.

A despeito do silêncio midiático e das academias de


premiação em relação a Ferrari, o filme não é de se
jogar fora. Seus problemas internos são superados pela
apresentação muito competente dos entraves
particulares do biografado, pela entrega aplaudível da
maior parte do elenco e pela tensão gerada nas cenas de
corrida. Para os não iniciados na filmografia de Michael
Mann, é também uma válida entrada a um cinema de
ação intensa e investigação emocional e psicológica.
Mesmo que funcione muito mais em seu aspecto
dramático, Ferrari cria um entrelaçamento entre vida
privada e vida pública que, dependendo da análise do
espectador, pode servir como uma discussão
interessante na esfera do “estudo de personagem“. Não
é o melhor filme de Michael Mann, mas nem de longe é
“uma vergonha“, como muita gente anda apregoando
por aí.

Ferrari (EUA, Reino Unido, Itália, China, 2023)


Direção: Michael Mann
Roteiro: Troy Kennedy Martin, Brock Yates
Elenco: Adam Driver, Shailene Woodley, Giuseppe
Festinese, Alessandro Cremona, Derek Hill, Leonardo
Caimi, Penélope Cruz, Gabriel Leone, Michele Savoia,
Jacopo Bruno, Domenico Fortunato, Damiano Neviani,
Giuseppe Bonifati, Franca Abategiovanni, Marino
Franchitti, Valentina Bellè, Luciano Miele, Daniela
Piperno, Alessandro D’Elia, Gianfilippo Grasso, Andrea
Bruschi, Giuseppe Attanasio, Andrea Dolente, Marco
Maccieri, Andrea Fiorillo
Duração: 130 min.

Luiz Santiago

Após ser escolhido para a Corvinal e virar portador do


Incal, fugi com a ajuda de Hari Seldon e me escondi em
Astro City, onde me tornei Historiador e Crítico de
Cinema. Presenciei, no futuro, os horrores de Cthulhu.
Hoje, com a ajuda da minha TARDIS, traduzo línguas
alienígenas para Torchwood e presto serviços para a
Agência Alfa. Minha partida para Edena é iminente. De
lá, o Dr. Manhattan arranjará o meu encontro definitivo
com a Presença. E então o Universo tremerá.

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