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Mestrado em Direito Internacional e Relações Internacionais

Direito Internacional da Pessoa Humana


2014/2015

As Smart Sanctions e o seu impacto nos


Direitos Humanos

“Someone must have been telling lies about Josef K., he knew he had done
nothing wrong but, one morning, he was arrested.”

Diana Cabral Botelho


Abstract: Com o início do novo milénio, as relações internacionais como as conhecemos
foram alvo de transformação. Os ataques de 11 de Setembro de 2001 abriram o caminho
à promoção de um novo tipo de sanções recém-criadas - as smart sanctions - sanções
inteligentes dirigidas a indivíduos com o intuito de minimizarem os danos que as sanções
económicas causavam às populações – mas que acabaram por revelar graves problemas
ao nível da sua compatibilidade com os direitos humanos. A presente monografia tem
como objectivo a análise das vicissitudes destas medidas, a sua evolução e o caminho que
deverão tomar no futuro, para que a promessa da paz e segurança internacionais não
apague outra igualmente importante – a da garantia dos direitos humanos dos indivíduos.

Palavras-chave: Smart sanctions; terrorismo; direitos humanos; garantias processuais

Abstract: With the beginning of the new millennium, the international relations as we
know them were transformed. The 9/11 attacks led the way to the rising of a new type of
sanctions, recently created – the smart sanctions - targeted sanctions directed to
individuals with the main goal of minimizing the damages that the comprehensive
economic sanctions caused to the populations – but that ended up revealing strong
problems regarding their compatibility with human rights standards. The following paper
has as its main goal to analyze the problems of this measures, their evolution and the path
they should take in the future, so that the promise of peace and international security
doesn’t erase another one equally important – the guarantee of human rights for
individuals.

Key Words: Smart sanctions; terrorism; human rights; due process guarantees

2
Índice

1. Enquadramento Introdutório…………………………………………………………..4

2. As Smart Sanctions – um novo paradigma de sanções económicas? ………………….5

a) O enquadramento histórico do surgimento das “sanções inteligentes” ……….5

b) As “smart sanctions” ao nível da União Europeia…………………………….7

c) As reformas procedimentais…………………………………………………..8

3. A violação de direitos fundamentais………………………………………………….10

a) O direito de propriedade……………………………………………………...10

b) O direito a um julgamento justo…………………………………………........12

b1) O direito a ser ouvido………………………………………………13

b2) O direito a ser informado……………………………………………13

b3) O direito a uma revisão judicial efectiva…………………………….14

4. “Quis custodiet ipsos custodes?” – O problema da falta de fiscalização judicial das


medidas e a implementação de um sistema de fiscalização judicial como
solução…………………………………………………………………………………16

5. Conclusões - a revisão judicial independente como solução a


adoptar…………………………………………………………………………………18

3
1. Enquadramento Introdutório
A utilização de sanções económicas e embargos de mercadorias foi uma prática
que ganhou relevo com o início da Guerra Fria, com a aplicação de sanções
compreensivas pelas Nações Unidas a estados considerados “problemáticos”, como o
Iraque ou a África do Sul.
No entanto, rapidamente se percebeu que estas sanções, embora menos lesivas do
que as represálias militares, traziam fortes consequências para as populações dos estados
abrangidos, que viam o seu quotidiano fortemente modificado em virtude de medidas que
pretendiam, na generalidade dos casos, exercer pressão nos governantes para a cessação
de actos ilícitos ou reprováveis, e não atingir os civis, que acabavam condicionados pelos
embargos económicos. Mais ainda, davam aos empresários afectados a motivação
necessária para enveredarem no mercado negro, onde os lucros eram muito mais
elevados, encorajando a criação do crime organizado e o crescimento da corrupção,
enfraquecendo a posição do Direito nos países sancionados.
Nesta senda, após a grande reprovação, por parte da opinião pública, das medidas
aplicadas ao Iraque na década de 90, a Organização das Nações Unidas enveredou por
outro caminho, o da aplicação de “targeted sanctions” ou “smart sanctions”,
direccionadas unicamente para indivíduos ou grupos associados à prática dos actos
ilícitos que se tencionavam reprimir, assim reduzindo o impacto que poderiam ter nas
populações civis.
A sua aplicação generalizada iniciou-se com a Resolução 12671 do Conselho de
Segurança, num quadro factual destinado a evitar o planeamento e execução de ataques
terroristas pela Al-Qaida e por Usama Bin Laden, após os episódios de violência nas
embaixadas americanas da Tanzânia e do Quénia, em 1998. Promoveu a utilização do
método do registo negativo, incorporando o nome dos indivíduos considerados
associados à execução daqueles ataques numa lista anexa à resolução, surgindo a política
do “blacklisting”. Pretendia-se com estas smart sanctions que as medidas fossem mais
eficazes e mais justas, numa espécie de “legítima defesa preventiva”.
No entanto, este não é, como se poderá constatar, um meio que não apresente
falhas, uma vez que estas sanções, ao aplicarem-se já não a Estados, mas a particulares
de um estado, levantam problemas não só ao nível da legitimidade da actuação do
Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas também ao nível do seu impacto nos

1
S/RES/1267 (1999), 15 de Outubro de 1999, disponível em - http://www.bportugal.pt/pt-
PT/Legislacaoenormas/Documents/Resolucao1267ano1999.pdf.

4
direitos humanos, pois o congelamento de fundos e as restrições à liberdade dos
indivíduos colidem directamente, como iremos analisar, não só com o direito de
propriedade, como com várias garantias processuais dos sujeitos.
Esta monografia tem, assim, como objectivo a análise do impacto destas
designadas “smart sanctions” nos direitos humanos dos indivíduos abrangidos,
procurando identificar os seus principais problemas e, consequentemente, indicar
soluções.
Iremos, com efeito, começar por enquadrar as “sanções inteligentes” no seu
contexto histórico, e tentar expor os seus principais fundamentos, após o qual
apresentaremos a nossa análise dos direitos humanos que estão a ser violados com a
utilização cada vez mais sistemática destas medidas.
Por último, constataremos os vários obstáculos com que estas tão aclamadas
medidas se deparam, como as suas falhas ao nível dos direitos humanos, bem como a falta
de legitimidade dos entes que as aplicam e, posteriormente, concluiremos com uma
análise genérica das soluções possíveis, apresentando aquela que para nós é a única via
de garantia plena dos direitos humanos - a sujeição da adopção destas medidas a uma
revisão judicial integral.

2. As Smart Sanctions – um novo paradigma de sanções económicas?

a) O enquadramento histórico do surgimento das “sanções inteligentes”


Com o objectivo de exercer pressão no governo afegão para a extradição de
Usama Bin Laden, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, garante
máximo da paz e segurança internacionais, adoptou, ao abrigo do Capítulo VII, a
Resolução 12672, ordenando aos estados-membros que adoptassem medidas de
congelamento de fundos e recursos financeiros de todos os membros, bem como de
apoiantes, do movimento rebelde taliban.
Concomitantemente, o Conselho de Segurança procedeu à criação de um
“Comité de Sanções”, responsável por elaborar a “lista negra” (como ficou vulgarmente
conhecida) dos indivíduos e pessoas colectivas que entendia associados ao movimento,
formado por representantes dos 15 estados do Conselho de Segurança, e obedecendo a
critérios puramente políticos, consoante a sua margem de apreciação, não oferecendo vias

2
Vide supra nota nº1.

5
de recurso para além de um instituto de reexame, dependente da protecção diplomática
concedida aos indivíduos.
Um ano mais tarde, adoptou a Resolução 13333, de forma a incluir no processo de
“blacklisting” os apoiantes de Usama Bin Laden e, em 2002, este quadro foi actualizado
com a Resolução 13904, que ultrapassou a barreira da territorialidade, aplicando-se a
qualquer pessoa ou entidade associada5 com a Al-Qaida e com Usama Bin Laden, e
introduzindo, além das sanções anteriormente previstas, a proibição de voos e os
embargos de armas.
Com os ataques de 11 de Setembro de 2001, a situação agravou-se, crescendo o
receio global do “monstro do terrorismo”, o que levou a uma adopção, por parte do
Conselho de Segurança, de nova resolução, a Resolução 13736, que estabeleceu uma “lista
negra” paralela ao sistema já existente, na qual seriam incluídos, agora pelos estados e já
não apenas pelo Conselho de Segurança, todos os indivíduos e entidades que levassem a
cabo a prática de ataques terroristas, ou que os apoiassem ou facilitassem a sua execução.
Esta resolução, como se pode facilmente entender, levantou alguns problemas, uma vez
que deixou à discricionariedade dos estados a inclusão de entidades e indivíduos na lista,
já não se baseando num conceito como a “associação” a determinado grupo, à Al-Qaida,
mas num conceito indeterminado – o “terrorismo” – que não tinha, no nosso entender,
consistência suficiente para conceder uma base legal sólida para estas indicações.
Foram assim criados dois sistemas de “blacklisting”, que aglomeraram centenas
de indivíduos e entidades, dando origem a um novo paradigma de sanções económicas,
já não aplicáveis a estados, mas sim a indivíduos, promovendo a eficiência das “sanções

3
S/RES/1333 (2000), 19 de Dezembro de 2000, disponível em - http://daccess-dds-
ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N00/806/62/PDF/N0080662.pdf?OpenElement.
4
S/RES/1390 (2002), 28 de Janeiro de 2002, disponível em - http://daccess-dds-
ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N02/216/02/PDF/N0221602.pdf?OpenElement.
5 A definição de “associado com” foi estabelecida pelas Nações Unidas em 2005, através da Resolução
1617 do Conselho de Segurança, tendo um âmbito bastante amplo, incluindo “[…] a participação no
financiamento, planeamento, na facilitação, preparação ou na execução de actos ou actividades em
associação com a Al-Qaida, Usama bin Laden ou os Taliban, ou qualquer célula, entidade afiliada ou grupo
dissidente ou procedente deles, ou realizados em seu nome, por sua conta, ou em seu auxílio; o
fornecimento, a venda ou a transferência de armas e material conexo à Al-Qaida, a Usama bin Laden ou
aos Taliban, ou a qualquer célula, entidade afiliada ou grupo dissidente ou procedente deles; o recrutamento
em favor da Al-Qaida, de Usama bin Laden ou dos Taliban, ou de qualquer célula, entidade afiliada ou
grupo dissidente ou procedente deles; ou o auxílio de qualquer tipo a actos ou actividades praticados pela
Al-Qaida, por Usama bin Laden ou pelos Taliban, ou por qualquer célula, entidade afiliada ou grupo
dissidente ou procedente deles […]” – S/RES/1617 (2005), 29 de Julho de 2005, disponível em:
http://bo.io.gov.mo/bo/ii/2005/52/aviso25.asp.
6
S/RES/1373 (2001), 28 de Setembro de 2001, disponível em - http://daccess-dds-
ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N01/557/43/PDF/N0155743.pdf?OpenElement.

6
direccionadas” e, aparentemente, eliminando os efeitos nefastos que as sanções estatais
tinham nas populações civis.
Contudo, na opinião de Daniel W. Drezner7, apoiada na sua análise da prática,
tudo indica que as smart sanctions sejam mais humanitárias, em sentido amplo, mas
menos eficientes do que as sanções estatais, por não exercerem pressão sob os
governantes do estado da mesma forma que estas exercem. Por outro lado, afirma ainda
que as sanções financeiras aplicadas a estados, por serem de menor duração, diminuiriam
os efeitos nas populações, mas levariam a um aumento da repressão nos estados
autoritários, pelo que as “targeted sanctions” acabariam por ser a solução mais protectora
dos direitos humanos. O autor acaba por concluir, assim, ao contrapor sanções
económicas aplicadas ao nível estatal com as recém-criadas smart sanctions, que estas
não demonstraram, ao longo dos anos, serem mais eficientes que as primeiras, e que a sua
principal vantagem prende-se com o facto de apresentarem soluções menos contestadas
pela maioria, uma vez que se aplicam a um número restrito de sujeitos, mas que não
resolvem os problemas políticos.
É nosso entender que, ao contrapor os dois tipos de sanções, ambas apresentam
fortes defeitos ao nível dos direitos humanos, e que a sua principal diferença reside no
número de pessoas que afecta, e não na qualidade como afecta, uma vez que os direitos
humanos são afectados de uma maneira ou de outra, apenas com um quantitativo
diferente, sendo uma urgência cada vez mais premente a reavaliação de todo o sistema de
sanções económicas e das suas consequências, a fim de ser exercida uma ponderação justa
entre os interesses em jogo.

b) As “smart sanctions” ao nível da União Europeia


Após a inclusão nas listas, caberia aos estados-membros implementar essas
resoluções e aplicar as “smart sanctions” aos indivíduos, congelando os fundos e
impondo as restrições necessárias, fruto do art. 25º da Carta das Nações Unidas8, isto sob,
como bem refere Maria Luísa Duarte9, um duplo alcance: por um lado, é um dever de

7
DREZNER, Daniel W., “Sanctions Sometimes Smart: Targeted Sanctions in Theory and Practice”,
International Studies Review (2011) 13, pp. 96-108.
8
“Os membros das Nações Unidas concordam em aceitar e aplicar as decisões do Conselho de Segurança,
de acordo com a presente Carta.”, in Carta das Nações Unidas, disponível em -
http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/onu-carta.html.
9
DUARTE, Maria Luísa, “O Tribunal de Justiça da União Europeia e o Controlo Indirecto das Decisões
do Conselho de Segurança. Sobre os critérios relevantes de conciliação prática entre a luta contra o
terrorismo internacional e a protecção dos direitos fundamentais”, in Themis, ano XIII, nº.s 24/25, 2013:
49-76.

7
natureza quase “executiva”, com os estados a funcionarem como uma autoridade
administrativa, e por outro lado, uma obrigação de âmbito geral que requer que os estados
adoptem legislação interna na matéria.
Ao nível europeu, após a adopção das Resoluções 1267 e 1373, foram criados,
respectivamente, dois sistemas de sanções, um para cada uma das resoluções. No que
concerne ao sistema da Resolução 1267, assistimos a uma adopção integral pelo
ordenamento europeu da lista proposta pelo complexo onusiano, enquanto no que
concerne ao sistema da Resolução 1373, isto é, à “lista negra” de terroristas, a União
Europeia adoptou um sistema autónomo.
A este nível, podemos ainda constatar uma certa evolução em relação à
aplicação de sanções directamente pelo Comité de Sanções (subsidiário ao Conselho de
Segurança da ONU), uma vez que, por força do parágrafo segundo do art. 275º do Tratado
sobre o Funcionamento da União Europeia, o Tribunal de Justiça da União Europeia tem,
não obstante as suas limitações de fiscalização no âmbito da Política Externa e de
Segurança Comum, competência para fiscalizar a aplicação destas medidas restritivas.
Com efeito, esta excepção à competência ratione materiae do TJUE prende-se
directamente com a questão da garantia dos direitos fundamentais na Ordem Jurídica da
União Europeia, assunto que se tornou ainda mais importante após a entrada em vigor do
Tratado de Lisboa, pela elevação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
a direito originário e pela protecção dos direitos fundamentais passar a estar incluída nos
valores da União.

c) As reformas procedimentais
Com a implementação deste primeiro modelo de “smart sanctions”, as críticas das
organizações de direitos humanos multiplicaram-se, uma vez que, como já tentamos ir
indiciando, estas medidas carecem de garantias judiciais. Se, por um lado, se levanta a
questão de serem medidas meramente administrativas ou verdadeiras sanções penais, o
que influenciaria o grau de protecção atribuído aos indivíduos, é nosso entender que, por
outro lado, independentemente da sua qualificação, as questões que se levantam prendem-
se com os direitos mais básicos de tutela jurisdicional efectiva, aplicáveis tanto à
jurisdição penal como à administrativa.
Com efeito, este modelo de medidas restritivas não fornece aos indivíduos e
entidades listadas qualquer meio de informação, na generalidade das vezes, da sua
inclusão na “lista negra”, ou da base factual e argumentativa que levou à sua inclusão,

8
nem qualquer meio de a combater, a não ser por protecção diplomática, dependente da
vontade dos estados que, não raras vezes, são os responsáveis pela sua própria listagem.
Por força destas falhas, foram levadas a cabo, de 2005 a 2009, reformas estruturais
ao nível do procedimento de aplicação destas sanções.
Em primeiro lugar, com a Resolução 1617, introduziu-se uma recomendação aos
estados de que, ao indicarem nomes ao Comité de Sanções, incluíssem um sumário das
razões justificativas, bem como notificassem a parte lesada, medida que peca por não ser
vinculativa, mas apenas facultativa, perdendo o seu sentido.
Em segundo lugar, através da Resolução 173010, foi estabelecido um “Focal
Point” dentro do Secretariado, que receberia pedidos de exclusão das “listas negras”,
tratava de os encaminhar e de comunicar a decisão do Comité de Sanções aos indivíduos
e entidades, não existindo ainda qualquer possibilidade de exercício do seu direito do
contraditório tendo, assim, acabado por ser extinto em 2009.
Em terceiro lugar, com a Resolução 173511, o Conselho de Segurança das Nações
Unidas fez uma nova recomendação aos estados, reafirmando o proclamado na Resolução
1617, e pela primeira vez considerou a exclusão dos indivíduos e entidades das listas,
consoante determinadas circunstâncias.
Em quarto lugar, foram introduzidas reformas procedimentais no próprio Comité
de Sanções, através da Resolução 182212, que passou a ter que disponibilizar uma sinopse
dos motivos para a listagem dos indivíduos e entidades, bem como a fazer uma
reavaliação de todos os nomes listados pela Resolução 1217 até 2010, e avaliações anuais
nos anos subsequentes.
Por último, as reformas procedimentais atingiram o seu auge com a introdução da
figura do “Ombudsperson’s Office”, liderado por um jurista de mérito no campo dos
direitos humanos, responsável por avaliar os pedidos de exclusão e emitir pareceres ao
Comité de Sanções. No entanto, o que poderia ser talvez a melhor medida adoptada para
reformar as “smart sanctions”, revestindo-as de independência e transparência, esvazia-
se de sentido ao não ter qualquer efeito vinculativo, uma vez que a decisão final continua
a pertencer ao Comité de Sanções.

10
S/RES/1730 (2006), 19 de Setembro de 2006, disponível em -
http://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-
CF6E4FF96FF9%7D/Terrorism%20S%20RES%201730.pdf.
11
S/RES/1735 (2006), 22 de Dezembro de 2006, disponível em -
http://eurasiangroup.org/files/documents/oon_eng/1735_20_2006_20eng.pdf.
12
S/RES/1822 (2008), 28 de Junho de 2008, disponível em -
http://www.unrol.org/files/Security%20Council%20Resolution%201822.pdf.

9
Também ao nível europeu, especialmente com o desenvolvimento da
jurisprudência Kadi, várias reformas foram levadas a cabo, seja ao nível do fornecimento
dos motivos da inclusão a todos aqueles abrangidos pelas medidas, como ao nível da
notificação aos indivíduos e entidades incluídas na lista, que passou a ser obrigatória,
sempre que “possível”.
Foi criada a “Working Party on the Implementation of Common Position
2001/931/CFSP”13, com um papel mais intenso que o do Comité de Sanções, imposta uma
obrigatoriedade de revisão da “lista negra” a cada 6 meses e criado um “Focal Point”
semelhante ao onusiano, com base no Conselho Europeu.
Para além disso, o que torna o ordenamento jurídico europeu ainda mais avançado
no que concerne à protecção dos direitos humanos dos indivíduos abrangidos por medidas
restritivas é a capacidade do Tribunal de Justiça da União Europeia de exercer o seu
controlo sobre as mesmas, garantindo que os indivíduos e entidades listados detêm uma
informação integral dos fundamentos para a sua inclusão e têm direito a uma audiência
prévia.

3. A violação de direitos fundamentais

a) O direito de propriedade
Protegido pelo art. 17º da Declaração Universal dos Direitos do Homem 14, pelo
art. 1º do Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem15 e pelo art.
17º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia16, o direito de propriedade é

13
Uma espécie de “Comité de Sanções Europeu” responsável por analisar informação quanto à listagem de
indivíduos e entidades, elaborar relatórios periódicos de reanálise dos casos existentes e realizar
recomendações para a inclusão ou exclusão de indivíduos e entidades na “lista negra” europeia.
14
“Qualquer pessoa singular ou colectiva tem direito ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado
do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios
gerais do direito internacional.
As condições precedentes entendem - se sem prejuízo do direito que os Estados possuem de pôr em vigor
as leis que julguem necessárias para a regulamentação do uso dos bens, de acordo com o interesse geral, ou
para assegurar o pagamento de impostos ou outras contribuições ou de multas.”, in Protocolo Adicional à
Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais, 1952, disponível em -
http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf.
15
“1. Toda a pessoa, individual ou colectivamente, tem direito à propriedade.
2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.”, in Declaração Universal dos Direitos
do Homem e do Cidadão, 1948, disponível em - http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-
internacionais-dh/tidhuniversais/cidh-dudh.html.
16
“1. Todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os
utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém pode ser privado da sua
propriedade, excepto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante

10
um princípio generalizadamente aceite no direito internacional e um corolário dos
ordenamentos jurídicos europeus e da grande maioria dos países a nível mundial, sendo
que, em Portugal, é protegido pelo art. 62º da Constituição da República Portuguesa.
Podemos identificar neste direito três princípios legais que lhe estão directamente
subjacentes – o princípio do gozo pacífico da propriedade; o princípio de que a limitação
do direito de propriedade não pode, assim, ser arbitrária e, consequentemente, um
princípio de que mediante determinadas condições, ele pode ser limitado.
Esta possibilidade de limitação está, assim, directamente relacionada com o
conceito indeterminado de “interesse público”, designadamente no que concerne ao caso
das expropriações estatais por utilidade pública, e no âmbito das “smart sanctions”, no
que concerne à justificação do congelamento de fundos e recursos económicos dos
indíviduos e entidades incluídos nas “listas negras”.
Com efeito, o sistema de “blacklisting” surge como uma limitação clara deste
direito, de que os indivíduos e entidades se vêem destituídos ou limitados de uma forma
ultrajante, com o desapossamento dos seus bens e o congelamento de todos os seus fundos
e investimentos, desapossamento esse muitas vezes estendido às suas famílias, que
poderão não ter qualquer associação aos actos ilícitos que a ratio das listas pretende
proteger, e à protecção da paz e segurança internacionais.
Gavin Sullivan e Ben Hayes, num relatório de 2010 para o European Center for
Constitutional and Human Rights17, sugerem assim que a solução para balancear o direito
de propriedade com o interesse público derivado da necessidade de manter a paz e
segurança internacionais seja a aplicação do princípio da proporcionalidade, nas suas três
vertentes – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito – com o
aditamento de um requisito de “legitimidade de objectivos da medida”.
Assim, a propriedade só deveria ser limitada se, em primeiro lugar, a medida
tivesse um objectivo “legítimo”, se fosse adequada à realização do seu objectivo, se fosse
indispensável ou necessária para a realização do seu objectivo e, por último, se fosse
claramente identificável uma relação de proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, se

justa indemnização pela respectiva perda, em tempo útil. A utilização dos bens pode ser regulamentada por
lei na medida do necessário ao interesse geral.
2. É protegida a propriedade intelectual.”, in Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 2000,
disponível em - http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf.
17
SULLIVAN, Gavin e HAYES, Ben,“Blacklisted: Targeted sanctions, preemptive security and
fundamental rights”, European Center for Constitutional and Human Rights, 2010, pp. 36, disponível em -
http://www.ecchr.eu/en/documents/publications/ecchr-publications/articles/blacklisted-targeted-
sanctions-preemptive-security-and-fundamental-rights.html.

11
o bem a salvaguardar merecesse uma maior protecção do que os danos infligidos pela
própria medida.
Mais ainda, os autores recomendam uma avaliação dessa proporcionalidade não
de uma forma geral, caso em que todas as medidas seriam provavelmente aceitáveis, em
virtude de estar em causa a paz e segurança internacionais, mas sim de uma forma
concreta, utilizando os princípios de necessidade e adequação como limites da sua mesma
actuação.
É assim este quadro que leva os autores a criticarem largamente o sistema de
“smart sanctions” instituído, que só poderia ser compreensível e não lesivo do direito de
propriedade caso o congelamento de fundos e bens fosse, como deveria ser, e como é
defendido pela ONU, apenas uma medida temporária, cautelar.
No entanto, e como também é nosso entender, aquilo a que assistimos é a um
prolongamento no tempo destas injunções, muitas vezes por largos anos, o que esvaziam
este argumento onusiano de sentido, pois estas já são claramente medidas com um
carácter temporário demasiado extenso, levando-nos a concluir que lesam, assim, o
direito de propriedade no seu núcleo essencial.

b) O direito a um julgamento justo


Este direito a um julgamento justo, protegido pelo art. 10º da Declaração
Universal dos Direitos do Homem18, pelo art. 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos
Civis e Políticos19, pelo art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem20 e pelo
art. 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia21, está no caso das “smart

18
“Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada
por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de
qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.”, in Declaração Universal dos Direitos
do Homem e do Cidadão, 1948, disponível em - http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-
internacionais-dh/tidhuniversais/cidh-dudh.html.
19
“ […]Todas as pessoas têm direito a que a sua causa seja ouvida equitativa e publicamente por um tribunal
competente, independente e imparcial, estabelecido pela lei, que decidirá quer do bem fundado de qualquer
acusação em matéria penal dirigida contra elas, quer das contestações sobre os seus direitos e obrigações
de carácter civil. […]”, in Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, 1976, disponível em -
http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/cidh-dudh-direitos-
civis.html.
20
“[…]Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num
prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre
a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer
acusação em matéria penal dirigida contra ela. […]”, in Convenção para a Protecção dos Direitos do
Homem e Liberdades Fundamentais, 1952, disponível em -
http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf.
21
“[…]Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem
direito a uma acção perante um tribunal. Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma

12
sanctions” directamente em xeque, principalmente em três componentes, que serão assim
analisadas, designadamente:
- O direito a ser ouvido
- O direito a ser informado
- O direito a uma revisão judicial efectiva

b1) O direito a ser ouvido


Como corolário do direito a um julgamento justo, o direito a ser ouvido fornece
às instâncias responsáveis pela aplicação das medidas restritivas, o Comité de Sanções e
o Conselho Europeu, um dever de notificar os indivíduos e entidades listadas e lhes
conceder uma audiência prévia à tomada de decisão final, para que possam exercer o seu
direito do contraditório em relação às alegações contra si realizadas.
No entanto, fruto da sensibilidade do “interesse público” pousado no outro prato
da balança, a garantia da paz e segurança internacionais, o facto é que esta notificação
nem sempre é feita e, quando o é, grosso modo é realizada após o processo de listagem já
estar concluído, isto é, quando a audiência concedida já não poderá ter nenhum efeito na
decisão final, em nome da própria eficiência do sistema.
Assim, como forma de este direito não ser gravemente e directamente violado,
Sullivan e Hayes recomendam, no relatório já referenciado22, que seja fornecido às
entidades e indivíduos listados um “statement of reasons”, um sumário das razões que
levaram à sua inclusão, a eles directamente e não apenas em sítios da internet, como já
acontece após a jurisprudência Kadi, salvaguardando o seu direito de exprimir a sua
opinião e o seu direito de defesa em sentido amplo, o que nos conduz ao segundo
componente deste direito a um julgamento justo – o direito a ser informado.

b2) O direito a ser informado


Um dos maiores problemas no que toca às garantias de um procedimento justo na
aplicação de smart sanctions a nível mundial e europeu prende-se com a sua relação com
os factos sujeitos a diferentes níveis de confidencialidade, grosso modo obtidos por
agências de investigação especializadas, cuja informação é fortemente protegida.

equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente
estabelecido por lei. [...]”, in Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 2000, disponível em -
http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf.
22
Vide supra nota nº17.

13
Assim, enquanto após as reformas procedimentais, principalmente a nível
europeu, mas também a nível mundial, o direito a ser informado passou a ser um
verdadeiro dever para o Comité de Sanções e para o Conselho Europeu, que devem
fornecer aos indivíduos e entidades listadas uma verdadeira “súmula” das razões pelas
quais se encontram listados, este direito é muitas vezes mitigado com as necessidades de
protecção da informação e de protecção da segurança pública, levando a que os factos em
que se baseia a aplicação de sanções não sejam revelados.
Consequentemente, no caso europeu, apenas os indivíduos e entidades com
capacidade para litigar e recorrer às instâncias de fiscalização europeia podem ver o seu
direito assegurado nestes casos, pois só assim poderá haver uma verdadeira verificação e
ponderação dos interesses em causa, sendo ainda mais grave no caso de uma sanção
aplicada pelo Comité de Sanções, em que este direito é quase dissolvido, pela inexistência
de qualquer “instância de recurso” caso a informação em que a sua listagem assente seja,
alegadamente, confidencial por algum motivo.
Este direito a ser informado é então, como podemos facilmente analisar, mais um
daqueles que é sistematicamente violado, de forma quase grosseira, em nome da
protecção da segurança internacional, restando aos indivíduos e entidades listadas exercer
o seu direito de defesa de alguma forma face a esta violação, o que nos conduz à terceira
componente deste direito a um julgamento justo – o direito a uma revisão judicial efectiva.

b3) O direito a uma revisão judicial efectiva


Protegido pelo art. 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem23, pelo art.
2º/3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos24, pelo art. 13º da Convenção

23
“Toda a pessoa tem direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra os actos
que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei.”, in Declaração Universal
dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1948, disponível em - http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-
internacionais-dh/tidhuniversais/cidh-dudh.html.
24
“Cada Estado Parte no presente Pacto compromete-se a:
a) Garantir que todas as pessoas cujos direitos e liberdades reconhecidos no presente Pacto forem violados
disponham de recurso eficaz, mesmo no caso de a violação ter sido cometida por pessoas agindo no
exercício das suas funções oficiais;
b) Garantir que a competente autoridade judiciária, adminis-trativa ou legislativa, ou qualquer outra
autoridade competente, segundo a legislação do Estado, estatua sobre os direitos da pessoa que forma o
recurso, e desenvolver as possibilidades de recurso jurisdicional;
c) Garantir que as competentes autoridades façam cumprir os resultados de qualquer recurso que for
reconhecido como justificado.”, in Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, 1976, disponível
em - http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/cidh-dudh-direitos-
civis.html.

14
Europeia dos Direitos do Homem25 e pelo art. 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia, este é, na opinião de Gavin Sullivan e Ben Hayes26 o direito
procedimental que mais sistematicamente tem sido violado.
Levanta-se a questão de saber se este direito de revisão judicial efectiva se limita
apenas à revisão por instâncias judiciais propriamente ditas ou se se alarga a instâncias
puramente administrativas, como o Comité de Sanções e se, assim, a sua actuação seria
bastante para garantir este direito aos indivíduos e entidades listados.
Tendo em linha de conta o relatório apresentado27, entendemos no entanto que,
por força do disposto no art. 2º/3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos,
que estas instâncias administrativas também estarão incluídas, por força da sua referência
a “[…] competente autoridade judiciária, administrativa ou legislativa […]”, pelo que,
à primeira vista, o mecanismo actualmente previsto de possibilidade de reexame da
sanção aplicada pelo Comité de Sanções, a pedido do estado de onde o indivíduo ou
entidade é nacional, asseguraria plenamente este direito.
No entanto, a verdade é que para este direito ser plena e integralmente cumprido,
terão que estar asseguradas garantias de independência e imparcialidade. Com efeito, a
nível interno, qualquer recurso ordinário de uma decisão não será realizado para o mesmo
nível julgador, mas para o hierarquicamente superior, por garantias de imparcialidade e
independência. Assim, é nosso entender que qualquer revisão judicial, para ser
verdadeiramente efectiva, terá que ser levado por um órgão sem quaisquer ligações àquele
que proferiu a decisão inicial, o que nos levará a defender uma solução de necessidade de
revisão judicial independente destas smart sanctions, infra.
Defendemos, assim, que só um órgão judicial independente capaz de analisar cada
uma das inclusões de indivíduos ou entidades numa das “listas negras”, à semelhança do
que já acontece a nível europeu, poderia levar ao cumprimento integral deste direito que
se afigura, nestes termos, claramente violado.
As smart sanctions evidenciaram, desde o início, o seu problema grave relativo à
ausência ou insuficiência de garantias jurídicas. Como refere Maria Luísa Duarte 28, com

25
“Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados
tem direito a recurso perante uma instância nacional, mesmo quando a violação tiver sido cometida por
pessoas que actuem no exercício das suas funções oficiais.”, in Convenção para a Protecção dos Direitos
do Homem e Liberdades Fundamentais, 1952, disponível em -
http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf.
26
Vide supra nota nº17.
27
Vide supra nota nº17.
28
Vide supra nota nº9.

15
este quadro fáctico, o Conselho de Segurança da ONU acaba por agir como legislador e
posteriormente, através do Comité de Sanções, como polícia e como juiz, algo que, no
nosso entender, se revela clamoroso no actual ordenamento jurídico, onde as garantias do
processo devem estar asseguradas.

4. “Quis custodiet ipsos custodes?” – A falta de legitimidade do Conselho de


Segurança para a adopção de smart sanctions
Já viemos, de várias formas, indiciando os principais problemas destas “smart
sanctions”, seja ao nível dos seus efeitos não provarem ser melhores do que as sanções
económicas estatais anteriores, seja ao nível da sua falta de garantias de processo e de
violação clara de direitos humanos, levantando-se agora outro problema premente, ainda
por resolver – a legitimidade por parte do Conselho de Segurança para impor estas
medidas. De facto, o procedimento a que se tem assistido é o de indicação, por parte de
um estado, de determinados nomes, e um voto de investidura por parte da restante
comunidade internacional, com a actuação do Comité de Sanções, sem uma avaliação
plena da situação, num jogo desequilibrado onde os indivíduos ficam, na maior parte das
vezes, a perder.
Para além disso, a falta de uma via de recurso para a decisão de inclusão dos
indivíduos e entidades nas “listas negras” torna estas decisões muito próximas de decisões
criminais, o que reforça a necessidade de uma maior fundamentação para que as mesmas
sejam adoptadas, por não ser possível alterá-las. O argumento da utilização do mecanismo
de reexame previsto se, por um lado, poderia funcionar nas condições certas, isto é, se
não tivesse que passar pelo crivo dos estados e fosse uma via directamente disponível aos
indivíduos e entidades listados, por outro lado, por assim não o ser, fica esvaziado de
sentido.
Assim, nas palavras de Gavin Sullivan e Ben Hayes29, o processo de “blacklisting”
conferiu um incremento significativo nos poderes legislativos do Conselho de Segurança,
que acaba por actuar livremente, sem limites impostos, o que se afigura inaceitável.
A este respeito, se por um lado, há quem defenda a omnipotência do Conselho de
Segurança, pela necessidade de encontrar respostas expeditas e eficazes para as ameaças
à paz, por outro lado, a doutrina maioritária defende a existência de limites à sua actuação,
uma vez que o Conselho de Segurança, bem como o direito de veto que pode ser exercido

29
Vide supra nota nº17.

16
pelos membros permanentes, revelam uma manifestação do princípio de gestão
aristocrática das relações internacionais, pondo em causa a igualdade das nações, e se
pode considerar-se esta gestão válida, por razões de eficácia e celeridade, essa só pode
ser aceite com a imposição de limites a um órgão que não pode, assim, ter uma jurisdição
infinita.
No mesmo sentido que Maria Luísa Duarte30, o Conselho de Segurança não se
pode valer da prerrogativa de ignorar os limites provenientes do ius cogens, entendendo
mesmo esta autora que no caso de haver uma resolução contrária às normas de ius cogens,
estar-se-á perante um acto nulo ab initio, por aplicação analógica do art. 53º da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados31.
Eduardo Correia Baptista32 fala, ainda, de um verdadeiro direito de resistência
face a esta “anti juridicidade” das resoluções do Conselho de Segurança que se revelem
contrárias à Carta e ao ius cogens internacional.
Ao nível europeu, como é defendido pela sua jurisprudência no caso Les Verts, a
União enquanto União de Direito33, nunca poderia excluir do âmbito de controlo
jurisdicional os actos dos seus órgãos que aplicam decisões do Conselho de Segurança,
não podendo nunca esses actos beneficiar de imunidade de jurisdição, como beneficiaram
no primeiro acórdão Kadi34.
Os acórdãos subsequentes da jurisprudência Kadi, no entanto, funcionaram como
fortes catalistas da crise de legitimidade destas medidas, nas palavras de Sullivan e Hayes,
ao abrirem um confronto directo entre o ordenamento jurídico onusiano e o europeu e
desvalorizarem o primado da ordem internacional, abrindo as portas à revisão judicial do

30
Vide supra nota nº9.
31
“É nulo todo o tratado que, no momento da sua conclusão, seja incompatível com uma norma imperativa
de direito internacional geral. Para os efeitos da presente Convenção, uma norma imperativa de direito
internacional geral é uma norma aceite e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu
todo como norma cuja derrogação não é permitida e que só pode ser modificada por uma nova norma de
direito internacional geral com a mesma natureza.”, in Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados,
1969, disponível em - http://www.gddc.pt/siii/docs/rar67-2003.pdf.
32
BAPTISTA, Eduardo Correia, O poder público bélico em Direito Internacional: o uso da força pelas
Nações Unidas em especial, Coimbra, Almedina, 2003, p. 1097-1098.
33
“[T]he European Economic Community is a Community based on the rule of law, inasmuch as neither
its Member States nor its institutions can avoid a review of the question whether the measures adopted by
them are in conformity with the basic constitutional charter, the Treaty” – Parti écologiste "Les Verts" v
European Parliament, Tribunal de Justiça da União Europeia, Caso 294/83, 23 de Abril de 1986, disponível
em - http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:61983CJ0294.
34
Yassin Abdullah Kadi vs Conselho da União Europeia e Comissão das Comunidades Europeias, Tribunal
de Primeira Instância, Processo T-315/01, 21 de Setembro de 2005, disponível em -
http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf;jsessionid=9ea7d2dc30dba52e7a050ed6467490eb8a6d82ddd35e.
e34KaxiLc3qMb40Rch0SaxuKbNb0?text=&docid=65739&pageIndex=0&doclang=PT&mode=req&dir=
&occ=first&part=1&cid=220515.

17
Tribunal de Justiça da União Europeia, defendendo estes autores que a utilização destas
smart sanctions poderá constituir inclusive um acto ultra vires, por ultrapassar o escopo
do próprio Capítulo VII da Carta das Nações Unidas.

5. Conclusões – a revisão judicial independente como solução a adoptar


Como vimos, são vários os problemas que se associam às smart sanctions e ao
“blacklisting”, desde a falta de garantias de um procedimento justo, à inexistência de um
mecanismo de revisão efectiva da situação dos indivíduos e entidades listados, à
dificuldade de obtenção de informação pelos obstáculos levantados ao nível da
confidencialidade, culminando na possibilidade de falta de legitimidade jurídica das
próprias medidas. Este panorama, aliado ao seu escopo cada vez mais alargado e a uma
definição de “terrorismo” praticamente inexistente, por tão ampla, faz com que o
problema já tenha levantado várias possibilidades de solução na doutrina.
Há, assim, opiniões no sentido de meros desenvolvimentos a nível procedimental,
com novas reformas, e outras tão díspares, como a de Sullivan e Hayes, que entendem
que só a abolição de todo o regime será solução.
Mais ainda, há quem defenda que uma implementação das medidas de
“blacklisting” a nível nacional, bem como a sua revisão pelos tribunais internos,
resolveria o problema da legitimidade e levaria a uma maior confiança que as garantias
de processo estariam cumpridas35.
Embora não as possamos analisar extensivamente, é nosso entender que apenas
uma revisão judicial das medidas poderá verdadeiramente solucionar o problema.
Mais ainda, entendemos que esta revisão não pode ser levada a cabo apenas por
um painel consultivo ou por um Ombudsperson, mas sim apenas por um órgão judicial
independente, um tribunal ad hoc, à semelhança dos criados anteriormente para situações
críticas, como o Tribunal Penal para a ex-Jugoslávia ou para o Ruanda.
Com efeito, assim terá que ser para se poder garantir as necessidades de
transparência e cumprimento dos direitos humanos dos indivíduos na sua plenitude, pois
só assim poderão haver decisões vinculativas, impostas ao Comité de Sanções, que
deixará de se basear em critérios políticos e passará, finalmente, a basear-se em critérios
puramente jurídicos.

35
BIERSTEKER, Thomas e ECKERT, Sue, Adressing Challenges to Targeted Sanctions: An Update of
the “Watson Report”, 2009, Watson Institute, pp.26, disponível em -
http://www.watsoninstitute.org/pub/2009_10_targeted_sanctions.pdf.

18
Bibliografia

- MESQUITA, Maria José Rangel de, A Actuação Externa da União Europeia depois do
Tratado de Lisboa, Coimbra, 2011, pp. 216-247

- BAPTISTA, Eduardo Correia, O poder público bélico em Direito Internacional: o uso


da força pelas Nações Unidas em especial, Coimbra, Almedina, 2003, pp. 1097-1098.

- DUARTE, Maria Luísa, “O Tribunal de Justiça da União Europeia e o Controlo


Indirecto das Decisões do Conselho de Segurança. Sobre os critérios relevantes de
conciliação prática entre a luta contra o terrorismo internacional e a protecção dos direitos
fundamentais”, in Themis, ano XIII, nº.s 24/25, 2013: pp. 49-76.

- DREZNER, Daniel W., “Sanctions Sometimes Smart: Targeted Sanctions in Theory


and Practice”, International Studies Review (2011) 13, pp. 96-108.

- SULLIVAN, Gavin e HAYES, Ben, Blacklisted: Targeted sanctions, preemptive


security and fundamental rights, European Center for Constitutional and Human Rights,
2010, disponível em - http://www.ecchr.eu/en/documents/publications/ecchr-
publications/articles/blacklisted-targeted-sanctions-preemptive-security-and-
fundamental-rights.html.

- BIERSTEKER, Thomas e ECKERT, Sue, Adressing Challenges to Targeted


Sanctions: An Update of the “Watson Report”, 2009, Watson Institute, disponível em -
http://www.watsoninstitute.org/pub/2009_10_targeted_sanctions.pdf.

19
Índice Documental

 Resolução do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas 1267 -


S/RES/1267 (1999), 15 de Outubro de 1999, disponível em -
http://www.bportugal.pt/ptPT/Legislacaoenormas/Documents/Resolucao1267an
o1999.pdf.
 Resolução do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas 1333 -
S/RES/1333 (2000), 19 de Dezembro de 2000, disponível em - http://daccess-
dds-
ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N00/806/62/PDF/N0080662.pdf?OpenElement.
 Resolução do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas 1390 -
S/RES/1390 (2002), 28 de Janeiro de 2002, disponível em - http://daccess-dds-
ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N02/216/02/PDF/N0221602.pdf?OpenElement.
 Resolução do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas 1617 -
S/RES/1617 (2005), 29 de Julho de 2005, disponível em:
http://bo.io.gov.mo/bo/ii/2005/52/aviso25.asp.
 Resolução do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas 1373 -
S/RES/1373 (2001), 28 de Setembro de 2001, disponível em - http://daccess-
dds-
ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N01/557/43/PDF/N0155743.pdf?OpenElement.
 Resolução do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas 1730 -
S/RES/1730 (2006), 19 de Setembro de 2006, disponível em -
http://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-
CF6E4FF96FF9%7D/Terrorism%20S%20RES%201730.pdf.
 Resolução do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas 1735 -
S/RES/1735 (2006), 22 de Dezembro de 2006, disponível em -
http://eurasiangroup.org/files/documents/oon_eng/1735_20_2006_20eng.pdf.
 Resolução do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas 1822 -
S/RES/1822 (2008), 28 de Junho de 2008, disponível em -
http://www.unrol.org/files/Security%20Council%20Resolution%201822.pdf.
 Carta das Nações Unidas, 1945 - disponível em - http://www.gddc.pt/direitos-
humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/onu-carta.html

20
 Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e Liberdades
Fundamentais, 1952 - disponível em -
http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf.
 Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1948 - disponível
em - http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-
dh/tidhuniversais/cidh-dudh.html.
 Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 2000, disponível em -
http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf.
 Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, 1976, disponível em -
http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-
dh/tidhuniversais/cidh-dudh-direitos-civis.html.
 Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, 1969, disponível em -
http://www.gddc.pt/siii/docs/rar67-2003.pdf.

21
Índice Jurisprudencial

- Tribunal de Justiça da União Europeia


- Parti écologiste "Les Verts" v European Parliament, Tribunal de Justiça da
União Europeia, Caso 294/83, 23 de Abril de 1986 - disponível em - http://eur-
lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:61983CJ0294.

- Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias


- Yassin Abdullah Kadi vs Conselho da União Europeia e Comissão das Comunidades
Europeias, Tribunal de Primeira Instância, Processo T-315/01, 21 de Setembro de 2005 -
disponível em -
http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf;jsessionid=9ea7d2dc30dba52e7a050ed6467490
eb8a6d82ddd35e.e34KaxiLc3qMb40Rch0SaxuKbNb0?text=&docid=65739&pageInde
x=0&doclang=PT&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=220515.

22

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