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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

UNICAMP

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH

Maria Beatriz Lombardi - RA: 259208


E-mail: m259208@dac.unicamp.br
Prof. Responsável: Luana Saturnino Tvardovskas

CAMPINAS
2023
BADINTER, Elisabeth. Um Amor conquistado: o mito do amor materno; tradução de
Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1985.

RESUMO

Em O amor conquistado: O mito do amor materno, Elisabeth Badinter se propõe a


demonstrar, movendo-se entre os séculos, diários, registro e estudos, a construção do
“instinto” e amor materno como práticas que são legitimadas por discursos das épocas e
sociedades vigentes. A obra é atravessada por relações de poder, vista sob a óptica
principalmente de gênero e classe. Assim, procura-se evidenciar, nesta resenha, os pontos que
mostram essas relações.

INTRODUÇÃO

Elisabeth Badinter é uma importante intelectual e escritora francesa, conhecida por


suas contribuições nas áreas de filosofia, feminismo e história. Ao longo de sua carreira,
Badinter escreveu vários livros aclamados, nos quais ela explora questões relacionadas à
identidade feminina, maternidade, feminismo e gênero. Nesse cenário, Badinter publica um
dos livros mais polêmicos de sua trajetória, visto que explora implicações da maternidade e
questões de empoderamento feminino: Um amor conquistado: O mito do amor materno.
Tal obra, objeto da seguinte resenha, foca em desnaturalizar o amor e o dito “instinto
materno” como sentimento universal e intrínseco na vida de todas as mulheres. Badinter se
volta para as mulheres francesas do século XVII até as do século XX, a fim de entender as
mentalidades e discursos que moldavam àquelas sociedades, conceitos e sujeitos. Assim, a
autora utiliza diários, revistas, obras literárias e históricas, como também de estudos de outros
intelectuais para demonstrar a maternidade como uma construção, entendida de variáveis
maneiras por cada conjuntura vigente.
Para tanto, Badinter divide seu livro em três partes: O amor ausente, Um novo valor:
O amor materno e O amor forçado. Cada pedaço ainda se organiza em subdivisões, que
estruturam o raciocínio da autora. Na primeira parte, Badinter se concentra em mostrar a
identidade relativa e tridimensional da figura materna: Relativa porque tem relação ao pai e
ao filho. Tridimensional porque no meio de mãe, pai e filho, ela também é mulher. Assim,

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expõe os discursos que legitimam a autoridade paterna e a condição precária da criança antes
de 1760.
Na segunda parte, tem-se uma mudança das mentalidades, quando, no último terço do
século XVIII, a imagem da mãe, seu papel e importância modificaram-se radicalmente. Em
consequência dessa transformação na figura materna, na terceira parte, Badinter trabalha com
as novas responsabilidades e deveres da mãe, que vai além dos nove meses: o dever de criar
um bom cidadão.
Outrossim, as concepções filosóficas e científicas de Jean-Jacques Rousseau 1 e
Sigmund Freud2 atravessam o texto, não apenas ao longo dele, como nos questionamentos
finais que Badinter traz à luz das reflexões, pensando nas “instruções” de família moderna e
idealização de mulher descritas em Émile3 pelo primeiro intelectual e nas teses psicanalíticas
do segundo.

O AMOR AUSENTE, MATERNO E FORÇADO

Ao iniciar suas reflexões, Badinter se preocupa em pensar a sociedade francesa do


século XVII, quando o amor e instinto maternos eram conceitos desconhecidos ou, no
mínimo, divergentes do que se entende nos séculos seguintes. Dentro do modelo de família
da época, a mãe e o filho estavam na sombra do pai, o qual tinha legitimidade de poder por
discursos filosóficos, teológicos e políticos. Assim, os desejos, vontades ou ambições que
eram atendidas interessavam ao pai, sendo ele o centro das atenções, principalmente da
mulher.
A condição da criança era precária, visto que sua imagem refletia apenas como um
estorvo, uma dificuldade, algo a ser tratado com indiferença. Os abandonos e contratações de
amas de leite eram frequentes, além dos internatos e conventos, assim, pouquíssimo da vida
da criança era passada com os pais, quando isso acontecia, visto que pouco ou quase nada se
sabia dos jovens quando eram abandonados pelos pais.
Fixa-se, nesse momento, o primeiro incômodo: como as mães abandonam seus
próprios filhos, se consta que o amor materno é universal, infinito, natural? Badinter coloca
1 Jean-Jacques Rousseau, foi um importante filósofo, teórico político, escritor e compositor genebrino
2 Sigmund Freud foi um neurologista e psiquiatra austríaco. Freud foi o criador da psicanálise e a personalidade
mais influente da história no campo da psicologia
3 Émile é uma obra escrita por Jean-Jacque Rousseau sobre a natureza do homem. Discute temas políticos e
filosóficos referentes à relação do indivíduo com a sociedade, particularmente explica como o indivíduo pode
conservar sua bondade natural, enquanto participa de uma sociedade inevitavelmente corrupta. Em Emílio,
Rousseau acompanha o tratado de uma história romanceada do jovem Emílio e seu tutor, para ilustrar como se
deve educar o cidadão ideal.

2
sua primeira evidência na questão discursiva do “instinto materno”. A maternidade, neste
recorte, não é relacionada com cuidado, carinho, amor ou instinto, entretanto, quando a alta
mortalidade de crianças começa a se tornar uma crise populacional, viu-se necessário criar a
narrativa da responsabilidade da mãe sobre o filho e, pouco a pouco, de seu amor
incondicional.
Posto isso, no último terço do século XVIII, tem-se uma espécie de revolução da
mentalidade. Muda-se a imagem da mãe, seu papel e importância, ainda que o
comportamento tardasse mudar. Dentro de uma lógica econômica e de necessidade de uma
maior população, as crianças começaram a ser vistas como um valor mercantil em potencial,
assim, inicia-se a imposição às mulheres para que cuidassem de seus filhos.
O primeiro indício de mudança materno é certamente a vontade de aleitar ela própria
seu filho e,lentamente, foi se enraizando que o carinho e o cuidado materno eram
imprescindíveis para o bom crescimento das crianças. O discurso de felicidade e igualdade
para as mulheres também foi muito difundido, na crença de que essas personagens se
sentissem incentivadas a dedicar-se ao seu filho e o cuidado dele. A autora, então, questiona
quem é a nova mãe, visto que as camadas burguesas absorveram o novo discurso da
maternidade, pois as mulheres de classe média viram na figura materna uma oportunidade de
emancipação e promoção. Entretanto, o amor e instinto maternos não comoveram as
mulheres da aristocracia (essas não se modificaram até meados do séculos XIX) e tampouco
as das classes menos abastadas, que continuaram a prática de entregar seus filhos às amas até
o início do século XX.
A narrativa da maternidade se construiu exigindo a doação da mulher ao seu papel de
mãe: assumindo novas responsabilidades, desdobrando-se além dos nove meses a fim de criar
um cidadão, bom cristão, sujeito que encontre o melhor lugar possível no seio social. A
imposição da maternidade e a criação da mãe e mulher ideal foi legitimada, principalmente,
pelo discurso moralizador herdado de Rousseau e pela psicanálise de Freud. Em Émile, obra
de Jean-Jacques Rousseau, o autor descreve a personagem Sophie 4, um exemplo a ser seguido
por todas as mulheres: de espírito agradável sem ser brilhante, sólido sem ser profundo 5.
Assim, Rousseau cria um imaginário da figura feminina, como uma esposa educada para
satisfazer os desejos do marido e as necessidades do filho, exercendo grande influência no
ideário de família moderna.

4 Sophie é a esposa de Émile e mulher ideal pensada por Rousseau. Companheira, fraca, tímida, submissa. A
mulher feita especialmente para agradar ao homem
5 Émile, La pléiade, Livro V

3
Em paralelo, Freud se esforça em analisar a evolução da menina em mulher. Essa tem
três características essenciais, segundo o psicanalista: passividade, masoquismo e o
narcisismo. De acordo com Helene Deutsch 6, com essa imagem da mulher, não era difícil
criar a boa mãe, definida como “mulher feminina”, constituída pela junção harmoniosa das
tendências narcisistas e aptidão masoquista a suportar o sofrimento. Em suma, acreditava-se
que uma verdadeira mãe não era livre, ou seja, não podia ser mãe e outra coisa.
Visto esse cenário, cerca da década de 1960 os discursos feministas tiveram
consequências fundamentais para a desconstrução da maternidade e transformação de
práticas. A maternidade começou a ser vista como um dom, não um instinto, e a insatisfação
das mulheres perante a desigualdade nos séculos XX e XXI entre os cônjuges no cuidado dos
filhos tornou-se pauta.

PONTOS PARA ANÁLISE

As reflexões postas permitem entender contextos históricos e as transformações que


possibilitaram as mudanças no conceito de maternidade e na imposição dessa às mulheres.
Dessa maneira, existem pontos expostos pela autora interessantes para a reflexão e análise.
Em primeiro plano, tem-se o esforço brilhante que Badinter realiza ao longo do livro
para desnaturalizar a maternidade. Tirar o conceito do lugar de universal, instintivo e habitual
a todas as mulheres. Foi-se necessário mostrar a origem discursiva da maternidade, como a
conjuntura e os interesses de um meio foram organizados a fim de legitimar práticas e
regimes de verdade que, inclusive, perduram até os dias vigentes.
A exposição da estrutura do “instinto materno” foi colocado, de maneira certeira,
como ferramenta de controle sobre as mulheres e sobre suas práticas, vontades e ambições, já
que absolveu a individualidade e instituiu a doação à família como a principal conduta social.
Badinter não demonstra a inexistência do amor materno, mas sim como esse condicionou as
figuras femininas a pouquíssimos espaços.
Outrossim, vê-se um esforço da maternidade imposto às mulheres que atravessa
séculos, mas pouco se cobra dos pais. Segundo a autora, a questão da paternidade,
infelizmente, fica parcialmente sem resposta, visto que a escolha do amor materno e não
paterno pode ser atribuída, por exemplo, ao discurso de sacrifício da gestação e, assim,
posteriormente da criação dessa criança. Também pelo teor defendido por Freud, do

6 Helene Deutsch foi uma psicanalista polonesa americana e colega de Sigmund Freud. Deutsch foi uma das
primeiras psicanalistas a se especializar em mulheres.

4
masoquismo feminino. A culpabilização será sempre interessante recair sobre a figura
materna, e não sobre a figura que tem seus privilégios constantemente manutenidos.
Vale ressaltar, também, como Badinter se preocupa em mostrar como as mulheres,
por exemplo, do século XVII não são as mesmas do século XXI, no sentido de que a história
não é linear, teleológica. É nítido que a estruturação da obra é feita para pensar as
mentalidades, os discursos e as relações de poder e saber, que são impostas e validam práticas
em suas determinadas sociedades, e não de modo a refletir como a mulher dos séculos
anteriores construiu a mulher do vigente. Apesar de algumas narrativas e práticas persistirem
sobre a figura materna, ela não é unânime, universal ou cânone para todas as mulheres.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dessa maneira, o amor materno poderia ser considerado um sentimento universal que
se manifesta naturalmente em toda e qualquer mulher? Badinter responde brilhantemente, ao
longo da obra, que não, visto que foram as mudanças sociais e as transformações econômicas
alinhados com os interesses de um grupo (esmagadoramente masculino) que constituíram o
que deveria ser a maternidade.
No último parágrafo do prefácio à edição de bolso, Elisabeth Badinter convida todas
as mulheres ao debate filosófico da maternidade, visto que, segundo a autora, é a todas elas
que cabe testemunhar, ouvir e julgar. Em suma, Badinter cria um espaço para debates
imprescindíveis, fazendo com que seu livro seja um serviço a toda mulher, mostrando que
não há amor, instinto ou filhos que lhes faltam, por si, toda mulher é completa, mesmo sem
ser mãe
A autora perpassa por questões de gênero, poder, condição social, relacionando com
práticas e discursos, expondo discussões que são completamente atuais, apesar de tratar de
séculos passados. Mostra como demandas e imposições atravessam os intelectuais, a política,
a economia e a vida social, impactando nas vivências e nas construções das imagens dos
sujeitos. Badinter, com excelência, cumpre o que se propõe a fazer em O amor conquistado:
o mito do amor materno.

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