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AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA)

DSM-5: manual diagnóstico e estatístico de transtornos


mentais – 5.ed.

BARBOSA, T.; RODRIGUES, C.C.; MELO, C.B.; CAPELLINI, S.A.;


MOUSINHO, R.; ALVES, L.M.
Temas em dislexia

O desenvolvimento neurológico pode ser modificado pela aprendizagem? Quais são os BARKLEY, R.A
Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade: manual para
fatores que interferem nesse processo? Cognição, aprendizagem e desenvolvimento diagnóstico e tratamento – 3.ed.
neural estão interligados? Ou são elementos diferentes que se sobrepõem?
BARKLEY, R.A.; BENTON, C.M.
Vencendo o transtorno de déficit de atenção/hiperatividade adulto
O complexo processo cognitivo aparece neste livro sob a forma de intervenções
práticas nos processos clínicos e em diferentes concepções teóricas. A partir dos BARKLEY, R.A.; MURPHY, K.R.
Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade: exercícios
relatos de profissionais de áreas como neurologia, psicologia, psicopedagogia, clínicos – 3.ed.
fonoaudiologia, terapia ocupacional e fisioterapia, é possível construir novas formas
CLARK, J.W.
de pensar e agir clinicamente. Esta obra mostra como, por meio do lúdico, novos
Neurologia clínica: da sala de aula ao consultório
caminhos neurais e subjetivos tomam forma e possibilitam que crianças reconfigurem
seus modos de aprender, viver e compreender o mundo. FARRELL, M.
Guia do professor – Dificuldades de aprendizagem moderadas,
graves e profundas: estratégias educacionais em
Temas abordados neste livro: necessidades especiais

FARRELL, M.
Transtorno do espectro autista Guia do professor – Dislexia e outras dificuldades de aprendizagem
específicas: estratégias educacionais em necessidades especiais
Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade
GOSSELIN, J.; AMIEL-TISON, C.
Deficiência intelectual Avaliação neurológica: do nascimento aos 6 anos – 2.ed.

Paralisia cerebral IZQUIERDO, I.


Memória: revista e ampliada – 2.ed.
Transtornos específicos da aprendizagem: dislexia e discalculia
MARTIN, J.H.
Transtornos motores: dispraxias Neuroanatomia: texto e atlas – 4.ed.

NARDI, A.E.; QUEVEDO, J.; SILVA, A.G.


Dificuldades ligadas às funções executivas Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade: teoria e clínica
Tecnologias assistivas e reabilitação para crianças com transtornos ROTTA, N.T.; OHLWEILER, L.; RIESGO, R.S.
do desenvolvimento Transtornos da aprendizagem: abordagem neurobiológica e
multidisciplinar – 2.ed.

SÁNCHEZ-CANO, M.; BONALS, J.


Manual de assessoramento psicopedagógico

SMITH, C.; STRICK, L.


Dificuldades de aprendizagem de A-Z: guia completo para
educadores e pais

VIANIN, P.
Estratégias de ajuda a alunos com dificuldades de aprendizagem
Para as crianças e suas famílias
que generosamente partilham suas
histórias e nos ensinam sobre o
aprender em suas diferentes dimensões.

N495 Neurologia e aprendizagem : abordagem multidisciplinar


[recurso eletrônico] / Organizadores, Newra Tellechea
Rotta, César Augusto Bridi Filho, Fabiane Romano de
Souza Bridi. – Porto Alegre : Artmed, 2016.
e-PUB.
Editado como livro impresso em 2016.
ISBN 978-85-8271-268-9
1. Neurologia. 2. Transtornos da aprendizagem. I.
Rotta, Newra Tellechea. II. Bridi Filho, César Augusto.
III. Bridi, Fabiane Romano de.
CDU 616.8

Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094


Identificação precoce do
transtorno do espectro autista
3
e diagnóstico diferencial:
estudo de caso
SABRINA MARIA OCANHA PIRES E
GRACIELA INCHAUSTI DE JOU

INTRODUÇÃO ninos para uma menina com TEA (BOSA;


CALLIAS, 2000; PAULA et al., 2011).
Este capítulo tem como finalidade ilus- Segundo Lampreia (2003), o TEA
trar a preocupação manifestada no Cur- abrange um espectro bastante heterogêneo
so de Neurologia para Profissionais das de quadros comportamentais. Há crianças
Áreas da Saúde e Educação, da Dra. Newra com deficiência na linguagem, outras com
Rotta, assistido pelas autoras no ano de deficiência intelectual, entretanto há ou-
2011. tras que têm as habilidades cognitivas pre-
Pesquisas com crianças autistas no pe- servadas e apresentam apenas o déficit na
ríodo pré-escolar têm ajudado a esclarecer interação social. Enquanto algumas crian-
a natureza dos primeiros sintomas e a en- ças manifestam uma história de desvio do
corajar os profissionais a identificá-los o desenvolvimento desde os primeiros dias
mais cedo possível durante os primeiros de vida, outras apresentam os sintomas
anos de vida (DAWSON et al., 2000). En- somente após dois anos de suposta nor-
tretanto, poucos trabalhos têm abordado os malidade.
indicadores precoces do transtorno do es- A importância das pesquisas retros-
pectro autista (TEA) desde o nascimento. pectivas para a detecção de indicadores
Essas pesquisas retrospectivas tentam res- precoces mostra-se reforçada pela nova
gatar da história pregressa de crianças au- visão que trouxe o DSM-5 (AMERICAN
tistas os indicadores comportamentais rela- PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). O ma-
cionados ao TEA, já nos primeiros meses nual destaca que indivíduos com trans-
de vida. Na maioria das vezes, a criança torno do espectro autista devem apresen-
autista apresenta uma aparência total- tar sintomas desde muito cedo na infân-
mente normal e, ao mesmo tempo, um cur- cia, apesar de esses sintomas não terem
so irregular no desenvolvimento (FERNAN- sido reconhecidos até mais tarde. Essa
DES; NEVES; SCARAFICCI, 2006). proposta não só encoraja a realizar diag-
No Brasil há, aproximadamente, 600 nósticos precoces do transtorno, como
mil pessoas afetadas por essa patologia, permite que pessoas cujos sintomas não
considerando somente a forma típica do tenham sido reconhecidos até aparece-
transtorno. A prevalência é de quatro me- rem diante das demandas sociais possam
56 Rotta, Bridi Filho e Bridi (orgs.)

receber o diagnóstico (DSM-5 DEVELOP- cas apontam para diversas causas que po-
MENT, c2014). dem estar presentes ou ausentes em al-
Atualmente, o TEA é concebido co- guns casos desse espectro, refletindo a he-
mo um transtorno biológico de etiologia terogeneidade, mencionada por Lampreia
diversificada. A esse respeito, Sadock e (2003). Entretanto, é consenso na área
Sadock (2011) afirmam que evidências que não existem testes laboratoriais para
atuais confirmam a noção de uma base a detecção do transtorno do espectro au-
genética para o desenvolvimento do trans- tista e que o diagnóstico é feito basicamen-
torno autista, com contribuição de até qua- te pela avaliação do quadro clínico. Por
tro ou cinco genes, mas também estaria isso, o diagnóstico deve ser feito por um
associado a condições neurológicas, em profissional com experiência clínica (FER-
especial rubéola congênita, fenilcetonúria NANDES; NEVES; SCARAFICCI, 2006).
e esclerose tuberosa. O autor informa que As áreas que se encontram acentua-
diversos relatos sugerem que incompatibi- damente prejudicadas são caracterizadas
lidade imunológica também pode contri- por anormalidades qualitativas na intera-
buir para o TEA. Os linfócitos de algumas ção social, na comunicação e no uso da
crianças autistas reagem com anticorpos imaginação, como Kanner havia apresen-
maternos, elevando a possibilidade de que tado na década de 1940 (TAMANAHA;
tecidos neurais embrionários ou extraem- PERISSINOTO; CHIARI, 2008).
brionários possam ser danificados durante Até hoje, analisam-se quatro crité-
a gestação. Casos de complicações perina- rios da área de interação social que são
tais e sangramento materno após o pri- qualitativamente comprometidos ou até
meiro trimestre foram relatados com maior mesmo ausentes em crianças com TEA.
frequência na história de crianças autistas. O primeiro critério está relacionado ao
No período neonatal, crianças com síndro- uso de comportamentos não verbais, co-
me de sofrimento respiratório e anemia mo expressões faciais, postura corporal
também apresentam maior incidência de e gestos comuns na interação social. A es-
TEA do que na população geral. se respeito, Meneghello (1997) afirma
Embora haja alguma evidência que que, quando uma criança pequena chega
indica que a exposição a uma ampla clas- para atendimento no colo da mãe se pa-
se de condições que refletem comprome- recendo mais como um boneco de pano
timentos gerais à saúde perinatal e neo- do que uma criança, por falta de sincro-
natal pode aumentar o risco de TEA, Gar- nização gestual, pode ser um indicativo
dener, Spiegelman e Buka (2011) afirmam de TEA.
que não há evidências suficientes para O segundo critério está ligado ao as-
sugerir um fator perinatal ou neonatal na pecto de relacionamentos. Como afirmam
sua etiologia. Kaplan, Sadock e Grebb (1996), a crian-
Dados recentes apontam para a im- ça atípica pode não demonstrar sorriso
portância da base neuroanatômica do social, contato visual e postura antecipa-
TEA e fatores bioquímicos. Vários estu- tória para que seja tomada pelos braços
dos mostram que cerca de um terço dos de um adulto.
pacientes com TEA tem altas concentra- O terceiro critério é a falta de esponta-
ções de serotonina plástica (SADOCK; neidade em compartilhar momentos agra-
SADOCK, 2011). dáveis, interesses ou conquistas com outras
Da literatura revisada infere-se que a pessoas. Como confirmam Sadock e Sadock
etiologia do transtorno não está bem de- (2011), há um déficit saliente na capaci-
finida, os resultados de pesquisas científi- dade de interagir com seus pares e fazer
Neurologia e aprendizagem 57

amigos, pois seu comportamento social é O objetivo do presente trabalho con-


isolado ou desajeitado e inadequado. siste em investigar sinais precoces do
O quarto critério, por sua vez, refere- transtorno do espectro autista e alertar
-se à falta de reciprocidade social ou emo- sobre a importância do diagnóstico dife-
cional. A esse respeito, Sadock e Sadock rencial por meio de um estudo de caso.
(2011) acrescentam que autistas não con-
seguem deduzir os sentimentos ou o esta-
do mental dos outros à sua volta, ou seja, ALERTA PARA OS SINAIS
são incapazes de fazer atribuições sobre a PRECOCES DO TEA
motivação ou as intenções dos demais.
Portanto, não desenvolvem a Teoria da Graças ao avanço de pesquisas com
Mente, isto é, eles podem ter uma incapa- enfoque desenvolvimentista, é possível
cidade de inferir os próprios estados men- fazer a identificação cada vez mais cedo
tais e os dos outros. de crianças com risco de TEA. Segundo
Nos anos 1980, vários estudos de cará- Marcelli e Cohen (2010), ainda hoje o
ter experimental mostraram que as crianças diagnóstico é mais evidente a partir de 2
autistas não passavam nos testes de Teoria a 3 anos de idade. No entanto, na clíni-
da Mente. Nesses testes, a criança tem de se ca já é possível identificar crianças bem
colocar no lugar do personagem para dar a pequenas com risco de TEA. Malvy, Adrien
resposta correta. A maioria das crianças de e Sauvage (1997) revelam que por meio
4 anos passa nessas tarefas, mas não a crian- da análise clínica retrospectiva e dos fil-
ça autista (MAINIERI, 2000). mes familiares já se observam sinais mui-
Confirmando os critérios acima men- to precoces.
cionados, as queixas dos que cercam os Frequentemente há certa percepção
autistas referem-se mais a uma torpeza dos pais desses indicadores precoces, pois
social do que a uma dificuldade intelec- existe uma queixa bastante comum por
tual ou a transtornos da fala. A falta qua- parte da mãe de que a criança não é nor-
se total de entendimento das relações in- mal, principalmente quando há filhos
terpessoais, do que fazer frente aos de- mais velhos. Os pais relatam sobre a es-
mais em situações cotidianas, limita a quisita sensação de não serem reconheci-
interação social e compromete os pro- dos pelo próprio filho e ainda sentem
cessos sociocognitivos (BUTMAN; ALLE- mal-estar na interação. Portanto, é neces-
GRI, 2001). sário entender essa queixa como uma
A idade usual para o diagnóstico do percepção precoce dos pais de que seu fi-
transtorno do espectro autista é de 3 anos, lho não interage bem como o esperado
apesar de que vários estudos mostram (MARCELLI; COHEN, 2010).
que aos 18 meses muitos dos sintomas já Por meio da análise do desenvolvimen-
estão presentes (ASSUMPÇÃO JR.; PI- to típico fica ainda mais visível e possível
MENTEL, 2000). Stone e Turner (2011) de detectar os sinais que indicam anormali-
também informam que resultados de dade no crescimento da criança. Dessa for-
pesquisas retrospectivas, com entrevistas ma, seria necessário entender as etapas do
com os pais e análise de vídeos familia- desenvolvimento normal para posterior-
res, mostraram que os sintomas do défi- mente avaliar os precursores de risco.
cit social, especialmente de orientação Segundo Atkinson et al. (1995), em-
social e atenção conjunta, aparecem an- bora o bebê humano seja indefeso ao nas-
tes dos 2 anos, muito antes que se che- cer, apresenta todos os sistemas sensoriais
gue a um diagnóstico definitivo. funcionando. Os recém-nascidos assustam-
58 Rotta, Bridi Filho e Bridi (orgs.)

-se com um ruído alto e, inclusive, voltam do rosto: olhos, nariz e boca. Dessa forma,
a cabeça na direção de determinado som. os pais percebem claramente que o bebê
Já apresentam sucção rítmica ao mamar, começou a fazer contato visual.
com pausas, durante as quais ocorrem tro- Segundo Valdizán et al. (2003), a ca-
cas de olhares de sentido psicológico e que pacidade de fixação visual existe desde o
seguramente têm um papel especial no de- nascimento, mas a capacidade para o se-
senvolvimento cognitivo (CONDON; SAN- guimento visual é escassa e não se mani-
DERS, 1974). Entretanto, os bebês autis- festa antes dos 2 meses. Esse é, segundo
tas, como apontam Marcelli e Cohen Mussen, Conger e Kagan (1974), um dos
(2010), apresentam hipotonia oral e hipo- desenvolvimentos maturacionais mais in-
tonia da cabeça enquanto fazem sucção teressantes. A fixação visual orientada é
mamária. uma resposta que geralmente alcança a
Field (1987) acrescenta que, aos 6 sua maturidade por volta dos 5 meses.
meses, os bebês mostram um aumento O desenvolvimento visual dos autis-
acentuado em sua responsividade aos sons tas é atípico, como se fosse de um recém-
acompanhada por aspectos visuais inte- -nascido, de tal maneira que necessitam
ressantes, como a face ou a voz da mãe. do tato para confirmar o que veem. O sis-
Também distinguem sons da voz humana tema visual dessas crianças não é sufi-
de outras espécies de sons. Portanto, os ciente para sobreviver no mundo social.
bebês humanos parecem nascer com me- Manifestam pobre contato ocular e olham
canismos de percepção já adequados às as pessoas como se fossem objetos (VAL-
propriedades da fala humana que o aju- DIZÁN et al., 2003).
darão em seu domínio da linguagem (EI- A evidência empírica confirma a exis-
MAS, 1985). tência de dificuldades sensoriais e moto-
No bebê autista, observam-se altera- ras desde muito cedo no desenvolvimen-
ções nos programas de sintonia e harmo- to dos autistas. Portanto, é complexo pa-
nização. Os esquemas de harmonia podem ra as crianças com transtorno do espectro
consistir em respostas de grupos muscula- autista que apresentam déficits sensoriais
res sincrônicos aos estímulos auditivos da envolver-se em ligações sociais devido à
voz humana ou na evocação de respostas pobre regulação da ativação, da atenção,
próprias, semelhantes às apresentadas pe- do afeto e da ação (ANZALONE; WILLIA-
lo estímulo social. Esses esquemas de har- MSON, 2000; BARANEK, 2002).
monia já se encontram prejudicados no O desenvolvimento social da criança
bebê com desenvolvimento atípico (CON- autista é marcado por comportamento de
DON; SANDERS, 1974). apego prejudicado, não reconhecem ou
Pesquisas mostram que os bebês com não diferenciam as pessoas mais próximas
desenvolvimento típico têm maior prefe- em suas vidas. Seguidamente, podem de-
rência não aprendida por faces humanas, monstrar ansiedade extrema quando sua
além de atração por estímulos característi- rotina é interrompida. Quando atingem a
cos, linhas curvas, bordas interessantes, idade escolar, há um evidente déficit na
movimento e complexidade, tudo que um capacidade de brincar com seus pares e
rosto possui (ASLIN, 1987; BANKS; SALA- fazer amigos (SADOCK; SADOCK, 2011).
PATEK, 1983). Também Haith, Bergman e Fejerman et al. (1994) acrescentam
Moore (1977) informam que os recém-nas- que o jogo exploratório está ausente na
cidos observam principalmente o contorno criança autista. Normalmente ela mani-
externo de um rosto, porém, aos 2 meses pula objetos por meio do toque, levando-os
de vida, focalizam sua atenção no interior até a boca para chupá-los, mordê-los ou
Neurologia e aprendizagem 59

destruí-los sem a intenção de brincar. As ção por bebês é um estágio inicial da


atividades lúdicas, se é que existem, são rí- aquisição da linguagem. Conforme Atkin-
gidas, repetitivas e monótonas. Crianças son et al. (1995), o desenvolvimento da
autistas emparelham ou põem em fila os fala nos apresenta um modelo da intera-
brinquedos sem ter consciência do que o ção entre características geneticamente
brinquedo representa. Não se envolvem no determinadas e as experiências oferecidas
jogo representativo – uma característica pelo ambiente. Quase todos os bebês hu-
muito importante para a observação diag- manos nascem com a capacidade para
nóstica do transtorno do espectro autista. aprender uma língua falada. No curso nor-
Conforme Golan et al. (2010), em crian- mal do desenvolvimento os seres humanos
ças com desenvolvimento típico, a habili- aprendem a falar. Entretanto, eles não são
dade de reconhecer e discriminar expres- capazes de falar antes de terem atingido
sões emocionais dos outros já está presente certo nível de desenvolvimento neurológi-
a partir das 10 semanas de idade e continua co. Crianças criadas em um ambiente no
se desenvolvendo ao longo da infância. Já qual as pessoas falam com elas e oferecem
as condições neurodesenvolvimentistas do recompensas para a vocalização falarão
TEA são caracterizadas por extrema dificul- antes das crianças que não recebem essa
dade de reconhecer e discriminar expressões atenção. Portanto, o desenvolvimento da
emocionais dos outros. fala apresenta componentes tanto genéti-
O bebê autista, de 0 a 6 meses, pouco cos quanto ambientais. Em torno dos 12
percebe e pouco solicita a presença das pes- meses de idade, as crianças começam a fa-
soas, inclusive da própria mãe. Nem o refle- lar, usam conceitos para muitas coisas, in-
xo de levantar os braços para ir ao colo é cluindo membros da família, animais do-
perceptível. Os autistas demonstram prefe- mésticos, alimentos, brinquedos e partes
rência por objetos inanimados mais do que do corpo (ATKINSON et al., 1995).
por faces humanas. Parecem não reconhecer No TEA, as primeiras verbalizações des-
ou diferenciar as pessoas mais importantes sas crianças, se existem, mostram-se pre-
de seu entorno (pais, irmãos, professores), judicadas, mas, mais importante ainda,
inclusive podem não demonstrar ansiedade como apontam Marcelli e Cohen (2010),
de separação quando deixados em ambien- há uma ausência dos precursores da lin-
te não familiar com a presença de estranhos guagem, como o apontar protodeclarativo
(CLEMENTE, 2009). Marcelli e Cohen e protoimperativo.
(2010) também apontam uma falha de rea- Clemente (2009) reforça que a quan-
ção em face do estranho e uma indiferença tidade de balbucio, durante o primeiro
às separações e aos reencontros. ano de vida, é menor ou anormal. Comu-
Sadock e Sadock (2011) complemen- mente, emitem ruídos, estalos, sons,
ta que crianças autistas não apresentam guinchos e sílabas sem sentido – de um
o nível esperado de habilidades sociais modo estereotipado sem aparente inten-
recíprocas sutis na relação com seus pais ção de comunicação. Essas crianças têm
e outras pessoas. Quando bebês carecem dificuldade acentuada em formar fra-
de sorriso social, de contato visual e de ses significativas, embora disponham de
uma postura antecipatória para serem se- vocabulário amplo. Mesmo quando apren-
gurados quando um adulto se aproxima dem a conversar de maneira fluente, po-
pode ser considerado um sinal de alerta. dem dar informações sem passar a sen-
Quanto à aquisição da linguagem, o sação de reconhecimento de como a ou-
balbucio e as vocalizações são respostas tra pessoa está respondendo (SADOCK;
universais durante a infância. A vocaliza- SADOCK, 2011).
60 Rotta, Bridi Filho e Bridi (orgs.)

A imitação é outra habilidade inata apontam que o repertório de respostas do


que merece ser analisada, já que é fun- neonato desenvolve-se na interação com o
damental para as interações sociais. Em ambiente. Em média os bebês são capazes
estudos nas décadas de 1970 e 1980, in- de ficar sentados por 1 minuto com apoio,
vestigou-se variadamente a capacidade nas idades de 3 ou 4 meses e, por volta dos
dos bebês de imitar ações das mãos, de 7 ou 8 meses, podem fazê-lo sem apoio.
piscar de olhos, de mostrar a língua ou É esperado que a criança aos 3 meses
até mesmo de imitar expressões emocio- vire-se de lado, aos 4 meses suporte parte
nais. As expressões faciais de várias emo- de seu peso sobre as pernas; entre 5 e 6 me-
ções parecem ser inatas e podem ser as ses sente-se sem apoio e segure-se em mó-
que o bebê vem mais preparado para imi- veis; entre 8 e 9 meses engatinhe ou rasteje-
tar (ATKINSON et al., 1995). -se; entre 9 e 10 meses caminhe seguran-
Meltzoff e Moore (1977) observaram do-se nos móveis, entre 11 e 12 meses fique
bebês de 3 semanas em situações em em pé sozinho; e a partir dos 12 meses até
que o bebê via o adulto, mas o adulto os 15 meses espera-se que já caminhe sozi-
não via o bebê. O adulto fazia gestos nho (FRANKENBURG; DODDS, 1967).
simples com o rosto enquanto filmavam Em geral, o bebê autista permanece
o bebê. Os autores encontraram aumen- inerte com os olhos bem abertos esperan-
to nos gestos faciais e segmentais no do em sua cama. Marcelli e Cohen (2010)
bebê. A imitação do bebê mostra-se mui- acrescentam que os bebês nessa faixa etá-
to seletiva e somente imita as formas ria podem apresentar alterações precoces
que correspondem ao seu nível de inte- de interação, como, por exemplo, bebê
ração com rostos. As expressões faciais bem comportado que nunca chora e que
se organizam a partir de um modelo de não reclama. É comum o bebê autista
imitação, processo este que se inicia em apresentar transtorno tônico em forma de
torno da sexta semana de vida. hipotonia e ausência de diálogo tônico a
Ainda sob imitação, Klinger e Daw- partir de 2 e 3 meses, ou seja, sem tônus e
son (1992) acrescentam que, na comuni- sem gesto antecipatório. Contrariamente,
cação entre mãe-bebê nos primeiros 6 também aparece postura hipertônica com
meses, a mãe imita as expressões faciais, gesticulação incessante, incapacidade de
os movimentos corporais e as vocaliza- se aconchegar tranquilamente nos braços
ções do bebê. Nesse momento, o bebê e com frequência desvio de olhar.
responde com interesse visual e sorrisos. Dos 6 aos 12 meses, os bebês autistas
Crianças autistas apresentam falhas apresentam ausência de braço estendido, de
na habilidade de imitar e peculiaridades mímica, de contato físico e de balbucio. Em
no processamento sensorial. Segundo Ro- geral, é quando surgem as estereotipias, di-
gers e Bennetto (2000), o prejuízo na ha- ferente dos jogos com as mãos, observados
bilidade de imitar outro indivíduo é a por volta dos 5 e 6 meses, que são passagei-
parte central do perfil neuropsicológico ros e interrompidos quando se propõe uma
do transtorno do espectro autista. Um interação (MARCELLI; COHEN, 2010).
déficit imitativo grave no bebê pode pre- No estudo de caso de Gomes e Tosca-
judicar as coordenações físicas envolvidas no (2012), investigando cinco meninos
nos intercâmbios sociais e interferir no com diagnóstico de transtorno do espectro
estabelecimento e na sustentação da co- autista, os autores apontaram que a maio-
nectividade emocional. ria dos participantes apresentaram dificul-
Com relação às habilidades motoras e dade na motricidade global e de equilí-
posturais, Mussen, Conger e Kagan (1974) brio, assim como mostraram dificuldade
Neurologia e aprendizagem 61

nas tarefas visuomotoras, de esquema cor- ocorrem mudanças ou exigências. Condu-


poral, organização espacial e temporal. tas de automutilação incluem bater a ca-
Além disso, bebês autistas apresentam beça, morder, arranhar e puxar o cabelo,
transtorno do sono do tipo insônia. Trans- mudanças súbitas de humor, com acessos
tornos alimentares como ausência de suc- de riso ou choro, sem uma razão óbvia.
ção ou anorexia também são comuns aos É difícil saber mais sobre esses episódios,
quadros do espectro autista (MARCELLI; uma vez que não conseguem expressar
COHEN, 2010). seus pensamentos relacionados ao afeto.
Do ponto de vista cognitivo, a criança A partir da revisão da literatura, as alte-
autista apresenta perturbações de atenção e rações mais significativas do desenvolvi-
de percepção que podem apontar para a mento infantil que servem como sinais de
anormalidade neural (BELMONTE; GO- risco precoce para o transtorno do espectro
MOT; BARON-COHEN, 2010). Segundo Sa- autista se referem à carência do sorriso so-
dock e Sadock (2011), são mais habilidosas cial, do contato visual, das vocalizações, da
em tarefas visuoespaciais do que em tarefas imitação neonatal, do contato físico e da
que exigem habilidade em raciocínio verbal. postura antecipatória. Portanto, já é possí-
Com relação a outros indicadores vel alertar os familiares quando há presença
neurológicos, Sadock e Sadock (2011) desses sintomas ainda quando bebê.
refere que um número maior do que o Na análise sobre o desenvolvimento
esperado de crianças autistas não apre- típico, verifica-se que o curso natural per-
senta lateralização e permanecem ambi- mite que o indivíduo aprenda os repertó-
destras em uma idade na qual a domi- rios básicos para viver no mundo social.
nância cerebral já está estabelecida em Em contrapartida, ao ter esse desenvolvi-
crianças normais. Além disso, apresen- mento prejudicado, o mundo social que o
tam uma incidência mais alta de derma- autista constrói aparece bastante altera-
tóglifos anormal, ou seja, impressões di- do, impossibilitando a interação e a con-
gitais alteradas, do que a população em duta social. Dessa maneira, quanto mais
geral. Esse achado indica distúrbio no cedo se identificarem os comportamentos
desenvolvimento neuroectodérmico. sociais prejudicados, mais cedo poderão
Foi observado que crianças autistas res- ser trabalhados, permitindo explorar o
pondem de forma exagerada a alguns estí- máximo do potencial dentro das próprias
mulos sensoriais e não respondem a outros. limitações que o transtorno impõe.
Algumas crianças têm limiar de dor aumen-
tado ou resposta alterada a ela. De fato,
muitas delas não respondem a um ferimen- MÉTODO
to chorando ou procurando consolo. É co-
mum que apreciem música, começando a Participante
cantarolar melodias ou jingles comerciais
antes mesmo de pronunciar as palavras ou Uma criança autista de sexo feminino,
usar a fala. Algumas apreciam particular- hoje com 10 anos e 6 meses, diagnosticada
mente estimulação vestibular, como girar, com transtorno do espectro autista aos 3
balançar-se e fazer movimentos para cima e anos e 6 meses por uma equipe multidisci-
para baixo (SADOCK; SADOCK, 2011). plinar: neurologista, psicóloga e fonoaudió-
Geralmente hipercinesia é um proble- loga. Ela recebeu atendimentos especializa-
ma comportamental comum entre crian- dos a partir da suspeita de TEA, aos 2 anos
ças autistas pequenas. Em geral acessos de e 6 meses, e continua recebendo acompa-
raiva e agressão são observados quando nhamentos terapêuticos até a presente data.
62 Rotta, Bridi Filho e Bridi (orgs.)

Mora com a mãe e tem uma irmã de 12 riso social, resposta ao nome, toque
anos; o pai faleceu quando a menina tinha 3 social, comunicação não verbal (apon-
anos. A criança será referida com o nome tar), empatia, comportamentos repe-
fictício de Júlia. titivos, exploração de objetos, reação
visual, reação auditiva, reações nervo-
Instrumentos e procedimentos sas, comunicação verbal e sincroniza-
ção gestual.
Depois de a mãe ter concordado em • A Escala de Traços Autísticos (AS-
participar da pesquisa, marcou-se o pri- SUMPÇÃO JR. et al., 1999), respon-
meiro encontro no qual foram informados dida pela mãe da criança. Essa escala
a ela os detalhes da pesquisa e foi assina- foi traduzida, adaptada e validada a
do o Termo de Consentimento Livre e Es- partir da escala construída por Balla-
clarecido (TCLE). No segundo encontro, a briga, Escudé e Llaberia (1994). Cons-
mãe disponibilizou todo o histórico para ta de 23 subescalas, cada uma das
ser analisado e, no terceiro, foi aplicada a quais divididas em vários itens. O tem-
Escala de Traços Autísticos e feita a Entre- po médio de aplicação foi de 25 minu-
vista de Anamnese. tos. A escala é pontuada da seguinte
Os instrumentos utilizados para a aná- forma: cada subescala da prova tem
lise foram: um valor de 0 a 2 pontos; então, pon-
• O prontuário neonatal, que abrange tua-se a escala positiva no momen-
todos os dados da paciente durante to em que um dos itens for positivo.
os primeiros 15 dias de vida enquan- A pontuação global da escala se faz a
to esteve internada na CTI-Neonatal. partir da soma aritmética de todos os
Na sequência, informações sobre a valores positivos da subescala. Foi so-
sua segunda internação com 1 mês licitado à mãe para responder a essa
de vida. São informações relevantes escala focando os comportamentos
para o diagnóstico e prognóstico. observados no primeiro ano de vida,
• A entrevista de anamnese foi elabo- ou seja, de forma retrospectiva.
rada para a realização desta pesqui- • O psicodiagnóstico foi realizado por
sa e teve a finalidade de investigar a uma psicóloga especialista em trans-
história pregressa da criança, tal torno do espectro autista quando a
como a gravidez, o parto, as condi- criança tinha 2 anos e 6 meses.
ções do recém-nascido, a alimenta- • Os relatórios do profissional de Aten-
ção, o desenvolvimento psicomotor, dimento Domiciliar Terapêutico após
o desenvolvimento da fala, a escola- um ano de intervenção aos 3 anos e
ridade, o controle dos esfíncteres, o 6 meses e mais tarde aos 8 anos e 6
sono, doenças e suas complicações e meses. Esses relatórios buscam des-
os antecedentes familiares. crever o curso do desenvolvimento
• Dois vídeos familiares, um vídeo do global da criança.
nascimento aos 3 meses de vida e o
outro dos 3 aos 6 meses. A análise
desse material tem como finalidade
RESULTADOS E DISCUSSÃO
identificar a presença ou ausência de
comportamentos de desenvolvimento Prontuário neonatal
típico, como atenção compartilhada,
contato visual, sucção rítmica ao ma- De acordo com os dados coletados no
mar, imitação neonatal, abraço e sor- prontuário neonatal, Júlia nasceu de par-
Neurologia e aprendizagem 63

to cesário com idade gestacional de 39 Os dados registrados no prontuário


semanas. Pesava 3.695 g e media 51 cm. neonatal, as complicações respiratórias,
Recebeu APGAR 8 no primeiro minuto e as apneias do recém-nascido, a cianose,
9 no quinto minuto. Seu perímetro cefáli- as convulsões e as manifestações gastro-
co media 37 cm e o torácico 36 cm. enterológicas poderiam ser considerados
Em seguida após o nascimento, a me- como possíveis variáveis etiológicas do
nina teve complicações respiratórias e per- espectro autista. Como apontam Sadock
maneceu na incubadora durante 15 dias. e Sadock (2011), diante de complica-
A recém-nascida chegou à CTI-Neonatal ções no período neonatal existe maior
hipoativa com taquipneia, perfusão perifé- incidência de TEA do que na população
rica diminuída e gemido expiratório. Por- geral.
tanto, passou a ser monitorizada com oxi- Por outro lado, um trabalho de revi-
gênio. Devido a essas intercorrências, foi são sobre as intercorrências perinatais em
realizado tratamento medicamentoso por Transtornos Invasivos do Desenvolvimen-
meio de ampicilina e gentamicina. Confor- to (TID) realizado por Sanches e Brunoni
me o CID 10 (P28.4), obteve o diagnóstico (2010) indica que complicações obstétri-
de outras apneias do recém-nascido. cas ou estressores psicológicos maternos
Com 15 dias de vida recebeu alta do poderiam facilitar o desenvolvimento do
hospital e, após 20 dias, teve convulsão, fenótipo autístico em crianças com vulne-
sendo necessário interná-la novamente. rabilidade genética. Gardener, Spiegelman
Quando chegou ao hospital, apresentou e Buka (2011) concordam com a ideia de
cianose e saturação 47-66. Segundo o rela- que comprometimentos gerais à saúde
to dos pais, revirou os olhos e salivou du- perinatal e neonatal pode aumentar o ris-
rante 15 minutos, aproximadamente. Ficou co para o transtorno, mas ao mesmo tem-
uma semana internada para investigar a po alertam que não há evidência suficien-
convulsão. O resultado do eletroencefalo- te para sugerir o fator perinatal ou neo-
grama evidenciou atividades paroxísticas em natal na etiologia do TEA.
temporal posterior em ambos os hemisfé- Com relação a essa interação entre
rios, com leve predomínio à esquerda. Saiu vulnerabilidade genética e variáveis am-
do hospital com monitorização e uso do bientais, Ribeiro, Assumpção Jr. e Valen-
medicamento Gardenal, uma vez que esse te (2002) acrescentam que algumas doen-
episódio foi considerado uma convulsão. ças físicas podem apresentar sinais e sin-
A partir desse momento, Júlia recebeu tomas psiquiátricos. Por isso, torna-se im-
extensa e sistemática investigação neuroló- prescindível buscar um diagnóstico etio-
gica, não havendo indicativos de alterações lógico. Entre os distúrbios psiquiátricos,
neurológicas pelos resultados de EEG, po- o TEA se encaixa nesse modelo etiológi-
lissonografia, TC, ressonância, etc., que se co multifatorial, visto que está relacio-
mostraram todos normais. Além disso, pas- nado a muitas doenças orgânicas com
sou por investigação gastroenterológica por etiologias distintas, como doenças cro-
apresentar dor abdominal crônica. A crian- mossômicas, distúrbios metabólicos, in-
ça se contorcia, sem febre, sem comprome- fecções congênitas, anóxia neonatal e le-
timento do apetite ou do estado geral. Fez sões pré-natais.
duas ecografias abdominais e avaliação ci-
rúrgica com todos os resultados normais.
Entrevista de anamnese
Depois dessa internação investigativa, não
houve outros episódios de internação e a Durante a entrevista de anamnese, a
saúde física manteve-se estável. mãe relata que a gestação foi normal, a
64 Rotta, Bridi Filho e Bridi (orgs.)

termo, e o parto foi por cesárea porque o gista justificou que a alteração apresenta-
bebê estava em posição sentada. da em um único exame não era suficiente
Corroborando os dados colhidos no para fechar diagnóstico de convulsão,
prontuário neonatal, a mãe lembra na uma vez que os outros resultados eram
entrevista que imediatamente após o nas- todos normais. A mãe relata que, a partir
cimento a menina teve complicações res- do momento em que foi retirado o anti-
piratórias e permaneceu na incubadora convulsivo e iniciou tratamento com fluo-
durante 15 dias. Logo depois começou a xetina, a criança acordou para o mundo,
ser monitorizada com oxigênio. por volta dos 12 meses.
A mãe informa que, aos 15 dias de Novamente iniciaram outra maratona
vida, Júlia recebeu alta do hospital e, após de exames para investigar os prejuízos nas
20 dias, teve já em casa uma crise convulsi- funções da comunicação, da socialização e
va, sendo necessário interná-la novamente. do comportamento exploratório, assim
Permaneceu internada uma semana para como dos movimentos estereotipados, an-
investigar a convulsão. Nesse momento, co- tes chamado de “crise”. Portanto, foram a
meçou a tomar Gardenal e passou a dormir São Paulo e Salvador em busca de um
muito, permanecendo a maior parte do diagnóstico. Pela primeira vez levantaram
tempo deitada e sonolenta. a hipótese diagnóstica de TEA e indicaram
Recebeu monitoramento por meio do profissionais especialistas no transtorno em
oxímetro até os 7 meses. Por causa do pro- Porto Alegre.
blema respiratório, fazia apneia com fre- Os dados colhidos na entrevista, com
quência. Clinicamente, foi observada uma a mãe de Júlia corroboram os dados ex-
importante hipotonia muscular, motivo postos do prontuário neonatal. Adicional-
pelo qual começou com sessões de fisiote- mente, a mãe relata que já nos primeiros
rapia aos 5 meses. Para tratar a convulsão meses ela percebia que a menina não in-
inicialmente, fez tratamento com Garde- teragia de acordo com o esperado e que
nal®, que depois foi trocado pelo Trilep- apresentava algo estranho.
tal® e, na sequência, fez uso do Depake- Ao analisar a entrevista, infere-se que
ne®. A queixa da mãe se referia, exclu- apesar de que os exames neurológicos
sivamente, à sonolência e à hipoatividade efetuados não mostrassem indícios de al-
da menina quando estava acordada. terações, três manifestações da criança
A partir desse momento, Júlia iniciou chamaram a atenção para possíveis pre-
investigação neurológica por manifes- juízos nessa área: as convulsões, a hipo-
tar crise convulsiva e investigação gastroen- tonia e os prejuízos nas funções de socia-
terológica por apresentar dor abdominal. lização. Com afirmam Fernandes, Neves
A criança se contorcia com frequência. e Scaraficci (2006), na maioria das vezes,
A mãe relata que tinha a impressão de que a criança autista tem um funcionamento
a criança fazia força excessiva por dificul- irregular de desenvolvimento ao mesmo
dade para defecar. Embora apresentasse re- tempo em que apresenta uma aparência
sultados normais, as dores se mantinham e totalmente normal.
a criança continuava se contorcendo. O caso de Júlia não foi diferente, foi
Em seguida, recorreram a outro neu- um bebê de aparência saudável com me-
rologista, que levantou a hipótese de não didas adequadas, apenas com a compli-
ser crise convulsiva e, sim, um movimen- cação respiratória no período neonatal.
to estereotipado. O médico responsável Contudo, nos primeiros contatos interati-
pelo caso suspendeu o uso do anticonvul- vos entre mãe e filha, a mãe percebeu
sivante e indicou fluoxetina. O neurolo- que alguma coisa não estava indo bem
Neurologia e aprendizagem 65

nessa interação. Esse tipo de queixa é re- da fluoxetina líquida nos comportamen-
portado por Marcelli e Cohen (2010) co- tos repetitivos em 45 crianças e adoles-
mo uma percepção precoce da mãe de centes diagnosticados com transtorno in-
que há algo errado no desenvolvimento vasivo de desenvolvimento (TID). Apesar
da criança. de os resultados não mostrarem uma me-
O que fica de manifesto de forma im- lhora nas medidas de comportamento
portante na análise dos relatos é a difi- global, observou-se que pequenas doses
culdade de interpretar os sintomas, ou de fluoxetina líquida foram efetivas para
seja, a dificuldade inerente do diagnósti- tratar os comportamentos repetitivos, es-
co de transtorno do espectro autista. Por pecialmente em crianças mais novas. Em
exemplo, Júlia realmente estava sofrendo vários artigos de revisão, também se con-
uma crise convulsiva ou estava realizan- firma a efetividade do uso de fluoxetina
do movimentos estereotipados? Se for a como inibidor seletivo da recaptação de
segunda hipótese e foi tratada com medi- serotonina, especialmente para a inibição
cação anticonvulsiva, foram esses remé- dos movimentos estereotipados e ritualis-
dios que deixaram Júlia sonolenta e hipo- tas (GADIA; TUCHMAN; ROTTA, 2004;
ativa como reporta a mãe? As próprias NAVARRO et al., 2001; NIKOLOV; JONKER;
contorções frequentes de Júlia, interpreta- SCAHILL, 2006).
das como dores abdominais das quais não
se acharam as causas em exames clínicos
e de laboratórios, poderiam ser outra ma- ANÁLISE DOS VÍDEOS: SINAIS
nifestação de movimentos estereotipados? PRECURSORES DO TEA
No presente caso, pode-se pensar que,
diante desses comportamentos de ambí- O vídeo (1) contém aspectos expres-
gua interpretação, uma variável foi deter- sivos do nascimento até os 3 meses de
minante para a busca de um diagnóstico vida. Júlia aparece recém-nascida sendo
mais apurado, a percepção de mãe de monitorada por oxímetro 24 horas por dia
que algo não estava bem na relação mãe- com a presença constante de uma enfer-
-bebê. Esse aspecto foi bem abordado por meira-cuidadora. Observam-se interação fa-
Marcelli e Cohen (2010). miliar e manifestações afetivas. Toda a fa-
Outra conclusão que pode ser extraí- mília (pais, avós, irmã e prima) mostra-se
da dos dados analisados consiste na ne- muito presente e estimulante. Frequente-
cessidade de ter outros olhares profissio- mente fazem trocas afetuosas por meio de
nais quando as primeiras interpretações conversa, de beijo e de toque. A mãe inte-
deixam dúvidas ou não fecham um diag- rage com o bebê, seguidamente. No mo-
nóstico explicativo. No caso de Júlia, ob- mento da amamentação, observa-se clara-
servou-se que a criança submeteu-se a di- mente uma hipotonia oral e hipotonia da
ferentes terapias farmacológicas indica- cabeça enquanto faz sucção mamária. Dian-
das para crises convulsivas, tendo efeitos te desse dado, lembra-se que é comum o
colaterais que poderiam interferir no seu bebê autista apresentar transtorno tônico
desenvolvimento. em forma de hipotonia e ausência de dialo-
A substituição dessas medicações pela go tônico a partir de 2 e 3 meses, ou seja,
fluoxetina pareceu apropriada, uma vez sem tônus nem gesto antecipatório (MAR-
aceita a hipótese de comportamentos es- CELLI; COHEN, 2010).
tereotipados. Em um ensaio clínico cru- No vídeo (2) existem aspectos signifi-
zado, controlado com placebo, de Hollan- cativos dos 3 aos 6 meses de vida. Com
der et al. (2005), investigou-se o efeito relação à interação mãe-bebê, observou-se
66 Rotta, Bridi Filho e Bridi (orgs.)

que a mãe posiciona a cabeça do bebê Da mesma forma, em outra cena, Júlia
para ter um melhor contato visual e inte- está no colo da avó e a irmã de 3 anos se
ração, porém, o bebê faz pouco contato aproxima e olha bem perto o rosto dela,
visual e quando o faz não sustenta o fala com ela, a toca e a beija, observa-se que
olhar. A criança olha mais para a câmera, a resposta de Júlia é de indiferença. Ela
talvez por apresentar um ponto de luz mantém a palma da mão bem aberta e não
vermelho, do que para a mãe que a está fixa o olhar. Assim como aconteceu na cena
solicitando com sua conversa. Essa cena em que estava com a mãe, nas vezes em
tem duração de 1 minuto e 22 segundos, que estabelece contato visual com a irmã,
no entanto, o tempo de interação mãe- muito pouco o sustenta, dando a impressão
-bebê, com resposta evidente do bebê, é ainda de que esse contato acontece por aca-
de apenas 2 segundos. Em geral, os bebês so. Nessa cena, o tempo de interação é de 2
com desenvolvimento típico mostram um minutos e 14 segundos, porém, o tempo de
aumento acentuado em sua responsivida- resposta do bebê é de 3 segundos.
de diante da face e da voz humana da Na mesma cena, observando a postu-
mãe (FIELD, 1987; NEWCOMBE, 1999). ra de Júlia no colo da avó, nota-se sua hi-
Entretanto, o bebê autista de 0 a 6 meses potonia que a faz parecer uma boneca de
pouco repara e não solicita a presença pano, como Meneghello (1997) descreve
das pessoas, inclusive da própria mãe a criança autista quando chega para aten-
(CLEMENTE, 2009). dimento. O autor informa que essas crian-
Com relação ao sorriso como compor- ças parecem mais com um boneco do que
tamento responsivo, Sadock e Sadock com uma criança, por falta de sincroniza-
(2011) informam que, quando os bebês ção gestual.
carecem de sorriso social, de contato vi- Ao longo de todo esse vídeo, Júlia
sual e de postura antecipatória, pode ser não apresenta vocalizações não linguísti-
um sinal de alerta, já que crianças com cas, apesar de já corresponder à idade
transtorno do espectro autista não apre- para comportamento linguístico. Clemen-
sentam o nível esperado de habilidades so- te (2009) salienta que no bebê autista a
ciais recíprocas sutis na relação com as pes- quantidade de balbucio é menor ou anor-
soas. No caso de Júlia, em uma cena na mal durante o primeiro ano de vida.
qual a tia está brincando com ela, sua rea- Em outra cena de amamentação ob-
ção mostra-se bastante empobrecida. Ape- servou-se novamente durante a sucção ma-
sar de Júlia esboçar um sorriso, não apre- mária a hipotonia oral e da cabeça, sendo
senta um sorriso intencional e nem espon- necessário o braço da mãe para sustentá-
tâneo. O sorriso parece muito mais biolo- -la. A duração da cena foi de 1 minuto e
gicamente condicionado do que produtivo. 18 segundos e não houve nenhum com-
Em outra cena, enquanto a mãe inte- portamento interativo mãe-bebê esperado
rage com ela, fazendo contato visual e para essa faixa etária. Júlia não faz conta-
emitindo voz serena, Júlia mostra-se sé- to ocular, não coloca a mão no seio mater-
ria. Poucas vezes esboça um sorriso ou no, nem faz qualquer manifestação de tro-
emite uma vocalização primitiva. Mar- ca afetiva, apesar da solicitação materna.
celli e Cohen (2010) apontam que o bebê Segundo Condon e Sanders (1974), o bebê
autista apresenta ausência de sorriso vo- normal apresenta sucção rítmica ao ma-
luntário, mantendo um rosto sério. Além mar, com pausas, durante as quais ocor-
disso, demonstra ausência de braço es- rem trocas de sentido psicológico e que
tendido, de imitação, de contato físico e seguramente tem um papel especial no de-
de balbucio. senvolvimento cognitivo.
Neurologia e aprendizagem 67

Em outro momento em que Júlia é co- sem apoio (MUSSEN; CONGER; KAGAN,
locada no colo da irmã, apresenta notada- 1974; NEWCOMBE, 1999).
mente hipotonia dos membros superiores Em outro momento de interação com
(cabeça e braços), com palma da mão a irmã, depois do banho no quarto da Jú-
aberta. Ao ser abraçada pela irmã, ela lia, a irmã conta a história do chapeuzi-
mantém a mão aberta contra o corpo da nho vermelho, mostrando o livrinho. Jú-
irmã. A literatura aponta que a hipotonia lia permanece deitada, quieta na mesma
das crianças autistas, acompanhada de posição. Nesse momento, não olha para a
uma falha de ajustamento corporal, é um irmã, fixando o olhar nas próprias mãos.
sinal bastante frequente nesse quadro. Emite por tempos breves o som da letra
Observa-se total ausência da atitude “a”. Essa cena dura 2 minutos e 50 se-
antecipatória presente por volta dos 4 a 6 gundos, e o tempo de resposta é zero.
meses, ou antes, que corresponde aos Outro momento de interação com a
movimentos que a criança faz quando irmã é no sofá da sala de estar. Enquanto
a mãe ou alguém significativo estende a irmã tenta interagir, conversando e bus-
os braços para ela. Em geral, a criança se cando contato visual, Júlia permanece
antecipa e movimenta o corpo e/ou os na mesma posição deitada sem se mexer.
braços em direção à pessoa familiar A postura parece desconfortável. Braços e
(GILLBERG; NORDIN; EHLERS, 1996). mãos estendidos ao longo do tronco e ca-
Na hora do banho, Júlia permanece beça dobrada em um ângulo de 90 graus.
em posição deitada sob os cuidados da tia Além disso, permanece de boca aberta e
e demonstra olhar periférico “pelo canto faz poucas vocalizações. Baseado em Fran-
do olho”. Enquanto isso, a mãe faz tentati- kenburg e Dodds (1967), é esperado que
vas de comunicação verbal, mas Júlia não a criança, aos 3 meses, vire-se de lado, aos
responde à interação da mãe, permane- 4 meses, suporte o peso sobre as pernas e,
cendo fixada na tia por meio do olhar pe- entre 5 e 6 meses, sente-se sem apoio e
riférico. Em outra cena, ainda durante o segure-se em móveis. De acordo com as
banho, Júlia está sob os cuidados da mãe observações do vídeo, é possível perceber
e da presença da irmã. Ela permanece en- declaradamente um atraso psicomotor.
costada no braço da mãe, mantendo-se Em uma cena de interação com a avó
em posição deitada. Ainda não consegue e a tia no chão da sala de estar, Júlia está
permanecer sentada e nem faz tentativas. sentada no colo da avó de frente para a
Faz pouco contato ocular com a mãe e a câmera. Observa-se notadamente hipotonia
irmã, permanecendo séria. O tempo filma- muscular, especialmente dos membros supe-
do é de 2 minutos e 10 segundos e o tem- riores. Demonstra incômodo no colo da
po de resposta visual aos estímulos que avó, esboçando um leve choro. Em segui-
consistem de conversa, música, toque e da se tranquiliza no colo da tia, permane-
contato visual é de 6 segundos. cendo deitada e agarrada no cabelo da
Observou-se também nessa cena que tia sem evidência de contato visual.
Júlia, apesar de estar com 6 meses de Na cena seguinte mostra a interação
idade, apresenta um significativo atraso com a prima. A prima busca interação,
na postura de sentar, já que é uma habili- por meio da conversa e da brincadeira
dade que começa a se desenvolver, em que consiste em beijar o pé de Júlia, que
média, aos 3 meses. Os bebês são capa- está sem meia. Nessa ocasião, o bebê não
zes de ficar sentados por 1 minuto, com faz contato visual com a prima nem rea-
apoio nas idades de 3 e 4 meses e, por ge ao estímulo, permanecendo parada com
volta dos 7 ou 8 meses, podem fazê-lo olhar desviado.
68 Rotta, Bridi Filho e Bridi (orgs.)

Na cena de interação com a mãe, a los por meio da interação familiar. Faz
mãe está frente a frente com o bebê, esti- pouco contato visual, desviando e não sus-
mulando o contato visual e a linguagem, tentando o olhar. A mãe estimula a posi-
que pouco aparece. A mãe mostra-se in- ção sentada. Nesse momento, Júlia apre-
sistente na interação a fim de obter um senta muito balanceio, precisando do su-
retorno, mas mesmo assim não consegue. porte e da supervisão direta da mãe.
Quando estimulada a olhar para o pai Pode-se observar que na maioria das cenas
que está filmando e quando lhe é pergun- relatadas os comportamentos de não en-
tado cadê o papai? Não se mostra respon- gajamento social estão sempre presentes.
siva nem faz contato visual. Da mesma Em seu batizado aos 6 meses, Júlia
forma ocorre quando a mãe a chama pe- permanece no colo do pai em posição
lo nome, e Júlia não a olha. Entretanto, deitada e fixa o olhar no teto da igreja,
quando a mãe assobia, o bebê responde mesmo com a solicitação social do pai.
rapidamente com o olhar, não havendo Quando é colocada no colo de outra pes-
sustentação da atenção. Segundo Bel- soa, permanece na mesma posição ante-
monte, Gomot e Baron-Cohen (2010), a rior, deitada e com falta de sustento com-
criança autista apresenta perturbações de pleto da cabeça. Na hora das fotos, não
atenção e de percepção que podem apon- olha para a câmera, mesmo diante dos
tar para a anormalidade neural. O não estímulos familiares. Parece um olhar per-
interesse por brinquedos estão em oposi- dido nos registros fotográficos.
ção ao grande interesse que lhe é desper- Na análise dos vídeos foram observa-
tado por ruídos cotidianos. das manifestações comportamentais que
Na mesma cena, as duas vezes em que revelam prejuízos nas funções da sociali-
esboça um sorriso, este parece estar associa- zação, da comunicação e da linguagem,
do ao fato de a mãe colocar o pé do bebê além de atraso psicomotor com presença
na boca. Esse sorriso da Júlia parece mais de hipotonia. Essa análise mostrou que o
uma resposta ao estímulo sensitivo (cóce- comprometimento no comportamento so-
gas) do que uma resposta intencional e so- cial e na capacidade de fixar a atenção
cial. Nessa ocasião, também, parece falta de pode ser efetivamente percebido antes do
interação recíproca e de comunicação. primeiro ano de idade, indicando o risco
Na outra cena de interação com a ir- de transtorno do espectro autista. Na li-
mã, as duas estão na cama dos pais. A ir- teratura encontram-se vários estudos que
mã busca a interação, cantando, conver- utilizam os filmes familiares para analisar
sando, beijando e tocando a Júlia. Nesse os comportamentos da criança no primei-
momento, Júlia faz pouco contato visual e ro ano de vida e os resultados mostraram
se mantém séria. As falhas de interação que desde cedo se pode distinguir a sín-
social levam a irmã a abandonar a brinca- drome autista da deficiência intelectual e
deira possivelmente por falta de trocas do desenvolvimento típico (OSTERLING;
afetivas e comunicativas. Quando a irmã DAWSON; MUNSON, 2002). Portanto, a
desce da cama, Júlia não acompanha com análise desse material pode ser considera-
o olhar a fuga da irmã, mantendo-se na da de grande utilidade na busca do diag-
mesma posição. nóstico precoce do transtorno.
Na cena de interação mãe-irmã-bebê
por meio de exercícios de fisioterapia Escala de Traços Autísticos
para tônus dos membros inferiores, em-
bora Júlia permaneça deitada na cama, A Escala de Traços Autísticos foi respon-
na mesma posição, recebe muitos estímu- dida pela mãe, focando os comportamentos
Neurologia e aprendizagem 69

observados no primeiro ano de vida, ou seja, • Quando pequena não mastigava.


de forma retrospectiva. Observações feitas • Tinha o controle diurno, porém o
pela mãe de Júlia aos 12 meses: noturno era tardio ou ausente.
• Chupava e colocava as coisas na
• Não sorria.
boca.
• Ausência de aproximações espontâ-
• Pegava objetos, golpeava ou simples-
neas.
mente os atirava no chão.
• Não buscava companhia.
• Quando realizava uma atividade, fi-
• Era incapaz de manter um intercâm-
xava a atenção por curto espaço de
bio social.
tempo ou era incapaz de fixá-la.
• Não respondia às solicitações.
• Resposta retardada.
• Mantinha-se indiferente, sem expres-
• Não queria aprender.
são.
• Cansava-se muito depressa, ainda que
• Risos compulsivos.
de uma atividade de que gostasse.
• Utilizava-se do adulto como um ob-
• Insistia constantemente em mudar
jeto, levando-o até aquilo que dese- de atividade.
java. • Era incapaz de ter iniciativa própria.
• O adulto lhe servia como apoio para • Buscava a comodidade.
conseguir o que desejava. • Passividade e falta de interesse.
• O adulto era o meio para suprir uma • Lentidão.
necessidade que não era capaz de rea- • Preferia que outro fizesse o trabalho
lizar só. para ela.
• Ordenação dos objetos de acordo • Não se comunicava por gestos.
com critérios próprios e preestabele- • As interações com adulto não eram
cidos. nunca um diálogo.
• Desviava os olhares diretos, não olhan- • Ainda que soubesse fazer uma coisa,
do nos olhos. não a realizava se não quisesse.
• Voltava a cabeça ou o olhar quando • Não demonstrava o que sabia, até ter
era chamada. uma necessidade primária ou um in-
• Expressão do olhar vazio e sem vida. teresse eminentemente específico.
• Quando seguia os estímulos com os • Aprendia coisas, porém, somente a
olhos, somente o fazia de maneira demonstrava em determinados lu-
intermitente. gares e com determinadas pessoas.
• Fixava os objetos com um olhar pe- • Tinha reações de desagrado caso
riférico, não central. fosse interrompida em alguma ativi-
• Se falasse, não utilizava a expressão dade de que gostasse.
facial, gestual ou vocal com a fre- • Não assumia nenhuma responsabili-
quência esperada. dade, por menor que fosse.
• Não mostrava uma reação antecipa- • Para chegar a fazer alguma coisa, ti-
tória. nha que se repetir muitas vezes ou
• Não expressava por meio da mímica elevar o tom de voz.
ou do olhar aquilo que queria ou o • Balanceava-se.
que sentia. • Fazia caretas e movimentos estra-
• Imobilidade facial. nhos com a face.
• Não queria ir dormir. • Caminhava na ponta dos pés ou sal-
• Comia outras coisas além de alimen- tando, arrastava os pés, andava fa-
tos (papel, insetos). zendo movimentos estranhos.
70 Rotta, Bridi Filho e Bridi (orgs.)

• Torcia o corpo, mantinha uma pos- ta-se que o histórico do primeiro ano de
tura desequilibrada, pernas dobra- vida da criança pode ser responsável, em
das, cabeça recolhida aos pés, ex- parte, pelas condutas presentes.
tensões violentas do corpo. A psicóloga chegou à conclusão de
• Não se dava conta do perigo. que Júlia com 2 anos e 6 meses apresenta-
va atraso no desenvolvimento neuropsico-
Nesse caso, a pontuação geral foi de 33 motor e da linguagem expressiva muito
pontos, sugerindo a presença de traços au- importante, com presença de hipotonia
tísticos antes dos 12 meses de vida. Nessa com perdas na capacidade funcional.
escala, seu ponto de corte é de 15. Portan- Os ajustes posturais eram precários e
to, pontua-se zero se não houver a presen- existia grande redução da atividade es-
ça de nenhum sintoma, 1 se houver apenas pontânea no brincar, no explorar e no
um sintoma e 2 se houver mais de um sin- construir. A fala apresentava atraso, utili-
toma em cada um dos 36 itens, realizando- zando muito precariamente formas alter-
-se uma soma simples dos pontos obtidos. nativas para a comunicação. Quando in-
Foi possível detectar de forma retros- comodada, agarrava-se à mãe e chorava.
pectiva por meio da Escala de Traços Autis- O nível cognitivo tinha indícios de estar
tas, da análise dos vídeos e da entrevista mais preservado, pois era capaz, por alguns
com a mãe, a presença de condutas autísti- momentos, do uso apropriado dos objetos
cas antes dos 12 meses de idade. Relacio- oferecidos, evidenciando processamento
nando esses dados com o relato da mãe ob- adequado dos estímulos, havendo interrup-
tido na entrevista, fica claro que a per- ção provavelmente pela fadiga e certo des-
cepção que a mãe tinha de que algo andava ligamento e desinteresse pelo outro.
mal no desenvolvimento de seu bebê esta- É importante referir que nesses momen-
va fundamentada na observação desses tos não se empenhava em manipulações bi-
comportamentos diariamente. Daí a impor- zarras e/ou estereotipias observáveis. A con-
tância da divulgação entre os médicos pe- duta imitativa estava emergindo, respon-
diatras de trabalhos científicos que identifi- dendo ao prompt físico, momentos nos quais
quem os sinais precoces do transtorno do manteve a atenção adequada, mesmo que
espectro autista com a finalidade de possi- por breves momentos.
bilitar a escuta atenta e qualificada por par- Portanto, os repertórios condutuais
te desses profissionais dos relatos maternos apontavam para um atraso global do de-
sobre esses possíveis indicadores. senvolvimento. Ao mesmo tempo, exis-
tiam referências de condutas que se en-
Psicodiagnóstico quadrariam em um espectro autista, mas
que não puderam ser comprovadas com
O psicodiagnóstico foi realizado quan- exatidão nessa avaliação.
do Júlia tinha 2 anos e 6 meses. Os instru- O prognóstico era reservado, devendo
mentos e as técnicas de avaliação utilizados submeter-se a reavaliações em período
pela psicóloga foram: o DSM-IV, o CARS, a aproximado de 6 a 8 meses, devendo a fa-
descrição de perfil do desenvolvimento e a mília e os terapeutas ficarem atentos para
anamnese. Os resultados dessa avaliação o aparecimento e/ou fortalecimento de
apontam para um atraso global do desen- condutas que se enquadrariam em um es-
volvimento com presença de referências de pectro autista.
conduta que se enquadram em um espectro Em função desse relatório, Júlia rece-
autista, mas que não puderam ser compro- beu estimulação específica, contínua e
vadas com exatidão nessa avaliação. Ressal- sistemática de todos os repertórios bási-
Neurologia e aprendizagem 71

cos: estimulação em diferentes ambientes mão... entre outras). Entretanto, a hipo-


e atendimento por meio de terapeuta do- tonia muscular prejudicava consideravel-
miciliar com vistas a organizar o ambien- mente o seu desempenho. Por isso, a área
te e orientar os pais. motora precisou ser bastante estimulada
Pode-se observar que a pesar do prog- para que não limitasse tanto as suas ações.
nóstico ser reservado, o fato de contar Quanto ao uso dos objetos, apresen-
com uma hipótese diagnóstica precoce e tou maior exploração deles, conseguindo
diferenciada permite que algumas condu- fazer uso de forma mais produtiva. No
tas sejam seguidas. Ribeiro, Assumpção Jr. entanto, suas atitudes e interações eram
e Valente (2002) salientam sobre a impor- repetitivas, notadamente, durante explo-
tância do diagnóstico etiológico, visto que ração livre. Já em atividades estrutura-
algumas doenças neurológicas apresentam das, o tempo era mais compatível com
sinais e sintomas psiquiátricos, especial- sua idade cronológica e a exploração mais
mente na infância. Nessa fase do desen- funcional.
volvimento, o diagnóstico precoce influen- Outra área que vinha se destacando
cia consideravelmente o prognóstico, já era a comunicação verbal. Começou a re-
que muito pode ser feito quanto à estimu- petir palavras de forma contextualizada
lação e exercitação de alguns comporta- como: olá(oi)-tchau(tchau)-mamá (mama-
mentos mais adaptativos. deira)-mamã(mamãe)-xixi(xixi)-na-
ná(dormir)-tata(batata)-nana(banana)-
Relatório de atendimento aos çã(maçã)-mão(limão)-miau(gato)-
auau(cachorro)-quaqua(pato)-casa(casa)-
3 anos e 6 meses realizado por
maco(macaco)-piupiu(pintinho)-peixe
acompanhante domiciliar
(peixe)-á(árvore) . Porém, não havia a ma-
terapêutica nutenção da linguagem expressiva. Essas
Como programado, após um ano de es- palavras eram as mais comuns e mais ver-
timulação por meio de atendimento domi- balizadas, mesmo que não de forma siste-
ciliar terapêutico, foi realizada uma nova mática. Começou a apresentar alteração de
avaliação em que foi confirmado o diagnós- humor o que levou a um prejuízo frente à
tico de transtorno do espectro autista. aquisição da linguagem comunicativa, pois
Embora Júlia apresentasse prejuízos impor- quando apresentava humor irritável não
tantes do espectro autista, especialmente verbalizava nenhuma palavra de caráter
em relação à interação social, à linguagem comunicativo, somente ruídos.
comunicativa e ao aspecto motor, manifes- Embora, na maioria das vezes, tenha
taram-se avanços de forma gradativa em utilizado formas alternativas de comuni-
seu desenvolvimento. cação para pedir ajuda, costumava pegar
Ao longo da intervenção, Júlia teve um adulto pela mão para lhe alcançar o
melhora significativa no que se refere à que desejava. Em raros momentos, apre-
relação com as pessoas. No ambiente fa- sentou autonomia (p. ex., uso do banhei-
miliar interagiu mais com a irmã, conse- ro/lanche).
guindo manter-se envolvida por um tem- Ao mesmo tempo, demonstrou maior
po maior. Quando começou a escola, teve resistência frente às mudanças, apresen-
mais aceitação da proximidade e da aju- tando-se bastante desorganizada quando
da dos colegas, quando necessário. sua rotina fora alterada (p. ex., adapta-
Apresentou funcionalidade nas ações ção escolar, atividades de vida diária).
(sapato-pé/pente-cabelo/blusa-braço/ Sua capacidade cognitiva evidenciava
bermuda-perna/xampu-cabelo/luva- um processamento adequado dos estímu-
72 Rotta, Bridi Filho e Bridi (orgs.)

los, já que era capaz do uso apropriado ções de oposição quando seus desejos e ex-
dos objetos oferecidos. Conseguiu man- pectativas não se cumprem. Há presença
ter-se por tempo compatível para realizar de agressividade quando contrariada.
as tarefas (emparelhamento, encaixe, que- Em relação à linguagem, Júlia apre-
bra-cabeça), demonstrando bastante inte- senta estereotipias vocais e emite sons es-
resse pelas atividades propostas. tereotipados, especialmente quando está
Em geral evidenciava mau humor ao agitada ou excitada. Apesar de não esta-
ser exigida, reagindo de forma irritável belecer diálogo, em alguns momentos,
ou agressiva. Nesses momentos, apresen- mostra-se capaz de falar algumas pala-
tava baixa tolerância à frustração. Nota- vras com valor comunicativo.
damente, a oscilação do humor limitava Além disso, revela dificuldades na ca-
muito a receptividade nas brincadeiras, pacidade de atenção-concentração. É co-
aprendizagens e nos contatos sociais. mum fixar a atenção em suas próprias pro-
Apesar de Júlia ter tido acompanha- duções sonoras ou motoras, dando a im-
mento terapêutico permanente, por ra- pressão de que está ausente. Entretanto,
zões de espaço, neste capítulo será ex- quando realiza uma atividade de caráter
posto o relatório do acompanhamento pedagógico, fixa a atenção por tempos mui-
aos 8 anos. to breves. Busca constantemente a comodi-
dade e espera que lhe deem tudo pronto.
Relatório de atendimento aos Em geral, não demonstra o que sabe até
que tenha uma necessidade primária. Apren-
8 anos e 6 meses realizado por
de coisas, porém demonstra em determina-
acompanhante domiciliar terapêutica
dos lugares e com determinadas pessoas.
Júlia apresenta transtorno de espec- Notadamente, em situações de repou-
tro autista e manifesta claramente altera- so ocorrem movimentos estereotipados e
ções das interações sociais, das capacidades repetitivos. Tapa os olhos e as orelhas,
de comunicação e dos comportamentos es- roda objetos ou sobre si mesma, caminha
tereotipados. Quase não sorri e poucas ve- na ponta dos pés ou saltando, fica pulan-
zes manifesta aproximações espontâneas. do no mesmo lugar, arrasta os pés e
Geralmente evita pessoas, mostrando-se anda, fazendo movimentos estranhos.
incapaz de manter um intercâmbio so- Torce o corpo e mantém uma postura de-
cial. Desvia os olhares diretos, fazendo sequilibrada. Sobe e escala em todos os
pouco contato ocular. Raramente respon- lugares. Não se dá conta do perigo, ex-
de quando é chamada pelo seu nome. pondo-se sem ter consciência do risco.
A relação com o adulto quase nunca Em momentos livres, as estereotipias
se mostra interativa. Utiliza-se do adulto se acentuam, prevalecendo as “crises no
como um objeto, levando-o até aquilo que chão”. Conforme relato da mãe, essas cri-
deseja. Muitas vezes, o adulto lhe serve ses eram as mesmas descritas na anamne-
como apoio para conseguir o que deseja. se. Ainda bebê, se contorcia toda, pare-
Diante das exigências do meio ambien- cendo dores abdominais.
te, manifesta crises de birra, mudança re- Vendo os comportamentos descritos
pentina de humor e excitação motora. De- em ambos os relatórios feitos com dife-
monstra reações de desagrado, caso seja rença de cinco anos pela acompanhante
interrompida alguma atividade de que gos- terapêutica, depreende-se que a interven-
te. Nesses momentos, grita, chora, morde, ção terapêutica teve maior significado
amolece o corpo e joga-se para trás em di- nos primeiros anos. Na literatura, consta
reção ao chão. Revela aborrecimento e rea- esse tipo de resultado, porém, não expli-
Neurologia e aprendizagem 73

ca cientificamente por que isso pode ocor- tervenção precoce e pode trazer prejuízos
rer no desenvolvimento do autista. Possi- determinantes, como observado nesse ca-
velmente pela heterogeneidade do qua- so. Também salienta-se a importância de
dro comportamental. investigar e direcionar atenção em rela-
ção à estereotipia precoce nos próximos
estudos como um possível indicador de
CONSIDERAÇÕES FINAIS TEA.
Júlia teve complicações neonatais, por-
O diagnóstico precoce é fundamental tanto, é pertinente questionar quais são os
no desenvolvimento da criança autista já indicadores que nos fazem acreditar que es-
que permitiria uma intervenção também sas complicações sejam responsáveis por al-
precoce, evitando tanto o sofrimento da terações cognitivas, de linguagem e de com-
família quanto da própria criança. O mé- portamento. Possivelmente, uma relação de
dico-pediatra deve ter uma visão global da causa e efeito possa ser discutida. Outro as-
síndrome autista e deve estar atento às pecto que o presente trabalho permite ques-
aquisições das etapas do desenvolvimento tionar é o quanto as intercorrências neona-
como o contato visual, o sorriso social, os tais podem contribuir para um quadro do
gestos antecipatórios, o balbucio como espectro autista, como apontado por Garde-
forma de comunicação e o apego aos inte- ner, Spiegelman e Buka (2011).
grantes de seu entorno. A ausência de al- Não é raro um paciente autista ser
gumas delas serve ao médico como alerta diagnosticado com diferentes distúrbios
de estar diante de uma criança autista. por diferentes profissionais. Isso se deve
No presente estudo, mediante a análi- ao fato de que o TEA pode ser acompa-
se dos vídeos do nascimento aos 6 meses nhado de outras síndromes. É importan-
de vida de Júlia, identificaram-se vários e te que o quadro do paciente seja detecta-
importantes sinais precoces do transtorno do de maneira correta e precoce, para
do espectro autista. Aparece visivelmente que se tenha a possibilidade de um co-
carência de contato visual, de sorriso so- nhecimento maior sobre esse transtorno
cial, de toque, de vocalizações e, ainda, tão complexo e, ao mesmo tempo, cheio
importante atraso psicomotor. Portanto, de possibilidades. Sugere-se que quanto
muito antes dos 2 anos e 6 meses poderia mais estudos forem realizados sobre os
ter sido iniciado um programa de inter- primeiros indicadores do espectro autista
venção precoce para minimizar os sinto- e disponibilizados para pais e profissio-
mas da síndrome autística, trazendo bene- nais da saúde, nesse caso, pediatras,
fícios à criança. mais chances de intervenção precoce te-
Outro indicador precoce que surgiu riam as crianças autistas, o que ajudaria
nas observações dos vídeos e relatos da a evitar mais atraso no desenvolvimento
mãe se refere à estereotipia. Durante 11 do que o próprio transtorno impõe.
meses de vida, a estereotipia, que é uma
característica do transtorno do espectro
autista, foi entendida como crise convul- REFERÊNCIAS
siva. A partir de 1 mês de vida, Júlia pas-
sou a tomar remédios para convulsão, re- ANZALONE, M. E.; WILLIAMSON, G. G. Sensory
processing and motor performance in autism spec-
sultando em sonolência e hipoatividade.
trum disorders. In: WETHERBY, A. M.; PRIZANT, B.
Aqui se pode fazer uma alerta em relação M. (Org.). Autism spectrum disorders: a transactional
ao diagnóstico errôneo em período cru- developmental perspective. Baltimore: Paul H.
cial do desenvolvimento, pois adia a in- Brookes, 2000.

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