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Os dogmas da psicologia dos robôs foram extensamente criticados . Para uma visão geral
do assunto o leitor pode consultar as apreciações bem equilibradas de Allport (1955 , 1957,
1961) e o recente resumo histórico realizado por Matson (1964), bri~ lhanternente escrito e
bem documentado. A teoria contudo permaneceu dominante por motivos óbvios. O conceito
do homem corno robô era tanto uma expressão quanto urna poderosa força motora de urna
sociedade de massa industrializada. Era a base da engenharia do comportamento na
publicidade e propaganda comercial, econômica e política. A economia em expansão da
"sociedade da abundância" não poderia subsistir sem esta manipulação. Só manipulando os
seres humanos e cada vez mais transformando-os em ratos de Skinner, robôs, autômatos
compradores, conformistas e oportunistas homeostaticamente ajustados (ou falando
rudemente , transformando-os em imbecis e mentecaptos) esta grande sociedade pode
seguir seu progresso para um crescente produto nacional bruto. Na verdade (HENRY,
1963), os princípios da psicologia acadêmica eram idênticos aos da "concepção pecuniária
do homem" (p. 45ss).
Assim a psicologia teórica tanto quanto a aplicada foi conduzida a uma situação de
mal-estar com relação a seus princípios básicos. Este desconforto e a tendência para uma
nova orientação foram expressos de maneiras muito diferentes, tais como nas várias
escolas neofreudianas, psicologia do ego, teorias da persona - lidade (Murray, Allport), no
retardado recebimento dos estudos europeus da psicologia do desenvolvimento e da
psicologia das crianças (Piaget , Werner, Charlotte Bühler), no new look na percepção, na
autorrealização (Goldstein, Maslow), na terapêutica 263 centralizada no cliente (Rogers),
nas abordagens fenomenológica e existencial, nos conceitos sociológicos do homem
(SOROKIN, 1963) e outros. Nesta variedade de correntes modernas há um princípio
comum, que é o de considerar o homem não como um autômato ou robô reagente, mas
como um sistema de personalidade ativa. A razão do presente interesse na teoria geral dos
sistemas parece ser portanto esperar-se que esta concepção possa contribuir para uma
estrutura conceitual mais adequada à psicologia normal e patológica.
Organismo e personalidade
Ao contrário das forças físicas como a gravidade ou a eletricidade, os fenômenos da vida
são encontrados somente em entidades individuais chamadas organismos. Qualquer
organismo é um sistema, isto é, uma ordem dinâmica de partes e processos em mútua
interação (BERTALANFFY, 1949a, p. 11). Igualmente, os fenômenos psicológicos só se
encontram em entidades individualizadas, que no homem são chamadas personalidades .
"seja lá o que for a personalidade , ela tem as propriedades de um sistema (G. ALLPORT,
1961, p. 109). O conceito "molar " do organismo psicológico enquanto sistema contrasta
com a concepção que o considera um mero agregado de unidades "moleculares", tais como
reflexos, sensações, centros cerebrais, impulsos, respostas reforçadas, características,
fatores e coisas semelhantes. A psicopatologia mostra claramente que a disfunção mental é
uma perturbação de um sistema muito mais do que a perda de funções isoladas. Mesmo
em traumas localizados (por exemplo, lesões corticais), o efeito resultante é o dano do
sistema de ação total , particularmente no que diz respeito às funções superiores e portanto
mais exigentes. Inversamente, o sistema tem consideráveis faculdades reguladoras
(BETHE, 1931; GOLDSTEIN, 1959; LASHLEY, 1929).
O organismo ativo
"Mesmo sem estímulos externos o organismo não é um sistema passivo, mas um sistema
intrinsecamente ativo. A teoria do reflexo supôs que o elemento primário do comportamento
é a resposta aos estímulos externos. Por oposição, a pesquisa recente mostra com
crescente clareza que a atividade autônoma do sistema nervoso, repousando no próprio
sistema, deve ser considerada primária. Na evolução e no desenvolvimento, os
mecanismos reagentes parecem superpor-se às atividades primitivas, de locomoção
rítmica. O estímulo (isto é, uma alteração nas condições externas) não causa um processo
em um sistema de outro modo inerte, mas apenas modifica processos em um sistema
autonomamente ativo" (BERTALANFFY, 1937, p. 133ss; também 1960).
Homeostase
Muitas regulações psicofisiológicas seguem os princípios da homeostase. Contudo, há
visíveis limitações (cf. capítulo 7). Geralmente o esquema da homeostase não é aplicável
(1) às regulações dinâmicas, isto é, regulações que não são baseadas em mecanismos
fixos, mas ocorrem no interior de um sistema funcionando como totalidade (por exemplo,
processos reguladores após lesões cerebrais); (2) a atividades espontâneas; (3) a
processos cuja finalidade não é a redução mas a constituição de tensões; e ( 4) a processos
de crescimento, desenvolvimento, criação, etc. Podemos também dizer que a homeostase é
inadequada como princípio explicativo das atividades humanas não utilitárias, isto é, que
não servem às necessidades primárias de autoconservação e sobrevivência, e suas
necessidades derivadas secundárias, como é o caso de muitas manifestações culturais. A
evolução da escultura grega, a pintura do Renascimento ou a música alemã nada têm a ver
com o ajuste ou a sobrevivência, porque possuem valor simbólico e não biológico
(BERTALANFFY, 1959; também 1964c) (compare-se com o que é dito adiante). Mas mesmo
a natureza viva não é de modo algum puramente utilitária (VON BERTALANFFY 1949a p.
106s).
O princípio da homeostase tem sido às vezes expandido até um ponto em que se torna
absurdo. A morte de um mártir na fogueira é explicada (FREEMAN, 1948) "por um
deslocamento anormal" de seus processos internos, de modo que a morte é mais "homeost
atizante " do que a continuação da existência (p. 139s). Supõe -se que o alpinista arrisca a
vida "porque a perda do status social valorizado pode ser mais perturbadora" (STAGNER
1951). Estes exemplos mostram até que extremos alguns escritores estão dispostos a ir a
fim de salvar um esquema arraigado numa filosofia econômico-comercial que estabelece
como valores últimos, merecedores de prêmio, a conformidade e o oportunismo. Não
devemos esquecer que Cannon (1932), sendo um eminente fisiologista e pensador, está
livre destas distorções , acentuando explicitamente "as coisas não essenciais apreciáveis"
além da homeostase (p. 323) (cf. também FRANKL, 1959b; TOCH & HASTORF, 1955).
Diferenciação
"A diferenciação é a transformação de uma condição mais geral e homogênea que passa a
outra mais especial e heterogênea" (CONKLIN, segundo COWDRY, 1955, p. 12). "Sempre
que há um desenvolvimento, este caminha de um estado de relativa globalidade e falta de
diferenciação para um estado de crescente diferenciação, articulação e ordem hierárquica"
(H. WERNER, 1957b).
Assim, o "eu" e "o mundo", o "espírito" e "a matéria" ou a res cogitans e a res extensa de
Descartes não são um simples dado e uma antítese primordial. São o resultado final de um
longo processo de evolução biológica, de desenvolvimento mental da criança e da história
cultural e linguística no qual o indivíduo que percebe não é simplesmente um receptor de
estímulos, mas em sentido inteiramente real cria seu mundo (por exemplo , BRUNER, 1958;
CANTRIL, 1962; GEERTZ, 1962; MATSON, 1964, p. 181s) . A história pode ser contada de
diferentes maneiras (por exemplo, G. ALLPORT, 1961, p.110-138; VON BERTALANFFY,
1964a e 1965; CASSIRER, 1953-1957; FREUD, 1920; MERLOO, 1956, p. 196- 199;
PlAGET, 1959; WERNER, 1957a), mas há geral acordo em que a diferenciação surgiu de
um "indiferenciado absoluto constituído pelo eu e pelo ambiente" (BERLYNE, 1957), e que a
experiência animista da criança e do primitivo (que persiste ainda na filosofia aristotélica), a
concepção "fisionômica" (WERNER, 1957a), a experiência do "nós" e do "tu" (ainda muito
mais forte no pensamento oriental do que no ocidental - KOESTLER, 1960), a empatia, etc.
foram etapas no caminho que levou a física do Renascimento finalmente a "descobrir a
natureza inanimada". As "coisas" e o "eu" emergem por uma lenta construção de
inumeráveis fatores da dinâmica gestaltista, de processos de aprendizagem e de
determinantes sociais, culturais e linguísticos. A completa distinção entre "objetos públicos"
e "eu privado" certamente não se concluiu sem a atribuição de nomes e a linguagem, isto é,
processos situados no nível simbólico. E talvez esta distinção pressuponha uma linguagem
do tipo indo-germânico (WHORF , 1956).
Regressão
Diz-se às vezes que o estado psicótico é uma "regressão a formas mais antigas e mais
infantis de comportamento", isto é incorreto. Já E. Bleuler observava que a criança não é
um pequeno esquizofrênico, mas um ser que funciona normalmente, embora primitivo. "O
esquizofrênico poderá regressar a um nível inferior , mas não se integra nele . Permanecerá
desorganizado" (ARIETI, p. 475 ). A regressão é essencialmente a desintegração da
personalidade, isto é, desdiferenciação e descentralização. A desdiferenciação significa que
não há perda de funções merísticas, mas o reaparecimento de estados primitivos
(sincretismo, cinestesia, pensamento paleológico, etc .). A descentralização é, no caso
extremo, a desencefalização funcional no esquizofrênico (ARIETI, 1955). O fendimento da
personalidade, de acordo com E. Bleuler, em complexos neuróticos de forma branda (por
exemplo, entidades psicológicas que se tornam dominantes), função perturbada do ego,
enfraquecimento do ego, etc. indicam de modo semelhante o afrouxamento da organização
hierárquica mental.
Limites
Qualquer sistema enquanto entidade que pode ser estudada em si mesma deve ter limites,
quer espaciais quer dinâmicos. Estritamente falando, as fronteiras espaciais só existem na
observação ingênua, pois todas as fronteiras são, em última análise, dinâmicas. Não é
possível traçar exatamente os limites de um átomo (com as valências saltando para fora,
por assim dizer, para atrair outros átomos), de uma pedra (agregado de moléculas e átomos
que consiste em sua maior parte em espaço vazio com partículas situadas a distâncias
planetárias), ou de um organismo (que está continuamente trocando matéria com o meio).
Atividades simbólicas
"Excetuando a imediata satisfação das necessidades biológicas, o homem vive em um
mundo não de coisas, mas de símbolos" (VON BERTALANFFY, 1956a) . Podemos também
dizer que os vários universos simbólicos, materiais e não materiais, que distinguem as
culturas humanas das sociedades animais, são uma parte, e é fácil de ver a parte mais
importante, do sistema de comportamento do homem. Pode-se , com razão, pôr em dúvida
se o homem é um animal racional, mas certamente é de todo um ser criador e dominador
de símbolos .
Não discutiremos aqui a definição das atividades simbólicas, que o autor tentou fazer em
outro lugar (VON BERTALANFFY, 1956a, 1965). Basta dizer que provavelmente todas as
noções usadas para caracterizar o comportamento humano são consequências ou aspectos
diversos da atividade simbólica. Cultura ou civilização, percepção criadora por oposição à
percepção passiva (Murray, G.W. Allport), objetivação de coisas exteriores e o eu (THUMB,
1943), unidade ego-mundo (NUTTIN, 1957), estrato abstrato por oposição a estrato
concreto (GOLDSTEIN, 1959), existência do passado e do futuro, "ligação com o tempo ",
antecipação do futuro, verdadeira finalidade (aristotélica) (cf. capítulo 3), intenção como
planejamento consciente (G. ALLPORT, 1961, p. 224), temor da morte, suicídio, vontade de
significado (FRANKL, 1959b), interesse de empenhar-se em atividades culturais
autorrecompensadoras (G. ALLPORT, 1961, p. 225), devotamento idealista a uma causa
(talvez sem esperança), martírio, "confiança da motivação madura em seus resultados
futuros" (G. ALLPORT, 1961, p. 90), autotranscendência, autonomia do ego, funções do ego
livres de conflito, agressão essencial (VON BERTALANFFY, 1958), consciência, superego,
ideal do ego, valores, moralidade , dissimulação, verdade e mentira- todas estas coisas
derivam da raiz que são os universos criadores simbólicos e, portanto, não podem ser
reduzidos a impulsos biológicos, instintos psicanalíticos , reforço de satisfações ou outros
fatores biológicos. A distinção existente entre valores biológicos e valores especificamente
humanos é que os primeiros referem-se à conservação do indivíduo e à sobrevivência da
espécie, enquanto os últimos referem-se sempre a um universo simbólico.
A conclusão (que não é de modo algum aceita de maneira geral) é que a doença mental
constitui um fenômeno especificamente humano. Os animais podem apresentar em seu
comportamento (tanto quanto podemos saber por experiência empática) qualquer número
de perturbações perceptivas, motoras e disposição de ânimo, alucinações, sonhos, reações
equivocadas, etc. Os animais não podem ter distúrbios das funções simbólicas , que são
ingredientes essenciais da moléstia mental. Nos animais não pode haver perturbação das
ideias, delírios de grandeza ou de perseguição, etc. pela simples razão de que não há
ideias das quais partir. Por conseguinte, a "neurose animal" é apenas um modelo parcial da
entidade clínica (VON BERTALANFFY, 1957a).
Tal é a razão última pela qual o comportamento e a psicologia humana não podem ser
reduzidos a noções biológicas tais como restauração da homeostase, conflito de impulsos
biológicos, relações insatisfatórias entre a mãe e o filho, e coisas semelhantes. Outra
consequência é a dependência da moléstia mental com relação à cultura, tanto na
sintomatologia quanto na epidemiologia. Dizer que a psiquiatria tem uma estrutura
fisio-psico-sociológica é outra maneira de exprimir o mesmo fato.
Ainda por esta razão, o esforço humano é mais do que autorrealização. É dirigido para
metas objetivas e realização de valores (FRANKL, 1959a , 1959b; 1960), que não significam
outra coisa senão entidades simbólicas que de certa maneira se tornam destacadas de
seus criadores (VON BERTALANFFY, 1956a; tam - bém 1965). Talvez possamos arriscar
uma definição. Pode haver conflito entre os impulsos biológicos e um sistema simbólico de
valores. Isto é a situação da psiconeurose. Ou pode haver conflito entre universos
simbólicos ou perda de orientação valorativa e experiência da ausência de sentido no
indivíduo, e isto é a situação em que surge a neurose existencial ou "noogênica".
Considerações de mesma espécie aplicam-se às "desordens do caráter", como a
delinquência juvenil, que, deixando de lado sua psicodinâmica derivam da derrocada ou da
erosão do sistema de valores. Entre outras coisas, a cultura é um importante fator
psico-higiênico.
A mesma coisa se aplica no nível simbólico. Noções científicas tais como a da Terra girando
com incrível velocidade no universo ou a de um corpo sólido que consiste principalmente
em espaço vazio entrelaçado com minúsculas manchas de energia a distâncias
astronômicas, contradizem toda a experiência diária e o "bom senso", sendo mais
fantásticas que os "esquemas do mundo" dos esquizofrênicos. Entretanto, acontece que as
noções científicas são "verdadeiras", isto é, ajustam-se em um esquema integrado.
Este conceito tem decisivas implicações no que diz respeito à psicoterapia. Se o organismo
psicofísico é um sistema ativo, as terapêuticas ocupacionais e agregadas são uma
consequência evidente. O despertar de potencialidades criadoras será mais importante do
que o ajustamento passivo. Se estes conceitos são corretos, mais importante do que
"escavar o passado" será a penetração nos conflitos atuais, as tentativas de reintegração e
a orientação para finalidades e para o futuro, isto é, a antecipação simbólica. Isto
evidentemente é uma paráfrase das recentes tendências da psicoterapia, que pode assim
ser fundada na "personalidade como sistema". Finalmente, se uma grande parte das
neuroses atuais é de caráter "existencial ", resultando da falta de sentido da vida, a
"logoterapia" (FRANKL, 1959b), isto é, a terapêutica em nível simbólico, será apropriada.
Parece, portanto, que - sem cair no alçapão da filosofia do tipo "não é outra coisa senão" e
outras degradantes concepções, uma teoria sistêmica da personalidade oferece base sólida
para a psicologia e a psicopatologia.
Conclusão
A teoria dos sistemas em psicologia e psiquiatria não é o dramático desenlace de uma nova
descoberta, e se o leitor tiver o sentimento do déjà vu não seremos nós que iremos
contradizê-lo. Nossa intenção era mostrar que os conceitos de sistema neste campo não
são especulação, não são uma tentativa de apertar os fatos na camisa de força de uma
teoria que esteja em voga, e nada têm a ver com o "antropomorfismo mentalista" tão temido
pelos behavioristas. Contudo, o conceito de sistema é uma inversão radical com respeito às
teorias dos robôs, levando a uma imagem do homem mais realista (e, diga-se de
passagem, mais dignificante). Além disso, acarreta consequências de longo alcance para a
concepção científica do mundo a que apenas podemos fazer alusão neste esboço.
2) O problema espírito-corpo não pode ser discutido aqui, devendo o autor fazer menção de
outra pesquisa (VON BERTALANFFY, 1964a) . Basta-nos dizer somente, de modo reduzido,
que o dualismo cartesiano entre a matéria e o espírito, entre os objetos exteriores e o ego
interior , o cérebro e a consciência e assim por diante, é incorreto tanto à luz da experiência
fenomenológica direta quanto em face da moderna pesquisa em vários campos. É uma
conceitualização derivada da física do século XVII, que, embora ainda prevalecendo em
debates modernos (HOOK, 1961; SCHER, 1962), é obsoleta. De acordo com a concepção
moderna, a ciência não faz afirmações metafísicas, quer da variedade materialista, idealista
e positivista dos dados dos sentidos. É uma construção conceitual para reproduzir aspectos
limitados da experiência em sua estrutura formal. As teorias do comportamento e da
psicologia deveriam ser semelhantes em sua estrutura formal ou isomórficas.
Possivelmente os conceitos dos sistemas sejam o começo dessa "linguagem comum"
(compare-se Piaget e Bertalanffy em TANNER & INHELDER, 1960). No futuro remoto isto
pode conduzir a uma "teoria unificada " (WHYTE, 1960), a partir da qual finalmente possam
ser derivados os aspectos materiais e mentais, conscientes e inconscientes.