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UC PESSOAS, RELAÇÕES FAMILIARES E SUCESSÓRIAS

Profa. Dra. Christiane Rabelo

NOVOS PARADIGMAS DO DIREITO DE FAMÍLIA

A evolução do conceito de família no direito brasileiro é um fenômeno que


acompanha as transformações sociais, culturais e econômicas vivenciadas pela
sociedade, particularmente evidente a partir da promulgação da Constituição Federal de
1988 (CF/88).
Esse marco legal inaugurou um novo panorama para o direito de família,
caracterizado por uma flexibilização das estruturas familiares e pelo reconhecimento de
novas formações familiares que refletem a diversidade da sociedade brasileira.

I. Antes da Constituição Federal de 1988

Anteriormente à CF/88, o direito de família brasileiro estava fortemente


ancorado em uma concepção conservadora, cujo modelo predominante era o da família
matrimonializada, baseada no casamento entre homem e mulher, como regulado pelo
Código Civil de 1916.
O conceito de família era restrito, prevalecendo a visão de um modelo único de
família, caracterizado pelo casamento formalizado, com uma clara desigualdade entre
os cônjuges e entre os filhos legítimos e ilegítimos.
Esse modelo era complementado por normas que estabeleciam clara
desigualdade entre os cônjuges — com o homem como chefe da família — e distinções
entre filhos legítimos e ilegítimos, conforme artigos que tratavam da família, do
casamento, da filiação e da sucessão.
A mulher era vista sob uma perspectiva de subordinação e a dissolução do
casamento era praticamente impossível, refletindo valores de uma sociedade
conservadora que via na indissolubilidade do matrimônio um pilar fundamental.

II. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A TRANSFORMAÇÃO DO DIREITO DE


FAMÍLIA

Com a promulgação da CF/88, iniciou-se um processo de profunda transformação


do direito de família, orientado por princípios de igualdade, liberdade e dignidade da
pessoa humana. O princípio da socioafetividade passa a ser o elemento estruturante da
relação familiar.
Com a Constituição de 1988, iniciou-se um novo paradigma na concepção de
família, caracterizado pela pluralidade de modelos familiares e pela igualdade entre os
membros que compõem esses núcleos. Rompeu-se com a ideia de hierarquia baseada
no gênero.
A Constituição, em seu art. 226, ampliou a concepção de família, reconhecendo
a família constituída pelo casamento (família matrimonial - art. 226, § 2°, CF), a união
estável entre o homem e a mulher como entidade familiar (art. 226, §3°, CF), além da
família monoparental (pai ou mão + filho(s) - art. 226, §4°, CF).
Com a Constituição de 1988, iniciou-se um novo paradigma na concepção de
família, caracterizado pela pluralidade de modelos familiares e pela igualdade entre os
membros que compõem esses núcleos.

III. CARACTERÍSTICAS DOS NÚCLEOS FAMILIARES NA


CONTEMPORANEIDADE

1. Igualdade entre os Cônjuges


A igualdade entre homens e mulheres, prevista no art. 5º, I, da CF/88, refutou a
ideia do homem como chefe da família, estabelecendo a igualdade de direitos e deveres
entre os cônjuges, o que se reflete diretamente nas relações familiares.
Art. 226. [...] § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são
exercidos IGUALMENTE pelo homem e pela mulher.
2. Fim da Discriminação entre os Descendentes
A discriminação entre filhos, seja em razão de sua origem conjugal, extraconjugal,
por reprodução assistida ou adoção, representava uma clara violação aos princípios da
igualdade e dignidade da pessoa humana.
A superação desse paradigma veio com a Constituição Federal de 1988, que em
seu art. 227, assegura com igualdade de condições, os direitos e deveres à criança, ao
adolescente e ao jovem.
Além disso, o Código Civil de 2002, em seu art. 1.596, reforça essa proteção,
estabelecendo que os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção,
terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações
discriminatórias relativas à filiação.
3. Dissolubilidade do Casamento
A Emenda Constitucional n. 9 de 1977, ainda antes da promulgação da
Constituição Federal de 1988, já havia introduzido a possibilidade de dissolução do
vínculo matrimonial pelo divórcio, quebrando o paradigma anterior da indissolubilidade
do casamento.
Posteriormente, a CF/88, no art. 226, § 6º, consolidou essa mudança,
estabelecendo explicitamente que “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.
A Lei n. 6.515/1977, conhecida como Lei do Divórcio, estabeleceu inicialmente
os procedimentos e condições para a realização do divórcio no Brasil.
A Emenda Constitucional n. 66 de 2010, simplificou o processo de divórcio,
eliminando a exigência de separação judicial prévia por mais de um ano ou a
comprovação de separação de fato por mais de dois anos, permitindo o divórcio direto.
4. Modernização do Regime de Bens
Com as mudanças na dissolubilidade do casamento, tornou-se necessário
também modernizar o regime de bens, adaptando-o às novas realidades familiares e às
consequências patrimoniais do divórcio.
O Código Civil de 2002 trouxe inovações nesse aspecto, permitindo aos nubentes
a escolha entre diferentes regimes de bens — comunhão parcial, comunhão universal,
participação final nos aquestos e separação total —, conforme disposto nos arts. 1.639
a 1.688.
Essa flexibilidade visa proteger os interesses econômicos e patrimoniais dos
cônjuges, refletindo a autonomia privada e a igualdade entre os parceiros.

IV. DIVERSOS FORMATOS DE ARRANJOS FAMILIARES

Além de reconhecer a família matrimonial, a união estável e a monoparental


como entidade familiar (art. 226, §2°, §3º e 4°), a CF/88 abriu caminho para o
reconhecimento jurídico de outras formas de família, não necessariamente baseadas no
casamento ou nos laços de sangue, mas também na afetividade e na convivência.
Esse reconhecimento da diversidade implica uma reavaliação crítica dos padrões
tradicionais de família, promovendo uma abordagem mais inclusiva e respeitosa das
diversas maneiras pelas quais as pessoas estabelecem relações íntimas e familiares.
As transformações legais, incluindo decisões judiciais progressistas e alterações
legislativas, têm acompanhado e, em muitos casos, facilitado essa evolução social,
garantindo direitos e reconhecimento às famílias formadas sob diferentes configurações.
Na sociedade contemporânea, a família assume o papel de facilitar a jornada
individual de cada um de seus membros em direção à sua autorrealização. Esse papel é
cumprido por meio do encorajamento mútuo, do apoio incondicional e do respeito às
diferenças, onde o afeto serve como o valor inspirador do comprometimento, do
entendimento mútuo e da solidariedade entre seus membros.
Assim, a família se estabelece como um núcleo fundamental para o
desenvolvimento pessoal, oferecendo um ambiente seguro para que cada indivíduo
possa explorar e expressar sua identidade, enfrentar desafios e celebrar conquistas.
Tem-se, então, que a redefinição do conceito de família representa um avanço na
promoção de uma sociedade mais justa, igualitária e inclusiva. Reconhecer a diversidade
das formações familiares e valorizar o afeto como seu fundamento são passos essenciais
para garantir o respeito e a proteção de todos os indivíduos, independentemente de
como escolhem formar suas relações familiares.
O direito, acompanhando as mudanças sociais, desempenha um papel
fundamental nessa transformação, assegurando que as leis reflitam e promovam essa
nova compreensão de família.
Portanto, na essência da família contemporânea, encontra-se a celebração da
diversidade humana e o reconhecimento de que o amor, em suas múltiplas formas,
constitui a base mais sólida para a construção de relações familiares profundas e
significativas.

A. UNIÃO ESTÁVEL E FAMÍLIA MONOPARENTAL


A Lei n. 9.278/1996 regulamentou a união estável (art. 226, §3°, CF/88),
reforçando o reconhecimento da união entre homem e mulher como entidade familiar.
A família monoparental (art. 226, §4°, CF/88), por sua vez, ganhou visibilidade e
proteção legal, refletindo a realidade de muitos lares brasileiros. É caracterizada pela
presença de apenas um dos genitores e sua prole, emergindo como uma das
configurações familiares contemporâneas reconhecidas e amparadas pelo ordenamento
jurídico brasileiro.
Essa configuração familiar reflete a diversidade das estruturas familiares na
sociedade atual, apresentando-se como resultado de diversas circunstâncias, tais como
divórcio, viuvez, adoção unilateral ou reprodução independente.
A evolução do direito de família no Brasil destaca o princípio da afetividade como
um valor jurídico essencial, contrastando com o antigo paradigma que reconhecia como
família apenas aquelas constituídas pelo matrimônio. Esse princípio afirma que o afeto
é o elemento central na formação e no reconhecimento das relações familiares, indo
além dos laços biológicos ou formais.
A percepção do afeto como base para a estruturação familiar se manifesta por
meio da análise de diversos aspectos, como cuidado, convivência, estabilidade,
continuidade, publicidade, ostensividade e a intenção de constituir família.
O Código Civil Brasileiro de 2002 e a Constituição Federal reconhecem a
importância desses elementos, enfatizando o aspecto da convivência familiar,
especialmente sob a perspectiva do bem-estar da criança.

B. FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS
Embora a CF/88 não mencione explicitamente as uniões homoafetivas, as Ações
Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277/2011 e a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) 132/2011 são marcos jurídicos fundamentais no
reconhecimento das uniões homoafetivas no Brasil, representando um avanço na luta
pelos direitos da comunidade LGBTQIA+ e na concepção de família no direito brasileiro.
As ações questionavam a interpretação restritiva de dispositivos constitucionais
e infraconstitucionais que limitavam a concepção de entidade familiar às uniões entre
homem e mulher, excluindo as relações homoafetivas desse reconhecimento.
O principal argumento era o de que tal exclusão violava princípios constitucionais
fundamentais, como o da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade e da
proibição de discriminação.
Em um julgamento histórico, o STF reconheceu por unanimidade que a união
estável entre pessoas do mesmo sexo deve receber a mesma proteção jurídica que é
conferida à união estável heteroafetiva, fundamentando-se nos princípios de igualdade
e de não discriminação. A Corte entendeu que a exclusão das uniões homoafetivas do
conceito de família é incompatível com a Constituição Federal de 1988.
COMO PRINCIPAIS PONTOS DA DECISÃO, TEM-SE:
1. Igualdade e Liberdade: O STF afirmou que todos têm direito à igualdade perante
a lei, sem discriminação por motivo de sexo ou orientação sexual, garantindo a
liberdade pessoal de estabelecer uniões afetivas com pessoas do mesmo sexo.
2. Reconhecimento da União Estável: As uniões homoafetivas passam a ser
reconhecidas como união estável, permitindo aos casais os mesmos direitos e
deveres dos casais heteroafetivos, incluindo questões patrimoniais,
previdenciárias, sucessórias, entre outras.
3. Proteção à Família: A decisão reforçou o entendimento de que a família, em
todas as suas formas, é base da sociedade e merece especial proteção do Estado,
conforme estabelecido no art. 226 da CF.
4. Extensão dos Direitos: A partir dessa decisão, diversas legislações e normativas
foram adaptadas para incluir as uniões homoafetivas, como as regras de adoção,
direitos previdenciários e de sucessão, entre outros.
A HABILITAÇÃO DIRETA PARA O CASAMENTO a partir de uniões homoafetivas foi
um marco significativo na jurisprudência brasileira, estabelecido pelo Superior Tribunal
de Justiça (STJ) em 2011, no julgamento do REsp 1.183.378-RS. Essa decisão
pavimentou o caminho para que casais homoafetivos pudessem converter sua união
estável em casamento civil, sem enfrentar obstáculos legais para tal reconhecimento.
Complementarmente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu a Resolução
175/2013, proibindo expressamente a recusa de habilitação e celebração de casamento
civil ou da conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo em
todo o território nacional.
Essa medida assegurou de forma inequívoca o direito ao casamento civil para
casais homoafetivos, promovendo a igualdade de direitos e a não discriminação baseada
na orientação sexual.
HOMOPARENTALIDADE: FORMAÇÃO DE FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS COM FILHOS
A homoparentalidade representa a formação de famílias por casais homoafetivos
que desejam ter filhos, seja por meio de adoção, reprodução assistida heteróloga,
gestação compartilhada ou útero de substituição.
Essas opções reforçam a capacidade de casais do mesmo sexo em estabelecerem
laços parentais, independentemente das limitações biológicas.
A adoção por casais homoafetivos tem sido uma prática cada vez mais
reconhecida e aceita, proporcionando a crianças o direito a um lar, amor e cuidado,
independentemente da configuração familiar.
Esse avanço é sustentado por desenvolvimentos legais e tecnológicos na
medicina reprodutiva, além de uma maior abertura da sociedade para as diversas formas
de amor e constituição familiar.
A homoparentalidade abrange várias modalidades de formação familiar,
incluindo adoção, reprodução assistida heteróloga, gestação compartilhada, e útero de
substituição.
A REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA oferece a casais homoafetivos a
possibilidade de ter filhos biológicos por meio de técnicas como inseminação artificial e
fertilização in vitro (FIV). A Resolução CFM n. 2.168/2017 regulamenta essas práticas no
Brasil, assegurando o acesso a tratamentos de reprodução assistida sem discriminação
quanto à orientação sexual dos solicitantes.
Especificamente entre casais femininos, a GESTAÇÃO COMPARTILHADA permite
que ambas as parceiras participem biologicamente do processo de concepção do filho.
Nesse arranjo, uma das mulheres fornece o óvulo, que é fertilizado in vitro com sêmen
de um doador anônimo, e o embrião resultante é implantado no útero da outra parceira,
que gestará o bebê. Esse método fortalece os laços biológicos e afetivos entre a criança
e ambas as mães.
Casais masculinos podem recorrer ao ÚTERO DE SUBSTITUIÇÃO (gestação de
substituição) como uma opção para a paternidade. A prática envolve uma gestante de
substituição que carrega o embrião gerado a partir do material genético de um dos
parceiros e de uma doadora de óvulos. A Resolução CFM n. 2.013/2013 estabelece
diretrizes éticas para essa prática, incluindo a necessidade de vínculo genético com um
dos membros do casal e a proibição de caráter comercial na escolha da gestante de
substituição.
Obs: Direito ao Conhecimento da Origem Genética: a questão do sigilo sobre a
identidade do doador de material genético levanta debates éticos e jurídicos,
principalmente em relação ao direito da criança de conhecer sua origem biológica.
Embora o anonimato dos doadores seja uma prática comum, visando proteger sua
privacidade, cresce o entendimento de que as crianças nascidas por essas técnicas
possuem o direito de acessar informações sobre suas origens genéticas.

C. FAMÍLIA MULTIESPÉCIE
A família multiespécie emerge como um conceito contemporâneo que reflete a
crescente inclusão dos animais de estimação no núcleo familiar, destacando a
complexidade das relações humano-animal na sociedade atual.
Esse modelo de família reconhece os animais não apenas como meros pertences,
mas como membros integrais da família, dotados de individualidade, afeto e
merecedores de direitos e considerações éticas.
Os membros humanos dessa família veem seus animais de estimação como
verdadeiros membros da família, frequentemente referindo-se a eles como "filhos de
quatro patas", "irmãos" entre os filhos humanos, ou simplesmente como companheiros
inseparáveis.
Tradicionalmente, o direito civil classifica os animais como bens móveis
semoventes, conforme o art. 82 do Código Civil. Essa classificação, contudo, vem sendo
questionada tanto por movimentos sociais quanto pela academia, que argumentam ser
necessário reconhecer os animais como seres sencientes — capazes de sentir dor, prazer
e emoções —, demandando uma reclassificação que os distinga de objetos inanimados
e reconheça sua capacidade de experienciar a vida de maneira subjetiva.
O Projeto de Lei n. 27/2018 representa um marco na evolução da natureza
jurídica dos animais no Brasil, propondo a transição de sua classificação de bens móveis
para seres sencientes.
Essa mudança visa reconhecer oficialmente que os animais possuem emoções e
sentimentos, e, portanto, merecem proteção legal que considere seu bem-estar e
dignidade.

A consideração dos animais de estimação como membros da família tem levado


a uma série de desafios judiciais, especialmente em casos de divórcio, onde a disputa
pela guarda dos pets reflete a importância emocional atribuída a eles.
Tribunais têm aplicado conceitos como guarda compartilhada ou alternada,
tradicionalmente utilizados para a custódia de crianças, aos animais de estimação,
procurando soluções que melhor atendam ao bem-estar do animal e mantenham seu
vínculo afetivo com os membros humanos da família.
A aplicação da guarda compartilhada aos animais de estimação reflete um
esforço para priorizar o melhor interesse do animal, uma abordagem que busca
equilibrar os direitos e responsabilidades dos humanos com a saúde física e psicológica
do animal.
Esse enfoque representa um desenvolvimento na proteção dos direitos dos
animais, indicando uma mudança paradigmática na maneira como a sociedade e o
sistema jurídico percebem e valorizam a vida animal.

D. FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS
As famílias simultâneas ou paralelas apresentam um desafio complexo ao
ordenamento jurídico brasileiro, refletindo a pluralidade de configurações familiares
existentes na sociedade contemporânea.
Esse tipo de arranjo familiar ocorre quando um indivíduo mantém,
simultaneamente, dois núcleos familiares distintos, podendo ser configurado por um
casamento e uma união estável ou por duas uniões estáveis, com diferentes parceiros.
O ordenamento jurídico brasileiro é baseado no princípio da monogamia, que
proíbe o matrimônio com mais de uma pessoa simultaneamente, reforçando o dever de
lealdade e fidelidade recíproca entre os cônjuges.
Esses princípios são fundamentais para o reconhecimento e a proteção das
relações familiares no Brasil, estabelecendo limites para a constituição de vínculos
familiares simultâneos.
Diante desse cenário, o segundo relacionamento em uma configuração de família
simultânea é, frequentemente, classificado como concubinato, conforme descrito no
art. 1.727 do Código Civil.
Essa relação, marcada pela ausência de eventuais encontros entre o homem e a
mulher impedidos de casar, não é reconhecida com os mesmos direitos atribuídos às
famílias constituídas por casamento ou união estável, limitando-se aos direitos
obrigacionais para a partilha de bens adquiridos durante a relação.
Apesar da resistência dos Tribunais Superiores em reconhecer as famílias
simultâneas ou paralelas, algumas decisões judiciais têm adotado uma postura mais
flexível, considerando as mudanças sociais e a necessidade de proteger os direitos
fundamentais dos indivíduos envolvidos.
Essas decisões tendem a valorizar aspectos como o respeito e a consideração
mútua, a ostensividade e a publicidade da relação, o objetivo de comunhão de vida e a
mútua assistência moral e material, reconhecendo, em certos casos, a existência de uma
família.
A discussão sobre as famílias simultâneas ou paralelas evidencia a tensão entre
os princípios jurídicos tradicionais e a dinâmica das relações familiares na sociedade
atual.
Embora o sistema jurídico mantenha o princípio da monogamia como regra, é
imperativo reconhecer e adaptar-se às novas configurações familiares, buscando
soluções jurídicas que garantam a proteção dos direitos e o bem-estar de todos os
envolvidos, sem discriminação.
A evolução das decisões judiciais, nesse sentido, sinaliza um caminho para a
inclusão e o reconhecimento das diversas formas de constituição familiar, respeitando
os princípios de afetividade, cuidado e proteção mútua.

E. PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA OU MULTIPARENTALIDADE


A legislação brasileira contempla a família socioafetiva, reconhecendo o
parentesco socioafetivo, que é estabelecido por laços de afeto e convivência,
independentemente da origem consanguínea.
Esse reconhecimento jurídico é evidenciado em normas como o art. 1.593 do
Código Civil, que define o parentesco natural ou civil, podendo resultar de
consanguinidade ou de outra origem.
A Lei de Registros Públicos, por exemplo, permite que o enteado ou a enteada
adote o nome de família do padrasto ou da madrasta, desde que haja concordância
expressa, demonstrando a valorização dos vínculos afetivos sobre os biológicos.
Art. 57. [...] §8º O enteado ou a enteada, se houver motivo justificável, poderá requerer
ao oficial de registro civil que, nos registros de nascimento e de casamento, seja
averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja
expressa concordância destes, sem prejuízo de seus sobrenomes de família.
Da mesma forma, legislações como a Lei Maria da Penha e a Lei de Alienação
Parental ressaltam a afetividade como fator relevante para a caracterização de relações
familiares, protegendo o direito à convivência familiar saudável e ao afeto nas relações
familiares.
EX: Lei Maria da Penha Art. 5º. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica
e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: III -
em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com
a ofendida, independentemente de coabitação.
EX: Lei de Alienação Parental Art. 3º A prática de ato de alienação parental fere direito
fundamental da criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, prejudica a
realização de afeto nas relações com genitor e com o grupo familiar, constitui abuso
moral contra a criança ou o adolescente e descumprimento dos deveres inerentes à
autoridade parental ou decorrentes de tutela ou guarda.
A família multiparental, uma inovação no direito de família brasileiro, representa
uma realidade onde coexistem a parentalidade biológica e a socioafetiva, reconhecendo-
se assim a possibilidade de uma pessoa ter mais de um pai ou mãe, baseado tanto em
laços biológicos quanto em laços afetivos.
Esse conceito reflete uma evolução significativa na compreensão das estruturas
familiares, destacando a importância dos vínculos afetivos na formação da identidade e
do bem-estar da criança ou adolescente.
Parentalidade Biológica vs. Parentalidade Socioafetiva
Historicamente, a parentalidade no Brasil foi compreendida predominantemente
sob a ótica biológica. No entanto, ao longo das décadas, especialmente a partir dos anos
70, surgiram discussões e decisões judiciais que começaram a valorizar a parentalidade
socioafetiva — a relação parental estabelecida pelo vínculo de afeto, cuidado e amor,
independentemente da existência de laços biológicos.
A disputa entre a prevalência da parentalidade biológica sobre a socioafetiva, ou
vice-versa, gerou debates jurídicos e sociais. Com o tempo, o reconhecimento da
parentalidade socioafetiva ganhou força, sendo cada vez mais aceito pela doutrina e pela
jurisprudência como um elemento fundamental na constituição da família.
Um marco importante nesse contexto foi o julgamento pelo Supremo Tribunal
Federal (STF) do RE n. 898.060, em 2016, sob o regime de repercussão geral. O STF
estabeleceu que a paternidade ou maternidade socioafetiva, declarada ou não em
registro público, não exclui a possibilidade do reconhecimento concomitante da filiação
biológica, com todos os efeitos jurídicos advindos de ambas as formas de parentalidade.
Esse entendimento assegura que todos os pais, sejam eles biológicos ou
socioafetivos, têm a autoridade parental, e a criança ou adolescente tem garantidos
todos os direitos provenientes dessa relação, incluindo o reconhecimento, direitos
alimentícios, sucessórios, entre outros.
A decisão do STF sobre a família multiparental consolida a possibilidade de uma
pessoa ser legalmente reconhecida como filho ou filha por mais de dois pais ou mães,
refletindo a realidade de muitas famílias brasileiras.
Essa concepção ampliada de família promove a proteção integral da criança e do
adolescente, garantindo-lhes o direito ao afeto, à dignidade e ao bem-estar, além de
reconhecer a diversidade das configurações familiares na sociedade.
A família multiparental desafia conceitos tradicionais de parentalidade e família,
exigindo uma adaptação das instituições jurídicas e sociais para atender às necessidades
dessas novas estruturas familiares.
Ao fazer isso, o direito de família brasileiro demonstra a sua capacidade de evoluir
e de abraçar a pluralidade das relações familiares, assegurando que todos os vínculos
afetivos importantes na vida de uma criança ou adolescente sejam juridicamente
reconhecidos e protegidos.
Legislação e Parentalidade Socioafetiva
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei de Registros Públicos são
exemplos de dispositivos legais que reconhecem e facilitam a formalização dos vínculos
socioafetivos.
O ECA, por exemplo, permite a adoção unilateral do enteado pelo companheiro
ou cônjuge do genitor, mantendo os vínculos de filiação entre o adotado e o genitor
biológico, além de estender esses laços ao genitor socioafetivo.
Adicionalmente, a introdução dos Provimentos n. 63/2017 e n. 83/2019 pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) marcou um avanço considerável no reconhecimento
legal das famílias formadas por laços de afetividade no Brasil, expandindo a
compreensão e a proteção jurídica das relações familiares para além dos laços
biológicos.
Essas normativas permitem a formalização da parentalidade socioafetiva,
oferecendo um marco legal para a inclusão dessas relações nos registros civis e
assegurando a igualdade de direitos entre todos os filhos, independentemente de sua
origem.
Os provimentos do CNJ refletem uma mudança paradigmática na concepção de
família, reconhecendo que os vínculos afetivos são tão fundamentais quanto os laços
sanguíneos para a constituição de uma unidade familiar.
Essa abordagem alinha-se com a tendência contemporânea de valorizar a
diversidade familiar e de proteger todas as formas de expressão afetiva que contribuem
para o desenvolvimento saudável e harmonioso de seus membros.
A possibilidade de averbação da parentalidade socioafetiva nos registros de
nascimento simplifica e legitima o processo pelo qual os pais socioafetivos podem ser
legalmente reconhecidos.
Ao estabelecer critérios claros e procedimentos simplificados para essa
averbação, os provimentos facilitam a oficialização desses vínculos, promovendo a
segurança jurídica para as famílias e garantindo os direitos dos filhos socioafetivos em
pé de igualdade com os filhos biológicos.
A formalização da parentalidade socioafetiva tem implicações significativas nos
direitos sucessórios e previdenciários, assegurando que os filhos socioafetivos possam
herdar e reivindicar benefícios previdenciários da mesma forma que os filhos biológicos.
Essa equiparação de direitos é crucial para a proteção financeira e emocional dos
filhos, independentemente da maneira como a família foi constituída.
Apesar dos avanços promovidos pelos provimentos do CNJ, persistem desafios
relacionados à implementação plena e uniforme dessas normas em todo o território
nacional. A sensibilização de registradores civis, juízes e da sociedade em geral sobre a
importância da parentalidade socioafetiva é fundamental para garantir que todas as
famílias sejam reconhecidas e protegidas de forma equitativa.
Além disso, a evolução contínua das estruturas familiares e das relações afetivas
sugere a necessidade de adaptações futuras na legislação e nas políticas públicas, para
assegurar que o direito de família continue a refletir e a respeitar a diversidade das
formações familiares na sociedade contemporânea.

F. FAMÍLIA MOSAICO (RECOMPOSTA OU RECONSTITUÍDA)


A família mosaico, também conhecida como recomposta ou reconstituída,
representa um fenômeno crescente na dinâmica social contemporânea, refletindo a
capacidade das pessoas de formar novos laços afetivos após experiências de rupturas
familiares.
Esse tipo de família é caracterizado pela união de indivíduos que, provenientes
de relacionamentos anteriores, se reorganizam para estabelecer um novo núcleo
familiar, que pode incluir filhos biológicos ou adotivos de relações prévias, além de novos
filhos comuns ao casal.
A construção dessas novas estruturas familiares está intrinsecamente ligada ao
princípio da afetividade, fundamentando-se na criação de laços afetivos, convivência e
cuidado mútuo entre seus membros.
A socioafetividade torna-se o eixo central dessas relações, onde o afeto é
reconhecido como elemento essencial na formação dos vínculos parentais,
independentemente dos laços biológicos.
Esse aspecto é relevante no contexto das famílias mosaico, onde a dinâmica
familiar é, frequentemente, marcada pela presença de filhos que não compartilham
laços biológicos com um dos genitores ou ambos.
A família mosaico se conecta intimamente ao conceito de família multiparental,
na medida em que ambas refletem a pluralidade e complexidade das relações familiares
modernas.
Enquanto a família mosaico se concentra na reorganização de núcleos familiares
pré-existentes, incorporando membros de relações anteriores em uma nova
configuração, a família multiparental foca na coexistência de vínculos biológicos e
socioafetivos, reconhecendo legalmente múltiplas figuras parentais na vida de uma
criança ou adolescente.
As famílias mosaicos e multiparentais exemplificam a evolução das estruturas
familiares, demonstrando a importância de reconhecer a diversidade das configurações
familiares e a relevância dos laços afetivos.
A legislação brasileira, por meio de dispositivos legais e provimentos do CNJ, vem
se adaptando a essa realidade, proporcionando mecanismos para o reconhecimento e
proteção dessas relações, assegurando os direitos e o bem-estar das crianças e
adolescentes envolvidos, bem como o respeito à dinâmica de cada família.

G. FAMÍLIA ANAPARENTAL
Embora o ordenamento jurídico brasileiro não reconheça expressamente a
família anaparental, a doutrina e a jurisprudência têm avançado na aceitação dessa
configuração familiar como um núcleo legítimo, fundamentado no princípio da
socioafetividade.
Esse reconhecimento reflete a compreensão de que as relações familiares são
construídas muito além dos laços biológicos, dando ênfase à afetividade, ao cuidado e à
solidariedade entre seus membros.
Um exemplo do reconhecimento jurídico das famílias anaparentais é a
possibilidade de adoção por uma dupla de irmãos, como demonstrado no caso julgado
pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) sob o REsp n. 1217415 / RS.
Nesse caso, o STJ reconheceu a validade da adoção póstuma, consolidando o
entendimento de que a formação de um ambiente familiar saudável e seguro prevalece
sobre a estrutura tradicional da família.
O tribunal enfatizou que os irmãos, vivendo sob o mesmo teto e compartilhando
laços afetivos, constituem uma família apta a proporcionar o desenvolvimento integral
do adotado.
A jurisprudência também tem reconhecido a família anaparental no contexto da
proteção do bem de família. No REsp 159851 / SP, o STJ considerou que um imóvel
habitado por dois irmãos solteiros constitui uma entidade familiar, garantindo a
impenhorabilidade do bem conforme previsto pela Lei 8.009/90.
Essa decisão ressalta a importância da moradia para a manutenção e a
estabilidade do núcleo familiar, independente da sua configuração tradicional.

V. PANORAMA GERAL DAS DIVERSAS FORMAS DE FAMÍLIA


A trajetória recente do direito de família no Brasil ilustra uma profunda
transformação, marcada pelo progressivo abandono de concepções tradicionais e
exclusivistas em favor de uma abordagem mais abrangente e inclusiva que reconhece a
rica diversidade das estruturas familiares.
Essa evolução não se limita a uma mera adaptação formal; ela reflete uma
mudança paradigmática na compreensão dos laços familiares, privilegiando os princípios
de afetividade, igualdade e respeito às diferenças individuais como pilares fundamentais
nas relações familiares.
Impulsionado por avanços legislativos significativos e decisões judiciais pioneiras,
o direito de família brasileiro tem se alinhado cada vez mais aos princípios
constitucionais de dignidade da pessoa humana e igualdade de direitos.
Essa transformação legislativa e jurisprudencial não apenas reconheceu a
legitimidade de novas configurações familiares — como as famílias recompostas,
homoafetivas, monoparentais e anaparentais — mas também assegurou a proteção e o
reconhecimento dessas formações no âmbito legal.
Por meio dessas mudanças, o direito de família no Brasil tem demonstrado uma
capacidade notável de responder às demandas de uma sociedade em constante
evolução, promovendo uma visão de família que valoriza a diversidade humana e a
pluralidade de experiências familiares.
Assim, o direito de família contemporâneo se consolida como um campo jurídico
mais humanizado e sensível às realidades sociais, garantindo que todas as formas de
constituição familiar sejam reconhecidas, respeitadas e protegidas igualmente.

Bons Estudos!!!
Pensem nesse processo de aquisição do conhecimento como uma aventura, onde cada
caso estudado, cada lei analisada é uma peça do quebra-cabeça da vida real.
Vocês têm a chance de aprender, de serem inspirados e de inspirar outros com o
conhecimento que adquirem.
Abram suas mentes e corações para essa jornada, permitindo-se serem movidos pela
curiosidade e pela paixão pelo aprendizado.
Profa. Christiane Rabelo

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