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A estrofe 19 corresponde ao início da Narração, “in media res”, à semelhança do que acontecia
nas epopeias da Antiguidade Clássica. Assim, a armada de Vasco da Gama já se encontrava a meio da
viagem, em pleno oceano Índico. Através da leitura desta estrofe e da seguinte, torna-se notório o
entrecruzamento de dois planos narrativos na obra: a viagem de Vasco da Gama ocorre
simultaneamente ao Consílio dos deuses do Olimpo. Deste modo, o plano central da obra (a viagem de
Vasco da Gama pelo mar até à Índia) articula-se com o plano do maravilhoso (a presença dos deuses),
dele sendo dependente. Será uma constante ao longo de Os Lusíadas — os deuses pagãos intervêm nos
assuntos humanos, que são afetados pela vontade dos deuses.
Deste modo, Baco opõe-se ao sucesso de Vasco da Gama e dos seus marinheiros. O deus do
vinho receia perder o prestígio e a fama que tem no oriente.
Vénus, por sua vez, considera que os lusitanos merecem chegar à Índia. Existem duas razões por
trás desta posição: vê nos Portugueses atributos semelhantes aos dos Romanos, nomeadamente pelas
suas qualidades guerreiras e pela língua, idêntica à latina. Para além disso, sabe que os Portugueses a
tornarão célebre onde quer que cheguem.
Marte defende que a opinião de Baco é suspeita, pois o que o motiva é a inveja e o receio de
perder a fama. Segundo o deus da guerra, se Baco fosse levado pela razão, apoiaria os portugueses, já
que estes descendem de Luso, companheiro do deus do vinho. Assim, na sua intervenção, o deus da
guerra elabora um discurso argumentativo de natureza persuasiva, tentando levar Júpiter a não voltar
atrás com a palavra dada. Refere que se ele o fizer estará a mostrar fraqueza e que, sendo ele o deus
dos deuses, não deverá dar ouvidos a Baco, já que o ponto de vista deste não é neutro. Segundo o
Poeta, o apoio prestado aos nautas Portugueses pelo deus da guerra tem por base duas possíveis
razões: a admiração da força e da coragem dos portugueses (ou seja, o mérito intrínseco) ou a paixão já
antiga por Vénus que o faria apoiar a causa da deusa do amor.
É interessante a descrição de Marte nas estâncias 36 e 37. O deus é descrito com os seus
símbolos caracterizadores — o “forte escudo”, o “elmo de diamante”, o bastão — e, psicologicamente,
sendo deus da guerra, aborda Júpiter de uma forma agressiva e determinada: “medonho e irado”, “mui
seguro”, “armado, forte e duro”. Ao bater com o “conto do bastão” no solo, faz tremer o céu e assusta
Apolo que “um pouco a luz perdeu, como infiado”. O estado de espírito de Marte justifica-se por já se
Na sequência da intervenção do deus da guerra, Júpiter mantém a sua posição inicial e, anuindo
com um sinal de cabeça, aprova as palavras de Marte.
Este episódio contém uma carga simbólica importante. Os deuses representam as dificuldades
impostas aos nautas lusitanos pelos elementos naturais, mas também outras vicissitudes que estes têm
de ultrapassar para chegar à Terra Prometida. O facto de as entidades do Olimpo se reunirem para
decidirem o futuro de simples mortais constitui uma forma de engradecer, enaltecer, glorificar e
mitificar o herói coletivo desta epopeia: o povo português.
O narrador começa por se referir à “próspera vitória” de Afonso IV na Batalha do Salado (118).
Esta referência reveste-se de alguma importância, porquanto o espírito guerreiro do Rei será reforçado
em estrofes ulteriores — quer pelo narrador (123), quer pela própria Inês (128) — para contrastar o
poder dos seus habituais adversários com a fragilidade da vítima cuja sentença de morte decretará.
Em contraste com a estrofe anterior, surge a descrição do estado idílico e enamorado do par
amoroso. Desde logo se nota que se trata de uma felicidade ilusória — no fundo, um “engano de alma,
ledo e cego,/ Que a fortuna não deixa durar muito.” O “sossego” de Inês, que “colhe”, inconsciente, o
“doce fruito” dos seus anos, é efémero, na medida em que a implacável fortuna (o Destino) a conduzirá
à morte precoce. Note-se a presença da Natureza como confidente do Amor de Inês: o Mondego, como
pano de fundo, recebe as suas lágrimas que nunca se esgotam (“nunca enxuito”), e quer os montes,
quer as “ervinhas” ecoam o nome de D. Pedro, repetido por Inês (“Aos montes insinando e às ervinhas/
O nome que no peito escrito tinhas”; Cf. Estrofe 133, em que os “côncavos vales” repetem o nome de
Pedro, última palavra de Inês neste mundo). Por sua vez, o Príncipe, quando ausente, vivia das
“lembranças”, dos “doces sonhos”, dos “pensamentos” que lhe surgiam na mente, em estado extático
E todavia, apesar de tudo ser “memórias de alegria”, surgem vários indícios trágicos: Inês é
apresentada como alguém que vive um sonho “lego e cego”; o narrador pressagia que tal estado não
durará muito; apresentam-se os “saudosos campos do Mondego”, que os olhos de Inês inundam de
lágrimas; referem-se os “doces sonhos que mentiam” e os “pensamentos que voavam”. Para além disso,
lembre-se que o narrador já havia avisado que o “caso” era “triste e dino da memória”, e que a sua
protagonista, “mísera e mesquinha”, “despois de ser morta foi Rainha” (118). Toda a felicidade é, por
conseguinte, efémera, eivada de indícios de tragédia.
A figura de Afonso IV ressurge na estrofe 122, para decretar a morte de Inês: “O velho pai sesudo
(...) Tirar Inês ao mundo determina.” Nas estrofes 122 e 123, o narrador enumera as razões que o
conduzem a tão perversa sentença:
Para além disso, acrescenta o narrador que a morte de Inês é a única maneira de dar um fim
ao“aceso fogo” do “firme amor” que Pedro sente pela dama “colo de garça”. Repare-se no jogo de
palavras com o verbo “tirar”. Por um lado, o vero remete para a morte de Inês (tirar a vida); por outro,
para o facto de Pedro estar prisioneiro do amor que sente (por lhe tirar o filho). A interrogação retórica
com que encerra a estrofe 123 tem como objetivo reprovar os acontecimentos que depois se sucederão.
O narrador evidencia indignação pelo facto de Afonso IV usar contra Inês a mesma força que usou
contra os mouros (note-se a antítese: “o grande peso/ do furor mauro” vs. “uma fraca dama delicada”).
As estrofes 124 e 125 criam o cenário para o discurso e a morte de Inês. Surgem várias
personagens: “os horríficos algozes”, “o rei, já movido a piedade”, “o povo, com falsas e ferozes/
razões” e Inês, com os seus filhos, “mininos (...) que tão queridos tinha e tão mimosos”. A descrição da
postura da amada de D. Pedro coaduna-se com o seu papel de vítima injustiçada, que suplica a piedade
do Rei poderoso. Desde o quinto verso da estrofe 124 até ao fim da estrofe 125 temos a introdução do
seu discurso. Todo o texto modaliza (caracteriza) a forma como a dama se dirige ao rei. A sua voz triste e
magoada (“tristes e piedosas vozes”), os olhos erguidos “pera o céu cristalino” e para os filhos
contextualizam a súplica a Afonso IV. Inês tenta suscitar piedade no Rei, referido, por isso, como “avô”,
de modo a denotar a relação afetiva existente entre ele e as crianças, cuja “orfindade” Inês, “como
mãe”, temia acima de tudo. Aliás, percebe-se um claro investimento da parte do narrador em criar uma
imagem pura e nobre de Inês. Esta lamenta, “mais que a própria morte”, a “mágoa e a saudade”
antecipada do seu “príncipe e filhos”, bem como a orfandade dos mesmos. Denuncia-se, neste ponto,
Durante o seu discurso perante o “avô cruel”, Inês tenta apelar à misericórdia, assumindo um
discurso persuasivo, no qual domina a função apelativa da linguagem. Em resumo, os argumentos de
Inês são os seguintes:
• Até os animais ferozes e as aves de rapina têm piedade para com as crianças, logo, o Rei
também deverá ser piedoso para com os filhos de Inês e, portanto, deixá-la viver. Note-se a importância
do valor condicional da conjunção “se”, da qual se tira uma consequência. Ou seja, se os animais
selvagens são capazes de compaixão, também o rei, por consequência, o deverá ser. Refira-se,
igualmente, os exemplos de Nino e dos “irmãos que Roma edificaram” (Rómulo e Remo) usados com a
mesma finalidade argumentativa (126 e 127).
• Não é humano matar uma donzela fraca, só por se ter apaixonado por quem a soube
conquistar. Através deste argumento (que aparece parenteticamente), Inês desresponzabiliza-se,
remetendo a culpa do erro que D. Afonso IV lhe atribui à força inexorável do Amor, que sujeita
inapelavelmente os seres humanos. Note-se, também aqui, o uso da conjunção “se”, com valor
condicional (127, vv. 2-4).
• Afonso IV, tal como soube dar morte aos mouros, deve saber dar a vida. Neste caso, Inês
atribui ao Rei um poder quase divino (o de dar a morte e a vida), referindo a sua magnanimidade como
estratégia de persuasão pela lisonja. Veja-se, mais uma vez, o uso da conjunção subordinativa
condicional (“se (...) a morte sabes dar (....) sabe também”), o uso do modo imperativo (“sabe”), e a
ausência de culpa (“A quem pera perdê-la na fez erro” (128)).
• Se, apesar da sua inocência, o rei a quiser castigar, que a condene ao exílio numa região tórrida
ou gelada onde possa viver com os seus filhos. Note-se o uso da conjunção coordenativa adversativa
(“Mas, se to assi merece esta inocência (...)” (isto é, se o rei, apesar de tudo, ainda a considerar
culpada...)), da anáfora da forma de modo imperativo (“Põe-me”) e o valor da antítese (“Cítia fria”/
“Líbia ardente”), que sugere o desespero de Inês (nem sequer era importante o lugar do seu desterro,
desde que pudesse permanecer viva (128);
• A finalizar o seu discurso, Inês lembra o amor de mulher (“Naquele por quem mouro”) e de
mãe (“mãe triste”), e a orfandade das vítimas inocentes que Afonso IV iria criar. Note-se o contraste
conseguido através dos advérbios “aqui” e “ali”, que intensificam a crueldade do ato do Rei. Ou seja,
“ali”, em espaço inóspito, Inês poderia ser mais feliz do que “aqui”, junto de seres humanos. Veja-se,
também, o uso do determinante demonstrativo “estas”, associado à metáfora “relíquias”, que funciona
como reforço do apelo de Inês, procurando presentificar o discurso, criando um certo visualismo na
leitura (129).
Nas estrofes 130 e 131, o leitor toma conhecimento de que o Rei, comovido pelas palavras de
Inês (“movido das palavras que o magoam”), se sentiu inclinado a perdoar-lhe, mas nem “pertinaz povo”
nem o destino (já referido na estrofe 120) lhe concedem igual perdão. Verifique-se o efeito reprovador,
oriundo de um sentimento de indignação, conseguido pela interrogação retórica (usada como
apóstrofe) e pelas antíteses (“dama”/ “carniceiros”; “feros”/ “cavaleiros”).
A comparação longa (131 e 132: “Qual (...) Tal (...)”) entre o sacrifício de Polycena e Inês visa
salientar a serenidade com que a amada de D. Pedro aceitou a morte, reiterando a nobreza do seu
carácter, e também mostrar que a morte de Inês se tratou de uma necessidade política (um “sacrifício”,
portanto).
Note-se o paralelismo entre as duas estrofes: Polycena/ duro Pirro e Inês/ brutos matadores; “Co
ferro duro Pirro se aparelha”/ “as espadas (...) se encarniçavam, férvidos e irosos”. A brutalidade dos
carrascos de Polycena e Inês contrasta com a tranquilidade de cada uma das vítimas, uma vez mais com
o intuito de suscitar piedade no leitor-ouvinte.
Por outro lado, refere-se, na estrofe 132, a coroação de Inês por D. Pedro (“Aquele que despois a
fez Rainha”) e a vingança do príncipe (“No futuro castigo não cuidosos”).
Na estrofe 133, o narrador personifica e invoca o Sol, fazendo uso da apóstrofe, para lhe dizer
que ele poderia ficar tão chocado com a execução de Inês como com a “mesa de Tiestes”, episódio
clássico, em que este come, sem saber, os próprios filhos. Esta invocação visa, sobretudo, conferir ao
episódio uma ampla dimensão trágica, com ressonâncias intemporais. Simultaneamente, a expressão
“côncavos vales” é usada para reforçar a dimensão espacial do cenário descrito, fazendo imaginar o eco
das últimas palavras de Inês, clamando por D. Pedro (Cf. 120)
A estrofe 134, por sua vez, apresenta ao leitor uma comparação muito expressiva e viva. A
“morta (...) donzela” é comparada a uma flor, “cândida e bela”, cortada antes do tempo, que foi
maltratada pelas mãos de uma menina traquina (o Destino, ele próprio, é desajeitado e injusto). Note-se
o uso da antítese nos dois últimos versos. O final deste episódio remete para a lenda de Inês de Castro
tal qual foi imortalizada em Coimbra. As ninfas do Mondego choraram durante muito tempo a morte da
póstuma Rainha e transformaram as suas lágrimas numa fonte a que chamaram “dos amores de Inês”.
Note-se o convite dirigido ao leitor-ouvinte para contemplar o espetáculo descrito: “Vede que fresca
fonte rega as flores,/ Que lágrimas são a água e o nome Amores!”.
• Várias apóstrofes (ao Amor, a Inês, aos algozes, ao Sol, aos côncavos vales, ao leitor), que
denotam a subjetividade e a expressão de sentimentos, sensações, meditações, por parte do “eu”.
Dele ressalta essencialmente a emoção, através de uma descrição dinâmica e sensível, quer do
grupo que assiste à partida, quer do grupo que parte em busca do Império predestinado.
A estrofe 84 situa mais concretamente a acção descrita – “no porto da ínclita Ulisseia”- e dá
início a uma sentida descrição de todo o cenário que tomava a praia. “Cum alvoroço nobre e cum
desejo”, os jovens aventureiros estavam prontos a enfrentar o seu destino, sem que o medo face ao
desconhecido pudesse “refrear” a sua ousadia. Os nautas estavam divididos em dois grupos fulcrais – “a
gente marítima e a de Marte”- por cada um desempenhar responsabilidades diferentes ao longo da
viagem. Os primeiros ocupavam-se de todas as tarefas relacionadas com o governo das naus, os
segundos garantiam a segurança da tripulação e defendiam-na de ataques inimigos.
A estrofe 86 dá continuidade à descrição do ritual de partida, já que enuncia uma nova etapa da
preparação – a religiosa. Preparadas as naus, chegara o momento de preparar as “almas” também,
recorrendo a uma celebração religiosa, na qual os nautas imploraram o favorecimento de Deus na luta
contra o mar e contra a morte.
A estrofe 92 encaminha o leitor para os instantes imediatamente anteriores à entrada nas naus,
pelo que a própria natureza reflecte, movida ”de alta piedade”, os sentimentos disfóricos
experienciados pela turba humana (personificação). Por fim, a hipérbole contida nos últimos versos – “A
branca areia as lágrimas banhavam, /que em multidão co elas se igualavam.”- culmina as referências
descritivas do episódio, corporizando toda a dor expressa através das “lágrimas” depositadas na areia.
Vasco da Gama finaliza o episódio com renovadas referências aos nautas (“Nós)”, que percorrem
o areal sem fitar “A Mãe, nem a Esposa” para não ficarem emocionados e desesperados, o que
motivaria o receio diante da viagem.
O valente capitão determina, então, a partida sem qualquer tipo de despedida para não
intensificar o sofrimento de “quem se aparta, ou fica”.
A aparência horrenda do gigante é sugerida ainda antes de ele surgir, quando, nas estrofes 37 e
38 do canto V, se refere a formação de uma “temerosa nuvem negra”, acompanhada dos bramidos do
mar irado. Este aspeto negro e carregado do céu e do mar funciona como um prenúncio do
aparecimento de qualquer coisa terrível, que vem a corporizar-se no Adamastor. De facto, nas estrofes
39 e 40 é feita a descrição do terrível gigante, para a qual concorre a adjetivação expressivamente
utilizada: figura “robusta e válida” “De disforme e grandíssima estatura”, “rosto carregado” e “barba
esquálida”, “olhos encovados”, “postura medonha e má e cor terrena e pálida”, “cheios de terra e
crespos os cabelos”, “boca negra” , “dentes amarelos”, “tom de voz horrendo e grosso”. Em seguida,
A sua aparição enche de medo o coração dos marinheiros (“nos pôs nos corações um grande
medo”; “Arrepiam-se as carnes e o cabelo / A mi e a todos só de ouvi-lo e vê-lo”), mas Vasco da Gama
não se deixa vencer pelas terríveis ameaças e, recuperando a sua dimensão herói épico, ergue-se e
enfrenta o gigante com a inesperada pergunta “Quem és tu?”. Efetivamente, se na primeira parte do
seu discurso, o Adamastor se apresenta como senhor do mar desconhecido, ameaçando os portugueses
que queriam devassar os seus domínios secretos, e profetizando para eles duros castigos futuros, na
segunda parte do seu discurso, o gigante, obrigado por Vasco da Gama que o interpela, identifica-se
como o Cabo Tormentório, o senhor daqueles mares, que afinal não passa de um pobre ser a quem a
paixão por Tétis conduziu à humilhação que ele quis esconder, refugiando-se no “fim do mundo”.
A imagem do gigante e do terror que ela inspira traduzem as dificuldades sentidas pelos
navegadores na passagem do oceano Atlântico para o oceano Índico, ao dobrarem o cabo das
Tormentas. É, mais uma vez, um processo de enaltecimento do herói épico, que enfrenta a vingança dos
elementos naturais, da audácia dos navegadores portugueses, que se atreveram a penetrar em espaços
até então inacessíveis ao homem.
A figura do Adamastor surge, no poema de Camões, como símbolo dos perigos terríveis que os
portugueses tiveram que enfrentar e ultrapassar com coragem e audácia. Num plano mais vasto, ele
representa o maior de todos os obstáculos, na realização de qualquer viagem, seja qual for a natureza
dessa viagem – o medo do desconhecido. Ele é a força intransponível e desconhecida do mar, o símbolo
das forças cósmicas que continuamente limitam o homem. Perante o desconhecido, os navegadores
enfrentam o terror, desvendam os seus mistérios e o desconhecido deixou de o ser.
O episódio simboliza, portanto, a vitória sobre o medo, que os perigos ignorados da natureza
provocavam. Por tudo isto, este é um episódio fundamental na construção do herói épico que,
vencendo o medo do desconhecido, se ultrapassa a si próprio. Não é por acaso que este episódio ocupa
o lugar central no poema épico, canto V.
A estrofe 70 tem início com a utilização da conjunção coordenativa adversativa “Mas” que
estabelece uma transição entre a tranquilidade anterior dos marinheiros e a preparação da
Na estrofe 72, a metáfora do primeiro verso sublinha a forma como a tempestade, entendida
como fúria divina, descontrola os marinheiros amedrontados, gerando, igualmente, discórdia, o que é
provocado pela inundação sofrida pelo barco, como se verifica pela perífrase do último verso. O mestre
da embarcação continua a dar instruções para minorar as consequências, como se verifica pela
utilização do imperativo e da anáfora nos versos cinco e seis. Pede, também, espírito de grupo e
entendimento, o que se revela fundamental face ao agravamento da situação bem evidente pela
utilização da conjugação perifrástica - “imos alagando”.
Na estrofe 73, é bem evidente a ousadia dos nautas que lutam contra a presença da tempestade,
mas com resultados ineficientes. De salientar os hipérbatos presentes nesta estância, destacando os
esforços dos nautas na luta contra este fenómeno atmosférico.
Na estrofe 74, salienta-se a força vigorosa dos ventos reiterada pela oração subordinada
consecutiva que hiperboliza a crueldade dos elementos naturais. Destaca-se a metáfora presente nos
versos três e quatro, mostrando que a tempestade tinha como propósito aniquilar o sonho português,
que se caracteriza pela sua dimensão física, mas também psicológica/ espiritual (a viagem como meio
que permite passar do conhecido para o desconhecido). Note-se que a Torre de Babel é, segundo a
Bíblia, uma torre que os Hebreus tentaram erguer para atingir o céu. De referir a oposição entre a
grandeza do mar e o pequeno batel que, surpreendentemente, ainda conseguia navegar contra as
impetuosas ondas. De destacar a superlativação do adjetivo – “altíssimos”- para caracterizar a grandeza
do mar.
Na estrofe 75, verifica-se as más condições da nau onde segue Paulo da Gama, daí a invocação
ao divino, como se constata pela perífrase do verso quatro. O receio está presente também na nau de
Nicolau Coelho, como se constata pelas sensações auditivas, apesar da inutilidade dos gritos, pois a
tempestade persiste.
Na estrofe 78, o advérbio de tempo “nunca” demonstra a fúria singular e insólita dos raios de
Vulcano, deus do fogo. Acrescenta-se que Júpiter enviou muitos relâmpagos, tornando esta tempestade
mais grave do que aquela que originou um naufrágio do qual só se salvaram Deucalião e a sua esposa. ·
A tendência hiperbolizante é visível nas duas comparações mitológicas relativas aos raios e relâmpagos.
Na estrofe 79, valoriza-se as consequências provocadas pela fúria da natureza, ideia evidenciada
pelo paralelismo anafórico dos versos um e três. A tendência hiperbolizante é visível, ainda, na descrição
dos montes, das árvores, das raízes e das areias do fundo do mar que sofreram vários danos.
Na estrofe 80, o poeta centra a atenção na figura de Vasco da Gama, desesperado porque via o
sonho da Índia perdido. De destacar o paralelismo anafórico dos versos três e quatro e a antítese céu-
inferno para mostrar a potência da tempestade. Gama, amedrontado e temendo a morte, invoca o
divino, como se verifica pela perífrase do verso sete, já que acredita no poder milagroso desta entidade.
Na estrofe 82, nos versos dois, três e quatro, Vasco da Gama relembra as várias dificuldades que
os nautas enfrentaram durante a viagem. De seguida, usando uma interrogação retórica, demonstra que
entende a tempestade como um castigo divino. Por isso, acredita que foram desamparados por Deus,
não compreendendo tal decisão, pois um dos objetivos da viagem era expandir a fé cristã por terras
infiéis.
Na estrofe 83, a interjeição presente no início da estância e a exclamação dos primeiros quatro
versos demonstram a honra com que morreram aqueles que lutaram em África contra os mouros. Os
versos cinco, seis e sete, através do paralelismo anafórico, destacam que estes ficarão na memória
eterna. Os jogos de palavras ganhar/ perder, com sentido antitético, pretendem evidenciar que a morte
física dá lufar à vida eterna. Já o último verso contém um eufemismo que valoriza a morte honrada,
pois, na perspetiva de Gama, é preferível uma morte heroica e conhecida em África a combater, do que
um desaparecimento provocado por naufrágio anónimo, sem honras, nem vitórias, que conduzirá ao
entorpecimento.
Nas estrofes 86 a 91, Vénus mostra que se tratou de uma obra maléfica de Baco, mas este terá
sempre a deusa do Amor como oponente. De seguida, esta ordena às ninfas que se enfeitem para que
possam, com a sua beleza hiperbolizada – “Que mais fermosas vinham que as estrelas” – acalmar e
seduzir os ventos. De destacar o discurso de Oritia que atemoriza Bóreas, ameaçando-o com a ausência
do seu amor caso ele não acalme a sua atitude insensata, acrescentando que passará a temê-lo em vez
de amá-lo. Galateia procede do mesmo modo com Noto que, ao ver a Nereida, logo se acalma. Todas as
outras Ninfas conseguiram tranquilizar os ventos. Vénus prometeu-lhes os amores as ninfas, desde que
eles demonstrem lealdade no decorrer do percurso marítimo.
Na estrofe 92, o Poeta conta a chegada à Índia, como se verifica pela perífrase do verso dois.
Salienta-se a simbologia da “manhã clara”, conotativamente associada ao ritual do início e à esperança.
De seguida, anuncia-se o desaparecimento do medo, através da metáfora e aliteração em v do verso
seis.
Na estrofe 93, os quatro primeiros versos confirmam, pela voz do piloto Melindano, a chegada à
Índia, mostrando-se que o objetivo está cumprido, mas deixando entrever que se a ambição continuar,
o percurso marítimo rumo ao conhecimento é interminável Nos últimos quatro versos, Gama ajoelha-se
humildemente e agradece a Deus a graça concedida, atitude reforçada pela antítese chão/ céu e a
hipérbole “as mãos no céu”.
Para a ajudar a preparar uma boa receção das Ninfas aos portugueses solicita ajuda ao seu filho,
Cupido, contudo encontra-o prestes a partir para uma inesperada missão – castigar os homens que
amam aquilo que existe apenas para ser usado. Recrimina, igualmente, os que preferem o desporto da
caça ao convívio com os outros homens: os poderosos, mais preocupados consigo mesmos do que com
o bem público; os frequentadores do paço, aduladores do rei; os religiosos que antepõem a riqueza ao
serviço dos pobres; as leis que favorecem o rei e não o povo.
Este é um dos muitos momentos de crítica social de Os Lusíadas. A propósito de Cupido, o poeta
aproveita para tecer uma crítica aos seus contemporâneos a quem acusa de viverem presos a interesses
pessoais e valores materiais, em vez de amarem os valores mais autênticos.
Para ilustrar a perseguição das ninfas pelos marinheiros e jogo de sedução que entre uns e
outras se desenrola, Camões exemplifica com o par de Leonordo / Efire. Esta perseguição amorosa
funciona como um pequeno episódio dentro do grande episódio da Ilha dos Amores.
Lionardo é um soldado “bem desposto”, um cavalheiro sempre disponível para o Amor, e por
isso habituado a sofrer, mas ainda com esperança de ver mudar a sua má sorte amorosa (est.75). na
ilha, cabe-lhe Efire, uma ninfa muito bela que lhe resiste (est.76). “Manhoso”, muito persistente e
persuasivo, Lionardo, correndo atrás da ninfa, tenta convencê-la, através de diversos argumentos:
• A sua má sorte é tanta que, mesmo que a alcance, algo o impedirá de a tocar.(est.78)
• É fraqueza colocar-se ao lado da sua infelicidade e, já que ela lhe roubou o coração, se quiser
fugir, deve devolver-lho, pois ele só pode pesar-lhe. (est.80)
• É a esperança de ela mudar a sua má sorte, amando-o também, que o faz correr. (est.81)
A insistência dos argumentos de Lionardo convencem Efire, que se entrega. (est.82). A estrofe 83
funciona como uma espécie de conclusão deste pequeno episódio, correspondendo à descrição do
ambiente sensual que os marinheiros e as ninfas vivem na Ilha dos Amores e que é contemplado e
explicado na estrofe 84: os marinheiros casam, simbolicamente, com as ninfas. É esse casamento que
está representado nas coroas de flores, louro e ouro que elas lhes oferecem, nas mãos dadas e nas juras
de amor eterno que tecem.
Simbologia:
Na viagem de regresso a Portugal, Vénus prepara aos marinheiros uma recompensa pelos
perigos que enfrentaram, corajosamente. Fá-los aportar a uma ilha paradisíaca, povoada por belas
ninfas. Ao vencer todos os obstáculos da viagem, os marinheiros ganham o estatuto de heróis,
semelhantes a deuses e, por isso, têm entrada no mundo dos deuses. O prémio que recebem é um
prémio digno de Vénus, o mais sublime dos prémios, o amor e a imortalidade. Na verdade, unindo-se às
ninfas, num casamento simbólico, os marinheiros recebem das suas mãos as coroas de louro, que
representam e imortalidade alcançada pelos heróis.
Esta ilha imaginária pertence, pois, ao plano do sonho que dá sentido à existência, o sonho pelo
qual os nautas lutaram, arriscando a vida e vencendo, e por isso merecem ser coroados como heróis, ou
seja, ser imortalizados.
O Poeta apresenta-se ao rei como guerreiro e poeta, a quem não “falta na vida honesto estudo, /
Com longa experiência misturado” (est.154), qualidades acrescentadas com o engenho. Assim, oferece
ao Rei o seu talento de poeta e o seu braço de soldado, na esperança de que o monarca, continuando os
feitos do passado, vá combater no Norte de África e dê ao poeta motivos para novo canto.
Significado:
Os Lusíadas são uma epopeia na qual se reflecte o optimismo do Renascimento, crente nas
capacidades do homem. No entanto, não é apenas esta visão optimista que está bem patente na obra. A
par da glorificação dos heróis que fizeram grande a Pátria e o homem e devem, por isso, servir de
exemplo, está presente um desencanto e um pessimismo por parte do poeta, que olha para o Portugal
seu contemporâneo com tristeza, nostalgia e desalento. Não podemos esquecer que Camões publicou
Os Lusíadas 74 anos depois da viagem de vasco da Gama, num momento em que o Império Português
estava já em decadência e um futuro negro se pressentia.
É esse desalento que está patente no final da epopeia. O poeta canta o heroísmo do passado
como exemplo, mas quer também mostrar aos seus contemporâneos a falta de grandeza do Portugal
presente, erguendo-se contra o adormecimento da pátria, metida “No gosto da cobiça e na rudeza /
Dhua austera, apagada e vil tristeza” (est. 145) e incentivar o rei a conduzir os portugueses a um futuro
de novo glorioso, a uma nova era de orgulho nacional.
O poema encerra, pois, com desalento, mas também esperança, com uma mensagem que abarca
o passado, o presente e o futuro. A glória do passado deverá ser encarada como exemplo presente para
construir um futuro glorioso.
FIM