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Como Podemos Compreender a Neuropsicologia?
Djalma Freitas

Em meados do século XVIII, Pomme tratou e curou uma histérica


fazendo-a tomar banhos de 10 a 12 horas por dia, durante dez meses.
Ao término desta cura contra o ressecamento do sistema nervoso e o
calor que o conservava, Pomme viu porções membranosas
semelhantes a pedaços de pergaminho molhado se desprenderem
com pequenas dores e diariamente saírem na urina, o ureter do lado
direito se despojar por sua vez e sair por inteiro pela mesma via. O
mesmo ocorreu com os intestinos que, em outro momento, se
despojaram de sua túnica interna, que vimos sair pelo reto. O esôfago,
traquéia-artéria e a língua também se despojaram e a doente lançara
vários pedaços por meio de vômito ou de expectoração. [..] eis como,
menos de 100 anos depois, um médico – Bayle – percebe uma lesão
anatômica do encéfalo e seus invólucros; trata-se das falsas
membranas que frequentemente se encontram nos indivíduos
atingidos por meningite crônica. [...] as falsas membranas são
frequentemente transparentes, sobretudo quando muito delgadas; mas
habitualmente apresentam uma cor esbranquiçada, acinzentada,
avermelhada, e mais raramente, amarelada, acastanhada e
enegrecida. Esta matéria oferece quase sempre matizes diferentes
segundo as partes da mesma membrana. [...] A organização das falsas
membranas apresenta igualmente muitas diferenças: as delgadas são
cobertas por uma crosta, semelhante às películas albuminosas dos
ovos e sem estrutura própria distinga. As outras, muitas vezes,
apresentam, em uma de suas faces, vestígios de vasos sanguíneos
entrecruzados em vários sentidos e injetados. São constantemente
redutíveis a lâminas superpostas entre as quais são, com muita
frequência, interpostos coágulos de um sangue mais ou menos
descolorido [...] entre o texto de Pomme que conduzia os velhos mitos
da patologia nervosa à sua última forma e do de Bayle que descrevia,
para uma época que ainda é a nossa, as lesões encefálicas da paralisia
geral, a diferença é ínfima e total. Total para nós, na medida em que
cada palavra de Bayle (...) guia nosso olhar para um mundo de
constante visibilidade, enquanto o texto precedente nos fala a
linguagem, sem suporte perceptivo, das fantasias” (Foucault, M.
(2001). O Nascimento da clínica. Editora Forense-Universitaria, Rio de
Janeiro. p. XI).

A descrição que Foucault (2001) faz acerca da linguagem e o modo de


acesso a compreensão e descoberta do quadro patológico tratado por Pomme e
Bayle nos traz algumas constatações e questionamentos sobre o papel das
investigações sobre patologias humanas. Em primeiro lugar, ambas as
descrições partem de linguagens distintas que trazem implicações igualmente
diferentes sobre a compreensão da patologia em questão. Isto é, Pomme
descreve, em uma linguagem coloquial o que pôde observar sobre a patologia
que sua enferma estava submetida. Para isso, ele, Pomme, precisou submeter

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a pessoa a procedimentos terapêuticos e observar o que acontecia com ela ao
longo da evolução do quadro. Pomme, com procedimentos terapêuticos, traz
para o campo do visível, daquilo que é passível de observação, a patologia,
fazendo isto através de uma linguagem que, para os tempos atuais, não seriam
aceitas com facilidades, uma vez que, a uniformidade de sua fala, perante a
outras pessoas que venham a tratar a patologia em questão, é questionável.
Temos que concordar que nem todos concordarão que as membranas
excretadas pela urina se parecem com pergaminhos molhados. Numa direção,
a qual diríamos ser próxima e diferentemente válida a de Pomme, Bayle traz ao
campo do visível/observável, através do uso de uma linguagem próxima ao que
chamamos de científica, a patologia. Sua descrição parece ser mais precisa e
capaz de acessar mais de uma pessoa da mesma forma. Ou seja, é mais
provável que dois médicos ou profissionais envolvidos acessem no campo do
visível “[...] vestígios de vasos sanguíneos entrecruzados [...]” do que “[...]
porções membranosas semelhantes a pedaços de pergaminho molhado se
desprenderem [...]”. Em segundo lugar, devemos concordar que, mesmo
considerando a distância temporal entre Pomme e Bayle, bem como, ao que
fazemos atualmente, ambos buscam algo muito próximo que é trazer para o
campo do visível, observável e compartilhável a enfermidade demonstrando um
rico transitar entre o tipo de linguagem e o quão acurado ou preciso é o acesso
que podemos ter sobre aquilo que não podemos acessar diretamente com os
nossos recursos sensoriais sozinhos.
Na evolução da investigação de patologias, ao longo dos séculos e anos,
duas coisas sempre estiveram em questão, ou pelo menos infere-se que
estivessem ou estão em questão: A nossa capacidade de ter acesso àquilo que
a pele esconde e a relação disso com o que podemos observar com nossos
órgãos dos sentidos. No campo da avaliação neuropsicológica não foi e não tem
sido diferente. A busca sempre é a relação entre o visível e o invisível.
É na intersecção entre o visível e o invisível que nossos exames de
sangue, exames de imagens, nossos testes psicológicos, nossos instrumentos
multidisciplinares, nossos inventários etc., se encontram na tentativa de trazer
para o campo do visível, observável e compartilhável aquilo que reside por de

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baixo da pele e que se manifesta comportamentalmente. É neste sentido que a
neuropsicologia transita.
As definições que Mäder-Joaquim (2010) – abaixo – traz acerca da
Neuropsicologia descrevem, de modo atual, o que precisamos compreender
acerca deste campo de conhecimento e atuação.
A Neuropsicologia preocupa-se com a complexa organização cerebral e
suas relações com o comportamento e a cognição, tanto em quadros de
doenças como no desenvolvimento normal [...] (p. 47) [...] a Neuropsicologia
Clinica está mais voltada para o desenvolvimento de técnicas de exame e
diagnóstico de alterações, enfocando principalmente as doenças que afetam o
comportamento e a cognição (p. 47) [...] A Avaliação Neuropsicológica
consiste no método de investigar as funções cognitivas e o comportamento.
Trata-se da aplicação de técnicas de entrevistas, exames quantitativos e
qualitativos das funções que compõem a cognição abrangendo processos de
atenção, percepção, memória, linguagem e raciocínio. (p. 47, grifos nossos).
Importante perceber que, embora estejamos falando da relação que se
estabelece entre aquilo que acontece dentro do cérebro humano com o
comportamento observável, a neuropsicologia em sua pluralidade de definições
vai ser compreendida, tal como Hazin, Fernandes, Gomes e Garcia (2018)
destacam, a partir de seus focos, atuações, objetivos e aplicações. Isto é, mesmo
que integrados e congruentes, é modo de aplicação do domínio neuropsicológico
que vai determinar sua definição dentro deste contexto de relação
cérebro(corpo)-comportamento. Ou seja, como Mäder-Joaquim (2010, p. 47)
destaca que a Neuropsicologia se preocupa com as relações entre cognição e
comportamento. Entretanto, clinicamente falando, o foco da Neuropsicologia
reside na criação e exame de instrumentos que nos permitem identificar
patologias possíveis e que podem trazer implicações sobre esta relação
(cognição e comportamento). Já em nível de avaliação a preocupação da
neuropsicologia enquanto avaliação está na investigação das funções
cognitivas, ou seja, aqui buscasse a compreensão da cognição em termos de
funções que se relacionam com o comportamento da pessoa.

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Para Hazin et al (2018),

O domínio neuropsicológico pode ser compreendido a partir de três


vertentes complementares. Na primeira, a neuropsicológica é
considerada uma disciplina clínica que objetiva identificar o perfil de
déficits cognitivos apresentado por pacientes que sofreram lesões
cerebrais. Trata-se igualmente, em uma segunda vertente, de uma
disciplina neurocientífica, que consiste no estabelecimento de
correlações anátomo-clínicas, possibilitando uma melhor compreensão
acerca das operações elementares, da dinâmica e da plasticidade das
funções cognitivas. Por fim, é caracterizada como uma disciplina
cognitiva, no sentido em que considera o desempenho em testes e
tarefas obtidos por sujeitos com lesões cerebrais, fórmula testes de
hipótese a partir de teorias cognitivas elaboradas com base nos
estudos realizados com sujeitos saudáveis, contribuindo para melhor
compreensão acerca da cognição humana (p. 1139)

Como podemos notar a partir de Hazin et al (2018) a Neuropsicologia vai


ser definida em três domínios 1) compreensão de funções cognitivas implicadas
em lesões cerebrais; 2) na relação entre funções cerebrais e cognitivas com o
comportamento da pessoa – modo de funcionamento talvez seja o termo mais
apropriado – e; 3) como uma disciplina interessada na compreensão entre
padrões nomotéticos e idiográficos (Windelband 1894/1998) nas relações
cérebro-comportamento.
Em suma, podemos considerar a Neuropsicologia como um campo vasto
de atuação com uma pluralidade importante em seus caminhos de atuação. Com
isso, compreendemos a Avaliação neuropsicológica como a busca, através de
instrumentos e observações clínicas, de compreensão das funções cognitivas,
aqui entendidas como funcionamento cerebral, em relação ao modo de
funcionamento comportamental da pessoa para fins de apoio diagnóstico e
planejamento de intervenção.

Referências Bibliográficas

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FOUCAULT, M. O Nascimento da Clínica, Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001.

HAZIN, Izabel; FERNANDES, Isabel; GOMES, Ediana e GARCIA,


Danielle.Neuropsicologia no Brasil: passado, presente e futuro. Estud. pesqui.
psicol. [online]. 2018, vol.18, n.spe, pp. 1137-1154. ISSN 1808-4281.

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