Você está na página 1de 6

1

CBI of Miami
DIREITOS AUTORAIS
Esse material está protegido por leis de direitos autorais. Todos os direitos
sobre o mesmo estão reservados.
Você não tem permissão para vender, distribuir gratuitamente, ou copiar e
reproduzir integral ou parcialmente esse conteúdo em sites, blogs, jornais ou
quaisquer veículos de distribuição e mídia.
Qualquer tipo de violação dos direitos autorais estará sujeito a ações legais.

2
CBI of Miami
Como Podemos Compreender a Neuropsicologia?
Djalma Freitas

Em meados do século XVIII, Pomme tratou e curou uma histérica fazendo-a


tomar banhos de 10 a 12 horas por dia, durante dez meses. Ao término desta cura
contra o ressecamento do sistema nervoso e o calor que o conservava, Pomme viu
porções membranosas semelhantes a pedaços de pergaminho molhado se
desprenderem com pequenas dores e diariamente saírem na urina, o ureter do lado
direito se despojar por sua vez e sair por inteiro pela mesma via. O mesmo ocorreu
com os intestinos que, em outro momento, se despojaram de sua túnica interna,
que vimos sair pelo reto. O esôfago, traquéia-artéria e a língua também se
despojaram e a doente lançara vários pedaços por meio de vômito ou de
expectoração. [..] eis como, menos de 100 anos depois, um médico – Bayle –
percebe uma lesão anatômica do encéfalo e seus invólucros; trata-se das falsas
membranas que frequentemente se encontram nos indivíduos atingidos por
meningite crônica. [...] as falsas membranas são frequentemente transparentes,
sobretudo quando muito delgadas; mas habitualmente apresentam uma cor
esbranquiçada, acinzentada, avermelhada, e mais raramente, amarelada,
acastanhada e enegrecida. Esta matéria oferece quase sempre matizes diferentes
segundo as partes da mesma membrana. [...] A organização das falsas membranas
apresenta igualmente muitas diferenças: as delgadas são cobertas por uma crosta,
semelhante às películas albuminosas dos ovos e sem estrutura própria distinga. As
outras, muitas vezes, apresentam, em uma de suas faces, vestígios de vasos
sanguíneos entrecruzados em vários sentidos e injetados. São constantemente
redutíveis a lâminas superpostas entre as quais são, com muita frequência,
interpostos coágulos de um sangue mais ou menos descolorido [...] entre o texto
de Pomme que conduzia os velhos mitos da patologia nervosa à sua última forma
e do de Bayle que descrevia, para uma época que ainda é a nossa, as lesões
encefálicas da paralisia geral, a diferença é ínfima e total. Total para nós, na medida
em que cada palavra de Bayle (...) guia nosso olhar para um mundo de constante
visibilidade, enquanto o texto precedente nos fala a linguagem, sem suporte

3
CBI of Miami
perceptivo, das fantasias” (Foucault, M. (2001). O Nascimento da clínica. Editora
Forense-Universitaria, Rio de Janeiro. p. XI).
A descrição que Foucault (2001) faz acerca da linguagem e o modo de
acesso a compreensão e descoberta do quadro patológico tratado por Pomme e
Bayle nos traz algumas constatações e questionamentos sobre o papel das
investigações sobre patologias humanas. Em primeiro lugar, ambas as descrições
partem de linguagens distintas que trazem implicações igualmente diferentes sobre
a compreensão da patologia em questão. Isto é, Pomme descreve, em uma
linguagem coloquial o que pôde observar sobre a patologia que sua enferma estava
submetida. Para isso, ele, Pomme, precisou submeter a pessoa a procedimentos
terapêuticos e observar o que acontecia com ela ao longo da evolução do quadro.
Pomme, com procedimentos terapêuticos, traz para o campo do visível, daquilo que
é passível de observação, a patologia, fazendo isto através de uma linguagem que,
para os tempos atuais, não seriam aceitas com facilidades, uma vez que, a
uniformidade de sua fala, perante a outras pessoas que venham a tratar a patologia
em questão, é questionável. Temos que concordar que nem todos concordarão que
as membranas excretadas pela urina se parecem com pergaminhos molhados.
Numa direção, a qual diríamos ser próxima e diferentemente válida a de Pomme,
Bayle traz ao campo do visível/observável, através do uso de uma linguagem
próxima ao que chamamos de científica, a patologia. Sua descrição parece ser mais
precisa e capaz de acessar mais de uma pessoa da mesma forma. Ou seja, é mais
provável que dois médicos ou profissionais envolvidos acessem no campo do
visível “[...] vestígios de vasos sanguíneos entrecruzados [...]” do que “[...] porções
membranosas semelhantes a pedaços de pergaminho molhado se desprenderem
[...]”. Em segundo lugar, devemos concordar que, mesmo considerando a distância
temporal entre Pomme e Bayle, bem como, ao que fazemos atualmente, ambos
buscam algo muito próximo que é trazer para o campo do visível, observável e
compartilhável a enfermidade demonstrando um rico transitar entre o tipo de
linguagem e o quão acurado ou preciso é o acesso que podemos ter sobre aquilo
que não podemos acessar diretamente com os nossos recursos sensoriais
sozinhos.
Na evolução da investigação de patologias, ao longo dos séculos e anos,
duas coisas sempre estiveram em questão, ou pelo menos infere-se que
4
CBI of Miami
estivessem ou estão em questão: A nossa capacidade de ter acesso àquilo que a
pele esconde e a relação disso com o que podemos observar com nossos órgãos
dos sentidos. No campo da avaliação neuropsicológica não foi e não tem sido
diferente. A busca sempre é a relação entre o visível e o invisível.
É na intersecção entre o visível e o invisível que nossos exames de sangue,
exames de imagens, nossos testes psicológicos, nossos instrumentos
multidisciplinares, nossos inventários etc., se encontram na tentativa de trazer para
o campo do visível, observável e compartilhável aquilo que reside por de baixo da
pele e que se manifesta comportamentalmente. É neste sentido que a
neuropsicologia transita.
As definições que Mäder-Joaquim (2010) – abaixo – traz acerca da
Neuropsicologia descrevem, de modo atual, o que precisamos compreender acerca
deste campo de conhecimento e atuação.
A Neuropsicologia preocupa-se com a complexa organização cerebral e suas
relações com o comportamento e a cognição, tanto em quadros de doenças
como no desenvolvimento normal [...] (p. 47) [...] a Neuropsicologia Clinica está
mais voltada para o desenvolvimento de técnicas de exame e diagnóstico de
alterações, enfocando principalmente as doenças que afetam o comportamento e
a cognição (p. 47) [...] A Avaliação Neuropsicológica consiste no método de
investigar as funções cognitivas e o comportamento. Trata-se da aplicação de
técnicas de entrevistas, exames quantitativos e qualitativos das funções que
compõem a cognição abrangendo processos de atenção, percepção, memória,
linguagem e raciocínio. (p. 47, grifos nossos)
Importante perceber que, embora estejamos falando da relação que se
estabelece entre aquilo que acontece dentro do cérebro humano com o
comportamento observável, a neuropsicologia em sua pluralidade de definições vai
ser compreendida, tal como Hazin, Fernandes, Gomes e Garcia (2018) destacam,
a partir de seus focos, atuações, objetivos e aplicações. Isto é, mesmo que
integrados e congruentes, é modo de aplicação do domínio neuropsicológico que
vai determinar sua definição dentro deste contexto de relação cérebro(corpo)-
comportamento. Ou seja, como Mäder-Joaquim (2010, p. 47) destaca que a
Neuropsicologia se preocupa com as relações entre cognição e comportamento.
Entretanto, clinicamente falando, o foco da Neuropsicologia reside na criação e
5
CBI of Miami
exame de instrumentos que nos permitem identificar patologias possíveis e que
podem trazer implicações sobre esta relação (cognição e comportamento). Já em
nível de avaliação a preocupação da neuropsicologia enquanto avaliação está na
investigação das funções cognitivas, ou seja, aqui buscasse a compreensão da
cognição em termos de funções que se relacionam com o comportamento da
pessoa.
Para Hazin et al (2018),
O domínio neuropsicológico pode ser compreendido a partir de três vertentes
complementares. Na primeira, a neuropsicológica é considerada uma disciplina
clínica que objetiva identificar o perfil de déficits cognitivos apresentado por
pacientes que sofreram lesões cerebrais. Trata-se igualmente, em uma segunda
vertente, de uma disciplina neurocientífica, que consiste no estabelecimento de
correlações anátomo-clínicas, possibilitando uma melhor compreensão acerca das
operações elementares, da dinâmica e da plasticidade das funções cognitivas. Por
fim, é caracterizada como uma disciplina cognitiva, no sentido em que considera o
desempenho em testes e tarefas obtidos por sujeitos com lesões cerebrais, fórmula
testes de hipótese a partir de teorias cognitivas elaboradas com base nos estudos
realizados com sujeitos saudáveis, contribuindo para melhor compreensão acerca
da cognição humana (p. 1139)
Como podemos notar a partir de Hazin et al (2018) a Neuropsicologia vai ser
definida em três domínios 1) compreensão de funções cognitivas implicadas em
lesões cerebrais; 2) na relação entre funções cerebrais e cognitivas com o
comportamento da pessoa – modo de funcionamento talvez seja o termo mais
apropriado – e; 3) como uma disciplina interessada na compreensão entre padrões
nomotéticos e idiográficos (Windelband 1894/1998) nas relações cérebro-
comportamento.
Em suma, podemos considerar a Neuropsicologia como um campo vasto de
atuação com uma pluralidade importante em seus caminhos de atuação. Com isso,
compreendemos a Avaliação neuropsicológica como a busca, através de
instrumentos e observações clínicas, de compreensão das funções cognitivas, aqui
entendidas como funcionamento cerebral, em relação ao modo de funcionamento
comportamental da pessoa para fins de apoio diagnóstico e planejamento de
intervenção.
6
CBI of Miami

Você também pode gostar