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POLÍTICA E PEDAGOGIA

Contribuições de Lênin sobre a Instrução Pública1


Nereide Saviani

Marco histórico do século XX, a Revolução Russa de 1917 foi uma rica tentativa de
construção socialista. Suas conquistas, seus êxitos e fracassos merecem análise rigorosa,
não como modelo a ser/não ser seguido, mas como referência à discussão teórica,
política e ideológica que tenha por perspectiva a superação do capitalismo. De igual
modo, cabe estudar as concepções que serviram de base aos projetos desenvolvidos nos
diversos domínios da edificação da sociedade, sob o novo regime.

Este artigo trata, principalmente, da compreensão sobre o papel da Educação na


Revolução Russa, na fase inicial, da tomada do poder pelos bolcheviques até meados
dos anos 1920, quando também foram elaborados os Programas Oficiais da URSS.

A Concepção de Educação

As raízes da concepção se encontram em Marx e Engels, na crítica à educação burguesa


e na discussão sobre o papel do Estado, o princípio da união entre escola e trabalho, a
educação integral, a escola única do trabalho.

Lênin denunciou a precária situação da educação dos trabalhadores na Rússia, o que lhe
permitiu o exame dos desafios a enfrentar e medidas a tomar, uma vez realizada a
Revolução. Vários temas educacionais aparecem com muita frequência em seus
discursos e artigos2, dada sua obstinada preocupação com a formação do homem (ser
humano) novo, numa sociedade de novo tipo.

Sua contribuição se sobressai na relação dialética entre concepção e ação concreta,


como líder da Revolução, dirigente do Estado Soviético e do Partido Bolchevique.

Desafios da Revolução
Para Lênin, a Revolução não se encerra com o ato da tomada do poder pelos
bolcheviques. Ao contrário, é aí que ela começa. Exigia-se o restabelecimento das
forças econômicas do país, assentadas em nova base. A instrução seria primordial para a

1
Publicado, originalmente, sob o título O Papel da Educação na Revolução Russa. In: Revista
Princípios. São Paulo Ed. 151 (Nov-Dez 2017). Artigo que consiste em versão resumida de “O Legado
Educacional da Revolução Russa” – Capítulo do livro 100 anos da Revolução Russa: legados e lições,
organizado por Adalberto Monteiro e Osvaldo Bertolino e publicado pela Editora Anita Garibaldi, em
parceria com a Fundação Maurício Grabois. São Paulo, 2017, páginas 81 a 104.
2

O trabalho de “garimpagem” nos 55 volumes das suas Obras Completas de Lênin nos é poupado pela
consulta a algumas coletâneas (Lenine, 1977; Lenin,1981)
formação de trabalhadores capazes de entender e operar em bases técnicas modernas.
Porém, não uma instrução reduzida ao ensino profissional, até então restrito ao
adestramento, na lógica capitalista.

Para tanto, seria necessário: superar os altos índices de analfabetismo, a escassez e a


precariedade das escolas; transformar a formação e as condições de trabalho dos
professores; promover o acesso das mulheres à educação.

Foi preciso, ainda, lidar com pessoas e organizações que não reconheceram o Poder
Soviético: parte do exército, organizações de operários, associações do magistério, que
se mantinham favoráveis ao capitalismo; adversários do regime, mesmo os que se
autodenominavam socialistas.

O enfrentamento a esses desafios exigiu do poder soviético várias medidas, destacadas a


seguir.

1. Eliminar o Analfabetismo

Lênin via na Educação um elemento chave para alavancar as necessárias transformações


na base material e na superestrutura da sociedade. Assim é que colocou o acento na
alfabetização, por ele valorizada tanto quanto a eletrificação. A sociedade precisava
sair da obscuridade física, ambiental e, também, da obscuridade cultural. Não se poria
em prática a eletrificação com a existência de analfabetos. A alfabetização, para
efetivar-se, precisava da eletrificação.

Tais polos foram conjuntamente desencadeados: cada central elétrica seria, também,
base de instrução. O plano de eletrificação seria também o plano das brigadas de
alfabetização. Mas, além de saberem ler, os trabalhadores deveriam ser “cultos,
conscientes, instruídos” – capazes de trabalhar e valorizar o trabalho como prática
social. (Lenine, 1977, p. 37).

Principais medidas do novo regime: construir escolas; recrutar e formar professores;


organizar bibliotecas, mais acessíveis ao povo; associar a instrução pública à educação
extraescolar; relacionar a organização do ensino com a organização do trabalho;
reformar o ensino; promover a organização do poder local.3

2. Organizar a Instrução Pública


Constituiu-se o Comissariado do Povo para a Instrução Pública e suas seções: a) Seção
Escolar; b) Seção Científica; c) Seção Artística; d) Seção Científico-Pedagógica.

Ampliou-se o número de escolas elementares e secundárias, foram criadas instituições


pré-escolares (os jardins de infância) e escolas para jovens e adultos.

3
Importante medida foi a multiplicação das bibliotecas e livrarias, presentes nas cidades e nas áreas
rurais, em fábricas, usinas, fazendas, sindicatos, clubes e quaisquer organizações, chegando a altíssimos
índices de frequência às salas de leitura, empréstimos de títulos das bibliotecas circulantes e aquisições de
obras nas livrarias. Além de jornais, distribuídos diariamente aos trabalhadores.
Ocorreram avanços também no nível superior, antes restrito às elites. Criaram-se
universidades e instituições científicas, ampliou-se o número de pesquisadores.
Sublinha-se que, nos colégios, universidades e instituições científicas, as mulheres
atingiam cerca de 1/3 dos estudantes, professores e pesquisadores.

3. Edificar a Escola Única do Trabalho


Marx e Engels defendiam a responsabilidade do Estado em relação à educação – na
construção, manutenção e desenvolvimento das escolas – mas sob o controle e a
fiscalização dos trabalhadores, organizados.

Nessa perspectiva, o poder proletário dedicou-se a construir a escola única do


trabalho, com a seguinte definição: Escola Única – por seu caráter unitário, não de
uniformidade, mas de unidade na diversidade. Não várias escolas, instituições
independentes e isoladas, mas uma escola, articulada em seus vários níveis, graus,
modalidades, instâncias de decisão e de realização. Do trabalho, como ação humana,
mediada por técnicas e instrumentos cada vez mais desenvolvidos; ação coletiva,
consciente, disciplinada, organizada, com valores de cooperação. Educação integral: 1)
Educação Intelectual: instrução científica – aquisição dos conhecimentos (estudo
metódico da cultura humana). 2) Educação física: formação corporal (ginástica, dança
e atividades desportivas); higiene (orientação para a saúde); estética: (desenho,
escultura, pintura, música instrumental, canto). 3) Educação Politécnica: relação entre o
estudo e o trabalho, como prática social: domínio das bases da indústria moderna, em
seu desenvolvimento histórico; uma base sólida de conhecimentos gerais, associada à
formação profissional, que não se confunde com a mera instrução para ocupações
específicas.4

4. Instituir a Educação Extraescolar


Lênin insistia que o ensino não se desliga da política. Nos programas escolares os
objetivos educacionais, definidos pelo Poder Soviético, eram explícitos: travar a luta
conta a burguesia; contribuir para a construção do socialismo.

Principal tarefa: instruir as massas trabalhadoras sobre o que há de mais avançado na


produção humana, ajudando-as a superar os problemas herdados do capitalismo e a
construir a nova sociedade. Isso não é outra coisa que o vínculo da Educação com a
política revolucionária do proletariado. Desafio: ligar indissoluvelmente cada passo da
atividade da escola à luta de todos os trabalhadores contra a exploração. Contradição
principal presente na concepção de Educação almejada pelo Poder Soviético: lutar

4
Os programas escolares incluem o conhecimento dos inúmeros tipos de indústria: condições de seu
desenvolvimento; matérias primas e sua produção/aquisição; relação com a natureza; relações técnicas e
sociais de produção; características dos métodos de produção e perspectivas de seu aprimoramento;
contribuições da ciência e da tecnologia; o desenvolvimento humano (condições de trabalho, segurança,
seguridade, remuneração, jornada, saúde dos trabalhadores e da população em geral); trabalho infantil e
trabalho da mulher; relações internacionais de produção; circulação e repartição dos bens;
profissões/tarefas envolvidas na produção, condições de desempenho e necessidades formativas;
organização do trabalho nas fábricas e sua relação com a organização do trabalho em geral; história e
desenvolvimento atual do movimento operário e sindical (na URSS e nos países capitalistas), entre outros
fatores. (KRUPSKAYA, s/d; LENINE, 1977: LENIN, 1981; LUNATCHARSKI, 1988; PROGRAMAS
OFICIAIS, 1935 – vários trechos).
contra a burguesia, sem destruir o seu legado. Ou seja, edificar o socialismo com as
forças humanas os meios materiais herdados das sociedades anteriores.

Todavia, nas condições de imenso atraso da maioria da população em relação a aspectos


mínimos de escolaridade, quem detinha os conhecimentos e as técnicas eram as pessoas
formadas nos padrões da velha escola, privilégio das classes exploradoras. Impossível
abrir mão de docentes e especialistas oriundos dessa formação. Alguns, até simpáticos
às novas propostas. Outros, opositores ferrenhos. Eis, aí, a política na escola. Sem
garantia de que os princípios da nova concepção fossem os vencedores. Mas com a
oportunidade de apropriação daquilo que, sempre, fora monopolizado, numa escola
injusta na difusão do conhecimento (aos burgueses, conhecimento científico; aos
proletários, adestramento). Não somente assimilação dos conhecimentos, mas sua
apropriação, com espírito crítico – tarefa dificilmente cumprida pela escola, naquelas
condições.

Para difundir às massas a nova concepção de educação e de sociedade, criou-se a


Educação Extraescolar – que consistia em ações das organizações proletárias: os
Sindicatos (de docentes e de outras categorias), a União de Mulheres, as organizações
infantis (Pioneiros) e juvenis (Konsommol). Sempre no espírito do coletivismo.
Impulsionar a luta (econômica, política e teórica-ideológica) das várias categorias seria
tarefa prioritária dos sindicatos, articulados entre si e com as demais organizações.

5. Colocar a Educação a serviço da Emancipação


Na perspectiva marxista de educação integral, a educação como formação humana, o
objetivo maior é a emancipação da humanidade – somente possível na sociedade sem
classes, mas que deve ser forjada no socialismo, como longo período de transição da
forma mais exacerbada de exploração (o capitalismo) para um regime de tipo superior,
sem exploradores e explorados (o comunismo).

Constante preocupação com a educação revolucionária dos comunistas, a formação do


homem novo e da mulher nova consiste na luta pela elevação da sociedade humana à
maior altura, desembaraçando-se da exploração do trabalho. A instrução pública e a
educação extraescolar devem servir a essa luta, promovendo-se o desenvolvimento
múltiplo (físico, intelectual, emocional, cultural, ético, estético, técnico, político) de
crianças e jovens de ambos os sexos.

Grande desafio da revolução: a emancipação das mulheres. A educação teria de


enfrentá-lo por meio de ações voltadas não somente às meninas e moças, mas
igualmente aos meninos e rapazes, estendendo-se também aos adultos, homens e
mulheres – tendo por objetivos: a) exercer controle social sistemático para superar
sobrevivências do passado; b) liquidar o analfabetismo entre as mulheres; c) combinar
educação social com educação familiar; d) garantir às mulheres o direito ao estudo; e)
enfrentar de modo novo os problemas milenares – conceitos de matrimônio,
maternidade e família; papel e tarefas da mulher; direitos e saúde da mulher; sua
condição na sociedade.
Avanços se conseguiram no âmbito da propaganda – repercutindo na mudança de
discurso (ideias e propostas para se romper com a situação de subalternidade da
mulher). Mas, quando confrontados com a vida cotidiana, jovens e adultos (inclusive
mulheres) eram flagrados com argumentos e atitudes mais condizentes com valores
machistas...

Corroborava-se, assim, a formulação do socialista utópico Fourier, destacada por Engels


(s/d, p. 309), na crítica das relações entre os sexos e da posição da mulher na sociedade:
“o grau de emancipação da mulher numa sociedade é o barômetro natural pelo qual se
mede a emancipação geral”.

O Legado
Nossa hipótese é que o desenvolvimento da concepção de escola única do trabalho e os
esforços empreendidos para sua edificação constituem o principal legado educacional da
Revolução Russa de 1917.

Para a União Soviética, com certeza. E, por seu exemplo, para os demais países que
viveram (e vivem) a experiência de construção do socialismo, com todos os problemas
peculiares a períodos de transição de um regime centrado no capital para uma sociedade
centrada no trabalho. Neles, a educação tem merecido lugar de destaque, jamais encontrável
em países capitalistas.

Nesse legado, destacam-se: a erradicação do analfabetismo; a elevação do nível de


conhecimento das massas; a formação de cientistas e profissionais com alta capacidade
tecnológica; o alto desenvolvimento das forças produtivas.

Para além da URSS (e de outros países socialistas) o legado está nos ensinamentos para
a luta do proletariado em todos os países, ontem e hoje: contribuições a outros autores
para pensar e repensar a Educação ainda nos marcos do capitalismo.

A defesa da Escola Unitária e da Politecnia tem alimentado a luta pela educação


pública, gratuita, universal, laica e de qualidade nos movimentos e fóruns de
educadores, estudantes e trabalhadores de várias categorias, em âmbito internacional e
em diversos países. No Brasil, uma importante expressão desse legado é a Pedagogia
Histórico-Crítica, cujo principal elaborador é o filósofo e educador Dermeval Saviani
(2003).

Problemas relacionados à formação integral das jovens gerações, ao trabalho como


princípio educativo, à inexorável relação entre educação e política são frequentemente
(re) colocados a cada reforma educacional, como assistimos, hoje, no Brasil, no
enfrentamento às propostas e medidas de cunho neoliberal.

São “clássicos” problemas educacionais, que permanecem enquanto não são criadas as
condições, objetivas e subjetivas, para sua solução.

________
Referências
ENGELS, F. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. Obras Escolhidas de
Marx e Engels. São Paulo, Alfa-Ômega, vol 2.

KRUPSKAIA, N. Acerca de la Educacion Comunista - Articulos y Discursos.


Traducido del ruso por V. Sanchez Esteban. Moscú. Ediciones en Lenguas Extranjeras.
S/d.

LENINE, V. I. Sobre a Educação. Lisboa: Seara Nova, 1977. [02 vols.]

LENIN. La Instrucción Pública. Moscú: Editorial Progreso, 1981.

LUNATCHARSKI, A. Sobre a Instrução e a Educação. Artigos e Discursos.


Tradução de Filipe Guerra. Moscou. Edições Progresso, 1988.

MARX, K.; ENGELS, F. Crítica da Educação e do Ensino. Introdução e notas de


Roger Dangeville. Lisboa. Moraes Editores, 1978.

PROGRAMAS OFICIAIS. A Educação na República dos Soviets. São Paulo: Cia.


Editora Nacional, 1935.

SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores


Associados, 8ª. ed. Revista e ampliada, 2003.

SAVIANI, N. O legado educacional da Revolução Russa. In: BERTOLINO, O.;


MONTEIRO, A. (orgs). 100 anos da Revolução Russa: legados e lições São Paulo:
Editora Anita Garibaldi; Fundação Maurício Grabois, 2017, p. 81-104.

NEREIDE SAVIANI é Doutora em História e Filosofia da Educação pela PUC-SP e


membro do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois.

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